o estado de s paulo

Rosângela Bittar: Balé de sombras

Alcolumbre está ocupado em tempo integral na montagem das batalhas pela reeleição

De hoje até o dia D da sucessão das presidências da Câmara e do Senado, serão 110 dias, tempo suficiente para correção de rumos.

Na Câmara, está claro o processo da disputa de duas forças políticas. De um lado, o governo. O deputado Arthur Lira torna-se representante do Palácio do Planalto e, se for eleito, transfere o comando da Câmara ao próprio presidente Jair Bolsonaro.

De outro, a Câmara propriamente dita. A entrega da presidência ao controle preferencial dos deputados, o que representaria a continuidade da liderança de Rodrigo Maia. Depois de aparecerem vários favoritos, o candidato do grupo autonomista à presidência, no momento, é Baleia Rossi, do MDB de São Paulo.

Com as bênçãos do atual presidente e alavancado pelo trabalho de aliciamento do ex-presidente Michel Temer. Que, atuando em causa própria, elegeu-se presidente da Casa em três legislaturas. Temer é reconhecido como o maior especialista nestas negociações típicas da atividade parlamentar.

Já a sucessão da presidência do Senado tornou-se um balé de sombras. O atual presidente, senador Davi Alcolumbre, persegue um desfecho do tipo ilegítimo e ilegal.

Alcolumbre voluntariou-se para reeleger-se. Uma decisão pessoal, cuja razão real ainda não emergiu.

Como se o instituto da reeleição, por si só, já não envolvesse tantas dúvidas e clamores por sua extinção, Alcolumbre acrescentou outras transgressões. A começar pela hipótese de exigir uma decisão judicial para viabilizar seu desejo. O presidente do Senado assumiu tal obstinação e paralisou as atividades da Casa.

No último domingo, 11 de outubro, em reportagem no Estadão, Amanda Pupo listou os itens do “paradão” do Senado. Nas votações suspensas ou adiadas estão urgências, como o novo marco legal do mercado de gás, as regras para regulação dos setores ferroviário e elétrico, sem falar das votações em sessões conjuntas do Congresso. Que não avançam porque dependem da atuação do presidente do Senado, ocupado em tempo integral na montagem das suas mirabolantes batalhas pela reeleição.

O silêncio do Senado conta com a conivência da oposição, dos ex-governadores, dos estreantes, dos antigos e de todos. Indiferentes às ações do presidente da Casa, que só age quando se torna premente usar, através da sua, a mão oculta do governo na definição das pautas.

Na verdade, o Senado sempre teve uma tradição de vida serena, em oposição à trepidante Câmara. Ou seja, cada um, ali, faz o que quer, sem ser incomodado. Paz quebrada, em períodos da história, por independentes bons de briga e de discurso, como foram o senador Pedro Simon, por 30 anos, ou, muito remotamente, o legendário senador Teotônio Vilela. Agora, nem isto.

A imobilidade do Senado é estratégica. Os ex-governadores, experientes em composições esdrúxulas nas bases estaduais, tendem a repetir o descompromisso ao assumir o Senado.

E a oposição não tem oportunidade de se exercitar. Como se vê pelo repertório do seu líder, Randolfe Rodrigues. Que se sobressai muito mais nas votações do Supremo do que no próprio Senado. Mais advogado do que senador. Mais demandante judicial que parlamentar em ação.

E, à falta do Centrão, que inexiste no Senado, o governo caça com Alcolumbre. O Senado resolveu se tornar, de fato, uma Casa secundária. Presta-se pouca atenção ao que lá se passa e, sobretudo, ao que não se passa.

O Congresso, de fato, não se renovou. Câmara e Senado seguem como orquestras paralelas. E o velho maestro arranjador de outros tempos, senador Renan Calheiros, acaba de retornar ao posto para reforçar a pretensão de Davi Alcolumbre, que o destituiu e agora se beneficia de seu apoio e renovado fôlego.

Numa composição esperta, que dá a Bolsonaro tempo livre para abandonar-se à obsessão contagiante: a sua própria campanha da reeleição.


Pedro Fernando Nery: Desigualdade do engatinhar

Crianças que não se desenvolvem plenamente se tornarão adultos às margens do mercado de trabalho que virarão custo para o Estado

Na última década, o crescimento da economia brasileira esteve abaixo do de 90% dos países. Com o fim do bônus demográfico, será cada vez mais importante para o nosso futuro o crescimento da produtividade (a renda que cada trabalhador consegue gerar), já que o PIB não poderá depender de muitos trabalhadores entrando na força de trabalho (pois eles serão cada vez menos). Mas a produtividade cresce pouco no Brasil. O desafio é bem ilustrado pelo cálculo de Fabio Giambiagi: se a produtividade nas próximas três décadas crescer o mesmo que cresceu nas últimas três, não sairemos do lugar. Teremos em 2050 aproximadamente a mesma renda per capita que tínhamos antes da pandemia.


A bebê era nervosa e tinha atrasos no desenvolvimento. Foi após seguidas visitas domiciliares que uma agente identificou o problema. Os pais não deixavam ela engatinhar. Haviam se mudado há pouco para a casa de chão áspero e irregular: temiam que a garotinha se machucasse se fosse para o chão.

A agente instalou uma espécie de trilha como solução, que permitiu que a criança passasse a se locomover. Ela floresceu. “Antes era brava e nervosa. Agora é bagunceira”, contou a mãe em matéria de Flávia Oshima, da revista Época, sobre o Mais Infância – programa cearense de visitação domiciliar voltado para o desenvolvimento infantil.

Essa “desigualdade do engatinhar” é importante porque o desenvolvimento nos primeiros anos de vida está associado ao desempenho na escola nos anos seguintes e ao sucesso no mercado de trabalho. Em especial os primeiros mil dias, que constituem um “estirão” do desenvolvimento – como resumiu neste Dia das Crianças a deputada Paula Belmonte. A desigualdade nessa fase antecipa a das fases seguintes.

O engatinhar em si está até relacionado à capacidade de resolver problemas e de aprender, mas o relato do sertão cearense é emblemático em mostrar como os brasileiros são diferentes desde este momento. O Renda Brasil pode ser uma grande oportunidade de combater as desigualdades desde esse início.

A ampliação das escassas transferências de renda contribui para reduzir as privações a que crianças pobres estão submetidas e o estresse no domicílio, mesmo papel que cabe à inclusão das mães no mercado de trabalho. Expandir a rede de creches pode contribuir com cuidado de maior qualidade. Fortalecer o programa nacional de visitação domiciliar – o Criança Feliz – ajuda a ensinar os pais a estimularem seus filhos desde logo, como evidencia o caso do Mais Infância Ceará.

Como sabemos, porém, essas políticas ainda não foram consideradas prioritárias o suficiente para terem financiamento garantido. Além dessas, a história do sertão ressalta a relevância das políticas de habitação. Seja com apoio estatal direto como no Casa Verde e Amarela/MCMV, ou combatendo as regras que limitam a oferta de imóveis nos grandes centros, o fato é que a políticas habitacionais podem ser chave para a infância – sobretudo num país que crianças não têm acesso a creche.

Estudos têm sugerido que a qualidade das residências pode afetar as capacidades cognitivas e emocionais das crianças, em parte por prejudicar o comportamento das mães (Coley et al., 2012) e que os efeitos negativos de crescer em lares com adensamento excessivo se prolongariam até a vida adulta, prejudicando renda e saúde (Solari e Mare, 2012; Marsh et al., 2010). Já filhos de famílias que precisam gastar muito de sua renda com aluguel teriam resultados cognitivos piores (Newman e Holupka, 2014).

Aqui, dados do IBGE mostram que crianças predominam sobre as demais faixas etárias em medidas de vulnerabilidade nas condições do domicílio: estão mais expostas a adensamento excessivo, ônus excessivo com aluguel, ausência de banheiro exclusivo e paredes externas construídas com materiais não duráveis. O mesmo ocorre no que se refere ao saneamento, o que quer dizer que o engatinhar de crianças mais pobres compete com o de insetos e ratos.


Naercio Menezes e Bruno Komatsu, do Insper, traçam a ligação entre as privações da primeira infância e o problema de produtividade da economia brasileira, em estudo publicado neste mês (Uma Proposta de Ampliação do Bolsa Família para diminuir a Pobreza Infantil). Se neste momento gastar mais com a infância parece contraproducente para os esforços de equilíbrio fiscal, eles argumentam o contrário.

Crianças que não se desenvolvem plenamente se tornarão alunos, que se tornarão adultos. Em vez de adultos produtivos, bem empregados e pagadores de impostos, serão adultos às margens do mercado de trabalho que virarão custo para o Estado – “minando a sustentabilidade fiscal do País no longo prazo.”

  • Doutor em economia

Eliane Cantanhêde: Marco Aurélio, qual é a sua?

Juízes e ministros do STF não são robôs, que juntam o caso X com o artigo Y e apertam um botão

Em 27 de julho do ano 2000, escrevi artigo sobre a decisão monocrática do Supremo que mandou soltar o então banqueiro Salvatore Cacciola, apesar da obviedade da culpa e das evidências de que, assim que deixasse a prisão, ele fugiria do País. O ministro deu a liminar, Cacciola voou para a Itália, via Paraguai e Argentina, e só foi preso de novo seis anos depois, ao cometer um erro primário. Título do artigo: “Marco Aurélio, qual é a sua?”

Vinte anos e muitas decisões polêmicas depois, Marco Aurélio Mello assume a partir de hoje a solene condição de decano, no lugar do ministro Celso de Mello, já empurrando a Corte para o centro do debate nacional – ou melhor, da ira nacional. Qual o sentido de soltar André do Rap, o chefe do PCC que a polícia demorou anos e gastou fortunas para capturar?

Dono de helicóptero, lancha, mansões e carrões, o facínora tem duas condenações em segunda instância, somando 26 anos, mas entrou com recurso e estava ainda em prisão provisória desde setembro de 2019. Ao acatar o habeas corpus, Marco Aurélio justificou que sua prisão não fora renovada de 90 em 90 dias, como manda o novo Código Penal, aprovado no Congresso e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro – contra a posição de Sérgio Moro.

Pode? Não pode. Bastava o relator pedir explicações e ganhar tempo até cumprir-se a burocracia. Mas esse não seria Marco Aurélio. Ele tem cultura jurídica, é respeitado tecnicamente, acorda cedo e mergulha em livros, leis e casos. O problema é a personalidade, o gosto de ser “do contra”. Se tal julgamento foi 10 a 1, o “1” é de Marco Aurélio, 74, no STF desde 1990, por indicação de seu primo Collor de Mello.

Ao libertar o líder do PCC, ele determinou: “Advirtam-no da necessidade de permanecer em residência indicada ao juízo, atendendo aos chamados judiciais”. Seria cômico, não fosse trágico. André do Rap deve ter dado boas gargalhadas antes de escafeder-se por esse mundão afora, assim como Cacciola ao fugir para sua Itália natal.

Na época, nem havia o artigo usado agora pelo ministro, mas o resultado foi o mesmo. O então presidente do STF, Carlos Velloso, revogou a liminar de Marco Aurélio e mandou prender Cacciola novamente, assim como o atual, Luiz Fux, fez no caso de André do Rap. Tarde demais nas duas vezes. Eles têm dinheiro, recursos e aliados para fugir da polícia, do MP e da Justiça, que são obrigados a consumir nossos impostos, durante anos, para prendê-los de novo.

Com a “letra fria da lei”, Marco Aurélio jogou o País contra o Supremo, aprofundou o racha na Corte, deixou Fux sem saída e gerou um empurra-empurra infernal. Um ministro condena Marco Aurélio, outro recrimina Fux, o Congresso joga no colo do MP, o MP devolve para o Congresso. Para nós, os leigos, é uma bagunça. Para os traficantes, uma janela de oportunidades.

Juízes e ministros do STF não são robôs, que juntam o caso X com o artigo Y e apertam um botão. São seres humanos que estudam e aplicam leis, conscientes de que cada caso é um caso e avaliando personagens, circunstâncias e a gravidade da situação, com bom senso. Afinal, qual o objetivo? Fazer justiça. Por isso o plenário tem 11 votos, 11 formas de compreender e votar, evitando empates.

O Congresso não deveria aprovar um artigo tão burocrático, Bolsonaro não deveria sancionar sem ouvir seu ministro da Justiça, Marco Aurélio deveria ter juízo. André do Rap, definido por Fux como de “altíssima periculosidade”, que “compromete a ordem e a segurança pública”, não estaria solto por uma canetada “técnica”, aterrorizando a sociedade e jogando dúvidas sobre a justiça brasileira.

*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta


Bernardo Mello Franco: Arapongas em Madri

A Abin enviou quatro agentes secretos para espionar a última Cúpula do Clima das Nações Unidas, em Madri. De acordo com o jornal “O Estado de S. Paulo”, a caravana recebeu a missão de monitorar críticas ao governo Bolsonaro. Se o objetivo era esse, os arapongas poderiam ter ficado em casa. Bastava ler os jornais ou assistir às notícias na TV.

A COP-25 deveria ter sido realizada no Brasil. Foi enxotada pelo capitão, que nega as mudanças climáticas e trata os ecologistas como inimigos. Desde o ano passado, o país é visto como um vilão ambiental. Ele trabalhou para isso: desmontou os órgãos de fiscalização, facilitou a vida dos desmatadores e permitiu o avanço das queimadas na Amazônia.

Segundo a reportagem do “Estadão”, os espiões monitoraram organizações não governamentais, integrantes da comitiva brasileira e representantes de delegações estrangeiras. Isso mostra um triplo desrespeito: à sociedade civil, aos profissionais do Itamaraty e à comunidade internacional.

Os arapongas atravessaram o Atlântico à toa. Parte de sua tarefa era acompanhar debates com transmissão ao vivo e ampla cobertura na imprensa. Os agentes secretos usaram crachás e tiveram seus nomes publicados no jornal. Tudo seria engraçado se o contribuinte não tivesse bancado os gastos com passagens e diárias.

O caso expõe mais um desvio de função da Abin sob o comando do ministro Augusto Heleno. Antes do passeio em Madri, a agência já havia espionado padres e bispos que prepararam o Sínodo da Amazônia. O general deve ver o Papa Francisco, que convocou o encontro, como um perigoso comunista infiltrado no Vaticano.

A Abin é uma instituição de Estado, criada para zelar pela segurança do Brasil e dos brasileiros. Não deveria ser usada para estimular paranoias ou atender aos caprichos do governo de plantão.

Se estivesse mesmo preocupado com a imagem do país, Bolsonaro poderia acionar a agência para saber quem põe fogo na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado. Mas o capitão parece mais interessado em proteger amigos e caçar fantasmas.


Rolf Kuntz: Um gigante sem fôlego e sem rumo

Sem plano sequer para alongar a retomada, o País parece condenado a crescer menos que 3%

O Brasil, vejam só, deixou de ser o país do futuro. Que futuro pode ter um país emergente incapaz de crescer 3% ao ano? Esqueçam Stefan Zweig. Pensem num ministro da Educação preocupado com a vida sexual dos estudantes, num ministro do Meio Ambiente avesso à proteção das florestas, num ministro da Economia empenhado em recriar uma aberração tributária, a CPMF. Considerem um presidente negacionista, propagandista da cloroquina e centrado em interesses pessoais e familiares, com destaque para a reeleição. Quem se importa, em Brasília, com o miserável crescimento projetado para o médio e o longo prazos, nada além de 2,5% ao ano?

Bolas de cristal muito consultadas preveem mediocridade, ou algo pior que isso, no médio e no longo prazos. Por enquanto, há algum dinamismo. Passado o grande choque, os negócios voltaram a mover-se, como em todo o mundo. Em 2021 o produto interno bruto (PIB) crescerá 3,5%, segundo a mediana das projeções do mercado. A expansão ficará em 2,8%, de acordo com estimativa recente do Fundo Monetário Internacional (FMI). A partir daí o cenário fica menos claro, mais inquietante e, principalmente, mais estimulante para uma avaliação das condições do Brasil.

O PIB crescerá 2,3% em 2022, segundo o FMI, e apenas 2,2% em cada um dos três anos seguintes. Pela projeção do mercado, captada na pesquisa Focus, do Banco Central, a expansão será de 2,5% ao ano em 2022 e 2023. Detalhe relevante: essa taxa de 2,5% aparece há tempos, nessas pesquisas, como estimativa para o médio prazo. As projeções do FMI têm a mesma característica: números baixos, na casa dos 2%, quando se ultrapassa o horizonte de um ou dois anos. Não se trata de preguiça dos analistas. O problema está na economia brasileira. Os economistas do mercado e das entidades multilaterais são inocentes.

Para olhar um pouco mais longe, os economistas levam em conta o potencial de crescimento da economia. Esse potencial é determinado por vários fatores, com destaque para os investimentos em capital fixo (máquinas, equipamentos e construções), em capital humano, em conhecimento (ciência e tecnologia) e em inovação. Fatores institucionais e de ambiente de negócios, como tributação, segurança jurídica, burocracia e integração internacional, também são importantes. O Brasil tem ido mal, há muitos anos, em todos esses quesitos.

Só o investimento em capital fixo é mostrado de forma explícita nas contas nacionais brasileiras. Na maior parte dos últimos 20 anos esse investimento foi equivalente a menos de 20% do PIB, embora a meta oficial tenha sido, quase sempre, uma taxa de pelo menos 24%. Além disso, boa parte do investimento foi pouco produtiva.

Muitas obras públicas ficaram inacabadas, outras consumiram tempo demasiado, o superfaturamento foi frequente e houve amplo desperdício. A contribuição dessas obras para a capacidade produtiva acabou sendo muito prejudicada. O setor privado investiu mais que o governamental, mas o protecionismo e outros fatores limitaram os incentivos à busca de eficiência, inovação e competitividade.

A indústria de transformação começou a perder vigor alguns anos antes da recessão de 2015-2016. Incentivos fiscais e financeiros mal concebidos, somados à corrupção, favoreceram grupos e ramos empresariais, mas a maior parte do setor escorregou ladeira abaixo até chegar a pandemia. A equipe do presidente Jair Bolsonaro jamais apresentou um diagnóstico sério dos problemas da economia brasileira. Por isso mesmo nunca propôs um plano de modernização, dinamização e retorno a um crescimento aceitável para um país emergente.

A única reforma importante aprovada desde o ano passado, a da Previdência, estava madura no fim do mandato do presidente Michel Temer. Ainda na gestão Temer as normas trabalhistas foram modernizadas e flexibilizadas, sem eliminação de direitos. Também nesse período foi criado o teto de gastos. Hoje, além de pouco avançar na pauta de reformas, o ministro da Economia insiste em objetivos modestos, como a desoneração da folha salarial.

Essa desoneração pode evitar demissões e preservar empregos, mas é insuficiente para ampliar a oferta de vagas. Isso foi comprovado na gestão da presidente Dilma Rousseff, quando mais de 50 setores foram contemplados com a redução de encargos. Desse conjunto sobraram 17 setores – com 6 milhões de trabalhadores, segundo se estima. O mais prudente, agora, é preservar esses benefícios pelo menos por um ano, por causa das condições da economia.

Seria bom se a equipe econômica notasse a diferença entre evitar demissões e gerar empregos, objetivos tão bons quanto distintos. Geração de empregos depende, em primeiro lugar, da atividade e das perspectivas de crescimento. Não se moverá a economia eliminando direitos trabalhistas, recriando um monstrengo tributário e gastando energia para subordinar o Orçamento de 2021 aos interesses eleitorais do presidente. Planejamento para o longo prazo vai muito além disso, mas essa noção parece estranha aos condutores da política econômica.

*Jornalista


Pedro S. Malan: Corredor estreito, tempo curto

Podemos estar escrevendo a crônica de um fim de linha preanunciado
“A função intelectual exercita-se sempre por antecipação (sobre o que poderia acontecer) ou com atraso (sobre o que ocorreu); raramente sobre o que está acontecendo, por razões de ritmo, pois os eventos são sempre mais rápidos e prementes do que as reflexões sobre os mesmos”


Umberto Eco

As palavras de Eco retêm especial relevância e atualidade à luz do que está a acontecer no mundo e no Brasil da pandemia. Estamos em meio ao mais severo choque global dos últimos 75 anos. Os impactos, diretos e indiretos, da covid-19 estarão conosco muito além deste dramático ano de 2020, e não ficarão restritos a questões de saúde pública.

A pandemia criou problemas econômicos e sociais, derivados de choques negativos simultâneos da oferta e da demanda que se reforçaram mutuamente em infernal círculo vicioso. Perderam-se dezenas de milhões de empregos, é inédita a contração da atividade econômica, elevaram-se em escala global os níveis de pobreza, vulnerabilidade e desigualdade.

“Quando chegaremos ao pós-covid?” é a pergunta que se ouve com frequência. Não é, lamentavelmente, pergunta muito apropriada. Não há “novo normal” no horizonte. O curso da História nada tem de normal, sempre esteve pleno de peripécias, instabilidades e surpresas. Quando medicamentos eficazes tiverem surgido, vacinas aprovadas e aplicadas em bilhões de pessoas – mesmo então, e muito além, estaremos a falar do “mundo pós-covid” para designar o que se tenha seguido a 2020. Ano em que, além da pandemia, e por causa dela, se exacerbaram tendências preexistentes.

Em particular no que diz respeito ao crescente descontentamento com a globalização, que a crise de 2008-2009 fez eclodir de forma contundente. Descontentamento com os efeitos dos avanços tecnológicos sobre o mercado de trabalho e o consequente agravamento da percepção de excessiva desigualdade na distribuição de oportunidades. Essa tendência é duradoura e continuará a exigir respostas econômicas e políticas dos governos e, paradoxalmente, inescapável cooperação internacional. O mundo já é outro no pós-2020 – e o Brasil também.

Nesta mesma página, o sempre sereno Fernando Gabeira publicou artigo intitulado Beco sem saída (2/10), no qual registra que “o que o Brasil precisa (…) os economistas do governo não conseguem oferecer”. Cabe talvez acrescentar: o que o Brasil precisa o governo, na sua disfuncionalidade, não consegue oferecer – a saber, articulação e coordenação não só dentro do Executivo, como também deste com lideranças do Congresso Nacional, para fazer avançar a agenda de interesse do País; com uma visão que não contemple, sobretudo, a próxima eleição, mas as próximas gerações. Estamos, neste outubro de 2020, em rota absolutamente insustentável quanto à nossa situação fiscal, da qual a maioria ainda não parece ter-se dado conta. Podemos estar escrevendo a crônica de um fim de linha preanunciado, como num coro de tragédias de antanho.

A necessária correção de rumos exige enorme esforço – que envolve análise de evidências, pensamentos e ações coordenadas e que será preciso empreender ao longo dos próximos dois anos. A interação da política com a economia, que sempre foi relevante, é particularmente importante em crises graves como a que atravessamos. É preciso, com grande sentido de urgência, conectar o presente com narrativa crível sobre o passado e, mais importante ainda, com sinalização honesta sobre caminhos futuros. Há escolhas difíceis a fazer, tão sérias quanto inescapáveis.

É estreito, cada vez mais estreito, o corredor para opções e saídas. Exemplos alentadores do que seria possível fazer para alargá-lo nos trouxe o debate (6/10) que reuniu Paulo Hartung, Arminio Fraga e Marcelo Trindade, por ocasião do lançamento do excelente livro de Trindade O Caminho do Centro: memórias de uma aventura eleitoral. Imperdível conversa sobre o que aconteceu, o que poderia acontecer e o que está acontecendo no Brasil de hoje.

As palavras de Eco em epígrafe neste artigo vêm de um texto do livro Cinco Escritos Morais, no qual o autor nota que a reflexão sobre os eventos não pode servir de escape “ao dever intelectual de entender o próprio tempo e dele participar melhor”. Segundo Eco, “mesmo quando escolhe espaços de silêncio, o exercício da reflexão não exime de assumir responsabilidades individuais”. Na introdução desse livro, Umberto Eco diz, a propósito de características comuns aos Cinco Escritos: “Apesar da variedade, os temas são de caráter ético, ou seja, referem-se àquilo que seria justo fazer, àquilo que não se deveria fazer e àquilo que não se pode fazer em hipótese alguma”.

Os sinais, posturas e exemplos emitidos pelas lideranças políticas de um país, em particular por seus chefes de Estado ou de governo, são fundamentais nesse sentido. Para o bem como para o mal, e disso não faltam exemplos no mundo de hoje. Resta lembrar que apenas em democracias é possível ao eleitorado corrigir, pela via pacífica, eventuais erros cometidos em escolhas passadas. Sempre que haja um mínimo de reflexão e debate sobre o presente, sobre como a ele chegamos e, obviamente, sobre o futuro.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC


Vera Magalhães: A construção de bunkers

Como Bolsonaro minou o combate à corrupção para proteger a família

Bastou se aproximar do Centrão, da ala fisiológica do MDB e dos ministros antilavajatistas do Supremo Tribunal Federal que Jair Bolsonaro, logo quem, passou a ser visto por setores da política (os mesmos acima, diga-se) e até da imprensa como alguém imbuído da disposição de construir pontes.

Trata-se de uma leitura entre cínica e ingênua de uma realidade bastante clara aos olhos de quem quiser ver. Bolsonaro continua onde sempre esteve: avesso à ideia de qualquer composição a não ser as de ocasião, que lhe permitam lograr seus intentos na política e proteger a si e aos filhos da perigosa aproximação das garras da lei quando esticaram demais a corda da ruptura institucional e/ou foram com sede ao pote demais nos recursos públicos a que tiveram acesso nas suas longas carreiras políticas dotadas de todos os vícios de um clã tradicional brasileiro.

Eduardo Bolsonaro, o “03”, conhecido por ser dos menos brilhantes da família, deixou claro o jogo nas redes sociais, com direito a erro de português: “Não é arrependimento, é espertise (sic) de mudar de estratégia pois o plano original fracassou”.

Não precisa desenhar. O plano original era fazer as instituições se curvarem diante de uma tropa golpista, “antiestablishment”, como adorava se gabar o “estrategista” Filipe G. Martins. A pandemia foi o gatilho para colocar o plano original em marcha, com direito a uso de terroristas como Sara Winter, que agora se diz decepcionada, e seus 30 gatos-pingados.

O fracasso constatado pelo ex-quase-embaixador veio do próprio STF, que colocou freio aos delírios autoritários de Bolsonaro.

A “espertise”, assim com “s”, talvez, além de desconhecimento da língua, aponte um ato falho: o filhote quis provavelmente fazer menção à esperteza de mudar de time para evitar o tão temido impeachment e frear as investigações que chegavam perto de Flávio (rachadinhas e aumento de patrimônio), do próprio Eduardo (gabinetes do ódio, aumento de patrimônio), Michele (depósitos em dinheiro da família Queiroz e dinheiro de doações desviado para programa assistencial da primeira-dama), Carlos (rachadinha, aumento de patrimônio, fomento a atos golpistas, gabinetes do ódio) e de si próprio (aparelhamento da Polícia Federal, responsabilização pelo agravamento do enfrentamento da pandemia e participação em atos antidemocráticos).

Construção de pontes? Faz-me rir, faz-me engasgar, pedindo licença a Chico Buarque para usar seus versos tão precisos.

Bolsonaro tem por figuras como Renan Calheiros, Toffoli, Gilmar Mendes, Kassio Nunes e Ciro Nogueira o mesmo apreço que por Sérgio Moro, Gustavo Bebianno, general Santos Cruz, Luciano Bivar, Joice Hasselmann, Alexandre Frota, Paulo Guedes, Bia Kicis, Carla Zambelli ou Jorge Oliveira: nenhum. Assim como já fez com vários desta lista, pode descartar os demais se disso depender sua sobrevivência e a dos seus.

O presidente tem na covardia e na insegurança alguns de seus traços de caráter mais notórios, bem como o pouco apreço à gestão e o instinto destruidor de tudo aquilo que signifique construção de marcos institucionais, conquistas de minorias e legados civilizatórios.

O que Bolsonaro constrói com afinco, além de um robusto patrimônio na forma de imóveis comprados com farto uso de dinheiro vivo oriundo de gabinetes, é um bunker no qual se abrigar e abrigar mulher e filhos.

Disso decorrem a indicação de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República, a troca de Moro por André Mendonça, as mudanças no Coaf, a tentativa de interferir também na Receita e, agora, a escolha de Kassio Nunes para o STF.

A ponte (pinguela, no caso) pode bem ser implodida depois que por ela passar o último Bolsonaro, pouco importando quem for deixado para trás.

*Editora do BR Político e apresentadora do programa Roda Viva, da TV Cultura


Eliane Cantanhêde: Zumbi internacional

Vitória de Biden rompe a dupla 'Deus' e 'mito' e joga o Brasil no isolamento e no limbo

Contagem regressiva para as eleições americanas, em 3 de novembro, com o presidente Donald Trump dando sinais de desespero, perdendo o rumo, aprofundando a arrogância, incapaz de tirar do centro da pauta o seu maior calcanhar de Aquiles: a pandemia. Mais do que as pesquisas, é o próprio Trump quem sinaliza ao mundo que caminha para uma derrota histórica na maior potência do planeta.

Isso deixa o Brasil, e diretamente o presidente Jair Bolsonaro, seus filhos e o chanceler Ernesto Araújo, numa enrascada. Em seu artigo mais chocante, ou delirante, intitulado “Trump e o Ocidente”, Araújo prega que o Ocidente está em perigo e depende de Deus. Em seguida, nomeia: “só Trump pode ainda salvar o Ocidente”. Trump é Deus. Logo, coitado do Ocidente, estará perdido sem Trump.

São visões confusas, que põem o Brasil numa situação difícil com a perspectiva de um governo democrata, com Joe Biden e Kamala Harris. Onde esconder os textos de Araújo? O boné “Trump 2020” do ex-quase embaixador em Washington Eduardo Bolsonaro? A subserviência de Jair Bolsonaro a Trump?

Resta a eles orar para o “Deus” Trump conseguir um milagre e repetir 2016: perder no voto popular, mas vencer no colégio eleitoral. Não é o que as pesquisas indicam, pois Trump perde não só em Estados-pêndulos, que historicamente podem ir para um lado ou outro, mas até em bases republicanas. Eleição não se ganha ou perde de véspera e Trump surpreendeu em 2016, tem estratégia e truques diabólicos – inclusive massificar que Joe Biden, de 77 anos, está senil, desorientado. Logo, nunca é demais botar um pé atrás, mas tudo aponta a vitória democrata.

O momento decisivo foi quando Trump pegou a covid-19. A reeleição já estava difícil, com tendência clara pró-Biden, e Trump não soube transformar limão em limonada, humanizar sua imagem, captar alguma empatia e estancar os consistentes ataques a ele. De outro lado, tentar levar o debate para o seu estado de saúde e para seus eventuais trunfos, tirando do centro das atenções seu gravíssimo descaso na pandemia. Ele fez o oposto.

Trump dobrou a aposta na arrogância, com notícias médicas duvidosas, a retirada abrupta da máscara em público e a patética saidinha de carro para acenar aos militantes na porta do hospital. Que candidato resiste a erros tão grosseiros? Assim, ele jogou ainda mais o foco na sua grosseria, prepotência, ignorância e irresponsabilidade no combate ao vírus, que já matou perto de 215 mil americanos e tornou os EUA exemplo do que não se faz.

Esse é o eixo de um debate que desaba em princípios. De humanidade, compaixão, empatia, justiça e honestidade, que levam ao sentido oposto de Trump: a “Black Lives Matter”, combate à violência policial, um sistema de saúde inclusivo. Na política externa, multilateralismo, sustentabilidade, liderança com generosidade, firmeza sem confronto com a China. E um freio na arrancada da extrema direita internacional.

O desafio de Bolsonaro é o que fazer em caso de dar Biden. Com o decantado pragmatismo dos EUA, a previsão é de frieza nas relações diplomáticas, mas mantendo as negociações econômicas e comerciais e os programas de cooperação em diferentes setores – como ocorreu até com Dilma Rousseff. O risco é numa área específica: a bélica, militar. Biden vai aumentar o arsenal de Bolsonaro?

A maior perda para o Brasil será na área internacional. Ao se isolar da Europa, gerar desconfiança na China, jogar fora a natural liderança na América Latina, Bolsonaro apostou em “Deus” e “mito”. Sem esse “Deus”, o País pode virar uma ilha, sem credibilidade, parceiros e, portanto, investimentos. Para o ministro da Educação, jovens sem fé são “zumbis existenciais”. Sem Trump, Brasil pode ser um zumbi internacional.

*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta


Dom Odilo P. Scherer: Papa Francisco, a aposta na fraternidade

Na encíclica ‘Fratelli Tutti’ pontífice convida a repensar o mundo de forma mais aberta

Fratelli Tutti, ou, em português, Todos Sois Irmãos, é o título da nova encíclica do papa Francisco, publicada no último dia 4 de outubro. Trata-se de um documento de ensino social da Igreja Católica, mediante o qual o papa reflete sobre algumas questões sociais atuais, que afligem a humanidade. E o faz partindo do coração do Evangelho, onde o amor a Deus e o amor ao próximo se encontram inseparavelmente vinculados.

É convicção cristã que a humanidade, apesar de suas diferenças, é uma grande família de irmãos, que tem Deus por pai e Jesus Cristo como irmão e mestre de todos. Essa é, por assim dizer, uma cláusula pétrea do ensinamento cristão, que também fundamenta todo discurso social, econômico e político da Igreja.

Francisco parte das situações dramáticas atuais vividas pela humanidade, destacando a fragmentação da consciência solidária e a afirmação sempre maior de uma cultura e de um estilo de vida individualistas. Aponta para a falta de projetos consistentes para alcançar o bem comum local e universal; refere-se à exclusão de amplos grupos de indesejados e descartados; lamenta que os direitos humanos sejam cada vez menos universais e voltados, mais e mais, para a afirmação de interesses particularistas; fala do desvirtuamento dos sonhos da globalização, do progresso e do desenvolvimento, bem como da dignidade negada a tantos seres humanos, da comunicação “sem sabedoria, agressiva e despudorada” e da perda da esperança. E não deixa de se referir à crise ecológica e ambiental, que ameaça a destruição de nossa casa comum e o futuro da vida.

Que fazer diante disso? O papa Francisco convida a repensar o mundo de forma mais aberta, apontando para os valores imprescindíveis do amor e da fraternidade. Não se pode continuar a pensar e planejar o mundo para privilegiados, onde são deixados à margem tantos irmãos, que têm a mesma dignidade de todos. Nem basta continuar a afirmar teoricamente os princípios de liberdade, fraternidade e igualdade: se esses belos princípios estiverem orientados por uma prática individualista, acabarão produzindo o contrário do que, teoricamente, significam. Deveriam estar animados pela força da solidariedade e a própria afirmação dos direitos, para não ser desvirtuada, precisa dar prioridade aos direitos universais, sem fronteiras nem discriminação.

Num capítulo mais propositivo, o papa trata da edificação de um mundo menos fechado e da necessidade de “corações abertos para o mundo inteiro”. A humanidade criou fronteiras de todo tipo, cavou trincheiras e levantou muros com a preocupação compreensível de se proteger contra a invasão indevida do espaço da própria liberdade e contra toda forma de agressão. Mas quando essa preocupação é motivada pela rejeição ao outro, pelo resguardo dos próprios privilégios e pela pouca vontade de partilhar, o mundo torna-se cada vez menos fraterno e mais agressivo. O pontífice fala de abertura ao outro, da gratuidade e do intercâmbio de dons, em que o local e o universal não precisam estar em polos opostos, mas podem ser reciprocamente enriquecedores. Quem se fecha ao outro empobrece e estreita os próprios horizontes.

Inevitável se torna a reflexão sobre o panorama político atual e o papa não poupa críticas aos populismos e liberalismos, que estão na base de muitos dos graves problemas atuais da convivência local e internacional. E acena para a necessidade de um “poder internacional” capaz de moderar adequadamente as questões e os conflitos políticos da comunidade humana inteira. É uma reflexão difícil e a simples abordagem desse tema provoca arrepios em certos ambientes do pensamento contemporâneo, ciosos defensores de poderes locais absolutos. Francisco volta ao tema da caridade política, um tema recorrente no ensino social da Igreja: a verdadeira política requer altruísmo e genuíno amor ao próximo. Não se trata de idealismo utópico, pois faltam testemunhas de verdadeira caridade social e política.

Francisco também foi buscar na filosofia grega antiga dois elementos para uma renovada convivência social e política: a amizade social e o diálogo. A amizade social leva a respeitar e tratar bem cada cidadão, valorizando a sua contribuição para a edificação do convívio social. O diálogo é a arte da superação de rupturas e distanciamentos, para tecer entendimentos e aproximação.

Isso pode soar estranho para quem aposta na dialética do conflito, ou no liberalismo absoluto para a edificação das relações sociais.

No entanto, os princípios da luta e do liberalismo absoluto já deram mostras do que são capazes de produzir: o triunfo do mais forte sobre o fraco, o império da lei da selva, violência, dor e sangue. Por que não apostar no diálogo, na busca do consenso orientado pela verdade e na amizade social, capazes de suscitar nova cultura e nova política, impregnadas de altruísmo, amabilidade e fraternidade? Por que não acreditar numa verdadeira revolução cultural, para tornar a convivência mais fraterna, verdadeiramente humana?

*Cardeal-Arcebispo de São Paulo


Adriana Fernandes: Renda Cidadã x Renda Brasil

Quem acredita que vai dar tempo para erguer um novo programa social até o fim de novembro?

Para tudo! O presidente Jair Bolsonaro decretou que até as eleições “não se fala mais nisso daí”. O isso daí são as medidas que precisarão ser tomadas para solucionar um problema que está estampado numa reportagem do Estadão desta semana: o fim do auxílio emergencial deve devolver 15 milhões de brasileiros à pobreza no próximo ano. A previsão foi feita pela FGV Social em levantamento coordenado pelo economista Marcelo Neri, que constata: é cristalino que isso vai acontecer.

Para “varrer o PT do Nordeste”, na expressão de um auxiliar do governo, o presidente e aliados promoveram a prorrogação do auxílio emergencial até dezembro. Mas agora é hora dos aliados ganharem a eleição.

Todos contam com a falta de tempo para a solução do problema para empurrá-lo para 2021 quando o cenário político poderá ser outro com um rearranjo de forças. Quando a eleição acabar (o segundo turno está marcado para o dia 29 de novembro), quem acredita que até lá vai dar tempo para erguer o novo programa social? No Palácio do Planalto, espertamente, já se fala em mudanças por meio de dois programas: Renda Cidadã e Renda Brasil.

É por isso que não há confusão de nomes quando o ministro Paulo Guedes prefere usar Renda Brasil ao se referir ao programa social. Muitos viram no uso do nome mais antigo falha ou esquecimento do ministro. Foi proposital.

O Renda Brasil é o programa que a sua equipe trabalha e que estaria tecnicamente pronto, só faltando a coragem dos políticos para fazê-lo. Uma reformulação de 27 programas já existentes. Ao longo da semana, o ministro repetiu esse ponto várias vezes como quem diz: prestem atenção! Não foi confusão.

O Renda Cidadã pode se transformar na ponte até o Renda Brasil. Um Bolsa Família melhorado até que o Renda Brasil chegue mais adiante. Esse, sim, o programa-plataforma para reeleição de Bolsonaro.

Com o impasse do que cortar e a pressão do mercado para manter o teto, essa estratégia pode dar um pouco mais de fôlego para a equipe econômica conseguir apoio às medidas de corte de despesas e, assim, colocar o programa social dentro dos limites do teto.

Diante da urgência que o momento exige com a proximidade do fim do auxílio, porém, ganha força no Congresso a proposta de deixar os recursos extras do novo programa social (além dos R$ 35 bilhões já previstos no Orçamento de 2021) fora do teto de gastos. Uma exceção temporária até que o Congresso aprove medidas de ajuste mais duras e que não têm tempo de avançar até o fim do ano. Para mostrar compromisso com austeridade fiscal mesmo com essa flexibilização do teto de gastos, os recursos do programa fora do teto seriam compensados com aumento da carga tributária, corte de renúncias fiscais ou outras medidas que melhorem a arrecadação.

Funcionaria com um benefício variável temporário para superação da crise com um valor próximo aos R$ 300 dessa terceira e última rodada do auxílio. A vantagem para quem defende a ideia é que essa despesa adicional poderia fugir do conceito de despesa de caráter continuado e permanente, de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal, exigindo um nível de redução para fins de compensação orçamentária menor.

Esse tipo de saída vai na direção proposta pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em artigo publicado pelo Estadão, FHC sugere que o governo poderia mexer na regra fiscal para, ao mesmo tempo, abrir espaço orçamentário para o gasto e não provocar uma reação muito negativa do mercado. Uma saída organizado desse tipo para o impasse atual ainda encontra resistência dos defensores puristas do teto de gastos no mercado, governo e Congresso, entre eles Paulo Guedes e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

Maia e Guedes se alinharam na defesa do teto de gastos sem mudanças, que ajudou a diminuir o nervosismo, mas não tirou do radar as incertezas fiscais, que estão colocando o País à beira de uma crise da dívida na sequência da provocada pela pandemia da covid-19.

Políticos e até mesmo economistas experientes do mercado já viram que esse caminho está cada vez mais próximo. A dúvida é saber qual imposto vai subir ou isenção acabar. Se Maia começar a aceitar, vai ser a senha para a mudança. Quando novembro chegar e a eleição acabar, a pressa de dar uma solução deve levar à essa mudança de rota.


Eliane Cantanhêde: Não tem corrupção?

A Lava Jato vai e vem, mas não acabou e tem aliados articulados, como Luiz Fux

Odiada pelo PT desde sempre e desprezada pelos bolsonaristas após a queda de Sérgio Moro do governo, a Lava Jato continua no centro das preocupações e, se tem adversários poderosos, tem também aliados ágeis e articulados. Acaba de ter uma vitória preciosa no Supremo e obriga o presidente Jair Bolsonaro a providenciar frases de efeito e versões para jurar que não é contra a Lava Jato nem atrapalha o combate à corrupção. Acredita quem quer.

Rápido e de surpresa, o novo presidente Luiz Fux conseguiu, por unanimidade, tirar os inquéritos e ações penais das duas turmas e jogar para o plenário do Supremo. Perderam os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, ganhou a Lava Jato. Condenar ou absolver os implicados na operação vai deixar de depender de dois ministros e voltar a ser responsabilidade de todos os onze da casa.

Voltar ao plenário não é garantia de vitória ou derrota dos réus da Lava Jato, mas confere mais credibilidade, peso e força para as decisões, sejam numa direção ou na outra. O que não era mais possível é transformar julgamentos em leilão: cair na Primeira Turma era prenúncio de condenação; cair na Segunda, de absolvição na certa.

O racha no Supremo volta com tudo, Fux tende para o lado oposto do antecessor, Dias Toffoli, e o primeiro ministro indicado por Bolsonaro vai fazer toda a diferença. Ainda não se aposta para que lado ele pende, mas, como a divisão costuma ser meio a meio, para qualquer lado que ele vá, o resultado vai.

E aí mora um perigo, porque o desembargador Kassio Nunes Marques começa mal, envolto em suspeitas, com currículo cheio de buracos e companhias duvidosas, como o ex-advogado de Jair e Flávio Bolsonaro, Frederick Wassef. Como tem apoio do Senado, do Supremo e do Centrão, afugentou os bolsonaristas que ainda não entenderam nada. E como já tomou muita tubaína com Bolsonaro, que responde a inquérito no STF e tem filhos um tanto enrolados, ele multiplica a desconfiança no conjunto da sociedade.

O Dr. Kassio é considerado “muito político”, “simpático”, “uma boa conversa” e, como o TRF-1 é em Brasília, tem acesso direto, e fácil, a Congresso, Judiciário e Executivo. Mas o que se espera de um ministro que vai (se tudo der certo para ele) ficar 27 anos no Supremo não é nada disso, é “notório saber jurídico” e “reputação ilibada”. Se inflou o currículo com cursos rápidos e até plágios com os mesmos erros de digitação e de português, ele compromete um e implode o outro. Péssimo para Bolsonaro, que já tem o professor Decotelli na conta.

Por essas e outras, Bolsonaro se saiu com essa, bem ao estilo da realidade paralela de Donald Trump: “Eu acabei com a Lava Jato, porque não tem mais corrupção no governo”. Uma frase, vários erros. Quem pode criar ou acabar com a Lava Jato é a Procuradoria-Geral da República e não dá para dizer que “não tem mais corrupção” no governo ou fora dele, com tantas investigações sobre a família presidencial.

Provavelmente Bolsonaro jogou isso no ar para dar discurso a seus seguidores, que traíram Moro e o que ele representa com muita ligeireza e nunca perguntaram por que o presidente perseguiu o Coaf, mexeu pauzinhos na Receita e não sossegou até demitir o diretor-geral da Polícia Federal e o superintendente no Rio – base política dele e de dois de seus filhos.

Nada disso é trivial, tanto que o Supremo vai ouvir Bolsonaro sobre a obsessão pela PF, que começou quando Fabrício Queiroz, rachadinhas, fantasmas e mania de dinheiro vivo entraram em pauta e se tornou questão de vida ou morte quando Bolsonaro atrelou sua sobrevivência ao Centrão. Quem depende do Centrão não quer ouvir falar de Lava Jato. Ele nem pode acabar com a Lava Jato, mas bem que gostaria. E tem agido claramente para isso.

*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta


Celso Ming: Acordo entre Mercosul e União Europeia está sob ataque

Nesta quarta-feira, o Parlamento Europeu rechaçou “em seu estado atual” os termos do acordo de livre comércio entre União Europeia e Mercosul.

Não é decisão que produz efeito imediato porque, para ratificação de tratados, o Parlamento Europeu não é instância decisória da União Europeia. Mas essa votação tem enorme influência sobre o destino do acordo, que foi fechado em junho de 2019 depois de 20 anos de árduas negociações. Com essa rejeição, fica mais difícil a aprovação final pelos Parlamentos dos 27 países que integram a União Europeia e pela Comissão Europeia, formada pelos chefes de governo da área.

Nas justificativas para a decisão tomada, o argumento central é o de que os tratados não podem respaldar a desastrada política de preservação da Amazônia pelo governo Bolsonaro.

Para o governo brasileiro, trata-se de um falso motivo. A má vontade dos políticos europeus, liderada pelo presidente da França, Emmanuel Macron, é mais que tudo protecionista. Os europeus temem que a liberação do comércio entre os dois blocos produziria invasão de produtos agropecuários do Mercosul, o que colocaria em risco os negócios pouco competitivos da área, sustentados artificialmente por subsídios e reservas de mercado.

Essa análise do governo brasileiro está correta. Desde o início das negociações, houve enorme pressão do lobby da agricultura da União Europeia pelo fechamento de um acordo. A crise produzida pela pandemia e as crescentes dificuldades políticas no interior dos países mais importantes da área apenas acirraram essa oposição.

Antes de prosseguir, convém apontar alguns paradoxos. O primeiro deles é o de que os argumentos contrários ao acordo de livre comércio se voltam contra a política de Bolsonaro, cujo governo é conhecido como defensor do livre comércio.

A oposição ao acordo por políticos da União Europeia, por sua vez, não levanta nem a indignação do governo de Buenos Aires nem a contestação da área diplomática da Argentina porque, diante da grave crise cambial do país, a última coisa que o governo argentino pretende, neste momento, é a liberação do seu comércio exterior. Ainda assim, o governo Fernández poderá aproveitar a oportunidade para acusar o governo Bolsonaro de ter solapado um acordo comercial estratégico e, portanto, de ter trabalhado contra os interesses dos outros sócios do Mercosul, em consequência de sua catastrófica política ambiental.

O caráter inequivocamente protecionista prevalecente na União Europeia não justifica as graves omissões e as decisões brutais do governo brasileiro na área ambiental. O governo do Brasil não pode fugir de seus deveres na preservação da Amazônia e em todas as outras dimensões do meio ambiente interno, não só por uma questão de interesse nacional, mas também de responsabilidade perante as demais nações.

Não dá para seguir argumentando, como vêm fazendo autoridades da área do governo Bolsonaro, que europeus, americanos e asiáticos destruíram suas florestas, emporcalharam seus rios e poluíram o ar antes dos brasileiros e agora lhes cobram um preço que eles próprios não se cobraram nem pagaram em seu tempo.

Se não for capaz de manter em relação a esse assunto uma política sadia como simples consequência de convicções científicas e doutrinárias, o governo Bolsonaro terá ao menos de lutar pela preservação ambiental por mero pragmatismo. Essa decisão do Parlamento Europeu é mais uma advertência de que a deterioração ambiental no Brasil implicará perda de negócios e fechamento de empregos por aqui.