o estado de s paulo

Vera Magalhães: Sem Ministério Público

Sob Aras, procuradoria se omite da função de fiscalizar e cobrar o governo

As ameaças de Jair Bolsonaro de dificultar a aprovação de vacinas contra o novo coronavírus pela Anvisa e sua afirmação reiterada de que o governo federal não vai comprar para fornecer a Estados e municípios e ao SUS a Coronavac, caso ela venha a ser a primeira a concluir as fases de teste de segurança e eficácia, explicitaram a completa omissão do Ministério Público Federal, sob Augusto Aras, em sua função precípua de fiscalizar e cobrar o poder público e representar a sociedade.

Essa omissão começou graças ao processo de escolha do procurador-geral da República: à revelia da própria instituição, apontado por Jair Bolsonaro justamente pelo fato de não ter se submetido à lista tríplice dos pares e depois de sucessivos encontros em palácios em que, depois, o presidente fazia questão de colocá-lo debaixo da asa e deixar claras as afinidades em defesa da “Pátria”, da “família” e sabe-se mais o quê.

De propósito, Bolsonaro tratou de manter Aras na lista dos “supremáveis”, aqueles que poderia indicar à cadeira de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal. Isso explica por que, por exemplo, ao pedir uma investigação a respeito das denúncias de Sérgio Moro contra o presidente, Aras tenha feito questão de incluir o ex-ministro como investigado por suposta denunciação caluniosa. Não vai dar em nada para nenhum dos dois, se depender dele, e a intenção sempre foi essa.

Mas não é só. A maneira como Aras montou a estrutura interna do MPF, centralizando nas estruturas próximas de si qualquer iniciativa de fiscalização do governo, amarrou os procuradores. Isso, conjugado com o aumento das ameaças de sanções disciplinares por órgãos, como o Conselho do MPF, funcionaram como mordaças não só para os atuantes em forças-tarefas, como a da Lava Jato, mas também em grupos antes muito ativos, como os de defesa dos direitos humanos e do meio ambiente, não por acaso áreas críticas para o governo Bolsonaro.

Procuradores que adotaram medidas contra o ministro Ricardo Salles foram questionados no Conselho por passarem por cima das instâncias encarregadas de fazer isso. Tentativa de censura explícita.

Agora, Aras determinou que as iniciativas quanto ao acompanhamento das ações governamentais no enfrentamento da pandemia de covid-19 fiquem a cargo de um “gabinete integrado de acompanhamento da covid-19”, ligado diretamente ao gabinete da PGR.

Bolsonaro cometeu todos os abusos que cometeu nesta semana, ameaçando boicotar a vacina, promovendo mais um remédio sem eficácia comprovada em solenidade oficial, dizendo que tentará influenciar uma decisão da Anvisa, agência que precisa ser independente, e o que fez o tal gabinete da covid do MPF?

No dia 21, o tal gabinete encaminhou a todos os procuradores, pela rede interna de e-mail, uma mensagem contendo o “resumo da coletiva de imprensa do Ministério da Saúde” e um “comunicado interministerial” do Ministério das Comunicações listando todas as iniciativas do governo no enfrentamento da pandemia. Apenas isso.

A atuação do grupo como mero porta-voz do Planalto revoltou os procuradores, que responderam à mensagem dizendo que esperavam que, na rede da instituição, se informasse o que o MPF pretende fazer para cumprir seu papel constitucional de representar os interesses da sociedade brasileira, nessa questão das vacinas, que vai caminhando para se transformar num grave impasse entre entes federativos.

A capitulação de um órgão que a Constituição fez questão de deixar desvinculado dos três Poderes justamente para assegurar sua independência é um sinal eloquente da redução do espaço democrático. Ela se dá muito concretamente em diferentes frentes. Quando a reação vier, e se vier, poderá ser tarde demais.

*Editora do BR político e apresentadora do programa Roda Viva, da TV Cultura


O Estado de S.Paulo: Guinada ao Centrão reduz protagonismo das Forças Armadas no governo

Militares silenciam e perdem status de ‘garantidores’ com aliança entre Bolsonaro e grupo que ele sempre criticou

Tânia Monteiro, O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA – Protagonistas do governo, os militares têm assistido sem contestação a uma guinada do presidente Jair Bolsonaro. Com 6.157 cargos em todos os escalões da administração federal, a ala militar optou por se manter em silêncio diante da decisão do chefe do Executivo de se aliar ao velho Centrão, de se juntar a quem sempre criticou e também de suas frequentes “cotoveladas” nos generais da Esplanada dos Ministérios.

Com Bolsonaro desde a campanha, os militares eram vistos por parte do eleitorado como uma garantia de que o presidente, um político oriundo do baixo clero e com forte viés ideológico, seria tutelado. Eleito, Bolsonaro virou o jogo, ofereceu privilégios e hoje recebe dessa ala consentimento até mesmo quando dá um “cala a boca” público num general da ativa.

Poucas horas depois de ter sido desautorizado publicamente com um “Quem manda sou eu, não vou abrir mão da minha autoridade” – e obrigado a cancelar o acordo para a compra de 46 milhões de doses da vacina contra covid-19 –, o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, recebeu a visita de Bolsonaro – que saiu de lá, na quinta-feira, com o que foi buscar. “É simples assim: um manda e outro obedece”, disse o general, com um leve sorriso no rosto. O vídeo, gravado no hotel onde Pazuello se recupera do tratamento de coronavírus, revela, ainda, que ele seguiu mais uma instrução do chefe: não usava máscara. Bolsonaro também estava sem a proteção no rosto.

Nesse e em outros episódios que os atingiram, os militares preferiram não reagir. Os generais da reserva Hamilton Mourão, vice-presidente; Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, além dos demais oficiais influentes, deixaram de lado os discursos contundentes que marcaram a geração militar pós-ditadura.

Escândalo da cueca
Nas últimas semanas, eles também adotaram o silêncio quando Bolsonaro escolheu o desembargador Kassio Marques, ligado ao Centrão, para o Supremo Tribunal Federal, e após o escândalo protagonizado pelo senador Chico Rodrigues (DEM-RR), então vice-líder do governo, flagrado pela Polícia Federal com dinheiro na cueca. Ficaram calados, ainda, quando Bolsonaro atacou o ex-juiz da Lava Jato e ex-ministro da Justiça Sérgio Moro.

As postagens de Villas Bôas no Twitter, em um passado não muito distante, sempre eram aguardadas a cada escândalo político e movimento de opositores. Em abril de 2018, por exemplo, às vésperas do julgamento pelo Supremo do habeas corpus em favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Villas Bôas repudiou a “impunidade”. Procurado pelo Estadão, o general não quis se pronunciar. A amigos, ele tem dito que, neste momento, a “maior contribuição é o silêncio”.

A omissão sobre os últimos movimentos do governo virou motivo de meme nas redes sociais. “Não se esqueça de parabenizar as conquistas de nossos militares que se sacrificaram pela Nação: conseguiram se safar da reforma da Previdência; ganharam aumento durante a pandemia; vão se safar da reforma administrativa e vão ganhar mais dinheiro do que o Ministério da Educação”, diz um deles.

O general da reserva Luiz Cesário da Silveira Filho, ex-comandante Militar do Leste, no Rio de Janeiro, e crítico da ex-presidente Dilma Rousseff por causa da criação da Comissão da Verdade, considerou “um engano” achar que as Forças Armadas poderão ser prejudicadas pela existência de militares no governo. “O povo sabe separar isso daí”, disse ele. “Não tinha outra saída (a não ser se aliar ao Centrão) para garantir governabilidade e aprovar medidas.”

Professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), o pesquisador Carlos Melo rejeita a tese quase hegemônica na caserna de que a aliança com o Centrão era inevitável para garantir a governabilidade. “Alguns militares podem achar isso porque foram convencidos ou se deixaram convencer. Só que Bolsonaro se cercou do Centrão também por suas conveniências, que envolvem questões pessoais, de Justiça, os filhos, a família”, observou.

Melo avalia que Bolsonaro não precisava do Centrão para garantir a aprovação de projetos na Câmara e no Senado porque, mesmo sem base parlamentar, ele contou com “boa vontade extraordinária” do Congresso, aprovando, inclusive, a reforma da Previdência. “A aproximação com o bloco foi questão de proteção. Bolsonaro se aliou ao Centrão não para ter governabilidade, mas para ter blindagem por conta dos seus problemas políticos e até familiares”, argumentou o pesquisador do Insper.

General defende ‘governo de coalizão’
Antecessor de Heleno no GSI, o general da reserva Sérgio Etchegoyen defende o modelo de “governo de coalizão” do Planalto. Ex-ministro do governo Michel Temer, Etchegoyen disse à reportagem do Estado que “imaginar que seja possível governar um país complexo sem fazer composição nem alianças é um sonho impossível”. Em sua avaliação, “a composição, quando é sadia, tem um grande benefício”.

O ex-ministro da Defesa Raul Jungmann advertiu, por sua vez, que os militares e as Forças Armadas têm muito a perder ao se identificar com um governo, e não com a “totalidade” da Nação. “Esse é um risco que deve ser evitado a todo custo”, destacou Jungmann. Um ex-integrante do Alto Comando das Forças Armadas, que preferiu não dar declarações públicas sobre o tema, admitiu existir na sociedade “uma percepção muito grande” de que as Forças Armadas estão extremamente associadas ao presidente.


Adriana Fernandes: Coragem para cortar

Há quatro anos, o corte de renúncias fiscais vai e volta do debate econômico, absolutamente sem sucesso

O corte linear das renúncias fiscais concedidas pelo governo voltou à mesa na discussão das medidas de ajuste fiscal para 2021. Com o pouco tempo até o final do ano para decisões difíceis e impopulares, não se fala mais em mexer em apenas um ou outro grupo de isenções e benefícios tributários, mas passar a tesoura em todas elas ao mesmo tempo e na mesma proporção: algo em torno de 12% a 15%.

O alvo passou a ser todas as renúncias para engordar os cofres da União e abrir espaço para novas despesas sem piorar o déficit público. Essa medida se somaria também à discussão de corte das emendas parlamentares e outras ações do lado das despesas para o financiamento do novo programa de transferência de renda aos mais pobres e de investimentos. Frentes de dificílima execução.

O diagnóstico político é que dessa forma é mais fácil vencer as resistências daqueles setores, empresas e pessoas físicas que vão perder com a retirada dos benefícios e incentivos. Um movimento mais rápido e palatável para angariar apoio no Congresso.

Ainda que esteja no topo da agenda econômica do momento, é complicado colocar na conta como uma medida que tem chances reais de avançar em tão pouco tempo. Será preciso um esforço concentrado de convencimento das lideranças. Com a crise da pandemia, ninguém quer ver ser a sua carga tributária aumentar.

Há pelo menos quatro anos, o corte de renúncias vai e volta do debate econômico de Brasília, absolutamente sem sucesso. Tem sido quase um mantra o discurso de autoridades, políticos e economistas de que é preciso reduzir renúncias, pois o País não aguenta mais bancar patamar tão elevado, de 4% do PIB, de perda de arrecadação.

Nos últimos anos, para cada tentativa de aumento de gastos, o tema ressurge como medida compensatória. Mas na hora H não anda. Essa defesa tem sido muito mais da boca para fora.

A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2019 prometia um avanço: o envio de medidas para o atingimento da meta de reduzir os benefícios tributários para 2% do PIB em 10 anos. Nada aconteceu. Pelo contrário, apenas uma lista foi enviada ao Congresso sob sigilo e sem nenhum efeito prático.

Os Estados de São Paulo e Rio Grande do Sul, que propuseram cortes de renúncias para diminuir o déficit em 2021, estão enfrentando fortes resistências. É tão difícil mexer nesse vespeiro que a menção do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), de que o Simples precisa ser revisto que a acendeu a luz vermelha das micro e pequenas para o risco. É que a desoneração das empresas pelo regime tributário diferenciado é incluído no cálculo da Receita como renúncia, uma briga antiga do Sebrae com o Fisco. Se a tesoura for linear, o Simples também será atingido num momento em que as micro e pequenas empresas alegam grandes perdas com a pandemia.

Para atropelar o debate, o presidente Jair Bolsonaro acabou de assinar um decreto tornando permanente em 8% o benefício fiscal a concentrados de refrigerante produzidos na Zona Franca de Manaus e que favorece grandes fabricantes, como a Coca-Cola e Ambev.

A redução do benefício havia sido adotada no governo Temer para compensar perdas de arrecadação com medidas voltadas para atender os caminhoneiros, que pararam o País. Foi a única medida de corte de renúncias. Agora, o benefício volta de forma permanente (embora não no mesmo patamar da época que foi reduzido) justamente quando se discute a revisão das renúncias. É mais uma decisão do presidente contrária ao ajuste fiscal.

Um olhar rápido sobre as grandes renúncias em 2021 dá a dimensão da encrenca. A lisa é longo e chata, mas a coluna faz questão de descrevê-la para mostrar a realidade: Simples (R$ 74,3 bilhões); rendimentos isentos e não tributáveis do IRPF (R$ 33,5 bilhões); agricultura e agroindústria (R$ 32,6 bilhões); entidades sem fins lucrativos e imunes (R$ 29,2 bilhões); Zona Franca de Manaus e Áreas de Livre Comércio (R$ 24,2 bilhões); deduções do IRPF (R$ 22,1 bilhões); medicamentos, produtos farmacêuticos e equipamentos médicos (R$ 14,4 bilhões), benefícios do trabalhador (R$ 14,3 bilhões); desenvolvimento regional (R$ 11,8 bilhões); poupança e títulos de crédito - setor imobiliário e do agronegócio (R$ 6,8 bilhões); setor automotivo (R$ 5,9 bilhões); e embarcações e aeronaves (R$ 4,5 bilhões). São números fresquinhos que constam na proposta de orçamento de 2021.

Quem vai ter coragem de cortar? Essa guerra será feroz.


José Márcio Camargo: A pandemia e o mercado de trabalho

Medidas direcionadas a gerar empregos no setor de serviços são fundamentais neste momento

O efeito da pandemia sobre o mercado de trabalho brasileiro foi devastador. Ainda que o País não tenha adotado lockdowns tão restritivos quanto em outras regiões, como França, Itália, Espanha e alguns Estados americanos, entre outros, os efeitos sobre a atividade, a ocupação e a renda da população foram extremamente negativos. O Produto Interno Bruto (PIB) da economia brasileira caiu 11,4% no segundo trimestre de 2020, em relação ao mesmo período de 2019, e o nível de ocupação mostrou queda de mais de 10% entre março e abril (12 milhões de trabalhadores ficaram desocupados).

Os trabalhadores menos educados, os mais jovens e os informais foram os que tiveram maior perda. Dos 12 milhões de novos desocupados, 8 milhões (70%) eram informais e 4 milhões (40%), formais. Entre os mais jovens (14 a 17 anos) a redução no número de ocupados no segundo trimestre de 2020 em relação ao segundo trimestre de 2019 foi de 35,2%, enquanto para os trabalhadores com idade acima de 40 anos a queda foi de 5,5%. Trabalhadores com ensino superior completo ou incompleto tiveram aumento de 2% na ocupação no segundo trimestre de 2020, em comparação com o mesmo trimestre de 2019, enquanto a queda da ocupação dos trabalhadores sem instrução ou com fundamental incompleto atingiu 21,7%.

Com a diminuição do isolamento social, os primeiros sinais de recuperação da atividade começaram a aparecer já em junho. Agropecuária, indústria, construção civil e o comércio mostram forte crescimento da atividade e da geração de postos de trabalho formais. Na agropecuária, após dois meses de queda da ocupação formal, totalizando 12 mil demissões líquidas, foram gerados 86 mil postos de trabalho formais. No setor industrial, após terem sido destruídos 300 mil empregos formais, foram gerados em julho e agosto 150 mil empregos formais. Na construção civil, a redução de 120 mil postos de trabalho já foi compensada entre junho e agosto, e no comércio, dos 400 mil postos de trabalho destruídos, já foram repostos 90 mil postos.

Entretanto, o setor de serviços, que é o maior gerador de postos de trabalho, principalmente para os trabalhadores jovens, informais e menos qualificados, continua bastante defasado. Depois de destruir 600 mil postos de trabalho formais, somente em agosto o setor retomou a trajetória positiva, tendo gerado 45 mil postos de trabalho. Estes dados sugerem que medidas direcionadas a gerar postos de trabalho no setor de serviços são fundamentais.

O setor de serviços no Brasil é um setor que tem uma tecnologia flexível, de baixa produtividade, com uma porcentagem relativamente grande de trabalhadores informais, pouco qualificados e jovens – exatamente os grupos que mais sofreram com a queda da atividade na pandemia. Em razão do baixo valor da produtividade do trabalho neste setor, comparado ao valor do salário mínimo, uma grande parte dos trabalhadores não tem carteira assinada ou são trabalhadores por conta própria sem CNPJ.

Neste contexto, medidas que reduzam ou que evitem um aumento do custo de contratação destes trabalhadores, como não aumentar o salário mínimo até que o mercado de trabalho se estabilize e desonerar a folha de salários, seriam muito efetivas, não apenas para aumentar a ocupação, mas também para reduzir a informalidade.

É, também, importante simplificar as normas trabalhistas e evitar criar instituições que enrijecem o mercado de trabalho. Em especial, seriam particularmente negativas medidas que têm por objetivo regular formalmente fatores subjetivos do trabalho não presencial, como a jornada de trabalho e tratar acidentes domésticos como se fossem acidentes de trabalho, e criar regulações que tornem mais cara ou mais difícil a intermediação de mão de obra via aplicativos. Aumentar o custo de contratação e tornar o mercado mais rígido, ainda que o objetivo seja proteger os trabalhadores, vai apenas mantê-los desocupados.

*Professor do Departamento de Economia da PUC/Rio, é economista-chefe da Genial Investimentos


Sérgio Augusto: Tempos ásperos

Vargas Llosa candidata-se a ser, com todas as honras, o Balzac das ditaduras cucarachas

Saudei aqui, em 2006, a eleição de Evo Morales, a grande esperança chola de um país que, até então, sofrera cerca de 200 golpes de Estado em 175 anos de história. Cholos são os índios aculturados da Bolívia. Morales não os decepcionou: a desigualdade social diminuiu bastante, o PIB subiu de forma surpreendente. Muitos criollos (brancos descendentes de colonos europeus), donos seculares daquelas terras e riquezas, desdobraram-se na manutenção de seus privilégios e do recorde golpista boliviano, fazendo Morales pagar bem caro pela teimosia de um mandato a mais – o quarto.

Se antigamente os gringos cobiçavam a prata e, depois, o gás dos bolivianos, agora em jogo também figuram as maiores reservas de lítio do mundo. Combustível básico das baterias de celulares e dos carros elétricos, o lítio virou o pré-sal da Bolívia.

Poucos meses atrás, quando começou a balançar o coreto da direita (Áñez, Camacho e Mesa) que tomou conta do poder após derrubar Morales, o fundador da fábrica de carros elétricos Tesla Motors, Elon Musk, temeroso de perder a mamata do lítio, ameaçou, ele próprio, uma nova virada de (sem trocadilho) mesa. “Vamos dar um golpe em quem quisermos!”, fanfarronou o empresário. Ridículo. Musk foi um dos mais gozados pela lídima vitória eleitoral do candidato de Morales, Luis Arce, no último fim de semana.

Minha recolhida celebração da segunda “vitória chola” coincidiu com a leitura do novo romance de Mario Vargas Llosa, Tempos Ásperos, traduzido pela Alfaguara. A rigor, só mudei de país: da Bolívia para a Guatemala, ambos com majoritária população indígena e passado, presente e vilões similares. Vilões adventícios e autóctones, de ternos e fardados, com e sem armas de fogo. Nas repúblicas bananeiras da América Latina, férteis em bananas e outras riquezas vegetais e minerais, as palavras golpe e militar são como irmãos siameses, inseparáveis.

(Sempre que algo palpitante rende manchetes à Guatemala, eu me lembro de uma hilariante chamada do telejornal que o comediante Chevy Chase apresentava no humorístico Saturday Night Live, nos anos 1970: “Um terremoto de grande intensidade atingiu ontem a Guatemala, matando 350 ditadores militares”).

O romance de Vargas Llosa conta a história de um deles, o tenente-coronel Carlos Castillo Armas que, em 1954, à frente de um exército de mercenários financiado pela CIA, tirou da presidência da Guatemala o coronel Jacobo Árbenz Guzmán, eleito democraticamente em 1950. Começava ali a longa cruzada golpista dos EUA ao sul do Rio Grande, alimentada pela Guerra Fria e arquitetada pelos sinistros irmãos John Foster e Allan Dulles, respectivamente secretário de Estado e diretor da CIA do governo Eisenhower, dois falcões obcecados com a União Soviética e o “avanço do comunismo” mundo afora. Pelos estragos que causaram, esses dois mereciam um círculo especial no Inferno de Dante.

Tempos Ásperos é, de certo modo, uma complementação de A Festa do Bode, que o escritor peruano escreveu sobre o ditador dominicano Rafael Trujillo, 20 anos atrás. Vargas Llosa candidata-se a ser, com todas as honras, o Balzac das ditaduras cucarachas.

Déspotas fardados é o que não falta na história do continente; todos “cavernícolas fanáticos” do anticomunismo, quase todos irremediavelmente corruptos e ocasionalmente assassinados. Trujillo, por sinal, aparece no livro, assim como outro assassinado, Anastasio Somoza, que permitiu o treinamento dos mercenários da Castillo Armas na Nicarágua, pois a invasão foi uma operação consorciada pelos tiranetes da região subservientes aos interesses econômicos, ideológicos e geopolíticos dos EUA.

Árbenz Guzmán era um militar honesto, reservado, caladão (daí o apelido de “Mudo”), apenas interessado em aclimatar ao país uma democracia moderna à americana, com imprensa e eleições livres e concretizar uma eficiente reforma agrária, também os anseios de seu antecessor, o educador Juan José Arévalo, de quem Guzmán foi ministro da Defesa.

O coronel legalista enfrentou mais de trinta tentativas de golpe contra Arévalo, demonizado, sem pudor nem fundamento, como títere do comunismo soviético. Essa mesma aleivosia seria lançada contra Guzmán pela máquina de mentiras e meias-verdades manipulada da CIA e disseminadas na imprensa amiga pelo embaixador americano na Guatemala, John Peufiroy, que não ganhara o apelido de “açougueiro da Grécia” por eventuais obras beneficentes em Atenas, seu posto anterior.

Em janeiro de 1954, Peufiroy insinuou à revista Time que o comunismo avançava célere na Guatemala. No mês seguinte, falsas armas soviéticas “destinadas à Guatemala” apareceram, misteriosamente, na Nicarágua. Tais patranhas eram as fake news da época, inventadas e orquestradas por um ancestral de Steve Bannon chamado Edward Bernays.

Pioneiro da propaganda e do serviço de relações públicas, Bernays era o braço direito do magnata das bananas Samuel Zemurray, dono da United Fruit, que, embora tivesse conseguido do governo guatemalteco um bom preço pela compra de parte do seu gigantesco latifúndio, não abriu mão do golpe.

Em 18 de julho, Guzmán foi derrubado e exilou-se no México, onde viveu até morrer, em 1971. O traiçoeiro coronel Castillo Armas, “figura apagada que passou pela Escola Militar sem glória nem brilho”, enterrou o país, mas não chegou ao fim de sua ditadura, interrompida em 1957 quando um guarda da presidência o despachou para os quintos do inferno.

*É jornalista e escritor, autor de ‘Esse mundo é um pandeiro’


Marco Aurélio Nogueira: Ainda o futuro

Difícil voltar ao que havia antes. Mas não sabemos bem o que virá nem o que queremos

A notícia de que uma segunda onda de disseminação do coronavírus atingiu diversos países europeus dramatizou a questão que nos perturba desde o início do ano: que futuro teremos? Em que medida ele será afetado pelas medidas que acompanharam a marcha da covid-19 pelo mundo? Quando virão as vacinas e que efeitos terão?

No Brasil, em particular, tudo ganha maior proporção, dado o caráter atrabiliário e anticientífico do presidente da República. Seus esgares ideológicos sugerem uma preferência explícita pela morte e pelo descaso, menosprezam vacinas e põem planos eleitorais à frente de providências médicas e sanitárias. Colidem com o bom senso e a responsabilidade. Embaçam ainda mais o futuro.

Não restam dúvidas de que a vida já sofre mudanças importantes. Estamos sendo obrigados a alterar hábitos e comportamentos às pressas, sem o devido processamento mental, prático e organizacional. Em dez meses vivemos como se houvessem transcorrido vários anos. Pulamos do mundo físico, material, analógico para o mundo digital. A casa passou a ser refúgio valorizado e os filhos, acompanhados mais de perto. O delivery aumentou e novas atividades produtivas brotaram. A mal chamada “uberização” invadiu setores bem estruturados.

Ingressamos com vigor no teletrabalho. A flexibilidade de horários articula-se com maiores doses de informalidade. Novos padrões infiltraram-se inapelavelmente na vida cotidiana, com vantagens e desvantagens: menos movimentação e deslocamentos, mas mais percepção de que se trabalha 24 horas por dia, de que ficamos mais dependentes de celulares e computadores, mais estressados e angustiados. A torrente de informações que desaba sobre nós provoca pasmo e confusão. A informalização crescente desprotege, causa insegurança e medo.

Tudo, porém, é seletivo e tem um claro corte de classe: as maiorias sofrem para se adaptar, ficam desempregadas com facilidade e sentem na pele a corrosão da renda. Cada passo no processo de digitalização produz uma modificação no plano do trabalho. Há mais produtividade e a mão de obra passa a ser substituída com rapidez. Máquinas de inteligência artificial deslocam os humanos, competem com eles, terminam por vencê-los. A obsolescência surge em cada curva da estrada. A exigência de qualificação torna-se a porta de entrada do mundo do emprego, que, no Brasil, paga alto preço pela baixa qualidade do sistema educacional. A nova economia pede a incorporação de recursos técnicos e intelectuais de novo tipo, cria exigências atitudinais e de formação continuada. A maioria da população está longe disso. Tudo é arrastado pela voracidade do mercado. A “desregulamentação” é do tipo arrasa-quarteirão: desmonta o que existia e de algum modo protegia.

Difícil imaginar que possamos voltar ao que havia antes. Estamos amarrados a um presente que se modifica incessantemente sem que consigamos atravessar a névoa que embaça o futuro.

Não se trata de uma “nova normalidade”. Mudanças socioculturais transcorrem quase sempre em silêncio, de modo molecular, e nos espasmos de seus fluxos vão se impondo aos indivíduos, convencendo-os de que é preciso adotar novos hábitos e valores. Mesmo quando há uma metamorfose social não há modificações repentinas. Não serão os condicionantes da covid, nem o modo como a pandemia está sendo administrada, que farão a vida ser virada de ponta-cabeça num átimo. Os efeitos dos vigorosos processos em curso amadurecerão aos poucos, em decantação. Com mais sofrimento que prazer.

Porque a política está congelada no tempo. Os partidos continuam aprisionados à mesmice. No Brasil, são desafiados pelos movimentos de renovação política, que fazem intenso trabalho pedagógico. Há protestos variados pelo mundo, mais lutas contra o racismo, a discriminação, a violência policial. A agenda eleitoral permanece ativa, a defesa da democracia agrega vozes, formando uma retórica de indignação que poucos resultados produz. Os governos continuam inoperantes, líderes “populistas” seguem se multiplicando, sem que a política consiga confrontá-los. A situação é terrível para os partidos mais à esquerda, que sofrem por estar numa posição antissistêmica sem terem uma ideia clara de sistema alternativo e sem terem, também, sustentação social consistente, o que decorre da desconstrução a que está submetida a estrutura de classes.

Ainda não se pôs em movimento uma política dedicada a pensar o futuro. Sem ela ficamos às cegas, agarrados às nossas fantasias, aos nossos fantasmas, às narrativas impulsionadas pelas redes.

Não sabemos bem o que virá pela frente, nem o que queremos. Talvez consigamos deslindar o que não desejamos: o autoritarismo, as discriminações, o racismo, a violência, a insegurança. Mas a forma do futuro permanece imprecisa, uma esfinge perturbadora. E assim permanecerá enquanto não surgir uma proposição política democrática que organize o presente e elabore uma carta de navegação que nos una e nos leve ao futuro.

*Professor titular de teoria política da UNESP


Antonio Carlos Moretti Bermudez: A FAB e o legado de Santos-Dumont para o País

O Dia do Aviador nos proporciona a chance de relembrar a história da nossa instituição

O Dia do Aviador e da Força Aérea Brasileira (FAB) é celebrado em 23 de outubro e representa a data em que Alberto Santos-Dumont, patrono da Aeronáutica Brasileira, em 1906, deu asas ao seu grande sonho, logrando êxito de fazer decolar e voar o primeiro aparelho mais pesado que o ar, o 14-Bis. Esse dia nos proporciona, a cada ano, a oportunidade de relembrarmos o nascimento e a história da nossa instituição, que este ano completou 79 anos de existência.

São quase oito décadas bem-sucedidas, que se iniciaram quando nossos integrantes pioneiros bravamente lutaram na 2.ª Guerra Mundial. Aqueles militares nos inspiram até hoje como exemplos de coragem, dedicação e amor à profissão. Eles nos mostraram que mesmo em meio às dificuldades devemos fazer sempre o nosso melhor.

A FAB destaca-se hoje pela alta capacidade operacional, com inúmeros exemplos em curso. Em apoio à sociedade brasileira, nossos militares trabalham simultaneamente em missões coordenadas pelo Ministério da Defesa, como a Operação Acolhida, a Operação Pantanal, a Operação Verde Brasil 2 e a Operação Covid-19, além da atuação em transporte de órgãos, evacuações aeromédicas e transportes aéreo logísticos, entre outras atividades.

Num ano tão desafiador como este de 2020, a Força Aérea Brasileira está ainda mais presente na vida dos brasileiros. Transportamos materiais de saúde e equipes por todo o território nacional, contribuímos na desinfecção de espaços públicos e organizamos ações solidárias em benefício de comunidades que necessitam, entre outras atividades. Os integrantes da FAB estão engajados em contribuir ainda mais diretamente com iniciativas que envolvem o apoio à sociedade brasileira, como uma campanha de doação de sangue realizada para abastecer bancos que passam por baixas em seus estoques neste período de pandemia.

Além de todas essas missões, realizadas em território nacional, nossa Força tem um relevante histórico de assistência humanitária internacional e cada uma dessas operações representa um momento gratificante para todos os que colaboram para salvar ou melhorar vidas. Este ano, temos como exemplo a assistência prestada ao Líbano após a trágica explosão em 4 de agosto, com o transporte de toneladas de material de saúde e alimentos até a capital libanesa, Beirute.

Para o cumprimento dessa importante missão uma aeronave KC-390 Millennium realizou sua primeira viagem internacional com tripulação composta por integrantes da FAB. Foi mais um capítulo na jovem trajetória – já agraciada com os prêmios Grand Laureate, na categoria Defesa, e o Laureate Awards, na categoria “Melhor Novo Produto” de Defesa – deste que é o maior avião militar multimissão desenvolvido e fabricado no Hemisfério Sul e que temos o privilégio de operar após termos colaborado ativamente em sua concepção e em seu processo de fabricação. Desde a chegada da primeira unidade, as aeronaves KC-390 Millennium são empregadas principalmente em transportes relacionados à Operação Covid-19, demonstrando sua eficiência para integrar o território brasileiro.

Assim como o KC-390 Millennium passou de um projeto para a realidade, o novo caça F-39 Gripen se aproxima cada vez mais do início da sua operação pela FAB. O desenvolvimento e a fabricação do smartfighter – caça inteligente – também vêm sendo acompanhados de perto pelos integrantes da Força Aérea e envolvem profissionais de diversas empresas brasileiras. Este dia 23 de outubro de 2020, portanto, é ainda mais especial, pois contamos com a apresentação oficial do primeiro F-39 Gripen a chegar ao Brasil.

A atualização de sistemas, meios e equipamentos também é vital no âmbito da defesa aérea e estamos constantemente buscando novas soluções e tecnologias para melhorar o trabalho prestado ao País dentro das nossas ações de controlar, defender e integrar 22 milhões de quilômetros quadrados. Em continuidade ao processo de modernização da rede de radares de vigilância do Sistema de Controle do Espaço Aéreo Brasileiro (Sisceab) e aprimorando o controle do espaço aéreo na fronteira do Brasil, inauguramos em agosto, em Corumbá (MS), uma nova estação radar composta por radares primário e secundário. A entrada em serviço desses equipamentos aumenta a capacidade de detecção de tráfegos não autorizados ou de emprego ilícito, colaborando decisivamente para o êxito das ações de policiamento do espaço aéreo.

Assim como Santos-Dumont mudou a história da aviação quando apresentou o 14-Bis ao mundo, estamos sempre em busca do novo, do mais moderno e, principalmente, do aprimoramento de nossos profissionais para acompanharem essas inovações. As Forças Armadas avançam e, junto com elas, a modernidade e complexidade tecnológica em nosso País também evoluem, trazendo benefícios para todos os cidadãos. Uma instituição renovada, solidária e altamente operacional: essa é nossa Força, formada por profissionais capacitados e comprometidos a manterem um legado de excelência – cumprindo nossas missões e colaborando com a sociedade em que vivemos.

TENENTE-BRIGADEIRO DO AR, É COMANDANTE DA AERONÁUTICA


Elena Landau: 'Me chame pelo meu nome'

PEC do Amanhã se resume a uma reforma administrativa do ‘poder executivo civil’

Para tentar recuperar algum protagonismo no governo, o Ministério da Economia enviou sua proposta de reforma administrativa (PEC32/2020) e anunciou o início dos estudos para a venda dos Correios. Ainda que a bola esteja começando a rolar, como dizem os otimistas, não veremos resultados concretos no curto prazo. Se será coisa para inglês ver, ou não, só saberemos com o avanço das discussões.

A reforma não se aplica aos funcionários atuais, tendo sido apelidada de “PEC do Amanhã”. É limitada no espaço e no tempo. A privatização continua tímida e a presença do Estado na economia ainda é grande. A combinação dessas duas pautas, desestatizações e reforma do funcionalismo, é frequentemente resumida na expressão reforma do Estado. Trata-se de uma simplificação, porque são ações concentrados no Poder Executivo.

Dalmo de Abreu Dallari, no clássico Teoria Geral do Estado, ensina que o Estado é uno, ainda que possa se subdividir em funções. Os três Poderes são parte de um mesmo organismo, exercidos de forma independente e harmônica. Melhorias no funcionamento do Estado devem incluir ajustes nessas unidades. O objetivo é atender melhor o cidadão, exercendo com eficiência suas atribuições, sejam elas oriundas do Executivo ou dos outros Poderes, inclusive de órgãos autônomos, como Ministério Público e Tribunais de Contas.

A próxima etapa da reforma deve ser a aprovação de leis com indicadores de avaliação de desempenho dos servidores. Portanto, o Legislativo, sempre com enorme resistência a avaliar a si próprio, definirá os critérios de julgamento dos funcionários de outro Poder.

Os conselhos de ética, que deveriam analisar casos de quebra de decoro de deputados e senadores, deixam processos se acumular não importa a gravidade do caso. Ofensa verbal, disseminação de fake news, postagens racistas e rachadinha são práticas que vão sendo normalizadas pela falta de atuação desses conselhos. A desculpa vai do “todo mundo faz” à defesa – distorcida – da liberdade de expressão.

E o caso Flordelis? A deputada acusada de ser mandante do assassinato do marido. Não há justificativa. Diferente sorte teve Chico Rodrigues, pego com dinheiro em suas partes íntimas. Situação tão grotesca que o vídeo do flagrante está trancado no cofre da PF. Na pressão, o senador saiu de licença contrariado. A perda de mandato não está garantida. Mas podemos ficar tranquilos, porque, de todo modo, com seu afastamento, assume o suplente, seu filho.

Acusação de homicídio é novidade, mas dinheiro na cueca não. Em lugar de reais eram US$ 100 mil. Era o assessor de um deputado, que se tornou líder do governo anos depois. Sem limites, a ousadia aumenta. Claro.

Eles apelam para a justiça divina, mas confiam mesmo é na justiça dos homens. Há países em que um homem público, pego com a boca na botija, envergonhado, comete até suicídio, um haraquiri às vezes. Não precisamos exagerar. O abandono da vida pública já seria suficiente. Mas nosso novo normal é ver ex-condenados formarem a base do governo. Algo está fora de ordem.

O Judiciário também anda precisando de ajustes. Decisões monocráticas vêm crescendo de forma significativa. O que deveria ser exceção, virou regra. Muitas são – previsivelmente – revertidas pelo colegiado. Uma liminar do ministro Lewandowski suspendeu o programa de privatização por um ano. A encampação da Linha Amarela pela prefeitura do Rio foi determinada pelo presidente do STJ.

Ambas contrariaram jurisprudência dos próprios tribunais superiores, gerando insegurança jurídica em um país carente de investimentos.

Um traficante de altíssima periculosidade foi posto em liberdade por decisão do ministro Marco Aurélio. André do Rap imediatamente escafedeu-se, o que não deveria ser surpresa para ninguém, inclusive para quem concedeu o habeas corpus. A suspensão dessa liminar, também em decisão individual do presidente do STF, gerou mais uma crise na Corte. Acabou sendo confirmada com voto de todos os outros ministros. Mas era tarde. Enquanto isso, milhares de presos sem condenação apodrecem nas cadeias.

Com Ministério Público e Tribunais de Conta, o Judiciário não será atingido pelas propostas moralizadoras da reforma, como o respeito ao teto remuneratório constitucional, a eliminação dos penduricalhos e férias de 60 dias. Diz o governo que não poderia invadir competência de outros Poderes. Só que a proposta foi encaminhada através de uma emenda para modificar a Constituição, que, por óbvio, trata de todos Poderes. Desculpa esfarrapada.

Sem militares, sem a elite do funcionalismo, sem impacto imediato, a PEC do Amanhã se resume a uma reforma administrativa do “poder executivo civil”. E isso não é uma reforma do Estado.

Em tempo: o Senado aprovou o nome para o TCU, sem que haja vaga aberta no tribunal. Se a moda pega, vai ter nome aprovado para o STF com antecedência. Isso que é eficiência.

*ECONOMISTA E ADVOGADA


Eliane Cantanhêde: O rei sou eu

Depois de Coaf, Receita e PF, Bolsonaro vai meter a mão na Anvisa por capricho?

Luiz Henrique Mandetta foi demitido por propor o isolamento social, Nelson Teich se demitiu por não engolir a cloroquina, Eduardo Pazuello é humilhado por tentar viabilizar uma vacina em massa para o País. Estão todos errados e só o presidente Jair Bolsonaro está certo? Ou, entre a vida dos brasileiros e suas conveniências políticas, ele fica com a reeleição?

Já que os dois médicos se recusaram a fazer o jogo sujo, ele convocou o general da ativa para bater continência a tudo o que lhe vier na cachola e avisa: “Quem manda sou eu, não vou abrir mão da minha autoridade”. Pazuello concorda, pateticamente: “É simples. Um manda, o outro obedece”.

O general diz, o capitão desdiz. E o que o general faz? Abaixa a cabeça e diz que foi “mal interpretado” ao anunciar a compra de 46 milhões de doses da vacina Coronavac assim que obtivesse o registro da Anvisa. Como alguém desmente o que escreveu em ofício e disse em vídeo para mais de 20 governadores? Vergonha alheia. Forças Armadas, Exército e oficiais, o que acham dessa vassalagem inominável?

Ao desautorizar a aquisição de vacinas anunciada pelo ministro – que passou meses interino, em plena pandemia –, Bolsonaro falou em “traição” e digitou no Twitter: “NÃO SERÁ COMPRADA”. No dia seguinte, recorreu ao morde-e-assopra que usava com Sérgio Moro, Mandetta e Paulo Guedes: incorporou o personagem simpaticão e foi visitar o general, que está com covid e fez papel e cara de bobo ao ser paparicado pelo chefe.

É nessas horas que a gente vê quem é quem. Bastam uma visitinha e um sorriso programado para apagar a humilhação? Se o presidente mandar matar, torturar, se jogar do 20.º andar, arriscar a saúde de 210 milhões de brasileiros, a quem o general deve lealdade e obediência?

Mas vamos à vacina, que une Judiciário, Legislativo, governadores, prefeitos, entidades científicas, médicas, jurídicas. Com mais de 155 mil mortos e 5 milhões de contaminados, ninguém está interessado em briguinhas políticas, o que se espera do presidente é que tome a decisão certa. E se espera em vão.

As quatro vacinas em teste no Brasil precisam de duas doses, logo, serão necessárias de 300 milhões a 400 milhões doses e será preciso somar as vacinas, porque uma só não dará conta. E dane-se se uma é “do Doria”, outra “do Bolsonaro”, uma é “da China”, outra “de Oxford”. Aliás, corre nas redes: se contarem a Bolsonaro que os chineses inventaram a pólvora, será que ele proíbe as armas no País?

O presidente indicou e o Senado aprovou nesta semana o novo presidente, contra-almirante Antonio Barra Torres, e três dos quatro diretores da Anvisa. E se eles forem como o general Pazuello, que faz qualquer coisa para agradar ao presidente? Amigo de Bolsonaro e fotografado com ele numa “manifestação golpista” no início da pandemia, Barra Torres disse para o governador João Doria e repetiu depois, em entrevista, que a agência não cederá a pressões políticas e vai ser fiel à medicina e à ciência.

Que assim seja, porque se trata de milhares de vidas, da economia e dos empregos e, se a Anvisa ficar ao sabor da ignorância, dos ciúmes e dos interesses reeleitorais de Bolsonaro, aí mesmo é que a imagem do Brasil vai para o beleléu, já atingida por desmatamento, queimadas, boiadas e desmanche do Ibama e do ICMBio, sem falar no endeusamento de Donald Trump.

Como Bolsonaro não se constrangeu em meter a mão no Coaf e na Receita e está sendo até investigado pelo Supremo por ingerência política na Polícia Federal, é preciso confiar na consciência e na responsabilidade dos indicados para a Anvisa, que têm conhecimento e nomes a zelar. Na dúvida, Bolsonaro se antecipou e avisou que não comprará a vacina “da China” mesmo que a Anvisa aprovar. Aí, gente, só internando…


Pedro Doria: Hora de voltar às garagens

A atuação das gigantes do Vale é global e engole todas as democracias

O primeiro processo de antitruste do governo americano contra o Vale do Silício foi aberto. É esperado há uns três anos. Nasceu. A empresa escolhida foi o Google — mas não todo o Google. Não entrou o sistema operacional Android. Não entrou o YouTube. Não entraram os mapas. Tampouco a ampla publicidade digital. Apenas busca. E não toda busca. Só busca de texto e suas partes — a busca propriamente dita, a propaganda que a acompanha e os serviços que vêm junto. Buscas de imagem ou vídeo ficaram de fora.

Foi conservador o Departamento de Justiça dos Estados Unidos.

Ainda assim não é pouco — só começou, há muito preparado, mais virá. O último processo contra um monopólio deste vulto ocorreu há vinte anos. Foi aberto em maio de 1998 e encerrado, com um acordo entre companhia e governo, em novembro de 2001. Quando começou, a internet comercial havia acabado de nascer e a Microsoft usara todo seu poder sobre o Windows para coibir os espaços do browser Netscape. Queria dominar a web e fez uso das armas que tinha para eliminar o concorrente. Ninguém tinha aquele tipo de força. Aí a batalha legal sugou tanto a energia dos executivos da empresa que, ao final daqueles três anos e meio o bonde havia passado, uma explosão criativa ocorrera no Vale e novidades como o Google surgiram. A Microsoft não foi dividida em duas. Seu poder de dominar a internet, porém, desapareceu. Ao fim, era outra empresa.

Foi assim nos anos 1980, quando a batalha contra o monopólio da AT&T nas telecomunicações levou realmente à divisão da empresa. Da fragmentação daquele mercado nasceram possibilidades várias — entre elas, a internet comercial. Ainda antes, nos anos 1970, foi com a IBM e seu monopólio sobre a computação. Como no caso da Microsoft, a atenção dos executivos foi drenada no combate legal ao governo. E enquanto estavam distraídos brotaram empresas como Apple e, ora, a própria Microsoft com a indústria dos computadores pessoais.

A história recente da tecnologia diz que estes monopólios tendem a se formar, que se tornam anticompetitivos, e que faz bem não só ao consumidor, mas à própria diversidade do mercado, a boa aplicação da lei antitruste. Monopólios sufocam novas ideias. E, neste momento, as conversas do mundo estão concentradas. Nos sistemas que operam nossos celulares, por duas companhias. Nas redes, quase que por uma só. No comércio, também por uma. E nas buscas também.

A atuação destas gigantes do Vale é global, engole todas as democracias. Ameaça as democracias. O Google não quer ameaçar. O Facebook não quer ameaçar. Nenhuma delas o deseja. Seus melhores cérebros estão concentrados no problema. Mas não conseguem resolvê-lo. Porque o problema está no modelo de negócios que depende de sugar a total atenção, pela maior quantidade possível de tempo, e explorar os dados produzidos por cada um de nós para vender publicidade.

Nunca foi tão urgente a aplicação deste conceito tão essencialmente liberal, tão essencialmente pró-mercado, tão fundamentalmente democrático que é o antitruste. E embora estas empresas atuem globalmente, só o governo americano pode agir. Porque num mundo que em verdade já se globalizou, o limite de nossas leis ainda é nacional e aquelas são empresas americanas. O populismo nacionalista e extremista, que manipula justamente as fraquezas criadas no rastro das criações maravilhosas destes gênios do Vale, gostaria que fosse diferente.

Mas não é. Saudades de Steve Jobs. Saudades do Vale do Silício criativo. Ficou pesado, burocratizado. Este sistema de liberdade é capaz de fazer frente ao autoritarismo chinês em criatividade. Precisa só permitir às garagens que voltem a brotar férteis.


Zeina Latif: Sem meias palavras

A crise fiscal explode diante de nossos olhos e a cada dia novos riscos aparecem

Faz parte da nossa cultura buscar sempre um lado positivo em tudo. Temos baixa tolerância a más notícias. Não é incomum os noticiários na televisão terminarem a edição com algum assunto ameno, provavelmente para não perder audiência.

É possível que esse traço cultural atrapalhe o enfrentamento de problemas. Ao negá-los ou atenuá-los, a busca por soluções tende a ser protelada. A reforma da Previdência saiu porque paramos de dourar a pílula.

O momento atual pede o enfrentamento da dura realidade fiscal, que se agravou. A recomendação de muitos de fazer tudo que fosse possível na pandemia, sem se preocupar com a qualidade e calibragem dos gastos, foi imprudente. Gastamos muito em comparação aos emergentes e não tão bem, como já discutido em outro artigo.

A PEC do orçamento de guerra poderia ter incluído a possibilidade de redução de jornada e vencimentos do funcionalismo, que tem estabilidade. De acordo com o IBGE, foi o grupo que mais reduziu as horas trabalhadas na pandemia. Em julho e agosto, elas foram em média 75% do habitual, ante 85% no setor privado e 81% nos informais.

Foram transferidos em torno de R$125 bilhões aos Estados, entre recursos diretos e suspensão de dívidas. No entanto, as contrapartidas exigidas foram tímidas. O congelamento de salários do funcionalismo por um ano e meio é muito pouco, até porque muitos Estados já haviam feito reajustes este ano.

A pandemia anestesiou os problemas nas finanças dos Estados, pois os pagamentos de serviço da dívida à União foram suspensos, o auxílio emergencial puxou a volta da arrecadação (+5,5% em setembro na variação anual) e a transferência de recursos da União ajudou a honrar a folha. Os problemas voltam todos em 2021.

Não por outra razão, a Câmara está propondo um novo projeto de socorro a Estados e municípios. Será crucial inserir boas contrapartidas e garantir sua manutenção, diferentemente do que ocorreu no acordo de 2016, quando a maioria foi derrubada no Congresso, como a suspensão de ajustes salariais e a redução de incentivos tributários (representam em média 17% da receita do ICMS). Ficou apenas o estabelecimento de uma regra do teto por dois anos, sem que instrumentos para seu cumprimento fossem previstos. O teto não foi atendido por 11 Estados e outros 9 não assinaram o aditivo. Para inglês ver?

As regras atuais que regem os orçamentos estaduais dificultam e até inviabilizam o cumprimento do teto, como aponta Cristiane Alkmin, pois geram crescimento automático das despesas obrigatórias. É o caso dos gastos com a folha de ativos e inativos, as vinculações de gastos de saúde e educação à receita corrente líquida (e não à variação do IPCA, que corrige o teto) e o piso do magistério (204% de ajuste desde 2009 ante uma inflação de 83%).

As contrapartidas são essenciais, portanto, inclusive para fortalecer politicamente o ajuste fiscal de governadores. Caso contrário, não sairemos da armadilha de frequentemente renegociar as dívidas de Estados.

A crise fiscal explode diante de nossos olhos e a cada dia novos riscos aparecem, como os crescentes precatórios, que afetam as 3 esferas de governo.

A reação dos mercados ao risco fiscal em alta – só não é maior por conta do teto de gastos – é didática para alertar a classe política. Ajuda a conter retrocessos e equívocos, como na proposta de adiar o pagamento de precatórios para financiar o Renda Cidadã.

Porém, não se pode depender do mau humor dos mercados para avançar com a agenda fiscal. Os investidores não costumam mapear bem os riscos. Tanto é assim que se encantaram com as promessas liberais de campanha. Muitas vezes, as reviravoltas no mercado acabam ocorrendo quando o quadro já é muito grave, como em 2015. Além disso, a pressão dos mercados não faz milagre quando não há plano estruturado a entregar.

Quando o Executivo está desarticulado, prevalecem os interesses difusos do Congresso. O primeiro antídoto contra isso é não negar os problemas.

*Consultora e doutora em economia pela USP


José Serra: Frear a deterioração educacional

Já não há espaço para remédios improvisados, são necessárias medidas inovadoras e corajosas

A pandemia tem aumentado o esgarçamento da educação no Brasil, tanto pública quanto privada, mas também vem ampliando a oportunidade para uma agenda social com políticas educacionais inovadoras. Com a paralisação parcial da atividade econômica, milhares de jovens perderam o emprego e a renda para bancar os estudos. Muitos estabelecimentos de ensino paralisaram as aulas presenciais para evitar a proliferação do vírus, o que afetou, sobretudo no ensino público, estudantes das famílias de baixa renda.

A situação da educação no Brasil é tão grave quanto desigual. No ensino infantil faltam creches para 86% das crianças mais pobres. Já entre os 20% de famílias com renda mais alta no País, a falta de creches atinge apenas 6,9% das crianças entre 0 e 3 anos.

Os números que retratam o ensino médio são igualmente alarmantes: nossa taxa de conclusão do ensino médio antes de completar 25 anos é de apenas 58%. Comparando com taxas de conclusão de 86,1% no Chile e 79,1% nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o quadro é dramático. Quanto à metade dos estudantes que conclui o ensino médio, segundo dados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), cerca de 70% apresentam resultados considerados insuficientes em Matemática e Português, requisitos hoje mínimos para sua empregabilidade, mesmo em funções modestas.

A formação educacional superior também vai mal, principalmente no ensino tecnológico. As universidades e escolas superiores privadas, que representam cerca de 75% a 80% das matrículas, enfrentam perdas consideráveis, tanto em evasão quanto em inadimplência. Com base em amostra nacional, a Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) estima que em julho deste ano apenas 14% da amostra pretendia continuar matriculada no segundo semestre, ante 40% que só retomariam em 2021 e outros 38% apenas quando a situação se normalizasse. Perguntados sobre o que mais estava afetando sua decisão, 80% apontaram perda de renda da família ou do emprego.

O primeiro passo para enfrentar esse quadro é encarar o problema como um desafio federativo. A responsabilidade pela educação é compartilhada pelos três níveis de governo.

O governo federal é o principal responsável pelo financiamento do ensino superior público, sendo uma pequena parcela das despesas destinada à assistência financeira a alunos de instituições privadas. O ProUni concedeu este ano 252 mil bolsas totais ou parciais, ante um total de 6,3 milhões de matrículas no ensino superior privado, menos de 4% dos alunos. Quanto ao crédito estudantil subsidiado (Fies), o governo federal beneficiou cerca de 1 milhão de alunos, metade dos quais está inadimplente!

Os governos estaduais são responsáveis pelo ensino médio e os municípios assumem o grosso do financiamento do ensino fundamental. Mesmo com todas as limitações fiscais do País, inovações na gestão escolar em alguns Estados brasileiros merecem destaque, assim como experiências internacionais bem-sucedidas.

No Ceará, os mecanismos de incentivo baseados na distribuição do ICMS, estadual, de acordo com o índice de qualidade da educação do município mostraram-se efetivos para melhorar os resultados de aprendizagem. No Amazonas os professores são avaliados por meio de cursos online obrigatórios, cuja avaliação final é requisito para a conclusão do estágio probatório.

A Austrália foi a primeira a implementar um sistema de crédito estudantil condicionado à renda (Income Contingent Loan), depois adotado no Reino Unido, na Nova Zelândia, na Hungria, nos Países Baixos e na Coreia do Sul. Nesse sistema, o acesso ao ensino superior é gratuito e o egresso reembolsa o crédito se e quando atingir um patamar mínimo de renda (US$ 40 mil na Austrália e US$ 30 mil no Reino Unido), sujeito a um teto de reembolso. Modelo similar se aplica na Universidade da República do Uruguai, pública e gratuita, que cobra de todos os seus diplomados uma porcentagem específica do Imposto de Renda para financiar o ensino universitário.

O Congresso Nacional tem dado prioridade a uma agenda social voltada para a educação. Recentemente foi aprovada a Emenda Constitucional n.º 108, que torna permanente o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) e aumenta suas verbas. O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, tem defendido um programa de poupança para estimular o jovem brasileiro a cursar o ensino superior – ideia análoga ao Programa Criança com Futuro, proposto no PL 4.698/19 do Senado.

Diante dos efeitos de longo prazo da pandemia, que se estenderão para além de 2021, já não há espaço para remédios improvisados e de curtíssimo alcance, pois isso implicaria submeter a maioria do povo brasileiro – famílias de renda média para baixo – a sofrimentos que não se limitam à perda de emprego e renda já ocorrida e a ocorrer ao longo deste ano.

A deterioração da formação educacional das crianças e dos jovens brasileiros precisa de medidas inovadoras e corajosas.

*Senador (PSDB-SP)