o estado de s paulo
Elena Landau: Muito barulho por nada
Decreto 10.530 pedia anúncio cuidadoso para mostrar à população sua importância
23h59: Bolsonaro assina Decreto 10.530, que inclui a atenção primária à saúde no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI).
00h00: Bolsonaro revoga o Decreto 10.530.
Profissionais da área da saúde, do setor público e privado, reagiram imediatamente ao decreto. Contra e a favor, mesmo sem saber do que se tratava exatamente. Era vago e não mencionava nenhuma forma de venda de Unidades Básicas de Saúde (UBS) ou delegação de atividades-fim. Quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, tentou explicar que urubu não era louro, já era tarde.
A desconfiança geral tinha algum sentido, afinal, o PPI foi criado para conduzir a desestatização. Se tem a impressão digital do programa, alguma forma de participação do setor privado há de aparecer. A publicação do decreto veio sem mais explicações, e seguia recomendação do conselho do PPI, criado em 2016, por Temer. Esse novo conselho incorporou as antigas funções do Conselho Nacional da Desestatização, que era responsável pela privatização desde o governo FHC, e foi ampliado para incluir os investimentos em infraestrutura.
Na nova estrutura, foi montada uma secretaria específica para a coordenação desses projetos e avaliação das diversas formas de contratação e prestação de serviços em vários setores, com forte concentração na área de transportes. A Secretaria do PPI já foi vinculada à Casa Civil e agora está na Economia. Seria dela a responsabilidade pelos estudos na área da saúde.
A Secretaria de Desestatização, criada em 2019, veio para dar corpo às promessas de campanha de Guedes. Ligada diretamente ao ministro é voltada à alienação de controle de estatais ou prestadoras de serviços públicos, ou para liquidação de empresas.
O novo organograma tornou o procedimento para desestatização bastante burocrático. Criou-se uma instância a mais. Uma empresa para ser listada para privatização precisa passar pela análise prévia do PPI. De suas resoluções saem tanto a lista de projetos de infraestrutura a serem licitados no âmbito do PPI, assim como empresas a serem vendidas ou liquidadas no âmbito do PND (Plano Nacional de Desenvolvimento). Em tese, estudos técnicos preliminares dão base às suas deliberações.
As duas secretarias cuidam de seus respectivos programas e tratam da desestatização nas suas diversas formas – leilões de controle, diluição de capital, concessões ou novas formas de contratação de parcerias com setor privado. Cabe um mundo de iniciativas para reposicionar o Estado brasileiro na atividade econômica.
Para quem não está acostumado com esses procedimentos e normas, deve parecer muito confuso. O consolo é que para quem está acostumado também não está dando para acompanhar. A governança não é clara. Ninguém sabe quem manda. O desastroso episódio da “Privatização do SUS” é o maior exemplo.
O Decreto 10.530 apenas dava efetividade a uma resolução, a n.º 95, de 2019, do próprio conselho do PPI, que é presidido pelo ministro da Economia, e composto por ministros da Casa Civil e de outras áreas ligadas a projetos em discussão, exatamente para contribuir com o conhecimento específico e coordenar ações dentro do ministério setorial. Apesar disso, Pazuello (ministro da Saúde) foi pego de surpresa em meio à controvérsia da vacina do Doria. Como o ministro confessou nunca ter ouvido falar do SUS, sua participação parece não ser mesmo necessária.
Parcerias com o setor privado na saúde não são novidade, seja na forma de PPPs ou organizações sociais, as OS. Há casos de sucesso e de fracasso. Estudos são relevantes se pretende-se ampliar a experiência de parcerias e melhorar a oferta e a qualidade dos serviços públicos.
No próprio PPI já há um projeto em andamento, incluído em julho, pelo Decreto 10.423, também com base em uma resolução do conselho. Trata-se do Hospital Fêmina, do Grupo Hospitalar Conceição. Não houve grande divulgação e não se viu resistência política nem corporativa.
O Decreto 10.530 tratava de Unidades Básicas de Saúde, uma área muito sensível politicamente. Tudo pedia um anúncio cuidadoso, mostrando para a população a importância do projeto. A sua revogação imediata sepultou o assunto, adiando uma importante discussão que poderia trazer benefícios à sociedade. Simples estudos para conclusão de obras serão abandonados pelo caminho. Era uma esperança para que hospitais passassem a trabalhar com autorização do corpo de bombeiros em dia, ao menos.
Em 2010, o governador Jaques Wagner inaugurou a primeira PPI da saúde, o Hospital do Subúrbio, e, mais recentemente, a prefeitura de BH teve a mesma iniciativa. Fica no ar a dúvida: para dar andamento a novas parcerias era mesmo necessário incluir rede básica no PPI, que tem cara de privatização, e, ainda por cima, sem a participação do Ministério da Saúde e profissionais da área, em plena pandemia?
Bom voto a todos. Eleição municipal é coisa séria. No Rio, estamos perto de nos livrar do pior prefeito de nossa história, a quem dedico: “O sol há de brilhar mais uma vez/Do mal será queimada a serpente/e o amor será eterno novamente”.
*ECONOMISTA E ADVOGADA
Roberto DaMatta: Tudo é político
Ouvi essa expressão quando entrei na faculdade de filosofia (feita para moças e veados, tal era o estigma, conforme algumas pessoas disseram, encorajando-me) para me bacharelar em História, e ser um merda de um professor, conforme vaticinou um médico que queria namorar a minha namorada. Estávamos nos acabados anos 50.
Foi de professores dedicados que ouvi o axioma: “Tudo é político”. E a vida também é política? Ou haveria, além da religião, da filosofia e da coragem de honrar o Humano, uma política para o sofrimento, o inesperado e a morte?
Fiquei aturdido com essa tonelagem que meus jovens ombros recebiam quando descobri a responsabilidade de ser um protagonista no futuro do Brasil. A descoberta da política como um modo de reler a minha existência na qual um copo d’água ou um beijo seriam um ato político, reitero, assustou-me.
Primeiro, porque passava de objeto a sujeito. Depois, porque eu percebia que a maior parte das pessoas não se dava conta de sua importância num mundo que ficava cada vez maior e menor. Quando descobri a fórmula, virei o que chamávamos de “conscientizado” por oposição aos “alienados”. Aqueles que simplesmente viviam sem ter o menor vislumbre de suas qualidades ou motivação para ir além de suas rotinas.
Um jovem a enxergar prisões em todo lugar e eu logo vi a religião como uma delas. Depois, no auge da minha jornada, classifiquei tudo e todos como “alienados”. Seria não político o amor familiar? Gostar de filmes americanos? Ler Joaquim Nabuco? Como ser igualitário com crianças a serem nutridas e disciplinadas? Seria possível escapar de um permanente debate e destino político?
Virei noite falando disso com meus amigos. O casamento, a paternidade e a vida profissional sem privilégios de família foram definitivos para uma parada meditativa. Sem dúvida, tudo era político. Sobretudo, era claro, para os políticos e os filhos, compadres, companheiros e amigos dos políticos. A antropologia social relativizou-me antes do livro que escrevi – Relativizando: Uma Introdução à Antropologia Social.
Não seria mais sensato dizer que a política é uma parte importante da vida? Não seria mais inteligente descobrir que alienados e conscientizados trocam de lugar? Se todos são alienados, como queria o Simão Bacamarte da história de Machado de Assis, não seríamos nós os conscientemente alienados, conforme repetia papai aceitando sereno a minha postura revolucionária sustentada por ele – o alienado maior?
Tempos depois, vi com nojo e decepção como o axioma de que tudo é política desembocava num outro pressuposto: o de que tudo era poder e exercer o poder em nome dos oprimidos permitia ir além de todos os limites. Também tenho vivido a oportunidade de reconstruir um outro lado – o lado de uma direita sempre envergonhada e estigmatizada, bem como alienada – jogado no lixo pela ignorância e pelo mesmo protagonismo dos condenáveis laços de família. Esses hóspedes não convidados segundo analistas políticos brasileiros.
Assim tem sido meu aprendizado do tudo é mesmo política.
E assim sendo, nada se pode fazer para inibir uma moralidade nacional na qual as obrigações devidas aos compadres, companheiros e parentes (sobretudo aos filhos) são uma forma silenciosa de fazer política. Ela, de fato e de direito, engloba o chamado “político”, tirando-o de sua impessoalidade – essa dimensão crítica numa democracia é concretizada pelo voto secreto. Pois o segredo e o impessoal contêm a semente da intimidade – esse avatar da liberdade igualitária.
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Assisti feliz às comemorações dos 80 anos de Pelé – um dos maiores personagens positivos da vida brasileira. Nada roubou, a ninguém enganou com seu extraordinário talento e o peso do negrume glorioso de sua pele.
Vida e morte ancoram a existência. Morre o ator Sean Connery, que encarnava na ficção do cinema a idealização mítica de um agente secreto estilo Pelé em luta contra o mal. Um mal sempre atenuado nas aventuras de James Bond (o simbólico Ligador) por romances sensuais machistas, porém sedutores. Quem não queria ser o 007 ou a namorada dele?
Morto o ator, fica – eis o segredo dos mitos – o personagem na sua representação imortal a indicar que, pelo menos no cinema, o bem vence o mal.
Coisa cada vez mais complicada de acreditar neste mundo globalizado e, sobretudo, neste Brasil no qual as “fake news”, esses veículos de calúnia e mentira, são levadas a sério ao lado da burrice como política, conforme revela a questão das vacinas contra a pandemia.
– Papai, disse um amado filho para um pai idoso, afinal o 007 morreu bem. Noventa anos é um bocado de vida.
– É muito para quem tem 50, 60 ou 70 anos. Mas para mim, com 84, os 90 são um muro, tipo fronteira. Seriam mais seis curtos anos e depois…
*É historiador e antropólogo social, autor de ‘Fila e Democracia’
Rosângela Bittar: Alma Gêmea
Guedes incorporou o raciocínio confuso, a linguagem agressiva e até os trejeitos do chefe
Noves fora a pandemia, o ministro Paulo Guedes e a economia estão na berlinda e inspiram as previsões de mudanças importantes no governo no início do novo ano. Enfrentar seu jogo é para os fortes, pois tem reflexos no câmbio, na bolsa, na inflação, na dívida. No entanto, para explicar o que acontece com o laureado economista, cujo poder declina, recorre-se apenas a uma anedota: Instrutor infiel aconselhou seu aprendiz de hipnose a fazer, como dever de casa, treinamento com os peixes, diante de um desses imensos aquários de parque turístico. Preocupado com a demora, o professor foi atrás e encontrou-o em transe, olhos fixos, lábios em bico, abrindo e fechando a boca, em estado de respiração mecânica. Em vez de hipnotizar, fora hipnotizado.
Eis a questão. Admitido para ser contraponto e conselheiro técnico do desaparelhado presidente Jair Bolsonaro, Guedes se fundiu a ele e se perdeu junto. O temperamento e a impertinência, já os possuía ao chegar. Em menos de dois anos, porém, incorporou o raciocínio confuso, a linguagem agressiva, a interpretação distorcida da realidade e até os trejeitos do chefe. Tornou-se sua alma gêmea.
Não se está falando só das já folclóricas gafes que tanto poderiam ilustrar a biografia de um como do outro. Quem não se lembra das empregadas domésticas e a Disneylândia? E a dos funcionários públicos, os “parasitas”? Aquelas do uso dos precatórios como orçamento e da taxação do seguro desemprego, deslizes técnicos engavetados, candidatos à ressurreição. Tem a última, a de ter medo de ser derrubado por “lobby da Febraban”. E as penúltimas, dos nazistas, da volta do AI 5, dos insultos à mulher do presidente da França…
Mas há também o traço de caráter, a preferência pelo conflito, a soberba, a falta de disposição e competência para o diálogo com o Congresso Nacional e com o Supremo Tribunal Federal. Bem como dificuldades extremas na relação com os ministros em particular. Tal e qual. Nas instâncias da economia, existia relativa confiança no que poderia fazer Guedes neste governo. Uma certeza é que teria coerência com as ideias liberais que sempre defendeu. Iria impor uma certa visão de necessários privatização e equilíbrio fiscal. Sua capacidade executiva não esteve em dúvida. Saberia, ainda, reunir pessoas adequadas a cada tarefa, suprindo suas fragilidades.
Nada, porém, encontrou no perfil de quem lhe serviu de espelho. A maioria das expectativas restaram frustradas, com duas exceções, uma em equipe, outra em resultados da política econômica: O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e a reforma da Previdência. Campos tem uma agenda própria e a está cumprindo. A reforma da Previdência, Guedes encontrou-a pronta, depois de 20 anos de discussão, e a recebeu resmungando pela ausência da capitalização, uma de suas obsessões à época.
De outra obsessão, a CPMF, imposto mundialmente considerado um lixo, não desiste, embora tenha sido a razão de seu fracasso na reforma tributária. Preparou uma reforma administrativa megalômana, proibitiva para um presidente em permanente campanha de reeleição. Suas propostas na área fiscal foram desprezadas, até o momento. Como Bolsonaro, Guedes faz recuos temporários e estratégicos. Como Bolsonaro, recuos e avanços numa mesma frase: vai ter, não vai ter!
Previstos na lei do teto e da responsabilidade fiscal, os gatilhos empacaram nas divergências internas. O teto é, por sinal, o tema preferencial da disputa interna de poder. Apenas discursiva, sem consequência, pois ninguém sabe o que fazer.
Não há propostas para sair da crise que o governo imaginava fugaz. Aprofundou-se a dívida. Vem aí a segunda fase da pandemia. Bolsonaro vai segurar o teto? Guedes tem solução para não deixá-lo desabar? Até a próxima conferência do ministro. Até o próximo comício do presidente.
Vera Magalhães: Ponte aérea eleitoral
Possível vitória de nomes de centro em São Paulo e no Rio é vista como ensaio para 2022
Há muitos pontos de contato nas corridas eleitorais em São Paulo e no Rio de Janeiro. E eles são importantes variáveis para a montagem das estratégias políticas para 2022. Sim, eu concordo com os cientistas políticos, historiadores e analistas de dados que alertam que as eleições municipais seguem dinâmicas e pautas locais, e não são necessariamente reflexo das eleições nacionais anteriores nem laboratórios para as seguintes.
Mas é impossível analisar alianças e dinâmicas de eleitorado neste ano sem ter como bagagem 2016 e 2018, por diferentes razões. E sim, algumas das decisões de agora terão reflexos para os próximos dois anos.
Hoje, São Paulo e Rio têm rigorosamente a mesma configuração nas pesquisas: candidatos de centro relativamente isolados na liderança (Bruno Covas na capital paulista e Eduardo Paes na fluminense); um candidato do bolsonarismo tentando se credenciar para o segundo turno, mas enfrentando dificuldades, e nomes da esquerda pulverizada disputando entre si e podendo ficar fora da disputa final justamente por essa “canibalização”.
Covas é tucano desde sempre. Vem de uma família política e adotou um discurso de centro e de defesa da política depois da debacle da mesma em 2018. Paes já percorreu todo o abecedário político e é um dos políticos mais pragmáticos de sua geração. Tem usado a derrota surpreendente que enfrentou em 2018 para jogar um “eu te disse” na cara do eleitor arrependido.
Os dois se prepararam para enfrentar expoentes da direita no segundo turno. Nas duas cidades, a possível vitória de nomes de um centro reabilitado contra a direita é vista como um laboratório importante para uma frente mais ampla em 2022, inclusive como ensaio de aproximação com siglas de centro-esquerda e de esquerda.
A dificuldade de os bolsonaristas Celso Russomanno e Marcelo Crivella irem ao segundo turno é de certo modo surpreendente, e pode fazer os líderes nas pesquisas terem de redirecionar o discurso no segundo turno, para atrair o eleitorado de direita caso eles sucumbam. E isso adiaria as conversas para a tal frente ampla.
As agruras de Russomanno e Crivella evidenciam: 1) o caráter frágil da tal recuperação da popularidade do presidente, 2) o risco do discurso e da conduta negacionistas em plena pandemia fora das redes sociais, e 3) o refluxo da onda de se eleger completos outsiders para funções administrativas importantes. Por fim, paulistanos e cariocas assistem à mesma diáspora de candidaturas de esquerda, num sinal de que também nesse campo não será simples a união de esforços contra Bolsonaro em 2022.
São pelo menos dois os candidatos ditos progressistas que avançam em São Paulo: Guilherme Boulos, do PSOL, e Márcio França, do PSB, que parece ter acertado a previsão de que repetiria o sprint final de 2018, na disputa ao governo do Estado. O problema é que o crescimento simultâneo deles pode ajudar Russomanno a prevalecer por pouco. A disputa tende a ficar embolada até o final. No Rio, os votos de Benedita da Silva (PT) podem ser os que faltarão para Marta Rocha (PDT) se habilitar a tirar a vaga do prefeito na final. O uso sem moderação das máquinas da prefeitura e da igreja pode levar um Crivella mesmo alquebrado ao segundo turno.
Esses todos são fenômenos que transcendem a pauta e a dinâmica municipais, ainda que a decisão de voto os leve em conta. Os aprendizados que caciques e partidos tirarão dos resultados não só nessas, mas em várias capitais emblemáticas (Fortaleza é um case nacional, também) indicará se o Brasil de fato começou a sair do transe lavajatista e revanchista com que foi às urnas em 2018 para caminhar para algo mais racional de agora em diante.
Paulo Hartung: Cidades inteligentes, sustentáveis e humanas
Que estas eleições sejam mais um passo para fortalecer os valores humanísticos.
Em poucos dias o País vai às urnas para o primeiro turno das eleições municipais. Trata-se de um pleito marcado por peculiaridades importantes. A primeira é que ocorre em meio a uma pandemia agoniante e terrível nos planos sanitário e socioeconômico, exigindo novos protocolos num dos momentos mais desafiantes para as atuais gerações.
Estamos testemunhando o fim das coligações proporcionais, o que deve mudar o quadro partidário nacional, algo necessário e urgente. Há ainda o aumento da inserção de movimentos cívicos. O voto é importante, mas não se encerra aí a participação da sociedade civil. Nestas eleições podemos destacar candidaturas oriundas de iniciativas dedicadas a estimular e formar jovens para o mundo da política, como o Livres, o Raps e o RenovaBR.
Só a partir do RenovaBR se colocaram 1.032 candidatos, sendo 115 a prefeito, filiados a 29 dos 33 partidos brasileiros, em 398 cidades de todos os Estados. É um esforço para preencher o enorme vazio de lideranças no nosso país. A esperança é que os partidos se inspirem e assumam também a formação de novos quadros.
Além dessas peculiaridades do pleito, vale destacar que os gestores vão encontrar um quadro desafiador, agravado pela pandemia, mas não causado exclusivamente por ela. Mesmo antes da covid-19 a capacidade das prefeituras de ofertar serviços e obras já vinha sendo velozmente reduzida. As despesas obrigatórias, que crescem muito mais que o País, vêm esmagando as despesas discricionárias, limitando a possibilidade de construir escolas, unidades de saúde, praças, ruas, etc.
Não vai ser fácil, mas sempre há um caminho, que pode ser efetivamente construído com racionalidade, trabalho incessante e devoção ao interesse comum. Nessa direção, vejo seis passos decisivos, além do básico, que contempla equipes que combinem diversidade, boa técnica e boa política, ferramentas modernas de gestão e planejamento estratégico.
O primeiro passo é a digitalização, que, além de promover o encontro do modus operandi da burocracia com o modus vivendi da sociedade, torna viável a constituição de uma cidade conectada. Com inteligência artificial podemos efetivar uma verdadeira revolução na qualidade de vida, incrementando serviços de educação, saúde, mobilidade urbana e segurança, entre outros.
Um segundo passo é a opção preferencial por investimento nas oportunidades da “economia verde”, com vista a uma cidade sustentável, incluindo desde questões de saneamento até transporte público sem combustíveis fósseis, passando por incubadoras de negócios amigáveis ao meio ambiente.
As chances da economia criativa, incentivando as expertises e as culturas locais, e da nova economia de base tecnológica, com incremento de startups e fintechs, por exemplo, constituem um terceiro passo em direção à inovação e à inclusão como fundamentos da vida produtiva dos municípios.
Nessa caminhada, outro passo decisivo é a atração de investimentos privados. Além de dialogar com todos os pontos anteriores, a parcerias são fundamentais para avançarmos em áreas como saneamento e iluminação pública. As concessões de limpeza urbana e destinação adequada de resíduos são outra frente de parcerias.
Também no caminho da convergência de forças, outro movimento nos leva às organizações do terceiro setor. Em vez de ficar reinventando a roda, a saída é difundir boas políticas públicas já testadas e aprovadas. Há oportunidades na educação (Todos pela Educação, Instituto Ayrton Senna, etc.), na saúde (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde – IEPS), na segurança (Igarapé) e em gestão pública (Comunitas), entre outras.
Um sexto passo importante é identificar desperdícios e, com o seu combate, obter meios para melhorar a oferta de obras e serviços. A partir de minha experiência, posso afirmar que os ralos que consomem os limitadíssimos recursos públicos são gigantescos.
Sobre esta eleição, também merece destaque a necessária ampliação da agenda do poder local. A segurança pública tem de entrar de vez na pauta das prefeituras e câmaras municipais. É preciso, ainda, que as lideranças eleitas participem do debate das reformas estruturantes, como a PEC emergencial e a reforma administrativa, que precisa alcançar os atuais servidores, melhorando as condições de governabilidade e a conexão entre poderes públicos e interesses dos cidadãos.
Aos novos líderes institucionais dos municípios cabe uma pergunta: que vocação essencial se deve dar às cidades, ainda mais considerando desafios e aprendizados tão ímpares pautados pela pandemia? Uma inspiração assertiva e valiosa é dada pelo arquiteto dinamarquês Jan Ghel, para quem é possível “um novo planejamento que diz que a cidade deve ser para as pessoas”.
O objetivo essencial da república é a vida plena para todas e todos, sendo a cidade – do latim civitas, lugar de cidadãos – o ícone de sua efetividade. Que estas eleições sejam, pois, mais um passo para fortalecer os valores humanísticos e democrático-republicanos entre nós, exatamente onde vive o cidadão, no território em que efetivamente deve vicejar a cidadania, os municípios.
*Economista, presidente executivo da Indústria brasileira de Árvores (IBÁ), membro do conselho do Todos pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)
Eliane Cantanhêde: Falando sozinho
Risco de derrota de Trump é bom para mundo, EUA e Brasil, mas péssimo para Bolsonaro
A possibilidade de derrota de Donald Trump nas eleições de hoje nos Estados Unidos é uma excelente notícia para o mundo, para os Estados Unidos, para os costumes e talvez para o Brasil, mas traz um gosto amargo para o presidente Jair Bolsonaro. Boa para o mundo, ruim para Bolsonaro, seu governo e sua ideologia enviesada.
Os eleitores norte-americanos não estão decidindo entre o republicano Trump e o democrata Joe Biden, mas, sim, fazendo um plebiscito, a favor ou contra Trump, estivesse quem estivesse do outro lado. Casou de ser Biden, com uma vice poderosa, Kamala Harris, mulher, negra, filha de imigrantes e defensora ardorosa dos princípios que dão sustentação à democracia americana: direitos humanos, igualdade, justiça.
Trump usou o “America First” para escamotear o “só America, dane-se o resto” e bombardear o multilateralismo, a começar da ONU, da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), em plena pandemia. Se confirmado presidente, Biden retornará ao Acordo de Paris e a todas elas. Para alívio geral, menos para regimes populistas de extrema direita, como os da Hungria, Polônia e Brasil, que ficarão isolados.
Nos EUA, a tendência pró Biden traz, de imediato, a expectativa de alguma racionalidade no combate à pandemia e o retorno a princípios de humanidade e de direitos humanos, tão caro às democracias. Na direção oposta de Trump, Biden e Kamala Harris tendem a manifestar crítica à forte cultura racista das polícias e apoio aos cidadãos negros assassinados cruelmente. Não é pouco.
Um mandato democrata deve tratar a covid-19 como ela deveria ter sido tratada desde o início: não como gripezinha, mas como uma pandemia gravíssima, que contamina, mata, destrói a economia, os empregos e o equilíbrio internacional. E, com certeza, não se imaginem Biden e Kamala Harris fazendo propaganda da cloroquina.
Para o Brasil, é bem-vinda a derrota de um mentiroso contumaz, que manipula seus satélites contra a China e dá de ombros às pautas da sustentabilidade e dos direitos humanos. Isso, porém, não significa que Biden e Kamala Harris serão mais camaradas em negociações bilaterais, relações comerciais, acordos de defesa. Democratas e republicanos, diferentemente de Bolsonaro, têm algo em comum: a prioridade número 1, 2, 3 e mil da política externa é o interesse nacional.
Bolsonaro, seus ministros e o chanceler Ernesto Araújo admitiram cotas de aço e etanol favoráveis aos EUA, sem nenhuma contrapartida para o Brasil, e é improvável que, dê Biden ou Trump, isso vá ser revertido. O que pode mudar é que Trump fechava os olhos para meio ambiente, mas Biden vai endurecer o jogo. Ele prometeu US$ 20 bilhões para a proteção da Amazônia (considerados um exagero), mas acenando com sanções econômicas caso não haja mudança e ação.
Para os excessivamente pragmáticos, uma eventual vitória de Biden pode prejudicar os negócios do Brasil, mas a ótica deve ser outra: é alvissareiro que a maior potência se alie à Europa e às maiores democracias ocidentais em favor de meio ambiente, direitos humanos e democracia no Brasil. Mais do que questões financeiras imediatas, trata-se de princípios, justiça, futuro, avanços civilizatórios.
Quanto a Bolsonaro: depois de trombar com França, Alemanha, Noruega, Argentina, Chile, mundo árabe e, particularmente, a China, principal parceiro comercial do Brasil, só falta se isolar dos EUA e ficar falando sozinho nos foros internacionais. Se a subserviência a Trump é irritante, o que dizer de afundar com Hungria e Polônia, sob inspiração de Steve Bannon, Olavo de Carvalho e outros ícones do atraso? A eleição de hoje é um divisor de águas para o mundo, os EUA e o Brasil de Bolsonaro.
Celso Ming: Tamanho da vitória nos EUA importa
Impacto das eleições nos EUA não se restringirá à vitória de um dos dois candidatos, mas às proporções dessa vitória
A percepção que hoje prevalece, não só entre os administradores de empresas, mas também junto às classes médias dos EUA (e, portanto, no eleitor que agora vai escolher seu presidente) é a de que o ambiente de negócios está se estreitando e os empregos minguam. Os juros praticamente no campo negativo vêm destruindo também o futuro, na medida em que provocam o encolhimento do patrimônio dos fundos de pensão e das reservas familiares aplicadas no mercado financeiro.
O cidadão médio dos EUA parece ter dificuldade de entender que toda a economia mundial – não só a americana ou a de sua família – passa por enorme transformação. O mercado de trabalho não enfrenta apenas a concorrência do produto asiático, obtido com mão de obra mais barata. Reflete, também, a incorporação do trabalho feminino, que, em apenas três gerações, duplicou a concorrência com os homens por um mesmo posto de ocupação.
Há a revolução provocada pela tecnologia da informação, que, em praticamente todos os segmentos da economia, dispensa mão de obra ou tira importância de anos de estudo e de treinamento na obtenção de uma profissão que agora passa por sérias mutações. Além disso, há a revolução energética: o movimento irreversível em direção ao abandono dos combustíveis fósseis e de aumento da participação da energia limpa na matriz energética global, que muda os transportes, o uso do carro e a maneira de trabalhar.
Nessas horas de aflição e de baixa lucidez, procura-se mais um culpado do que uma solução. E o culpado da hora para o qual nestes últimos quatro anos o presidente Donald Trump apontou seu nervoso indicador foi a China. Com essa paisagem de fundo, o impacto das eleições nos EUA não se restringirá à vitória de um dos dois candidatos, mas às proporções dessa vitória. Isso não é válido apenas do ponto de vista político interno e externo, mas também do ponto de vista da condução da economia global.
Se o novo presidente arrebatar também maioria nas duas casas do Congresso, aumentará a capacidade de levar adiante seus projetos destinados a enfrentar a desarrumação provocada pelas transformações acima apontadas. Uma vitória por larga margem de Trump seguida com maior apoio dos representantes, encorajaria um reforço das decisões unilaterais, o acirramento dos conflitos comerciais e tecnológicos com a China, o aumento do protecionismo comercial, maior repulsa ao Acordo de Paris e maior rejeição de medidas de proteção ambiental.
Uma vitória expressiva do democrata Joe Biden, por sua vez, favoreceria a outra ponta da corda nesse cabo de guerra. Não se espera pelo desaparecimento dos conflitos com a China. Mas um governo Biden tenderia a assumir uma posição mais inteligente e mais estratégica em relação a Pequim. Provavelmente deixaria de hostilizar aliados históricos, como a União Europeia e o Japão; abandonaria políticas comerciais unilateralistas; e voltaria a fortalecer organismos multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o Banco Mundial.
*CELSO MING É COMENTARISTA DE ECONOMIA
Pedro Fernando Nery: O que é boa política?
Nas eleições, não há espaço para propostas de políticas públicas cuidadosamente desenhadas
Os EUA decidem hoje o seu próximo presidente. Hillary Clinton, a perdedora 4 anos atrás, reflete no livro What Happened sobre as campanhas eleitorais da nossa era. Estudos mostram que o noticiário daquela eleição concentrou uma parcela insignificante da cobertura às propostas formuladas por especialistas do seu time. Acusações, questões de personalidade e propostas mirabolantes de Trump ocuparam quase toda a cobertura. Hillary dá a entender que se arrepende: a boa política pública pode não ser a boa política.
Depois de encarar promessas populistas à direita (de Trump) e à esquerda (do correligionário Sanders nas primárias), ela parece se render à máxima de que good policy is not good politics: não há espaço nas eleições para propostas de políticas públicas cuidadosamente desenhadas. Ela chegou a cogitar apresentar um programa de renda básica universal, mas desistiu por não conseguir fechar a conta do custeio. Na autobiografia, lamenta: deveria ter lançado a proposta como aspiração, e solucionar os detalhes depois.
Na coluna anterior, tratamos das promessas de Guilherme Boulos para a prefeitura. Mas as promessas hiperbólicas não são exclusivas da esquerda. No momento em que busca sua reeleição, Trump concluiu parcela ínfima do prometido muro (e não fez o México pagar por ele).
Na quinta-feira passada, o ministro da Economia declarou: “Há uma narrativa de que eu prometo e não entrego”. É uma referência pertinente de promessas à direita: em 2018, Paulo Guedes prometeu zerar o déficit primário ainda no primeiro ano de governo (o valor no vermelho foi de R$ 95 bilhões) e privatizações acima de R$ 1 trilhão (o secretário da área já se demitiu).
Na corrida à prefeitura de São Paulo, as promessas de Boulos não são menos factíveis que as de concorrentes. Adversários prometem cortes de impostos que esbarram em proibições parecidas, por exemplo, quanto à Lei de Responsabilidade Fiscal. Juras de privatização esbarram nas dificuldades enfrentadas por Guedes.
Leitores comentaram a coluna de Boulos concordando com inconsistências do programa, mas explicando ver no candidato uma chance maior de concretização de uma determinada plataforma. Efetivamente, o “vou fazer” dos candidatos é na prática um “quero fazer” – e para muitos eleitores querer já é um diferencial em relação a outros postulantes. Seja a promessa de renda básica e passe livre ou corte de impostos e privatizações.
Especificamente em Boulos, há mesmo um compromisso claro com redução da desigualdade – Jeff Nascimento, da Oxfam, destaca de forma ilustrativa que entre os principais candidatos não há programa que chegue perto em menções a “desigualdade” ou “social”. Como mostram os dados do Atlas do Desenvolvimento Humano, a capital paulista tem as 5 regiões de maior desenvolvimento humano do País, quase “gabaritando” esta versão do IDH. Uma prosperidade que divide espaço com privações, um abismo que tende a aumentar com a devastadora crise atual.
Uma gestão Boulos poderia, sim, promover transformações, ainda que não na magnitude que alguns esperam – especialmente sem brigar pelo aumento da tributação dos mais ricos e a reforma da previdência, como argumentei. De fato, a campanha aponta que os valores envolvidos no programa são bem mais modestos do que alegam os adversários, reproduzidos na coluna.
Realidade
À medida que o plano de governo do PSOL se torna mais realista, também será menos sedutor para os eleitores. Uma renda básica para 3 milhões, em continuação ao Auxílio Emergencial, e passe livre para todos sem emprego formal poderia superar os R$ 25 bilhões anuais. Nos últimos dias, a campanha colocou parte da plataforma de forma mais clara: um programa mais factível, e naturalmente menos abrangente.
O número de 3 milhões de “atendidos” com a renda básica não rivaliza com os 3,4 milhões que receberam o Auxílio Emergencial na cidade: na verdade, seriam 3 milhões de atendidos apenas indiretamente, e 1 milhão de benefícios de fato. Uma redução de pelo menos 70% no número de pagamentos em relação ao Auxílio Emergencial, ou 7 milhões a menos de “atendidos” seguindo o método proposto.
O passe livre para desempregados segue pouco claro: os mesmos 3,4 milhões do auxílio emergencial não têm emprego formal, uma conta com potencial de vários bilhões. Havendo uma lógica limitação, há entre os eleitores, inevitavelmente, muitos desempregados que não vão receber o passe livre, assim como há favorecidos pelo Auxílio que ficarão de fora da renda básica. O hiato entre aspiração e realidade será ainda maior sem aumentos significativos na arrecadação do IPTU, ISS e contribuição previdenciária, o que nenhum candidato admite.
Propor boa política pública não é a boa política eleitoral. É uma escolha sensível para todas as campanhas, principalmente uma vibrante como a de Boulos.
- Doutor em Economia
Almir Pazzianotto Pinto: Liberdade para trabalhar
Regulamentação pode destruir avançada e liberal forma de trabalho assalariado
O trabalhador, tal como o conhecemos hoje, é fruto da primeira Revolução Industrial. Sua existência como classe data do final do século 18. Surge com a invenção das primeiras máquinas de fiar e de tecer na Inglaterra. Até então esse trabalho era executado em casa, com a utilização de equipamentos toscos, de reduzida capacidade produtiva.
A esse respeito escreveu Jurgen Kuczynski: “Antes de la introducción de las máquinas, el hilado y tejido de materias primas se hacía em la casa del trabajador. Su mujer y su hija hilaban el hilo que el marido tejía; o bien lo vendían cuando el padre de família no lo trabajaba en persona. (…) De esta manera vegetaban los trabajadores en una existencia tranquila, llevando una vida pacífica y ordenada llenos de piedad y dignidade. Su bienestar material era mucho mejor que el de sus sucessores” (Evolución de la Classe Obrera, Ed. Guadarrama, Madri).
A Revolução Industrial provocou o aparecimento de grandes unidades industriais construídas pela iniciativa privada. Karl Marx sintetiza de forma magistral a passagem da economia rudimentar para o processo de produção industrial. Leia-se o que escreveu no Manifesto do Partido Comunista, cuja primeira edição inglesa data de 1850: “A indústria moderna transformou a pequena oficina do antigo mestre da corporação patriarcal na grande fábrica industrial capitalista. Massas de operários, amontoados nas fábricas, são organizadas militarmente. Como soldados da indústria, estão sob a vigilância de uma hierarquia completa de oficiais e suboficiais. Não são somente escravos da classe burguesa, do Estado burguês, mas também diariamente, a cada hora, escravos da máquina, do contramestre e, sobretudo, do dono da fábrica. E esse despotismo é tanto mais mesquinho, odioso e exasperador quanto maior é a franqueza com que proclama ter no lucro seu objetivo exclusivo”.
Ignoro o nome do inventor do relógio de ponto. Creio ter sido alguém informado pelo desejo de impor disciplina ao processo de fabricação, para obter da força de trabalho os melhores resultados. Alguém – como Frederick W. Taylor, pai da gestão científica (Scientific Management), ou Henry Ford, criador da linha de montagem – empenhado em garantir à livre-iniciativa “prodigioso desenvolvimento da produtividade por meio do desenvolvimento da tecnologia”, como registrou Louis Althusser em prefácio para o livro primeiro de O Capital.
No Brasil a sujeição do empregado comum à rigidez do horário e à assiduidade é disciplinada na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e na Lei do Repouso Semanal Remunerado. Qualquer que seja a forma de remuneração, nunca se pode atrasar ou deixar a oficina antes de se encerrar a jornada. O tempo destinado ao repouso ou à alimentação e o intervalo entre jornadas são delimitados. A lei o obriga a registrar o ponto quatro vezes por dia. O custo da mão de obra é um dos principais componentes do custo final. É natural que o empregador procure conseguir o máximo rendimento dos assalariados.
A Constituição da República e a CLT traçam limites à duração diária e semanal da jornada, determinam que horas extras não ultrapassem o limite de duas e que sejam pagas com o acréscimo mínimo de 50%. Férias e repouso semanal são calculados proporcionalmente às faltas não justificadas. Nos estabelecimentos com mais de dez empregados a anotação da hora de entrada e saída deve ser feita “em registro manual, mecânico ou eletrônico” (artigo 74).
O isolamento determinado pela pandemia de covid-19 acelerou a expansão do teletrabalho. Na residência o empregado iniciará a jornada sem os atropelos habituais. Economizará os gastos com transporte individual ou coletivo. Se quiser, terá alguns minutos para atividades físicas, tomará o café da manhã ouvindo ou vendo as últimas notícias, irá ao computador adquirido de acordo com o modelo escolhido e executará as tarefas do dia ou antecipará as do dia seguinte. Não haverá horário rígido para a refeição feita em casa ou encomendada no delivery. Se necessário, interromperá o trabalho para ajudar a esposa, correr ao supermercado e dar atenção aos filhos. Desde que execute a tempo os serviços sob sua responsabilidade, organizará com liberdade a jornada de acordo com sua melhor conveniência.
A libertação do ponto é uma das vantagens do teletrabalhador. Esgarça o regime de subordinação inerente ao contrato. Sobre a nova e revolucionária modalidade de trabalho pesa, contudo, ameaça de regulamentação detalhada, com o perigo de causar prejuízos a ambas as partes, destruindo avançada e liberal forma de trabalho assalariado. Infelizmente, trouxemos de Portugal a prolixidade barroca das Ordenações Afonsinas (século 15), Manuelinas e Filipinas (século 16/17).
A Lei n.º 13.467/2017 reformou a CLT. Antecipou-se à pandemia ao lhe acrescentar cinco dispositivos sobre teletrabalho (artigos 75-A, B, C, D, E). Bastará interpretá-los de forma racional e aplicá-los com boa-fé e inteligência para que esse veículo de modernização não se perca.
*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST)
Carlos Pereira: A hora da moderação
Incerteza e insegurança trazidas pela pandemia abrem caminho para moderação política
Já é possível observar claros sinais de arrefecimento da polarização política que varreu o mundo, especialmente a partir da crise financeira internacional de 2008.
A disputa entre grupos polarizados estava em relativo “equilíbrio” com cada polo se nutrindo da oposição radicalizada de identidades e preferências políticas. Grupos polares, tanto à esquerda como à direita, se retroalimentavam. Não dialogavam entre si e tendiam a consumir informações que só reforçavam suas crenças anteriores. Ao mesmo tempo, rejeitavam qualquer informação que contrariasse seus valores prévios. Portanto não faziam atualizações que pudessem colocar em risco suas respectivas “zonas de conforto” identitárias. O espaço para alternativas moderadas que buscam o eleitor mediano ficou bastante reduzido.
A manutenção de um ambiente polarizado é o ideal para a viabilização eleitoral de candidatos extremos, como o presidente Donald Trump. Entretanto, a grande maioria dos institutos de pesquisa projeta que o candidato democrata, Joe Biden, é o franco favorito, com 90% de chances de derrotar o atual presidente.
Ao contrário de Trump, um outsider com perfil populista e antissistema, Biden é um típico representante da política tradicional americana. Uma espécie de candidato livre de surpresas, representando estabilidade, previsibilidade, segurança e, fundamentalmente, moderação.
Assim como nos EUA, a polarização política tomou conta do Brasil, especialmente a partir das grandes mobilizações de massa que varreram o País em 2013. As eleições de 2018 testemunharam uma escalada da polarização política tanto na grande massa quanto na elite. Naquela ocasião, o número de eleitores que votaram num candidato de um dos polos se aproximou daquele relativo aos que expressaram forte rejeição ao candidato oponente. Os candidatos de centro não tiveram a menor chance e o eleitorado moderado ficou literalmente órfão.
De forma similar ao que vem ocorrendo nos EUA, os candidatos que representam os dois polos extremos, apoiados por Jair Bolsonaro ou por Lula, têm enfrentado grandes dificuldades nas disputas às prefeituras das capitais brasileiras.
Mas por que a política da moderação estaria retornando no exato momento em que a crise da covid-19 estaria aumentando ainda mais as desigualdades sociais?
Parece que os eleitores estão cansados das incertezas causadas pelas opções polares, e por isso começam a procurar por alternativas menos arriscadas e mais seguras. É como se os partidos polares e antissistema tivessem exercido o papel de anticorpos, que ajudaram a construir resistência às desigualdades e injustiças do liberalismo de mercado pós crise financeira de 2008, mas que agora estão causando efeitos colaterais que põem em risco a própria sociedade.
Eleitores ficaram muito alarmados com as ameaças trazidas pela pandemia e podem ter perdido o apetite por um modo de política insurrecional que aumenta ainda mais a instabilidade e a incerteza. Como em tempos de pós-guerra, os eleitores podem almejar estabilidade e garantias efetivas ao invés de mais polarização.
A incerteza contida nos novos desafios gerados pela crise pandêmica tem o potencial de aumentar o apelo emocional das narrativas de moderação política. Em outras palavras, a fadiga da crise pode fazer com que os eleitores rejeitem soluções com consequências desconhecidas e prefiram o tipo de reforma incremental tradicionalmente associada a partidos políticos moderados, posicionados ao centro do espectro ideológico. A hora da moderação parece ter chegado.
*Cientista Político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV Ebape)
Eliane Cantanhêde: No Forte Apache…
Em forte sem comandante, pode faltar gás no Posto Ipiranga e tinta na caneta Bic
O embate entre o capitão da caneta Bic e o general de Exército com ordem de comando marca uma nova etapa na relação do presidente Jair Bolsonaro não só com o vice-presidente Hamilton Mourão, mas com as Forças Armadas. A unanimidade aparente ruiu, a insatisfação silenciosa emergiu e o momento é de avaliação de danos, ou de contagem de votos para um lado e para outro.
Sem noção da gravidade na saúde, na economia, no ambiente, na política, o presidente acha que pode falar e fazer o que lhe vai pela cachola, trocando a responsabilidade do cargo pelo oba-oba de uma campanha extemporânea, divertindo-se com a “boiolagem” cor-de-rosa do Guaraná Jesus, humilhando o general da Saúde, tirando o gás do ministro da Economia e guerreando contra a “vacina do Dória”.
É puro non-sense, mas Bolsonaro vai comprando lealdade com cargos e camaradagem. Qual um paizão às antigas, grita e dá umas palmadas, fingindo não ver a safadeza do caçula com o mais velho, mas resolve tudo bajulando o ofendido. A vítima dá um sorrisinho e cede: “um manda, o outro obedece”. Pergunte-se a Paulo Guedes e aos generais Luiz Eduardo Ramos, Augusto Heleno e Eduardo Pazuello e todos reagem com um sorriso condescendente: “o presidente é assim mesmo, diz tudo na bucha, mas gosta muito de mim”.
O passo seguinte é descrever uma situação em que Bolsonaro, depois de mais uma bordoada, fez uma gracinha e alisou o ego do subordinado diante de um microfone. Pazuello teve direito a vídeo no leito da covid, Ramos foi paparicado com passeio de moto e num discurso em que foi tratado como “meu amigão”, não Secretário de Governo e articulador político. Comovido, deixou pra lá o “Maria Fofoca” disparado por Ricardo Salles.
Desanimado, mas tentando demonstrar o contrário, Guedes tem definido o governo como um forte apache cercado de índios e flechas, mas com todo mundo dentro guerreando entre si. Ele não diz, mas isso só ocorre em forte apache em que o comandante não comanda e soldados fazem o que querem. Um dado relevante no incômodo crescente do oficialato é a desenvoltura que Bolsonaro confere à tal “ala ideológica” dos filhos, Salles e os Weintraub que pululam no governo. O próprio, demitido da Educação, foi curtir a vida nos States, ganhando em dólar no Banco Mundial.
Em sequência, Bolsonaro disse que não vai comprar a “vacina da China” e desautorizou o anúncio feito por Pazuello aos governadores e ao País, Salles atacou Ramos como “Maria Fofoca” e o presidente da Câmara como “Nhonho”, até que o general e ex-porta-voz Otávio do Rêgo Barros alertou em artigo que o poder “inebria, corrompe e destrói” e que líderes não podem ficar reféns de “comentários babões” e “demonstrações alucinadas”.
Na contabilidade do Planalto, 90% dos militares ficaram irritados com Rêgo Barros. Nos corredores militares, a avaliação é diferente, com muitos aliviados por alguém, enfim, sair da toca para reforçar o general Santos Cruz e dizer o que precisava ser dito. A diferença é que, nos palácios, dizem o que os poderosos querem ouvir. Nos bastidores, é mais fácil ser sincero.
No fim, Mourão firmou sua independência (ou descolamento), desdenhando da briga política com o governador de São Paulo, falando pragmaticamente sobre a China e desdizendo o presidente: “O governo vai comprar a vacina, lógico que vai”. A reação de Bolsonaro foi de confronto: “A caneta Bic é minha”. A guerra está só começando.
O desconforto bate nas Forças Armadas, Itamaraty, várias áreas de governo e da sociedade, com reflexo no Congresso, onde nada anda e há um risco real: chegar a 2021 sem Orçamento aprovado. O Forte Apache precisa de um chacoalhão. Assim como o Posto Ipiranga está perdendo gás, a caneta BIC também pode perder a tinta.
*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta
Vera Magalhães: Sacudindo o refrigerante
Alheio ao precipício fiscal, Bolsonaro segue sua aposta na balbúrdia
O presidente da República é um galhofeiro. Em visita oficial a um dos Estados mais pobres do País, em plena pandemia, o máximo que seu repertório intelectual, humano, administrativo e social permite é fazer piada homofóbica com a cor de um refrigerante.
Isso um dia depois de seu ministro do Meio Ambiente, o mesmo que já carrega na capanga dois acidentes ecológicos graves, sucessivos recordes de desmatamentos e queimadas na Amazônia e o Pantanal incinerado, ter usado um apelido de humorístico mexicano para responder a uma cobrança política feita a ele pelo presidente da Câmara por outra infantilidade parecida.
Esse estado de infantilismo governamental já vem cobrando um preço alto nos excruciantes 22 meses deste governo, mas olhar a balbúrdia comendo solta quando o que se avizinha é o precipício fiscal, tão bem descrito em artigo recente aqui no Estado por Nathan Blanche, da Tendências, é ainda mais assustador.
O ministro Paulo Guedes falou em audiência virtual ao Congresso nesta semana que passou. Tentou de novo fazer o Jogo do Contente que já lhe rendeu memes e perfis satíricos nas redes sociais com previsões tão otimistas quanto furadas.
Pediu aos deputados e senadores a votação de projetos que podem ajudar, no seu entender, a destravar a academia. O que mais repercutiu, no entanto, foram seus renovados ataques ao colega Paulo Marinho.
A insistência nessa briga com um ministro de pasta claramente menos apetrechada que a poderosa Economia, além da defesa subsequente de Bolsonaro a Marinho e episódios em que a equipe de Guedes fica falando sozinha, como o do decreto revogado de estudos para parcerias público-privadas em saúde, são reveladores da tibieza do ministro hoje.
Tanto que o mercado se preocupou mais com a briga pública entre Rodrigo Maia e Roberto Campos Neto, justamente pela pauta travada, que com de Guedes. Aturdidos com a inação do governo diante da pressão inflacionária, da dívida insustentável, do desemprego recorde, da falta de saída para a reforma tributária, da iminente implosão do teto de gastos, da falta de saída para o fim do auxílio emergencial e outras bombas econômicas, investidores, economistas, banqueiros, analistas econômicos e empresários já veem Campos Neto como um sucessor possível, com menos disposição a vender quimeras e mais sobriedade para negociar o que é preciso ser feito e nunca sai do papel.
Acontece que há algo que precede qualquer eventual mudança ministerial: o presidente. Bolsonaro não está nem aí para a emergência fiscal e econômica. Isso só o abala quando e se mexe no ponteiro de sua popularidade, algo a que ele se agarra com o afinco de quem não percebe que ela nem é tão alta e nem é duradoura.
Foi o presidente que deu ordem clara a Guedes para não criar nenhuma marola de temas espinhosos enquanto durasse a eleição, porque achou que só porque voltou a ser recebido por puxa-sacos em aeroportos iria “varrer o PT do mapa”, a única questão que sua imaginação limitada é capaz de alcançar.
Não rolou, até aqui. Aliás, nem para ele nem para o PT, num sinal de que 2020, com todos os seus flagelos concretos, pode fazer o País começar uma caminhada rumo a alguma racionalidade política.
Faltam 15 dias para o primeiro turno. Enquanto isso, a Comissão Mista de Orçamento segue paralisada por uma briga intestina na capenga base bolsonarista, o que nos deixa sem política fiscal clara para 2021, um ano que não será do pós-pandemia, o que já seria um pesadelo, mas o ano 2 da pandemia.
Guedes está com a caixa de ferramentas vazia. E Bolsonaro está mais preocupado em sacudir o Guaraná Jesus e abrir para ver se espirra na cara do País. E se possível em fazer algum gracejo nojento enquanto chacoalha.
*Editora do BR Político e apresentadora do programa Roda Viva, da TV Cultura