o estado de s paulo

Eugênio Bucci: Uma trilha sonora para um Brasil pandêmico

O presidente está mais para lobisomem de filme de Mazzaropi do que para Duce…

O presidente da República está em plena Revolta da Vacina. Tem ciúme da vacina. Tem ciúme de quem a tem e mais ciúme ainda de quem a terá. O presidente se descabela e se rebela. Homem do seu tempo, vive com ardor o ano de 1904. Quer atirar cadeiras nos mata-mosquitos de Oswaldo Cruz, mas o sanitarista, mau brasileiro, impatriótico, sumiu de cena antes que terminasse o ano da desgraça e não mais se voluntaria a receber desaforos.

O presidente, resoluto, impoluto e estulto, não desiste. Não abre mão da revolta. Na falta do Cruz, dispara perdigotos contra o Instituto Butantan. A vacina que se cuide. Estão pensando o quê?

A fúria presidencial, impetuosa, pomposa e prosa, é máscula, mas dança conforme a cançoneta: “Anda o povo acelerado/ com horror à palmatória/ por causa dessa lambança/ da vacina obrigatória”. Na voz do cantor Mário Pinheiro, os versos ressequidos arranham o mármore do Palácio do Planalto. Raiva da vacina. Ódio febril e varonil.

E o que virá depois? Inútil tentar descobrir. No Brasil, o passado é imprevisível (abraço, Pedro Malan).

Autoridades da Casa Branca visitam o palácio. A presidente do EximBank, o Banco de Exportação e Importação dos EUA, e o ministro da Economia daqui mesmo assinam um memorando que pode render empréstimos de até US$ 1 bilhão para o Brasil. Em troca, apoios auriverdes à cruzada de Washington para afugentar do mercado as tecnologias e empresas chinesas na implantação do 5G. Ao lado do presidente, o conselheiro de segurança nacional dos Estados Unidos participa da cerimônia.

Pensa o improvável leitor que essa solenidade foi anteontem, certo? Pois pensa errado. Outra vez, estamos mergulhados no interminável passado imprevisível. Ao fundo, Juca Chaves e um violãozinho se infiltram pelo ar-condicionado: “Hoje em dia o meu Brasil/ é uma país independente/ dentre as coisas que nós temos/ vê-se até dois presidentes./ (…) Um do sul, outro do norte/ que governam muito bem/ só que o norte é bem mais forte e governa o sul também (…)”.

Se fôssemos um pouco mais briosos – e irônicos –, iríamos de Assis Valente, o mais valente de todos e todas. Iríamos de Brasil Pandeiro. Celebraríamos malandramente que “o Tio Sam anda querendo conhecer a nossa batucada”. Festejaríamos desconfiados que “na Casa Branca já tocou a batucada de ioiô e iaiá”.

Depois disso, a gente brasileira abriria mão da malícia. Alguém desfilaria de bananas na cabeça – Carmem Miranda que nos acuda – e sacaria da manga do paletó, ou do decote, a carta ufanista que faz do samba o Rei Momo da cultura pátria, o símbolo brasileiro por excelência. Se não tiver samba, vai de rumba mesmo. Zé Carioca de mãos dadas a Mickey Mouse, Getúlio Vargas em bombachas. Se faltar a rumba, volte o samba-exaltação na veia, Ary Barroso na cabeça, “mulato inzoneiro” no meio da testa, hino nacional em feitio de batucada, jamais de oração. “Ai, essas fontes murmurantes”, coitado do jornalismo. Ai, esses vazamentos trepidantes. Ai, esse passado alucinante.

A TV Brasil exibiu com exclusividade um jogo do escrete canarinho. Consta que o narrador deu de mandar um abraço para o presidente do sul, o que deixou em estado de alerta máximo a vigilância democrática. Com toda a razão, embora não seja de hoje que as emissoras estatais botam banca e montam palanque para as “otoridade” se derramarem nos elogios recíprocos, fazendo campanha eleitoral fora de temporada. Não, não é de hoje. O cacoete da autopromoção em microfones públicos é antigo: é do passado.

O presidente prometera acabar com a EBC, a estatal que controla a TV Brasil, mas não era para acreditar. Não dava para acreditar. A facção de extrema direita que ganhou as eleições se julga a portadora da verdade e como confunde verdade com propaganda não pode viver sem propaganda. Ficaria sem verdade. Por isso jamais jogará fora um equipamento como a EBC, prontinho para ser repaginado em usina de verdades absolutas.

O que nos salva, agora, é que a facção de extrema direita que aí está não tem competência nem para ser fascista. Não é pra valer. Não tem compromisso com a coerência. Na TV Brasil, o presidente está mais para lobisomem de filmes de Mazzaropi (reprisados todos os dias) do que para Duce ou técnico de futebol. O seu fascismo é pastiche. Anauê paranauê. O fascismo termina no colo do Centrão, que quando o mercado favorece é direitão, mas não é bobo, não.

Um surdo pequeno bate o compasso. O presidente chuta a causa autoritária para escanteio e se enturma na patota do dinheiro na cueca, mais velha que a Revolta da Vacina. Entra a cuíca, que não é cueca, para entrecortar o balanço com agudos miúdos. Que samba bom. A voz macia de Blecaute estufa os alto-falantes estatais. De terno claro, camisa branca sem gravata, ginga natural, ele manda ver: “Ô, que samba bom/ ô, que coisa louca/ eu também tô aí/ tô aí, que é que há/ também tô nessa boca”.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


William Waack: A cor da vacina

Bolsonaro ignora que o eleitor é mais pragmático do que ele pensa

Por ter muita raiva da China ou de João Doria, o rompante de Jair Bolsonaro prometendo que não vai comprar a vacina chinesa – desautorizando o general da Saúde – ajuda a entender a razão de capitães comandarem uma companhia, enquanto generais comandam divisões, exércitos, grupos de exércitos. É a falta de visão de conjunto.

Bolsonaro submeteu tudo ao projeto de reeleição, confundindo seu destino político com o do País. É postura comum a políticos de várias colorações, mas, no caso de Bolsonaro, a obsessão com o ganho eleitoral de curtíssimo prazo paradoxalmente ameaça seu próprio projeto de reeleição. A popularidade desse presidente, como a de outros, está diretamente ligada ao desempenho da economia, e esse desempenho (até o fim de 2022, digamos) é função de uma série de decisões políticas difíceis que ele está protelando – em nome do conforto da popularidade no curto prazo.

Da mesma maneira, mais atrapalha do que ajuda a economia brasileira, que depende em grande parte do agronegócio, que depende em grande parte da China, alinhar-se à agenda pessoal do atual presidente americano, Donald Trump. Nem é o caso de se perguntar se esse personagem estará ainda na Casa Branca daqui a menos de duas semanas. Mesmo que Trump produza um excepcional milagre eleitoral e se reeleja, ao abraçá-lo da forma subserviente e bajuladora, Bolsonaro comete um erro básico de política externa: ignorar o fato de que países não têm amigos, só têm interesses.

Ao que tudo indica, está perdida a aposta bastante simplória de que o “laço pessoal” com o homem mais poderoso do mundo presidindo o país mais rico do mundo traria ao Brasil imediatas vantagens em acesso a tecnologia, mercados, instituições multilaterais e projeção no cenário internacional. No caso específico da China (que hoje é quem tem o homem mais poderoso do mundo e a maior economia), a pressão de Trump sobre o Brasil evidentemente leva em conta apenas os interesses dos Estados Unidos, enquanto Bolsonaro sacrifica um vantajoso ponto de partida, que é a possibilidade de jogar entre os dois no grande confronto do século.

Aqui entra também a questão da “diplomacia da vacina”, na qual os chineses já demonstram notável vantagem sobre os americanos. Ao contrário dos Estados Unidos, a China está anunciando “acesso preferencial” à vacina produzida pela Sinovac a países em desenvolvimento. Washington tem à disposição produtos semelhantes desenvolvidos por empresas privadas de sólida reputação mundial, mas demonstrou pouco interesse em distribuir vacinas fora dos EUA.

O Brasil é parte dessa abrangente ofensiva chinesa, com a qual Xi Jinping pretende ampliar ainda mais peso e influência do país, mas o que parece motivar Bolsonaro a falar mal da vacina comandada pelo governo comunista chinês não é o espectro (sim, esse absurdo transita em franjas do bolsonarismo) de uma “inoculação” de ideias esquerdistas via vacina. Ele teme uma candidatura para competir com ele “pela direita” e, seja qual for a razão, enxerga em Doria esse personagem.

Essa visão de túnel considerando apenas a reeleição é o que faz Bolsonaro ignorar um provérbio… chinês. Usado, aliás, de maneira célebre por um importante dirigente comunista, Deng Xiaoping, iniciador das reformas que fizeram da China o que ela é hoje, e que virou lição de pragmatismo. “Não me importa a cor do gato, contanto que pegue o rato”, respondeu, quando indagado sobre o melhor sistema econômico.

Para uma parcela importante do eleitorado também no Brasil, assustada com pandemia, pouco importa a origem da vacina, contanto que ajude a resolver uma questão literalmente de vida ou morte. Bolsonaro parece ignorar que o eleitor é mais pragmático do que ele pensa.

*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN


Eros Roberto Grau: Igualdade ou desigualdade?

Programa do Magazine Luiza é iluminado por Platão e Aristóteles, Lewandowski e Barroso

O Magazine Luiza recentemente implementou um programa de contratação de jovens que estejam cursando ensino superior e se autodeclarem negros ou pardos. Daí foram desdobrados inúmeros debates. Por conta disso emiti um parecer no qual afirmo sua correção jurídica. Não obstante, tal tem sido a repercussão dessa sua iniciativa que me permito agora escrever a propósito de sua correção em termos sociais.

O artigo 5.º da nossa Constituição estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza e garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à igualdade. Note-se bem que o preceito contém uma afirmação – a igualdade perante a lei – e uma garantia. Uma conhecida lição de Kelsen é primorosa: a chamada “igualdade” perante a lei não significa outra coisa que não seja a aplicação correta da lei, qualquer que seja o conteúdo que esta lei possa ter, mesmo que não prescreva um tratamento igualitário, desigual.

A concreção da regra da igualdade reclama a prévia determinação de quais sejam os iguais e quais os desiguais, até porque – e isso é repetido desde Platão e Aristóteles – a igualdade consiste em dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais. Vale dizer: a Constituição e as leis devem distinguir pessoas e situações distintas entre si a fim de conferir distintos tratamentos normativos a pessoas e situações que não sejam iguais.

Mais, permito-me lembrar dois acórdãos exemplares. Um lavrado na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 – relator o ministro Ricardo Lewandowski – outro na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41 – relator o ministro Luís Roberto Barroso.

Leem-se na ementa do primeiro deles os seguintes trechos: “I – Não contraria – ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5.º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares; II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade”.

Na ementa da ADC 41, o seguinte: “1. É constitucional a Lei n.º 12.990/2014, que reserva a pessoas negras 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta, por três fundamentos. Em primeiro lugar, a desequiparação promovida pela política de ação afirmativa em questão está em consonância com o princípio da isonomia. Ela se funda na necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por meio da distribuição mais equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecimento da população afrodescendente”.

As lições de Ricardo Lewandowski e Luís Roberto Barroso confirmam que não se interpreta o Direito em tiras, aos pedaços, que não se interpretam textos de Direito isoladamente, mas sim o Direito, no seu todo.

Repito: todos são iguais perante a lei, mas a igualdade consiste em dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais. Em voto proferido no julgamento do Mandado de Segurança (MS) 26.690, quando exerci a magistratura no Supremo Tribunal Federal (STF), afirmei que “sabemos, desde Platão e Aristóteles, que a igualdade consiste exatamente em tratar de modo desigual os desiguais”.

Ainda que seja assim, uma ação civil pública movida pela Defensoria Pública da União, subscrita por Jovino Bento Junior, nos deixa perplexos. A Defensoria Pública da União é incumbida, nos termos do disposto no artigo 4.º, inciso XI, da Lei Complementar 80/94, de exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos de grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado, e entre os grupos que merecem proteção especial do Estado está a população negra. O que essa ação pretende, penetrando o absurdo, é que seja dado tratamento igual aos desiguais.

A lição de Carlos Maximiliano é primorosa, cá se aplicando qual uma luva. “DEVE O DIREITO SER INTERPRETADO INTELIGENTEMENTE: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis” (maiúsculas no original).

O programa de contratação implementado pelo Magazine Luiza é iluminado pelos meus velhos amigos Platão e Aristóteles e pelos de agora, lá do Supremo, Ricardo Lewandowski e Luís Roberto Barroso.

*Advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, foi ministro do STF


Monica De Bolle: Reflexões sobre a sindemia

Há uma urgente necessidade de planejamento desde agora para enfrentar o que sobrevirá da crise atual da covid-19

Talvez alguns leitores já estejam familiarizados com o termo sindemia. Ele vem sendo utilizado crescentemente pela imprensa após a Organização Mundial de Saúde, além do renomado periódico científico The Lancet, terem se referido à covid-19 e suas consequências como uma sindemia. Para quem não sabe o que significa, sindemia foi o termo cunhado pelo médico-antropólogo Merrill Singer nos anos 90 com o propósito de formular novas abordagens para o tratamento de doenças e o enfrentamento de problemas de saúde pública.

Sindemias consistem em situações onde duas ou mais doenças interagem biologicamente de modo adverso, onde essas doenças coexistem em níveis que caracterizam epidemias nas populações afetadas, e em contextos nos quais fatores socioeconômicos diversos contribuem para o agravamento do problema constatado. Portanto, as sindemias não tratam as doenças isoladamente, tampouco fora do contexto socioeconômico em que despontam, ao contrário do entendimento usual sobre epidemias e pandemias.

Há várias razões para que especialistas em saúde e saúde pública, além de cientistas sociais, estejam abraçando o termo sindemia para caracterizar os efeitos da covid-19. A mais visível delas é como a nova doença afeta desproporcionalmente segmentos da população desavantajados seja por motivos raciais, seja por questões relativas à desigualdade e à pobreza. Muitas vezes, tanto raça quanto desigualdade e pobreza interagem, revelando os problemas estruturais subjacentes. Está amplamente documentado que aqui nos EUA negros e hispânicos são os que mais sofrem com a covid-19. No Brasil, são os mais pobres, de maioria negra, os mais afetados. Essa divergência observada no impacto do vírus sobre a sociedade tem características sindêmicas.

Se pensarmos dessa forma sobre a covid-19, há muito com o que se preocupar mesmo que exista uma vacina ou tratamentos para a doença seja quando for. Tomemos a obesidade. A obesidade é um fator de risco para o desenvolvimento de quadros graves ou severos de covid-19. A obesidade é também um fator de risco para doenças crônicas não transmissíveis, como a diabetes, a hipertensão, doenças coronarianas, e por aí vai.

De acordo com vários estudos recentes sobre a obesidade no Brasil, ela está não apenas em trajetória crescente, como cada vez mais aflige a população de baixa renda e, em particular, as mulheres mais pobres.

A inter-relação entre obesidade, diabetes, e covid-19 configura uma sindemia nos moldes descritos acima: as três doenças se exacerbam mutuamente em termos biológicos e estão inseridas no contexto específico de pessoas de renda mais baixa com reduzida segurança alimentar. Do mesmo modo, a inter-relação entre obesidade, hipertensão, e covid-19 também configura uma sindemia, lembrando que a hipertensão eleva outros riscos, como o de AVCs, de doenças renais crônicas, e de vários outros problemas.

O resumo disso tudo é que mesmo depois de passadas as ondas agudas da epidemia no Brasil, haverá um contingente grande de pessoas com doenças crônicas, muitas delas exacerbadas pela covid-19. Essas pessoas provavelmente pertencerão ao mesmo segmento socioeconômico que hoje se associa tanto à covid-19, quanto à existência de doenças como a obesidade. Todas essas pessoas, de variadas faixas etárias, permanecerão dependentes do SUS.

Quando o assunto é risco econômico no Brasil, fala-se muito em problemas de natureza fiscal, risco de calote de dívida, descontrole inflacionário, e outros problemas macroeconômicos que evidentemente devem ser pensados e considerados.

Contudo, o risco mais importante, na verdade já uma realidade mesmo quando não levamos em conta a covid-19, é o impacto das sindemias existentes sobre a saúde pública e a economia, agravando problemas estruturais subjacentes, sobrecarregando o SUS, e, claramente onerando também as contas públicas. Há uma urgente necessidade de planejamento desde agora para enfrentar o que sobrevirá da crise atual. Dizer que o governo atual não está preparado para dar cabo desses imensos desafios é eufemismo.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute For International Economics e Professora da Sais/Johns Hopkins University


Carlos Melo: Uma sabatina para não sabatinar

A indicação de Kassio Marques para a vaga no STF é um processo de surpresas e atropelos. Surpresas porque se esperava de Jair Bolsonaro um nome “terrivelmente evangélico” – o que não ocorreu. Atropelos porque, após a indicação, aspectos do currículo do candidato foram revelados, deixando constrangimento para quem se apresenta à vaga, quem o indica e quem o aprovará, em sabatina.

Ao se afastar da promessa que fez à base evangélica, o presidente surpreendeu pelo pragmatismo, incomum no seu caso. Ser “terrivelmente” adepto de qualquer religião não é qualificativo para tribunais em Estados laicos e democráticos. O que se espera de um juiz é estatura jurídica. De sorte que Bolsonaro surpreendeu e indicou alguém com melhores condições do que se esperava.

Mas, também as articulações que levaram ao nome de Marques foram surpreendentes. O noticiário indica que a escolha compreende enfraquecimento da Lava Jato no STF. O futuro ministro pode ter visão jurídica distinta da operação; ser mais ou menos crítico em relação a isso não é um defeito, desde que faça sentido jurídico. Posicionamentos dessa ordem deveriam ser tratados pelos senadores.

O irônico é que ministro com essa inclinação seja indicado por Jair Bolsonaro, que cavalgou na popularidade e no radicalismo lavajatista. Que fez coro a ele, exigindo o fim da “velha política”, e a mais que dura punição, sem remissão, de envolvidos com corrupção. Os ventos mudam de direção: Bolsonaro teria capitulado e conciliado com seus antigos adversários? O certo é que ou errou lá ou erra aqui.

Da indicação para cá, problemas nos certificados de notório saber do futuro ministro foram revelados: títulos que não se confirmam e denúncias de plágio surgiram; imprecisões, enfim, frequentes no atual governo. Mas que, num ambiente de necessário rigor, seriam pontos para reanálise da própria indicação: são questões que comprometem mais do que ser contra ou a favor de teses jurídicas, pois desgastam a imagem de alguém que será guardião inconteste da Constituição. A busca do esclarecimento deveria ser ponto central da sabatina.

Mas isso dificilmente ocorrerá. A sabatina tende a não sabatinar, pois a posição do futuro ministro em relação à Lava Jato parece bastar. A conciliação de interesses apenas aparentemente contraditórios sabe fazer a curva dos ventos e tudo se dissipa na fachada do teatro.

*Carlos Melo cientista político e professor do Insper


Vera Magalhães: Tânatos

Só Freud explica a pulsão de morte que emana de Bolsonaro em plena pandemia

Não há outra explicação, a não ser a pulsão de morte descrita por Sigmund Freud em sua teoria, para um presidente de um país no qual quase 160 mil pessoas morreram em menos de um ano usar uma cerimônia oficial para, numa só tacada, divulgar desinformação sobre vacina e vender mais um medicamento sem eficácia científica comprovada, sem nenhum dado que ampare a “descoberta”.

A teoria das pulsões aparece pela primeira vez na obra de Freud em 1920, mas ganha contornos culturais, sociológicos e políticos nove anos depois, quando ele publica O Mal-Estar na Civilização. Neste texto ele descreve a dicotomia entre as pulsões do indivíduo – a pulsão de vida (Eros) e de morte (Tânatos) – e as expectativas da sociedade (ou da civilização).

Bolsonaro age movido a pulsão de morte desde os primórdios de sua curta passagem pelo Exército, em toda a sua carreira de defensor de tortura e assassinato nos porões e, agora, como promotor de caos no enfrentamento da pandemia de covid-19.

Se não, qual a justificativa para um presidente adotar um tom de pura picuinha e dizer explicitamente que, sob suas ordens, a Anvisa, uma agência que tem o dever de fiscalizar e regular a política de saúde, pode atrasar a aprovação de vacinas ao sabor das disputas político-partidárias que ele insiste em antecipar?

Qual a explicação para que, 116 anos depois da Revolta da Vacina, o Brasil esteja mergulhado, por obra e graça do presidente e de seus acólitos, num pântano de desinformação e calhordice em que se propagandeia de forma irresponsável que alguém (Quem? Os governadores? A polícia? Vozes da cabeça dos malucos?) vai invadir a casa de pessoas e vaciná-las à força com substâncias vindas da China (a mesma que, insinuam eles, criou um vírus em laboratório para subjugar o mundo) sem comprovação científica?

No mesmo evento em que usa mais um órgão de Estado, a Anvisa, como aparelho de suas intenções mesquinhas, o presidente dá voz ao ministro-astronauta para promover mais um medicamento sem eficácia científica comprovada em nenhum estudo sério do mundo, como sendo capaz de, nas fases iniciais da covid-19, reduzir a carga viral.

Para isso, o ministro em questão promete para dali a alguns dias (quando?) os estudos que supostamente corroboram a irresponsabilidade, ao mesmo tempo em que usa gráficos chupados de um desses bancos de imagem públicos da internet para mostrar a suposta eficácia. Garganteia diante de um chefe aparvoado que o que deveria ser um estudo de anos foi feito em quatro meses.

Tal show de mistificação, num país que não estivesse anestesiado pelos absurdos cotidianos e impunes, seria contraposto imediatamente pelo Ministério Público, pelo Judiciário, pelo Conselho Federal de Medicina e a comunidade científica, em uníssono. Com a exigência de apresentação imediata de dados, sob pena de punição.

Aqui, o contraponto fica por conta de cientistas usando suas redes pessoais para cobrar o ministro, jornalistas científicos fazendo o mesmo e, talvez, alguma representação de partido de oposição.

O Ministério Público Federal é hoje uma instituição em que os procuradores estão calados porque temem ser alvo de perseguição (volto a isso na coluna de domingo).

Diante de cenário de terra arrasada, dá até um alívio que o Ministério da Saúde se descole do teatro da morte e anuncie convênio para comprar 46 milhões de doses de vacina do Instituto Butantã quando os estudos comprovarem sua eficácia. Resta saber se também o ministro não será admoestado pelo chefe a recuar, se o Tânatos e os delírios persecutórios decorrentes dele apontarem que ele está jogando a favor de seus adversários.


Rosângela Bittar: Ponto final coisa nenhuma

Bolsonaro fala uma coisa agora e seu contrário minutos depois. Subversão total do ponto final

A vacina contra o coronavírus não será obrigatória e ponto final, decretou o presidente Jair Bolsonaro. Resta-nos a esperança de que este ponto final de agora, como o foram tantos outros, seja um mero arrebatamento da ignorância. Não voltaremos à idade da pedra, mesmo que seja necessário recorrer ao papa, ao pajé ou ao Tribunal de Haia.

Ponto final quer dizer fim. Não permite réplica. A não ser que se subverta o sinal gráfico convencionado.

O ponto final, no discurso de Bolsonaro, pode significar vírgula; talvez, ponto e vírgula; com certeza reticências; muitas vezes exclamação ou até parênteses. Quem sabe, pausa para um gole d’água; também uma intervenção abusiva, subentendida a determinação para que se mude de assunto.

Correndo o risco de glamourizar um evidente vício verbal, o histrionismo de Bolsonaro, ao banalizar a conclusão do seu pensamento com a expressão superlativa, virou marca. Todo mundo aceita, ninguém discute.

Bolsonaro é espectador do seu próprio governo. Não demonstra convicção, compromisso ou segurança nas decisões. Fala uma coisa agora e seu contrário minutos depois. Subversão total do ponto final.

Exemplo: não se fala em Renda Brasil até o fim do meu governo e ponto final. Foi o que disse antes de receber o relator e autorizar o prosseguimento do projeto relativo ao programa renegado. Talvez, no caso, coubesse só uma vírgula, abrindo caminho a um advérbio de tempo. Não se fala mais nisso, agora.

Quando o assunto foi retomado com renovado vigor, a condenada Renda Brasil tornou-se Renda Cidadã, e todos já tinham esquecido a peremptória ordem anterior.

O presidente admitiu, gerando abalos ao mercado de ações, que o governo estuda mesmo, apesar dos desmentidos, a hipótese de furar o teto de gastos e ponto final. Esta não esperou o dia amanhecer e o próprio Bolsonaro tratou de buscar outros recursos da ortografia, detendo-se na exclamação e no travessão. O caminho está livre a qualquer estudo, quis dizer Bolsonaro, antes de exclamar: meu governo jamais transgredirá com o rigor da política fiscal!

O tema do aumento da carga tributária e criação do novo imposto sumiu numa gaveta temporária de hipóteses lesa-voto, a serem examinadas depois das eleições de 2020. Não se sabe como reaparecerá no discurso de Bolsonaro que, inúmeras vezes, garantiu que no seu governo não tem volta da CPMF e ponto final. Como esta é uma obsessão do ministro da Economia, o presidente teve de mudar a pontuação ou demiti-lo.

Agora, com reticências, o novo imposto transformou-se em uma condicionante para desoneração da folha, depois para financiar a renda mínima, em seguida voltou a instrumento de combate ao desemprego, até ser recolhido a um dos escaninhos que abrigam os estelionatos eleitorais premeditados.

Em abril, registrou-se o que se imaginou ser o ponto final dos pontos finais. Na reunião ministerial em que reclamou da ineficiência do serviço de informação da Presidência, fez revelações bombásticas. Disse que possuía informantes particulares e se queixou da falta de ascendência sobre a Polícia Federal. Bolsonaro foi taxativo: “Vou interferir e ponto final”.

Quando a interferência virou inquérito no Supremo Tribunal Federal, por denúncia do ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro, o sinal gráfico passou a ser um parênteses de negação do fato em todas as suas versões.

O ponto final da vacina é especial, trágico. Com uma carga pesada de dramaticidade e letalidade. Assusta os escalões inferiores, insufla decisões pessoais precipitadas, causa pânico nacional e horror internacional. É grave, desafia a Ciência, que não é um partido ou paixão acidental.

O governo assume riscos de crime contra a humanidade. Ponto final coisa nenhuma.


Pedro Fernando Nery: A pandemia vai começar

Números de pobreza e desigualdade podem disparar em 2021

Quase 20 milhões de brasileiros foram salvos de cair na pobreza neste ano com o auxílio emergencial. Outros 10 milhões saíram temporariamente dela em 2020 por conta do benefício. São algo como 30 milhões de pessoas em risco com o seu fim em 31 de dezembro. O auxílio segurou os efeitos devastadores que a pandemia poderia ter no sustento das famílias mais pobres: com o seu fim abrupto, parte desses efeitos terão sido meramente adiados.

Os dados do parágrafo anterior foram calculados para o mês de julho pelo pesquisador Rogério Barbosa, do Centro de Estudos da Metrópole. Ele estimou também haver uma taxa de desemprego oculto de quase 40% entre os mais pobres. Esse número não é captado nas formulações tradicionais (taxa de desemprego aberta), porque inclui os trabalhadores que gostariam de um emprego, mas não procuraram um no isolamento. A partir de 1.º de janeiro, uma multidão sem renda deve passar a procurar ativamente emprego, o que pode provocar uma alta expressiva nos números oficiais de desocupação.

Em 2021, um terço dos brasileiros poderá estar vivendo com menos de meio salário mínimo – projeta Marcelo Neri, da FGV Social. Barbosa, Letícia Bartholo, Monica de Bolle e Pedro Souza estimaram proporção semelhante, mas para o número de cidadãos com renda inferior a um terço do mínimo.

Por isso, é extremamente preocupante a abordagem conformista externada pelo ministro da Economia em live da XP Investimentos, na sexta-feira. Diante das dificuldades de financiar um programa permanente para substituir o auxílio emergencial, afirmou que “é melhor voltar ao Bolsa Família do que fazer um movimento louco e insustentável”.

É preciso ficar claro: o Bolsa Família já estava em crise antes da crise. Apesar da retomada do PIB, havia 3 milhões de pessoas habilitadas para o programa em uma espécie de fila de espera por falta de orçamento. Se a fila fosse física, iria de Brasília a São Paulo. Para além disso, o programa convivia com valores muito modestos tanto no tocante aos valores pagos quanto aos dos critérios para receber o benefício.

Vejamos: uma mãe com renda de R$ 300 por mês vivendo com um filho recebeu R$ 1.200 por mês no auxílio emergencial. No Bolsa Família, seriam R$ 41 mensais. Se a renda dela fosse um pouco maior, de R$ 400, o valor recebido no Bolsa seria zero: a família não seria pobre o suficiente para receber qualquer valor. Frise-se que para receber o auxílio emergencial essa família de duas pessoas poderia ter renda de até R$ 1.000.

É evidente que um benefício generoso como o auxílio emergencial é atualmente impagável, o que não quer dizer que os valores envolvidos no Bolsa Família não sejam draconianos. Como Rogério Barbosa mostra, os números do Bolsa estão há anos muito atrás da inflação (o pico do valor médio foi em 2014, e o da linha de pobreza em 2010).

Existem muitas possibilidades de avançar. Uma em voga nas últimas semanas é a proposta do Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP), que propõe fazer mais com a mesma quantidade de recursos empregadas hoje em programas como o abono salarial. No entanto, exigiria que o presidente da República voltasse atrás quanto a sua negativa para a reforma do abono.

Uma possibilidade, mais progressiva do ponto de vista da distribuição de renda, foi a levantada na última semana pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Gastos com benefícios de servidores e militares poderiam ser suspensos para fortalecer a política social. Exigiria que o presidente revisse o posicionamento de que os atuais servidores não devem ser afetados por mudanças.

Há ainda um conjunto de propostas no Congresso com interpretações menos conservadoras sobre o teto de gastos, admitindo a possibilidade de que a despesa com um programa como o Bolsa Família possa ultrapassar o teto – compensado por ganhos de arrecadação sobre os mais ricos.

É intuitivo que os padrões de distanciamento social nos próximos meses vão ditar a magnitude da alta do desemprego e da pobreza com o fim do auxílio. Por ora, o aumento parece inevitável: trabalhos como o de ambulantes não se adaptam ao Zoom.

Dez milhões de pessoas deixaram de trabalhar em 2020 e é improvável que com o encerramento dos programas temporários todas voltem rapidamente aos postos anteriores.

Se o auxílio emergencial pode ter sido sobredimensionado para uma crise econômica que até agora foi menos severa do que poderia ter sido, o fato é que somente “voltar ao Bolsa Família” pode representar um choque imenso. Em 2020, com o auxílio emergencial, o Brasil observou mínimas históricas na desigualdade e na pobreza extrema. A partir de 2021, pode observar um movimento rápido e expressivo no sentido contrário: números de pobreza e de desigualdade como não víamos há anos ou mesmo décadas. Um movimento insustentável.

*Doutor em economia


Eliane Cantanhêde: Por bem ou por mal

Para o ‘senador da cueca’ só restou se licenciar por livre, mas não espontânea, vontade

Muito se falou da vice-liderança do governo e da “união estável” do senador Chico Rodrigues (RR) com o presidente Jair Bolsonaro, mas o agora famoso “senador da cueca” é do DEM e atinge a corrida do partido para polir sua imagem, aprofundar a transição geracional, disputar prefeituras importantes e se colocar o melhor possível para 2022. Daí porque a pressão pelo pedido de licença de Rodrigues. Ou saía por bem, ou saía por mal.

O DEM é o partido dos presidentes do Senado e da Câmara, Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia, do prefeito de Salvador, ACM Neto, da ministra Tereza Cristina, do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta e do presidente do Conselho de Ética do Senado, Jayme Campos. Afora Campos, todos têm planos políticos ambiciosos e optaram por um silêncio estridente sobre o vexame do correligionário, a quem só restou pedir licença, “por livre, mas não espontânea, vontade”.

A licença é um alívio para todo mundo. O plenário do Supremo por não ter de julgar amanhã se acata ou não o afastamento do senador determinado pelo ministro Luís Roberto Barroso. O plenário do Senado por não ter de votar a favor ou contra o colega. Para o DEM, a chance de sair de fininho, como Bolsonaro. O problema foi combinar com o “adversário”: Rodrigues não queria aceitar.

Ele é senador, já foi deputado e governador e é empresário bem-sucedido, logo, não é absurdo ter R$ 33 mil em casa, ainda mais porque, cá entre nós, os filhos e a ex-mulher do próprio presidente da República têm mania de pagar apartamentos, planos de saúde e escolas com dinheiro vivo… Então, por que Rodrigues escondeu a grana na cueca? Caracterizou ocultação de provas e agrediu a máxima de que “quem não deve não teme”. O que ele temia, ao ser acusado de desvios milionários na saúde?

Além de espernear diante da polícia, ele resistia também à pressão dos senadores e, particularmente, do DEM para se licenciar, mas eles colocaram a faca no pescoço: ou se licenciava ou seria cassado pelo Conselho de Ética. Nesse script, o STF derrubaria o pedido de afastamento; sem a liminar, não haveria objeto a ser votado pelo Senado e todos viveriam felizes para sempre. Ele, às voltas com polícia, MP e Justiça, mas com o filho na sua vaga.

Depois de Bolsonaro lavar as mãos e se descolar do problema, o principal interessado nesse roteiro é Alcolumbre, que tem quatro pontos em comum com o “senador da cueca”: foram deputados juntos, são senadores, representam o Norte e tentam driblar a Constituição para dar mais um mandato para Alcolumbre na presidência. Até ontem, ele agia, mas não tinha dado um A sobre o escândalo.

Enquanto isso, Bolsonaro se prepara para uma sucessão de vitórias nesta semana no Senado, com a aprovação dos seus nomes para Supremo, TCU, Anvisa, Anac. Afora um ou outro senador de oposição, e só para marcar posição contra, ele vai vencer por lavada, com destaque para o sem currículo Kassio Nunes Marques no STF e o amigão Jorge Oliveira no TCU.

Tudo caminha do jeito que Bolsonaro gosta: saia-justa no Supremo, Congresso às voltas com velhos “probleminhas”, seus escolhidos alçados a cargos-chave sem empecilhos, enquanto, como mostrou o Estadão, a paisagem nos Estados vai sendo salpicada por outdoors e fotos de Bolsonaro em campanha – uma campanha camuflada.

Tudo vai tão bem para o capitão Bolsonaro que ele já se sente à vontade para trocar o general Hamilton Mourão por um vice do Centrão – com aval dos militares. Tempos estranhos, que o DEM via como uma avenida de oportunidades para o centro responsável, mas, com dinheiro em cuecas e a direita e os militares lavando as mãos para os absurdos de Bolsonaro, vai ficando difícil. O negacionismo está em alta e o inaceitável virou moda.


Carlos Pereira: Contorcionismo interpretativo

Restrições do sistema político são responsáveis por mudanças de comportamento de Bolsonaro

Assim como é possível a algumas pessoas fazer acrobacias que envolvem flexões e contorções extremas no corpo, também é possível observar contorcionismos interpretativos de fenômenos políticos.

É surpreendente que, mesmo quando os atores políticos passam a se comportar de acordo com as expectativas geradas pelos incentivos e restrições institucionais, muitos analistas ainda têm imensas dificuldades de reconhecer as virtudes do sistema político brasileiro. Preferem, por exemplo, creditar aos supostos “defeitos” do sistema o enquadramento comportamental do presidente Jair Bolsonaro. Fazem contorcionismo interpretativo ao anunciar a fragilização das organizações de controle como decorrente de supostos “acordos”, como se estas fossem indefesas ou passivas às ações dos políticos.

Inebriado pela vitória surpreendente e pelos compromissos antissistema de sua campanha à Presidência, Bolsonaro inaugurou seu governo nadando contra a corrente das regras do jogo político. Ignorou as restrições institucionais do presidencialismo multipartidário e se negou a montar uma coalizão, preferindo governar na condição de minoria.

Baseado em extensa pesquisa empírica produzida pela ciência política brasileira, era esperado que essa estratégia governativa gerasse problemas crescentes de governabilidade. Não deu outra! O governo colheu derrotas sucessivas tanto no Legislativo como no Judiciário. Além do mais, acirrou animosidades e se engajou em conflitos abertos com outros Poderes.

Os custos decorrentes dessa estratégia adversarial de governar tornaram-se proibitivos para Bolsonaro, que viu sua popularidade derreter e aumentarem os riscos de interrupção precoce de seu governo. Independentemente das motivações do presidente (sobreviver, proteger seus filhos de investigações, obter sucesso no Legislativo e no Judiciário etc.), o governo fez, mesmo que tardiamente, consideráveis ajustes e inflexões em seu comportamento.

Ainda sem formar uma coalizão claramente majoritária e estável, bem como sem explicitar quais os termos de troca dessas alianças, Bolsonaro decidiu jogar o jogo do presidencialismo multipartidário. O presidente vem se aproximando dos partidos do Centrão, que têm conferido estabilidade e previsibilidade à democracia brasileira ao participar de quase todas as coalizões dos governos pós-redemocratização.

Bolsonaro também diminuiu o tom do seu discurso belicoso e autoritário que alimentava as conexões identitárias com seu eleitorado mais reacionário. As instituições políticas e de controle, portanto, têm sido capazes de constranger as ações do governo ao ponto do discurso confrontacional de Bolsonaro perder autenticidade. Ou seja, o presidente, ao se domesticar, se rendeu à “política tradicional”. A democracia venceu!

O Brasil, em termos relativos, tem vivido o período mais pacífico, longevo e estável da história de sua democracia. Atores políticos e agentes econômicos que apresentam comportamento desviante têm sido objeto de investigações e sofrido punições judiciais expressivas. Como exemplo, o ex-vice-líder do governo no Senado, senador Chico Rodrigues, acaba de ser flagrado pela Polícia Federal com dinheiro escondido na cueca e teve seu mandato suspenso por 90 dias pelo Supremo Tribunal Federal.

O viés de pessimismo decorrente do comportamento inicial de Bolsonaro parece ser a raiz do mal-estar que, a despeito das virtudes do presidencialismo multipartidário, tem atormentado a maioria das análises políticas sobre a capacidade das instituições brasileiras de constrangê-lo.

*Cientista político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE)


Celso Lafer: Diplomacia e conhecimento

O negacionismo nos isola no mundo e compromete a nossa inserção internacional

Robert Zoellick, ex-presidente do Banco Mundial, acaba de publicar o livro America in the World. Nele, com conhecimento e experiência diplomática, examina o papel da política externa na construção do poderio dos Estados Unidos no mundo. Um capítulo é dedicado a Vannevar Bush, por ele qualificado como o “inventor do futuro”.

Bush dirigiu o Escritório de Pesquisa e Desenvolvimento nos governos Roosevelt e Truman. Escreveu Science: The Endless Frontier, excepcional documento de 1945, que inspirou a criação da Fapesp. A Vannevar Bush se deve a concepção do sistema americano de ciência e tecnologia após a 2.ª Guerra Mundial, levando em conta a interdependência da ciência básica e aplicada e da complementariedade entre os distintos papéis do governo, de uma comunidade científica e universitária livre e independente, da indústria e dos empresários privados.

A implementação das concepções de Bush criou um modelo de inovação que eclipsou o sistema soviético, estatal. Esse é um dos dados do sucesso americano na dinâmica da bipolaridade Leste/Oeste. O desafio do presente é a competição entre o modelo de pesquisa e inovação dos EUA e o que vem sendo construído com apreciável sucesso pela China.

Bush antecipou a velocidade com que a cultura científica da pesquisa expande vertiginosamente as fronteiras do conhecimento e vem trazendo mudanças significativas em todas as esferas e dimensões, alterando as condições da vida em escala planetária e impactando a dinâmica da ordem mundial. Henry Kissinger observou que a era digital colonizou o espaço físico e permitiu a ubiquidade do funcionamento das redes que operam na instantaneidade dos tempos. Isso vem induzindo grandes transformações, até na maneira de conduzir a política externa e de atuar no campo diplomático.

Ciência e conhecimento são dados de base do cenário mundial do século 21, o que confere realce especial à afirmação de Bacon “conhecimento é poder”, nela se incluindo o poder da sociedade de dar rumos aos seus caminhos.

Desde o Renascimento a ciência é uma atividade internacional que se alimenta do intercâmbio de ideias e descobertas. Daí as atividades internacionais das academias científicas, incluída a brasileira, no exercício de uma diplomacia da ciência.

As formas como a ciência se insere na pauta internacional e interna levaram a Royal Society inglesa a elaborar novas formulações que vão além da tradicional diplomacia da ciência. Daí o destaque dado à ciência na diplomacia e nas políticas públicas em geral e da ciência em prol da diplomacia. Essas vertentes são ingredientes de grande relevo para um juízo diplomático apropriado para identificar as necessidades internas do País e avaliar possibilidades de melhor inserção internacional.

Dois itens da pauta interna e internacional são reveladores de um negacionismo do papel da ciência e do conhecimento nas políticas públicas e na diplomacia do governo Bolsonaro. O primeiro diz respeito à sua postura no enfrentamento da crise da covid-19, que fez aflorarem novos riscos para a saúde do mundo. A gestão desses riscos requer conhecimento e cooperação internacionais. Demanda as pontes de um multilateralismo permeado pela ciência na diplomacia. Não está no horizonte de uma diplomacia de confronto, que rejeita o acervo de realizações da tradição da política externa brasileira e se alinha aos muros dos unilateralismos excludentes.

O segundo diz respeito ao meio ambiente, tema global, transversal, que permeia a vida internacional. Foi o conhecimento que identificou os riscos que põem em questão a integridade dos ecossistemas, que, no seu conjunto, sustentam a vida na Terra. Foi o aprofundamento do conhecimento que ampliou o escopo operativo da gestão de riscos nessa matéria.

O paradigma do desenvolvimento sustentável consagrado na Rio-92 assinala a presença internacional ativa do Brasil nesse campo e é um exemplo da ciência na diplomacia. O desenvolvimento sustentável é o caminho para lidar, com o apoio do conhecimento, com a interligação economia e meio ambiente.

O desabrido negacionismo do governo Bolsonaro, por atos e palavras, em relação ao tema do meio ambiente é uma denegação do prévio acervo de realizações das políticas públicas brasileiras e de suas instituições de conhecimento. Corrói a credibilidade internacional do Brasil. Põe em questão a nossa capacidade, como país, de lidar criativa e construtivamente, pelo conhecimento, com a riqueza da nossa natureza e com o nosso potencial de crescimento econômico.

Em síntese, como diz o provérbio, “pior cego é o que não quer ver e pior surdo, o que não quer ouvir”, manifestado neste governo por um duplo e interconectado negacionismo: a denegação da importância dos fatos que a ciência e o conhecimento revelam e a recusa do papel da ciência e do conhecimento como o caminho para o seu deslinde. É o que nos isola no mundo e compromete a nossa inserção internacional.

*Professor emérito da USP, ex-presidente da Fapesp (2007-2015), ex-ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002), é membro da Academia Brasileira de Ciências.


Luiz Sérgio Henriques: O duplo ataque à democracia

A grande aposta é que as sociedades nunca se deixam aprisionar por muito tempo

Reza a sabedoria dos políticos de Minas que no tempo das cédulas de papel, dos cabos eleitorais e fiscais de urna, com a contagem de votos seguindo lenta e sinuosamente por dias a fio, era necessário vencer não só a eleição propriamente dita, como também a apuração, não sendo impossível ter êxito na primeira e fracassar na segunda dessas empreitadas. Pois é de tal ordem o ataque desferido contra as democracias, incluída a aparentemente mais sólida delas, que aquela sabedoria saiu dos limites do folclore local e passou a rondar a vida de muitas nações. Não podemos dar por certo e decidido que daqui a duas semanas, nos Estados Unidos, se faça rotineiramente a contagem eleitoral, se proclame o vencedor e se providenciem as formalidades de praxe, especialmente em caso de vitória de Joe Biden, o desafiante.

A globalização da economia, que não é propriamente o resultado de ação consciente, sem dúvida desorganizou arranjos produtivos nacionais e deixou livre o cenário para a ofensiva contra os pilares da ordem democrática e os compromissos que ela implica. Um ataque em pinça, diríamos, tomando de empréstimo uma expressão do léxico militar, a que tantas vezes se recorre para entender a política. Sociedade civil e sociedade política constituíram, respectivamente, os alvos da dupla ação destrutiva, levada a cabo com regularidade e constância nestes últimos tempos. Portanto, há método nesta ação aparentemente anárquica, mas claramente voltada para o estabelecimento de padrões autocráticos de mando.

Tomemos a sociedade civil, o lugar por excelência de encontro e confronto entre opiniões e valores, visões e concepções de mundo próximas ou concorrentes entre si. O lugar da hegemonia, em suma, entendida como capacidade de persuasão, não de imposição ou força. Há muito essa esfera decisiva da vida social vem sendo atingida por uma escalada crescente de descrença, barbárie, irracionalismo. Não há nostalgia romântica quando se observa a contínua degradação da linguagem pública, de suas imagens e seus signos. É possível, por exemplo, que ainda não nos tenhamos dado conta plenamente da violência simbólica explicitada nas mãos que imitavam armas e simulavam rajadas de tiros, “desferidos” em meio ao deboche. Pois foram essas mãos a marca principal das eleições de 2018 – comparativamente, a vetusta vassoura de Jânio Quadros, outro político irresponsável da direita nacional, vem à memória como sinal inocente e até bem-humorado de uma época com índices relativamente menores de desfaçatez.

Políticos assim tornam-se críticos de costume, fazendo as vezes de pregadores e até “filósofos”. Do alto de seus púlpitos, os presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro, entre outros, promovem incessantes “guerras de cultura”. O alvo preferido é o “politicamente correto”, que, exageros à parte, presentes sobretudo na versão puritana dos norte-americanos, contribuiu para diminuir o grau de sadismo nas relações sociais, para recorrer a uma avaliação de Richard Rorty (em geral, um crítico da correção política).

Aqueles presidentes nem desconfiam, mas o intérprete de libras que os acompanha nos discursos é expressão da necessidade de não discriminar parcela significativa da população. Nada mais “politicamente correto” do que isso, ainda que o façam por cálculo e na mais cândida insciência.

Não há na ação de “abrutalhamento” da sociedade civil uma estratégia diversiva para desviar a atenção de coisas mais importantes que estariam acontecendo em outra parte. O culto às armas, a agressão às minorias, o negacionismo científico, arrogantemente exposto em crises como a sanitária e a ambiental, caminham coerentemente ao lado do ataque frontal à sociedade política, o segundo alvo do aludido movimento em pinça. Bem verdade que o estridente “nós contra eles” antecede o governo Bolsonaro; como toda retórica populista, de direita ou de esquerda, tal lema ignora o cuidado extremo que se deve ter com as regras do jogo e com a busca permanente de um terreno comum entre todos os que dele participam.

A polarização sectária, praticada abusivamente por anos a fio, conduziu-nos a coisa muito pior. Desde a vitória do presidente Bolsonaro uma espécie de subversivismo elementar (de parte) das classes dominantes encontrou o consenso passivo de amplos setores da população, tornando viável a violação – ao menos retórica – de um dos requisitos mínimos da democracia. É que, segundo essa concepção, “eles”, todos os que se opõem, só podem ser “antipatriotas”, “vermelhos” e “comunistas”, explicitando-se assim a intenção de abolir a normal alternância e promover, quem sabe, novo e indefinido período autocrático.

Nos Estados Unidos, ora em condição análoga, Joe Biden vem encarnando a melhor estratégia: reativar a cidadania, reagrupar os democratas e, ainda, abrir-se para os republicanos que recusam os maus modos de Trump. A grande aposta é que a sociedade civil e a sociedade política, no estilo ocidental, nunca se deixam aprisionar por muito tempo e logo voltam a se impor aos demagogos.

Lá como aqui.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil