o estado de s paulo
Michel Temer: Nova Constituição?
Não temos nenhuma desestruturação justificadora de uma nova Constituinte
O líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros, sempre se revelou extraordinário administrador, tanto que conduziu com perfeição o Ministério da Saúde no meu governo. É também um líder político que sempre faz propostas muito adequadas.
Nestes últimos dias, propôs a hipótese de nova Constituinte. Instado, pronuncio-me sobre o tema.
Primeiro é preciso saber exata e precisamente o que é uma Constituinte. Direi trivialidades que, na verdade, devem ser sempre repetidas. A Constituinte é a face visível de um Estado que será. Diferentemente, a Constituição é a face visível do que o Estado é. Indispensável a pergunta: quando se justifica uma Constituinte? Quando há uma ruptura do sistema jurídico constitucional.
Será que neste momento temos uma ruptura desse sistema ou podemos seguir adiante com a Constituição que teve a sabedoria de amalgamar os chamados direitos liberais com os direitos sociais? Veja-se, só para exemplificar, que o direito à livre-iniciativa, o prestigiamento da propriedade, os direitos individuais em capítulo que é o maior que se conhece no mundo, com 78 incisos no seu artigo 5.º, de maneira exemplificativa, já que o parágrafo 1.º do mesmo artigo estabelece que a enumeração dos direitos ali listados não exclui a invocação de outros derivados dos princípios constitucionais e dos tratados de direitos aprovados pelo Brasil. Portanto, os direitos liberais aí estão.
Por sua vez, há um capítulo com direitos sociais que trouxe para o texto constitucional, por exemplo, o direito dos trabalhadores.
O que antes se verificava apenas na legislação infraconstitucional o constituinte de 1988 trouxe para a Lei Magna. De fora parte direitos como aqueles em que a Constituição estabelece o direito à educação e à saúde como dever do Estado. Quando a Constituição garante o direito à alimentação, o direito à moradia, o que visa é a alimentar as pessoas e dar teto àqueles que têm dificuldades para obtê-lo.
Com isso quero ressaltar que a sabedoria do constituinte de 1988 tem sido produtiva, pois quando surgem problemas tais dizeres do texto constitucional resolvem essas questões ensejadoras de alguma dificuldade.
Por outro lado, saliento que o proponente da Constituinte pode ter razão relativamente a certos aspectos da Constituição federal.
Mas ela própria, Constituição, estabelece meios e modos para a sua modificação.
Mais uma obviedade: por meio da emenda à Constituição federal, ressalvadas as hipóteses previstas no artigo 60, parágrafo 4.º, da Carta Magna, ou seja, a intocabilidade da Federação, da separação de Poderes, dos direitos individuais e do voto direto secreto e universal com valor igual para todos. Tudo o mais pode ser objeto de emenda à Constituição, ou seja, de uma espécie de plástica que se faça naquela face visível que nós rotulamos como Estado.
Pode-se fazer plásticas na fisionomia do Estado por meio de emendas à Constituição federal. Só num caso extremo em que, digamos assim, o rosto inteiro estivesse desfigurado em razão de um acidente gravíssimo é que se poderia falar na recomposição completa daquela face. Assim também só a desestruturação total é que permitiria uma plástica jurídica completa a justificar novo Estado. Fora daí não há como cogitar-se de uma Constituinte. Portanto, sem embargo de concordarmos com algumas preocupações do deputado Ricardo Barros, o fato é que quando se pensa numa Constituinte, para dizer o óbvio, nunca se sabe o que vai acontecer ali adiante. Se há uma pequena desestruturação ensejadora de algumas modificações no texto constitucional, não é possível levar ao extremo modificando por inteiro a face do Estado. Algumas que o proponente indica podem ser objeto de emenda à Constituição.
Aliás, o que dá a chamada segurança jurídica é precisamente o rigoroso cumprimento da Constituição da República. O que não se pode é negar-lhe a aplicação. Aí, sim, é que há problemas para a governabilidade e, naturalmente, para a tranquilidade institucional do Estado brasileiro.
Não se pode, a esta altura, invocar o que está acontecendo no Chile. Lá, sabemos todos, a Constituição vigente ainda vem dos tempos da ditadura do presidente Pinochet. É muito diferente a situação do Brasil.
Nós saímos de um sistema concentrador e centralizador para uma Carta Constitucional democrática. Portanto, não estamos modificando regras de um eventual sistema centralizador e autoritário. Mas estaríamos modificando regras de um sistema que, no dizer do artigo 1.º da nossa Lei Maior, é o de um Estado Democrático de Direito, em que a ênfase da democracia vem ressaltada em vários pontos desse mesmo texto constitucional.
Assim, se necessária alguma plástica na Constituição federal, que se a faça por meio de emenda, já que não temos nenhuma desestruturação justificadora de uma nova Constituinte.
*Advogado, professor de Direito Constitucional, foi presidente da República
Adriana Fernandes: Incompetência e a barreira dos 100%
Com a perspectiva de recorde negativo, País pode enfrentar em 2021 uma crise da dívida
Em dezembro de 2017, o governo anunciava que um dos principais indicadores da sustentabilidade das contas públicas estava perto de atingir um limite perigoso. O Banco Central tinha acabado de projetar que a dívida bruta do País fecharia em valor bem perto de 80% do PIB no ano seguinte.
Chegar a 80% era considerado na época uma espécie de barreira a ser evitada a qualquer custo, a partir da qual, se rompida, a leitura seria imediata: um aumento considerável dos riscos para a execução das políticas monetária e fiscal diante da percepção de uma trajetória explosiva do endividamento público. Agências de classificação de risco entendiam que esse patamar indicava um quadro de descontrole da dívida para economias emergentes com o perfil como o do Brasil.
Pois nessa sexta-feira, o BC anunciou oficialmente que a dívida bruta ultrapassou a barreira de 90% do PIB. E o Ministério da Economia reconheceu, pela primeira vez, que o indicador vai ultrapassar os 100% do PIB nos próximos anos.
Pelas novas projeções, o Brasil fecha 2020 numa combinação perversa: as dívidas bruta e líquida (que desconta as reservas internacionais) chegam ao final do ano em patamares recordes. O pico anterior da dívida líquida, que por muitos anos cumpriu o papel de principal indicador de solvência do Brasil, tinha sido na crise econômica brasileira de 2002.
Naquela época, a dívida líquida havia subido por conta da alta do dólar provocada pelo temor de que Lula, caso eleito presidente da República, daria um calote. Com o compromisso assumido pelo ex-presidente de manter o tripé macroeconômico, o dólar caiu e a dívida líquida também.
Agora, como Brasil tem hoje mais ativos do que passivos em dólar, a queda da moeda norte-americana não reduz o endividamento como aconteceu em 2002. Pelo contrário, pode até piorar se o câmbio recuar. O problema, portanto, passa a ser estrutural.
A perspectiva de duplo recorde negativo da dívida do País reforça a percepção de que o governo flerta com a falta de planejamento e pode enfrentar em 2021 uma crise da dívida. Além do fantasma da segunda onda do coronavírus, que já é realidade na Europa, enquanto o Brasil ainda nem saiu da primeira.
Se o governo precisar injetar mais recursos na economia, como fazem agora os países europeus, a demora e a desorganização para a arrumação da casa trará custos ainda maiores.
Pela fotografia de hoje dos números projetados pelo próprio governo, Bolsonaro entrega para o seu sucessor, mesmo que seja ele próprio no caso de uma reeleição, um quadro muito pior daquele que foi entregue ao ex-presidente Lula.
Impossível não deixar de registrar que, enquanto a espiral negativa cresce, a semana passou com o presidente da República concentrado em reduzir tributo para videogames, renovar incentivos para a indústria automobilística, e acirrar disputas políticas sobre vacinas.
O ministro Paulo Guedes renovou mais uma vez a guerra santa com seu desafeto e colega de Ministério, Rogério Marinho, e de quebra subiu o tom dos ataques à poderosa Febraban, a associação dos grande bancos.
O articulador político do governo, o ministro Luiz Eduardo Ramos, que deveria estar em campo para encaminhar os problemas, se envolveu numa briga de tuítes com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
Se não bastasse esse cenário de desgoverno, a ciranda chegou até o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e foi parar no presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Tudo isso numa única semana.
Líderes governistas dizem que tudo estará encaminhado até o final de 2020 e que há uma tentativa de pintar o caos. Talvez seja isso que eles queiram. Deixar passar no Congresso tudo bem rapidinho com aquelas votações relâmpagos de fim de ano - chamadas de fim do mundo - que só se descobre o estrago tempos depois. O caos são eles!
Bolívar Lamounier: Anatomia do amoralismo brasileiro
A esperança de nos tornarmos mais civilizados parece ter-se esvaído de vez
Temos mil discordâncias, mas num ponto somos quase unânimes: somos um povo moralmente escorregadio. A maioria está convencida de que somos um povo sem caráter. A esperança de nos tornarmos mais civilizados, que em certos momentos chegamos a nutrir, parece ter-se esvaído de vez.
A pandemia reduziu a quase nada a dúvida que pudesse existir a esse respeito. De fato, quem observa nosso cotidiano logo percebe que centenas de milhares – a começar pelo presidente da República – não parecem dar a mínima para a saúde alheia. Solapam os esforços dos agentes de saúde que combatem a covid-19 na linha da frente. Fomentam aglomerações e recusam-se a cumprir os cuidados básicos estipulados pelas autoridades.
Frisemos que não se trata de um traço meramente psicológico ou cultural. É algo baseado em comportamentos reais, facilmente perceptíveis. Apresenta-se sob uma infinidade de formas, desde as garrafas de plástico deixadas nas ruas e nos jardins, passa por todo aquele contingente que não carece de auxílio emergencial, mas o pleiteia com o maior descaramento, e culmina em requintadas modalidades de estelionato. Tampouco se trata de classe social. Basta olhar em volta para constatarmos que o amoralismo permeia nossa sociedade de alto a baixo. Manifesta-se tanto entre pobres como entre ricos. Entre analfabetos e entre aqueles que estudaram até cansar.
Como compreender que tenhamos chegado a esse ponto? A interpretação geralmente aceita é a de que se trata do desfecho inevitável da colonização portuguesa. São “grilhões do passado”. Confesso que essa teoria não me agrada, mas não a rejeito in totum. A debilidade de nossa ordem normativa (ou seja, de nosso sistema de valores e normas morais) em parte se deve ao curso de nossa História. Decididamente, nunca tivemos e não temos nenhuma inclinação calvinista. Entre nós, nem o catolicismo, nem as religiões de origem africana, nem a família e muito menos o sistema de ensino facilitaram a formação de padrões morais introspectivos, de caráter individual. Sem esquecer que escravos, seres por definição carentes de interesses e desejos, não tinham de optar entre alternativas, portanto, não tinham que refletir sobre critérios de opção.
De qualquer forma, prefiro partir de premissas atualizadas. Parto da proposição de que nosso país, como qualquer outro, pode ser visualizado como uma justaposição de três grupos distintos: A, B e C.
O grupo A é composto pelos verdadeiros cidadãos. Gente honesta, que respeita os semelhantes, e não se afasta dos padrões morais aceitáveis e corretos em nenhuma circunstância. “No matter what”, como se diz em inglês.
No extremo oposto, o grupo C concentra a gente da pior espécie. Não só ladrões de colarinho branco, mas ladrões de verdade, gente violenta e assassinos que cedo manifestam tal inclinação e assim se comportarão ao longo da vida, em qualquer circunstância. “No matter what”.
O grupo B, presumivelmente o maior, é um emaranhado extremamente complexo. Compõe-se de gente que pode pender para um lado ou para o outro, conforme as circunstâncias. Gente que varia da simples malandragem até tipos mais perigosos, mas sem configurar um padrão previamente determinado. É plausível supor que o grupo B seja proporcionalmente maior em países mais pobres do que em países ricos, ou em momentos de depressão econômica do que em momentos de prosperidade, e em países governados por indivíduos e instituições corroídas pela ilegitimidade – retomo esse ponto adiante. Examinado ao microscópio, o grupo B deixa entrever alguns traços principais. O mais importante é o que Thomas Hobbes (1651) descreveu como a “luta de todos contra todos”. Sim, nesse grupo a luta pela sobrevivência é renhida e constante. Muitos dos que o integram não sabem do que vão viver amanhã, e não dispõem de recursos básicos (como uma boa escolaridade) que os tornem mais competitivos na arena cotidiana. Muitos não têm emprego, ou recaem no desemprego ao primeiro impacto de uma crise. Muitos conseguem trabalho, mas em empregos de má qualidade, mal remunerados, que não propiciam segurança, perspectiva de carreira, continuidade, e muito menos motivação. E não nos esqueçamos de que o Brasil nada possui que se assemelhe a uma classe média consistente, firmemente assentada em pequenos e médios empreendimentos, urbanos ou rurais.
Pois bem, o exemplo, como sabemos, deve vir de cima. Como poderá uma sociedade cujo núcleo coexiste com a amoralidade elevar-se a um nível de civilidade mais alto, se sua cúpula institucional – o Estado e as autoridades que o dirigem – todo dia nos brinda com aberrações jurídicas e acrobacias jurídicas de toda ordem, sem esquecer a corrupção propriamente dita? Se uma multidão de desempregados e subempregados recebe diariamente a informação de que, nos três Poderes, os que mandam metem a mão em cifras astronômicas?
*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Carlos Melo: A corrida e os padrinhos
A 15 dias do primeiro turno, a curta corrida eleitoral se aproxima da curva antes da reta final. Com mais de 20 dias de propaganda na TV e no rádio, aumentou a atenção geral. É o momento em que recall importa pouco e a realidade presente se revela. Algo de mais substantivo pede passagem.
Pontua a pesquisa o prefeito Bruno Covas: é incumbente, possui máquina. Explora o maior tempo de TV: a covid-19, o drama pessoal… À parte disso, esconde João Doria, sem abrir crise interna; tem se governado, valendo-se antibolsonarismo e do antipetismo; sonha expressar a frente ampla (contra quem?). Salvo acidente, tem o pé no segundo turno.
Celso Russomanno volta a ser Russomanno. Como em eleições anteriores, seu queixo é de vidro: declarações desastradas o derrubam. Soma a isso o padrinho controverso. As lutas do presidente contra a vacina e o isolamento social, na cidade mais afetada pela covid-19, agradam sua base: têm piso alto, mas o teto é baixo. O bolsonarismo já estaria em ponto de fadiga? O destino de Russomanno será a resposta
Na esquerda, uma guerra particular: o eleitor do PT migra para Guilherme Boulos, que tem ares de “PT de ontem”. Lula ajuda (um pouco) Jilmar, que saltou 50%, mas amarga meros 6%. Foi o tempo em que o ex-presidente separava mares, inventava nomes, elegia candidatos.
Enquanto uns fogem ou buscam padrinhos, Márcio França apela à imagem de independência num personalismo todo seu; busca a confluência dos que rejeitam padrinhos. Pode dar certo, a depender da disputa entre PT e PSOL. Mas, também pode se ver pagão, no eventual segundo turno.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
Sergio Amaral: Persiste a incerteza nas eleições americanas
Não se exclui a hipótese de os democratas levarem a Casa Branca, a Câmara e o Senado
Uma das características da campanha eleitoral nos Estados Unidos foi a radicalização do jogo político; outra, a estabilidade das sondagens de opinião. Uma está associada à outra. Desde o início da campanha, a vantagem de Joe Biden sobre Donald Trump oscilou entre 7% e 12%. Fatos políticos relevantes, como a expansão descontrolada da covid-19, a queda na economia, demonstrações artirracistas e mesmo um marketing por vezes extravagante de Trump não lograram alterar esses limites. Uma das razões é que o candidato republicano, ao longo de seu governo, já havia consolidado o apoio de seu eleitorado cativo num patamar entre 37% e 42%. Na campanha, não conseguiu avançar em direção ao centro da cena política.
Não obstante a estabilidade dos números, persiste a incerteza quanto ao resultado. A provável vantagem de Biden no voto direto nacional será suficiente para assegurar a maioria no colégio eleitoral? Não necessariamente, pois esse colegiado é regido por regras que tendem a favorecer um candidato republicano. Vamos supor que Biden ganhe os votos no cômputo nacional e no colégio eleitoral. Trump aceitará o resultado? Em seus comícios, o candidato republicano tem insistido na acusação de que as eleições serão fraudadas e em momento algum assumiu o compromisso de respeitar os seus resultados. Poderá questionar a votação em alguns Estados e levar o contencioso à Suprema Corte, que em 2000, em condições semelhantes, deu ganho a George W. Bush, em detrimento de Al Gore.
De outro lado, não está excluída a hipótese de os democratas, além da vitória na Casa Branca, ganharem a Câmara dos Representantes – o que é provável – e o Senado, o que é possível. Biden teria, nessa hipótese, poderes suficientes para implementar um ambicioso programa de governo. Mas aceitaria decisões da Suprema Corte, hoje ainda mais republicana do que antes, que condenem o Obamacare ou rejeitem a legislação sobre o aborto?
A radicalização política e possíveis conflitos institucionais daí decorrentes sinalizam que as eleições de 2020 são mais do que a corriqueira escolha de um presidente ou a renovação do Parlamento. Na verdade, elas implicam uma opção entre duas visões de sociedade. Depois de quase quatro anos de governo, as políticas de Trump são claras. As ideias de Biden são menos conhecidas e suas políticas poderão ser bastante diferentes. É bom ter presente que, caso vença as eleições, entre os vitoriosos estará Bernie Sanders e sua corrente de militantes por um Green New Deal, que retoma políticas de Franklin Roosevelt por maior participação do Estado no estímulo à economia e na construção de uma rede de proteção social. E acrescenta um compromisso com o meio ambiente e as mudanças climáticas.
Embora Biden, um político conservador, não tenha endossado posturas mais radicais de Sanders, já se comprometeu com uma expansão do Obamacare, com a redução das desigualdades, com o combate ao racismo – que reconhece ser sistêmico – e com a transição de uma energia fóssil para outra, baseada em fontes renováveis. No plano externo, o programa de Biden também se diferencia do de Trump.
A prioridade será ambiental e sua primeira medida, afirmou em artigo para a revista Foreign Affairs, será o retorno ao Acordo de Paris. Sua política externa espelhará as prioridades internas, como a convergência, em vez da divergência. No lugar de sanções, reforçará o multilateralismo, e promoverá a restauração de alianças tradicionais, a começar pela Europa, com qual pretende construir uma frente para combater os desvios comerciais da China.
Vale ressaltar a coincidência entre um possível governo Biden com a Europa na questão ambiental. A Comissão Europeia acaba de lançar o projeto de uma Retomada Verde, que prevê a utilização de 750 bilhões de euros do Fundo de Recuperação em projetos que estimulem a economia verde e se disseminem, como uma mancha verde, na ciência e tecnologia, na educação e cultura, na arquitetura e mesmo na estética de um novo Bauhaus.
O compromisso de Biden com a causa ambiental não significa que adote deliberadamente iniciativas contra o Brasil. As relações entre nossos países são tradicionais e sólidas. Estive com Biden algumas vezes. Ele conhece bem a América Latina e gosta do Brasil. Mas isso não impedirá que uma militância ambientalista e aguerrida venha a exercer pressão sobre a opinião pública e o Congresso por medidas concretas para diminuir o desflorestamento na Amazônia.
Vale lembrar que Europa e Estados Unidos são mercados prioritários para o exportador brasileiro. Se a esse grupo adicionarmos a China, com quem temos estimulado ruídos recorrentes e desnecessários, esses três mercados representam cerca de 65% das exportações do Brasil.
Além disso, a eventual saída de Trump da Casa Branca representará um abalo para o eixo político-ideológico que lhe dá sustentação, assim como para seus seguidores mais próximos, na Polônia, na Hungria e em alguns outros países, entre os quais o Brasil.
*Conselheiro de Felsberg e Associados, foi embaixador do Brasil em Washington
Eliane Cantanhêde: Zorra total
Sem comando e sem rumo, Brasília virou lamentável circo de ‘Marias Fofocas’ e ‘Nhonhos’
O mundo está em polvorosa, os mercados estressados, os investidores arredios, as pessoas perdidas, mas Brasília vive em outro planeta, andando em círculos, movida por intrigas e tititi. Sem comando, cada um fala e age como bem entende, todos batem cabeça e tudo parou. Num presidencialismo forte como o brasileiro, significa balbúrdia e paralisia não só no Executivo, mas também no Legislativo.
Sem rumo e apoio, o ministro Paulo Guedes perdeu as estribeiras e, de uma tacada, atingiu a Febraban, o governo de São Paulo, o Congresso e o ministro do Desenvolvimento. Clara demonstração de desespero, com Bolsas e dólar sacolejando e nenhuma resposta do governo (além da intervenção do BC no câmbio, o bê-á-bá). E o desespero só aumenta, depois de o presidente Jair Bolsonaro, em campanha em Marte, ops!, em Imperatriz (MA), prestar solidariedade ao… ministro do Desenvolvimento.
Nesse enredo e na falta de eleições municipais em Brasília, Ricardo Salles é forte candidato a novo Weintraub, distribuindo bordoadas a torto e a direito, com aval de Bolsonaro. O ministro convive com a maior queimada do Pantanal na história, um pedido de afastamento do cargo na Justiça e uma derrota no STF: a ministra Rosa Weber suspendeu ontem a “boiada” do Conselho do Meio Ambiente contra restingas e manguezais. Mas ele tem costas quentes.
Já chamou o general Luiz Eduardo Ramos de “Maria Fofoca” e, com a confusão criada, pediu modestas desculpas “pelo exagero”. Ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que o acusou de “querer destruir o governo”, destinou um irônico “Nhonho” do Chaves. Depois, alegou que tinham invadido seu Twitter e, por fim, apagou a conta na rede.
O próprio Maia, que também anda com os nervos à flor da pele depois da covid e prestes a deixar a presidência da Câmara, vive aos tapas e beijos com Paulo Guedes e ontem bateu de frente com Roberto Campos Neto, do BC. Pelo Twitter (ora, se não…), o acusou de ter vazado uma conversa entre eles, o que “não está à altura de um presidente de Banco Central de um país sério”. Como Salles, também votou atrás, mas a cicatriz fica.
Na “conversa particular” entre os dois, Maia e Campos Neto manifestaram preocupação com a agitação no mercado e a falta de reação de Brasília, quando Maia tascou: a culpa é da base do governo – ou seja, do Centrão –, que não se entende sobre orçamento, PEC emergencial, novo Bolsa Família, lei cambial…
Assim, todos se acusam, todos têm razão e ninguém tem razão. O governo está catatônico, com Bolsonaro em sua realidade paralela e Guedes abandonado, atirando a ermo. O Congresso está imobilizado por disputas de poder na Câmara e a obsessão de Davi Alcolumbre em se reeleger no Senado. E, assim, o ano vai chegando ao fim. Reformas? Privatizações? O pós-ajuda emergencial? Que nada!
Nesse vazio de homens e ideias, Bolsonaro desliza entre um recuo e outro. O último, até a conclusão desta edição, foi sobre remodelação do SUS, o que poderia até fazer sentido, mas foi lançada na hora errada, pelas pessoas erradas. Um decreto sobre o SUS sem assinatura do ministro da Saúde?! Ok, o general Eduardo Pazuello não manda nada, mas mantenhamos ao menos as aparências, senhores! E como lançar a ideia sem negociar com Congresso, entidades de saúde e sociedade, quando a estrela na pandemia é justamente o SUS, o nosso SUS?
Assim, o coronavírus ressurge na Europa e continua contaminando e tirando a vida de pessoas e empresas no Brasil, com um rastro de dor, tristeza, sequelas, fosso fiscal, desemprego e crise social. E quem deveria se unir para combatê-lo e recuperar a economia está atolado nas picuinhas dos muitos “Nhonhos” dignos do seriado Chaves. É para rir ou para chorar
*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta
Fernando Gabeira: Novas batalhas de Itararé
No Brasil, como nos EUA, pandemia e obscurantismo político andam de mãos dadas
O mundo ainda vive o impacto da pandemia. A segunda onda atinge a Europa, alguns países, como a Bélgica, estão com os hospitais sobrecarregados. Recordes planetários em número de casos foram batidos várias vezes em outubro. Só os Estados Unidos registraram 80 mil casos diários.
Com oito Estados tendendo para um aumento, o Brasil deveria estar preocupado. Deveríamos estar vacinados contra as bobagens de Bolsonaro e esse estéril duelo com Doria. No entanto, entramos numa estúpida guerra da vacina, como se estivéssemos ainda em 1904 nos bairros insalubres do Rio de Janeiro.
Bolsonaro recusa-se a comprar vacinas de origem chinesa e desautoriza seu general na Saúde. Ele ignora que neste mundo ninguém se importa tanto com a origem de uma vacina, mas apenas com sua segurança e eficácia. É um ébrio ideológico que não pode saber que os chineses inventaram a pólvora, senão vai interditar todos os paióis do País.
O programa brasileiro de imunização deve se basear apenas nos critérios técnicos e a exclusão de uma vacina aprovada pela Anvisa pode ser anulada pelo Supremo.
Bolsonaro prefere a hidroxicloroquina. Disse que talvez fosse melhor investir na cura do que na vacina contra o vírus. Ainda bem que é apenas uma opinião pessoal. O Brasil já investiu mais em vacina do que em hidroxicloroquina porque essa é a lógica científica. O que não significa que não devamos, como se faz lá fora, pesquisar antivirais eficazes.
No outro canto do ringue está o governador João Doria. Todos os políticos realmente vocacionados proporiam, antes de tudo, que a vacina fosse gratuita. Há um grande interesse em se vacinar, mas nem todos poderão comprar sua dose. Doria preferiu afirmar que a vacina seria obrigatória e isso acabou desfechando um debate que acabará no Supremo Tribunal, como a batalha final do ciclo Itararé.
Ainda não temos a vacina. Não sabemos qual será o seu nível de eficácia, algo que talvez seja possível conhecer no início do ano que vem. Não sabemos ainda em quanto tempo haverá vacina disponível para todo mundo. Talvez leve um ano. Qual o sentido de tornar obrigatório algo inalcançável num determinado espaço de tempo?
As vacinas podem ser apenas 50% eficazes. Já existem mais de 5 milhões de brasileiros com anticorpos, porque foram contaminados. E há doenças, como a do uruguaio José Mujica, que são incompatíveis com a vacina.
O Supremo será levado a determinar algo que talvez seja desnecessário. Há mais gente querendo a vacina do que vacina disponível. Se 80% da população se vacinar, tem sentido impor restrições aos restantes 20%? Não teríamos atingido, por esse caminho, a imunização de rebanho?
Se abstrairmos o episódio da Revolta da Vacina, no início do século 20, o tema parece absurdo. Acontece que Bolsonaro sabe que alguns bolsões da internet se encantam com os movimentos antivacina modernos. Uma teoria conspiratória as associa ao poder dos chineses, ou à forma como Bill Gates vai se apoderar do mundo.
São grupos minoritários e vivem, como Bolsonaro, numa espécie de bolha da teoria conspirativa que lhes dá a sensação de serem especiais, de entenderem o significado secreto de acontecimentos de que as pessoas comuns só captam a superfície.
É uma escolha política, como foi a de Trump de não denunciar o supremacismo branco quando chamado a opinar sobre isso. Ou de fingir que não conhece o grupo QAnon, que divulga a existência de uma associação de políticos pedófilos que se reúnem em porões de pizzaria.
Com a existência de pessoas isoladas em seus grupos de internet é possível alimentar a insanidade, até mesmo com a ajuda das grandes plataformas sociais. Os terraplanistas, por exemplo, encontram farto material para sustentar sua tese.
O fato de Trump e Bolsonaro terem triunfado nas eleições explorando ressentimentos, ou mesmo a ingenuidade das pessoas, é um dado real da conjuntura das duas Américas. No entanto, a maneira errática como governam, por meio de mensagens vulgares e sensacionalistas, vai mostrar que a vitória de ambos foi um acidente histórico, uma alerta.
Isto não significa que depois dessa vulgaridade virá o melhor dos mundos. Haverá tempo para corrigir alguns erros e avançar modestamente.
É possível que o resultado das eleições americanas seja a vitória de Joe Biden. Estaremos apenas acordando de um pesadelo, mas dentro das condições dramáticas que o tornaram possível.
De certa forma, Camus previu isso no romance sobre a peste, que pode ser vista como o ataque do vírus ou o assalto do obscurantismo autoritário. Essa ameaça nunca desaparece, ela está em toda parte, à espreita, pronta para reaparecer.
Com Trump e Bolsonaro tivemos uma combinação nefasta. No caso de Bolsonaro, não bastou o elogio da hidroxicloquina. Era preciso lançar dúvidas sobre a vacina, enfraquecer a busca nacional por esse recurso.
Em A Peste, o vírus é apenas uma alusão a regimes opressivos. No Brasil e nos Estados Unidos vivemos uma redundância: pandemia e obscurantismo político andam de mãos dadas.
*Jornalista
Celso Ming: A turbulência financeira e a nova onda da covid-19
Mercados foram tomados por onda de forte aversão ao risco sob cenário de incertezas
Nesta quarta-feira, os mercados financeiros foram invadidos por onda de forte aversão ao risco. É como se todos os bichos da floresta fugissem para suas tocas.
Veio abaixo até mesmo o mercado do ouro, multissecular porto seguro em meio a quaisquer turbulências. A onça-troy (equivalente a 31,1 gramas) chegou a cair 2,04% e fechou em baixa de 1,65%. O único ativo que continua inspirando segurança é o dólar.
Os gráficos apresentam quanto caíram algumas das principais bolsas de valores e qual foi, nesta quarta-feira, a trajetória do dólar em relação ao real, ao rand sul-africano, ao euro e ao iene.
O alarme foi disparado pelo novo toque de recolher (lockdown) parcial na Alemanha e na França, decretado para enfrentar a nova onda da covid-19. Por mais paradoxal que pareça, a principal diferença entre esta recaída e o início da pandemia ainda não está disponível. Trata-se da vacina. Mesmo as que estão em fase final de testes ainda precisarão de tempo para produção e para distribuição. Mas não estão mais no ponto zero, como em fevereiro e março, quando os pesquisadores ainda não conheciam o inimigo.
Por esse ponto de vista, contra essa aversão ao risco há um limitador importante. Chegada a vacina, não haverá mais necessidade de medidas drásticas, mas, nesta quarta-feira, ninguém levou isso em conta.
Outra fonte de incerteza extrapola o campo sanitário. É a das eleições nos Estados Unidos. Por mais bem elaboradas que sejam, as pesquisas nem sempre preveem corretamente os resultados. E se há alguma probabilidade de que a voz das urnas seja submetida à decisão judicial, como pode ser desta vez, então fica inevitável a disseminação de ansiedades, que acabam passando para o preço dos ativos.
Afora esses males globais, há os específicos do Brasil. E aqui estão dois deles: o impacto da inflação e as mazelas das contas públicas.
A prévia do IPCA (que é o mesmo índice mensal, mas medido a partir de cada dia 15) mostrou uma esticada de 0,94% neste mês de outubro. Não é uma inflação que preocupa, porque é o resultado de desencontros episódicos de contas.
A pandemia interferiu nos fluxos econômicos. A paradeira que se seguiu ao confinamento das famílias derrubou o consumo e desorganizou as redes de produção e distribuição. Depois, veio a distribuição do auxílio emergencial, que aumentou repentinamente o consumo de alimentos e de materiais de construção num mercado semiabastecido. O afrouxamento dos esquemas de confinamento, por sua vez, voltou a acionar o consumo e pegou muitas empresas desprovidas de matérias-primas para a retomada.
Esses descasamentos nas redes de suprimentos produziram uma inflação momentânea que tende a perder força à medida que a vida econômica se normalizar.
Questão mais grave e ainda sem resposta é a do agravamento da situação das contas públicas. A dívida vai para 100% do PIB, os juros de longo prazo embutidos nos negócios de revenda de títulos públicos voltaram a embicar para cima, o que demonstra preocupação crescente com a capacidade de solvência do Tesouro. O governo permanece calado sobre como pretende enfrentar essa encrenca. Mas, passadas as eleições municipais, ficarão inevitáveis a edição de mais um saco de maldades para tentar contê-la e de mais movimentos novos que encaminhem as reformas. Se não vierem, o dólar tenderá a disparar e a alta dos importados contaminará a inflação.
Em sua reunião desta quarta-feira, o Comitê de Política Monetária (Copom) deu mais importância à deterioração do quadro fiscal do que ao repique da inflação, como ficou claro no seu comunicado.
Zeina Latif: Os muitos pontos de não retorno
Não se sabe ao certo quando uma mudança brusca nos padrões comportamentais será atingida no País
Várias áreas do conhecimento utilizam o conceito de ponto de não retorno (tipping point) para designar fenômenos em que, uma vez atingido uma massa crítica ou ponto crítico, dispara-se uma mudança brusca de padrões de comportamento. É a gota d’água.
As ciências sociais utilizam o conceito para explicar mudanças de costumes da sociedade, como a moda e novos valores. Na saúde, para designar quando uma curva normal de contágio se transforma em epidemia.
O conceito tem sido empregado na questão ambiental. Alguns modelos experimentais preveem a substituição em grande escala da floresta amazônica por vegetação semelhante à savana até o final deste século. Uma vez atingido um certo nível de desmatamento, reduzem-se o ciclo de chuvas e a umidade da floresta, ampliando ou produzindo incêndios. Aumentam os eventos climáticos e o ritmo de degradação acelera, não sendo possível regenerar o bioma.
O cientista Carlos Nobre acredita que a floresta amazônica está chegando no ponto de não retorno, pelas secas prolongadas, pela temperatura média mais elevada e pelo comportamento das espécies – as mais adaptadas ao clima seco prosperam, enquanto as de clima úmido morrem em ritmo recorde.
Também se usa esse conceito na criminalidade urbana. A julgar pelo crescimento das milícias no Rio de Janeiro e também em São Paulo, há razões para temer a existência de um ponto de não retorno. Pesquisadores apontam a atuação das milícias em todo tipo de atividade: de proteção a serviços públicos. Áreas verdes são desmatadas para loteamento e construções. Há sinais de infiltração em instâncias do poder público e associação com o narcotráfico.
Na economia há também aplicação do conceito de ponto de não retorno. Mudanças bruscas de expectativas dos agentes econômicos podem ocorrer em função de alguma informação nova ou nível crítico atingido por alguma variável econômica relevante (threshold).
Ataques especulativos contra a moeda de um país – como os da década de 1990 no Brasil, quando o câmbio era controlado –, podem decorrer de avaliação de investidores de que o estoque de reservas internacionais atingiu nível crítico e o banco central não teria mais como defender a moeda.
No início do processo de impeachment de Dilma, houve relativamente rápida reversão de tendência e alívio de expectativas inflacionárias e de confiança de empresários, por conta da perspectiva de correção da política econômica.
No contexto atual, a percepção sobre o compromisso com a disciplina fiscal pode ser gatilho para mudanças bruscas de expectativas. As projeções de inflação e taxa Selic estão bem comportadas – 3,1% e 2,75%, respectivamente em 2021 –, e refletem o cenário básico dos analistas, que certamente têm como hipótese central a manutenção da regra do teto. É provável que estejam reduzindo a probabilidade desse cenário, em função dos sinais de baixa convicção de Bolsonaro com a disciplina fiscal. Se, por alguma informação nova, se convencerem que o teto será furado, atualizarão suas projeções e utilizarão um cenário alternativo. As mudanças nas projeções poderão ter saltos.
O mesmo vale também para a disposição de investidores de financiar a dívida pública, que poderá se reduzir mais rapidamente.
Não à toa o Banco Central faz seus alertas sobre o problema fiscal. Mudanças de cenários podem ser bruscas.
Não se sabe ao certo quando um ponto de não retorno será atingido. Geralmente se percebe quando é fato consumado, pela mudança de regime. Correções de rumo tornam-se mais difíceis ou mesmo impossíveis.
Em vários aspectos, o Brasil está em situação crítica. A falta de informações e de transparência – não há dados confiáveis sobre o dano ambiental e não há dados consolidados e amplos de segurança pública – e a negação dos problemas pelo poder público sugerem que estamos brincando na beira do precipício com olhos vendados.
É necessário um ponto de não retorno também da sociedade, mudando seu comportamento e dando um basta.
*Consultora e doutora em economia pela USP
Sergio Fausto: O delírio contra a ‘vacina chinesa’
Sem imunização em massa corremos o risco de o novo coronavírus persistir entre nós
O maior risco na política é o delírio. Quando fomentado por um líder, pode arrastar grande contingente de pessoas a adotar comportamentos destrutivos para si e/ou para os outros. Quando mobiliza o poder do Estado, as consequências podem ser catastróficas.
Na semana que passou tivemos um pequeno exemplo dos graves problemas que o delírio pode provocar quando passa a condicionar decisões de política pública. Não merece outro nome a recusa presidencial de adquirir a vacina contra a covid-19 ora em produção na China, em fase final de testes para comprovar a sua eficácia.
Por trás da recusa está uma teoria conspiratória com duas versões: a mais amalucada sustenta que a vacina altera o material genético das pessoas e pode servir de veículo para a inoculação de chips capazes de controlar o pensamento dos indivíduos vacinados; a menos endoidecida, mas ainda assim disparatada, vê na vacina produzida pela Sinovac, em parceria com cientistas e governos de distintos países do mundo, um instrumento a serviço da projeção global do poder da China. Num caso ou no outro, é incitada a fantasia paranoica de que nos estaríamos submetendo ao comando do Partido Comunista daquele país.
A versão tosca do delírio é disseminada nas mídias sociais pela rede de apoiadores do presidente Bolsonaro. A versão supostamente sofisticada da maluquice é articulada pelo chanceler Ernesto Araújo, o mesmo que enxerga em Donald Trump a salvação da cultura judaico-cristã e na China, o motor do globalismo e do marxismo cultural.
Não é preciso gastar muita tinta para demonstrar a insânia da referida teoria conspiratória, tampouco para mostrar as consequências desastrosas da eventual recusa, se definitiva, de se adquirir uma vacina, venha ela de onde vier, desde que comprovadas sua segurança e sua eficácia, em meio à maior pandemia dos últimos cem anos. A rigor, as consequências, neste caso, vêm antes do fato, uma vez que as declarações presidenciais atiçam o irracionalismo antivacina que ganha fôlego no Brasil e no mundo.
Basta observar a queda na cobertura vacinal da população brasileira nos anos mais recentes para se dar conta da tempestade que pode estar se formando. Sem imunização em massa, corremos o risco de que o novo coronavírus persista entre nós, junto com o ressurgimento de doenças já erradicadas, das quais o sarampo é apenas um exemplo. Vale a analogia com o que vem acontecendo no meio ambiente, visto que os sinais emitidos pelo candidato e pelo presidente Bolsonaro tiveram inegável papel no aumento dos incêndios na Amazônia e no Pantanal.
Diante desse quadro me pergunto o que significa a “normalização” do governo Bolsonaro. Outro exemplo: seria “normal” a aliança que selamos, sob a liderança dos Estados Unidos, com outros 30 países que não apenas criminalizam o aborto, como também as relações homoafetivas?
A cegueira ideológica, beirando o fanatismo, é um grande mal, em particular quando passa a condicionar decisões sobre questões essenciais à vida, como são a proteção contra doenças contagiosas e o controle sobre a mudança climática.
Não fosse trágica, a cegueira ideológica do governo nessas matérias seria patética. Mimetizam-se, como bichinho amestrado, as ações e os gestos da política externa de Trump. Nem sempre o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil, muito menos quando o governo americano se move exclusivamente em função de seus interesses unilaterais de curto prazo. Menos ainda quando se está em meio a uma eleição que, tudo leva a crer, provocará importante mudança política naquele país.
Países não têm amigos, têm interesses, disse originalmente lorde Palmerston, ministro da Guerra do Reino Unido no início do século 19. Certo, mas os países têm interesse em cooperar entre si quando se veem diante de desafios que não podem resolver sozinhos. Em nenhuma época da História houve competição tão acirrada quanto na guerra fria, entre Estados Unidos e União Soviética. Confrontavam-se duas ideologias distintas que buscavam arregimentar os demais países em blocos antagônicos. Ainda assim, americanos e soviéticos cooperaram em questões vitais.
Na área nuclear, a construção de acordos e mecanismos formais e informais de consulta e verificação impediram que a guerra fria evoluísse para uma guerra quente de consequências devastadoras. Em momentos decisivos, como na crise dos mísseis, em outubro de 1962, a racionalidade pragmática prevaleceu na Casa Branca e no Kremlin e o mundo se salvou da mútua destruição nuclear entre as duas grandes potências.
Menos conhecida é a cooperação entre Estados Unidos e Rússia na erradicação da varíola, doença que na década de 1960 ainda matava cerca de 2 milhões de pessoas nos países do então chamado Terceiro Mundo. Os soviéticos contribuíram com centenas de milhões de doses da vacina, os americanos com outras tantas e com a logística de distribuição.
Não se tem notícia de que o comunismo se tenha espalhado nos países que receberam as vacinas soviéticas. Em tempos de delírio, cabe esclarecer: isso é uma ironia.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
William Waack: Bolsonaro decepciona os generais
O desabafo do ex-porta-voz do presidente não é a voz isolada de um fardado
Foi já para lá da metade de 2018 que os altos oficiais das Forças Armadas encantaram-se com a popularidade de alguém que surfava a onda disruptiva, que oferecia a oportunidade de se alterar os rumos do País. Hoje levanta-se a tese se houve mesmo uma alternância entre “esquerda” e “direita” em 2018, pois o que se percebe é a prevalência de um sistema pelo qual os donos do poder descritos já há tantos anos continuam acomodando interesses setoriais e corporativos às custas dos cofres públicos, sem visão de conjunto ou de Nação – tanto faz o nome ou o partido.
Além da bem amarrada ou não agenda econômica proposta por Paulo Guedes, foram os militares formados em academias de primeira linha que trouxeram para Bolsonaro o que se poderia chamar, com boa vontade, de “elementos de planejamento” num governo que, logo de saída, titubeou entre entregar a coordenação dos ministérios para uma ala “política” (enquanto se recusava a praticar a “velha” política) ou depositá-la no que era a esperança dos generais: um dos seus como chefe de “Estado-Maior” (a Casa Civil). Hoje se constata que era o primeiro sinal inequívoco do que acabou virando a marca do governo: sem eixo, sem saber como adequar os meios aos fins (supondo que “mudar o Brasil” seja o objetivo final) num espaço de tempo definido (um mandato? Dois mandatos?). Portanto, sem estratégia.
Os militares de alta patente no governo carregaram consigo uma aura de respeito e credibilidade e, em alguns ministérios, de eficiência e competência, mas não estão usufruindo disso. Ao contrário, a reputação deles como grupo está sendo moída em casos como o da Saúde, área na qual o presidente interfere como se entendesse alguma coisa disso, e da Amazônia, com um “governo do B” entregue a quem conhece a área (o general Hamilton Mourão) enquanto o enciumado Bolsonaro deixa que Meio Ambiente e Relações Exteriores pratiquem o “fogo amigo”.
Dois fatores políticos levaram os militares à “confortável mudez” à qual se refere o ex-porta-voz do governo, general Rêgo Barros, na destruidora descrição que fez do esfarelamento da autoridade dos militares num governo que eles nunca controlaram. É “subserviência”, diz o ex-porta-voz, que impede a prática da “discordância leal” (coisa de fato complicada para quem cresceu em hierarquias). O primeiro fator político era a consolidada noção de que governar o Brasil se tornara impossível por culpa de outros Poderes, como Legislativo e Judiciário. Caberia ao grupo militar “defender” o Executivo.
O segundo componente político é mais amplo e difuso. Tem a ver com 2018 e o medo do esgarçamento do tecido social. Os militares “compraram” em boa medida o mantra repetido por Bolsonaro, segundo o qual “as esquerdas”, sorrateiramente postadas atrás da esquina, só estão esperando maus resultados econômicos, crise ainda maior de saúde pública e aumento de criminalidade para promover a baderna que colocará de joelhos o governo e, portanto, o projeto de “mudar o Brasil”. Fugiria tudo ao controle.
Ironicamente, Bolsonaro acabou encontrando seu porto seguro não tanto nos militares, de cuja coesão e capacidade de articulação desconfia (como desconfia de tudo ao redor). O presidente acomodou-se no conforto do Centrão e na capilaridade que esse conjunto de correntes políticas, desde sempre empenhadas em controlar o cofre e a máquina pública, exibe em todas as instâncias decisivas no Legislativo e também do Judiciário, onde acaba de ser colocado no topo um ministro para o Centrão chamar de seu.
“Jair preocupou-se mais com seus filhos e reeleição do que com o País”, queixou-se, confidencialmente, um dos militares que chamam o presidente pelo primeiro nome. O desabafo do general Rêgo Barros não é simplesmente o de um indivíduo decepcionado. É de um grupo desarticulado.
*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN
Carlos Pereira: O centro deixará de ser órfão?
É no mercado eleitoral nutrido de frustrações e decepções tanto com Bolsonaro como com o petismo que terá o potencial de emergir um candidato de centro em 2022
A polarização entre o PT e Bolsonaro deixou os eleitores ideologicamente de centro órfãos de alternativas nas eleições de 2018. Esses dois extremos se retroalimentaram, não deixando espaço para o fortalecimento de candidaturas competitivas como alternativa a esses dois polos extremados.
Mesmo ainda muito distante das eleições, já é possível identificar alguns sinais de que a polarização PT vs. Bolsonaro tende a se enfraquecer.
Por um lado, já existem claras evidências de que uma parcela não trivial de eleitores que votaram em Bolsonaro em 2018, especialmente para evitar a vitória do PT, não estaria mais disposta a reeleger o Presidente. Esses eleitores de perfil pragmático, especialmente residentes no Sudeste, com alta escolaridade e renda se frustraram fortemente com o governo Bolsonaro diante da má gerência da pandemia da COVID-19.
Resta a Bolsonaro o apoio fiel do seu núcleo ideológico mais conservador que se nutre de vínculos indentitários com a sua liderança carismática. Além do mais, um novo mercado de eleitores se abriu para o presidente a partir do auxílio emergencial da pandemia. Mas esse auxílio já tem data para acabar.
Para que essa nova conexão eleitoral se fidelize, será necessário que o governo consiga novas fontes de recurso, seja por via de remanejamento orçamentário de outras políticas sociais ou aumento da carga tributária. Qualquer uma dessas alternativas encontrará fortes resistências na sociedade e no legislativo.
Pelo lado da esquerda, também existe muita frustração. O PT ainda patina na agenda falida do “Lula livre” e não consegue ser alternativa de oposição crível ao governo. O partido talvez seja, mais uma vez, o grande derrotado das eleições municipais deste ano. Corre o risco de perder o protagonismo de ser o núcleo do qual os outros partidos de esquerda gravitavam.
É justamente neste mercado eleitoral, nutrido de frustrações e decepções tanto com o governo Bolsonaro como com o petismo, que terá o potencial de emergir um candidato competitivo de centro como alternativa à polarização em 2022.
*Cientista político e professor titular da FGV- Ebape