o estado de s paulo
Cláudio Couto: Frente ampla democrática é incompatível com iliberalismo
Vitória de Joe Biden sobre Donald Trump animou gente de amplo espectro ideológico a defender no Brasil uma aliança da direita à esquerda contra o bolsonarismo
A vitória de Joe Biden, batendo o populista de direita, Donald Trump, animou gente de amplo espectro ideológico, da direita à esquerda. O que uniu pessoas de posições políticas tão distintas na celebração da derrota trumpista foi a vitória da democracia (com todos seus requisitos) sobre o autoritarismo, inerente a quaisquer populismos, que tal desfecho representou.
Por isso, rapidamente se começou a defender no Brasil uma aliança ampla, da direita à esquerda, contra o bolsonarismo e sua vocação autoritária. Nesse contexto se dão conversas entre políticos e aspirantes a políticos de distintas posições, na tentativa de construir pontes. Faz sentido.
Estrela ascendente na esquerda, o governador do Maranhão, Flávio Dino, conversa com muita gente, inclusive o centro-direitista Luciano Huck – que tem como mentor o centrista e bem-sucedido ex-governador do Espírito Santo, Paulo Hartung. Na Bahia, a centro-esquerda pedetista se uniu à direita carlista na disputa pela Prefeitura de Salvador. O PT segue ausente, com algumas exceções, como Fernando Haddad.
Agora, Huck conversa com Sérgio Moro e se noticia possível chapa entre ambos em 2022. Mas aí a ideia de frente democrática esboroa. O jacobinismo judicial lavajatista é tão iliberal – e, portanto, antidemocrático – quanto o bolsonarismo. Embora o combate inclemente à corrupção tenha seduzido certos liberais, trata-se de uma contradição: frente tão ampla a ponto de incluir até quem se guia pelo autoritarismo que tal aliança pretende combater.
- Professor de Ciência Política na FGV EAESP e produtor do canal 'Fora da Política Não há Salvação'
Luiz Carlos Trabuco Cappi: Ponto de partida
É preciso corrigir distorções nas cadeias de produção, reduzir a desigualdade, promover a inclusão e enfrentar os graves problemas ambientais
O mundo enfrenta dois desafios intensos. O primeiro, mais sensível, é o controle da pandemia. E o segundo, mais incerto, é a retomada do crescimento econômico.
Confiemos na ciência. Os principais centros de pesquisas do mundo estão mobilizados para o teste e a produção de vacinas que nos protejam da doença. Já a volta ao crescimento dependerá de uma variável decisiva em tempos sombrios, a confiança.
Antes da pandemia, os principais líderes políticos e empresariais globais debatiam a necessidade de corrigir as distorções das cadeias de produção e comércio, buscar a redução da desigualdade social, promover a inclusão e enfrentar os graves problemas ambientais. Fóruns como o de Davos, polo do pensamento moderno, encaram com bastante ênfase o prenúncio dessa nova era.
O debate voltará com força, como consequência da própria pandemia. Agravou-se a má distribuição de riqueza, seja em um país, seja entre países, o que se tornou fonte de desequilíbrio geopolítico e de crises sociais, além de interromper de forma abrupta os ciclos de crescimento, cuja agenda passa a ser a da sustentabilidade e da geração de emprego.
O Brasil tem peso nessa discussão, por sermos um país em desenvolvimento, de dimensões continentais, com uma estrutura produtiva de envergadura e recursos naturais de importância global.
A sigla ESG, que foi tema de outro artigo, hoje mobiliza governos, investidores, gestores de recursos e empresas inovadoras. Projeta a criação de um mundo melhor, sem soberba e artificialismo.
“Os princípios ESG e o capitalismo de partes interessadas não são uma moda”, afirma o economista alemão Klaus Schwab, fundador do Fórum Econômico Mundial de Davos. “Não são apenas uma manifestação de líderes empresariais para mostrar sua responsabilidade social corporativa, mas sim parte integrante da gestão empresarial”.
Adotando essas práticas, as empresas espalham uma nova cultura. Os investimentos em fundos associados a esses princípios já formam patrimônio de mais de US$ 1 trilhão.
Está se construindo uma agenda de colaboração. Há iniciativas em todo o mundo que mobilizam setores econômicos, governos e personalidades influentes nos negócios, na política e na ciência. No Brasil, a pandemia gerou iniciativas unindo grandes empresas e bancos na pauta ambiental, além de fundos de solidariedade para o combate à Covid-19. Nesse cenário, o Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável (GTPS), fórum que reúne pecuaristas, instituições financeiras, frigoríficos e entidades da sociedade civil, esboça um novo pacto ambiental cuja ideia central é construir um modelo de rastreabilidade e monitoramento.
A grande questão é sistematizar os trabalhos e preparar politicamente essa pauta. Os acordos do clima estabelecem compromissos para redução das emissões de gases na atmosfera. Na vida prática, os governos que assinaram os acordos podem não ser os mesmos que vão aplicar as medidas dele.
É preciso segurança institucional, que começa a partir da convergência de compromissos entre empresas e sociedade, com participação da classe política, no esforço comum de provocar e buscar a adesão dos governos no enfrentamento dos problemas.
No nosso caso, a agenda ESG deveria se concentrar em quatro pontos: desigualdade social, mudanças climáticas, ética e investimento voltado ao crescimento.
O Brasil é o maior produtor e vendedor de alimentos do mundo, grande exportador de minério e player importante no mercado de óleo e gás, entre outros atributos que nos conferem relevância internacional; ao mesmo tempo, apresenta indicadores ruins na educação, na logística de transporte da safra de grãos, na infraestrutura de saneamento e no controle do desmatamento.
Que este ano dramático sirva de ponto de partida para uma virada civilizatória: olhar de outra maneira os objetivos da atividade econômica e do lucro, de modo a alinhar crescimento a resultados sociais e ambientais. Caberá à nossa geração a responsabilidade de redefinir esse jogo.
- PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. ESCREVE A CADA DUAS SEMANAS
Pedro S. Malan: Faltam dois anos
Cumpre trabalhar para que a moderação com visão de futuro prevaleça no Brasil pós-2022
Em política, como na guerra e, por vezes, na economia, dias podem valer semanas; semanas, meses; e meses, anos. Dois anos são prazo suficiente para pôr em marcha as medidas de que precisa o País para enfim conhecer crescimento razoável e sustentado e com isso atender às necessidades da população?
Muitos sustentam que é preciso aguardar a marcha dos acontecimentos: as eleições municipais iminentes ditarão os contornos das futuras coligações, partidárias ou não. Em dezembro e janeiro a atenção será consumida por eleições para as presidências da Câmara e do Senado, e então, de lideranças, mesas diretoras e presidência das principais comissões das duas Casas do Congresso. Aí já estaremos em março de 2021, abril talvez, caso o Executivo decida promover reforma ministerial para refletir o cenário resultante das urnas e com isso construir base de apoio mais sólida no Congresso. O restante de 2021 e o início de 2022 é quanto haveria para a gradual constituição de alianças e chapas com vista às eleições de outubro. E então, seis meses de intensa campanha.
É muito ou pouco tempo? Do ponto de vista político, pareceria prazo razoável fosse outra a situação econômica e social – menos incerta, tensa e volátil. Mas não é esse o caso. A complacência, essa característica tão nossa, é luxo a que não nos podemos dar. Em meu artigo mais recente (Corredor estreito, tempo curto) apontei a exiguidade do espaço de manobra na área econômica. Para muitos, a política ditará o ritmo em que se pode avançar. Como se, conhecidos os resultados das eleições de novembro no Brasil e nos EUA, 2020 estivesse, como ano político, encerrado. Seria diferente caso o Executivo fosse capaz de definir, em diálogo consistente com as lideranças e presidências da Câmara e do Senado, conteúdo e timing da agenda legislativa, pela qual se bateria então com determinação e articulação. No entanto, o chefe do Poder Executivo parece ter outras prioridades em mente, agora talvez acentuadas pelo resultado das eleições norte-americanas e pelo destino de seu modelo ideal de presidente da República.
Na área econômica, ocorre-me apontar possíveis lições das transições de 2002-03 e de 2016. Entre abril e outubro de 2002 o câmbio foi de 2,3 a 4 reais por dólar e o risco Brasil multiplicou-se por mais de quatro vezes. Era o resultado de preocupações de investidores internos e externos, ditadas por dúvidas quanto à condução que daria à economia o governo a ser eleito em outubro de 2002. A resposta, prática, veio por meio da escolha dos nomes que estariam à frente da condução da política econômica. Ganhou credibilidade concreta o compromisso, assumido durante a campanha, com o esforço fiscal necessário para estabilizar a relação dívida-PIB, preservar a inflação sob controle e respeitar contratos. Ao final de dezembro o câmbio havia passado para 3,5 e 3,3 ao final de março, e o Brasil foi em frente, ajudado por contexto internacional extraordinariamente favorável.
Também 2016 oferece lições úteis. O governo Temer teve início sob situação extraordinariamente adversa. O investimento havia começado a declinar no terceiro trimestre de 2013, a recessão começara em abril de 2014. 2016 seria o terceiro ano de déficit primário e a pressão estrutural por gastos públicos era crescente. Situações difíceis não são sinônimo, no entanto, de falta de opções. A primeira, na área econômica, envolvia – uma vez mais – escolher pessoas certas para posições-chave, que, por sua vez, pudessem atrair e reter outros profissionais competentes. Na área política, criar base de sustentação no Congresso e com isso definir agenda legislativa que atendesse a prioridades claras.
Os dois episódios encerram lição útil para a situação atual e para 2022 – que pode parecer muito distante, mas não está, dada a gravidade da situação nos três níveis de governo. Lição útil, caso queiramos evitar a reedição em 2022 da polarização que marcou as eleições de 2018; que ocorreria em circunstâncias ainda muito mais difíceis nas áreas econômica e social que as daquele momento.
São dois anos para construir apoios, com serenidade e humildade, mas também com o sentido de urgência que impõe a crise das finanças públicas. Para adotar medidas difíceis, em diálogo com o Congresso e com o Judiciário. Para explicar a ambos e à opinião pública não só por que é preciso enfrentar a situação atual, mas também como fazê-lo. Não apenas por necessidades fiscais, mas para que o País possa conhecer crescimento razoável e sustentado; para que o setor público possa prestar melhores serviços à população, especialmente em saúde e educação; por maior inclusão social e igualdade de oportunidades; para que seja possível investir mais e melhor em infraestrutura, ciência e tecnologia. Para aumentar a confiança de investidores domésticos e externos no Brasil e em seu futuro.
Ao que tudo indica, o resultado eleitoral da semana passada significa que o presidencialismo de confrontação foi derrotado nos Estados Unidos. Cumpre trabalhar para que a moderação com visão de futuro possa prevalecer também no Brasil pós-2022.
*Economista, foi ministro da fazenda no governo FHC
Vera Magalhães: Nova diplomacia
Guinada dos EUA é chance de livrar Itamaraty do ranço ideológico
Os Estados Unidos contam seus votos em ritmo de tartaruga, enquanto o mundo decora seus Estados e condados e aprende sobre seu complicado sistema eleitoral. Trata-se, para os países, de uma oportunidade de projetar a nova ordem mundial, e se preparar. O Brasil deveria estar nessa fase, não estivessem os responsáveis pela nossa política externa de luto pela confirmação da derrota do amigo Donald Trump.
A troca da guarda na Casa Branca deveria ser um alerta eloquente para o Itamaraty. Não vai mais adiantar se contentar com migalhas de atenção do “primo rico” ao “primo pobre”, com a família presidencial satisfeita em ser recebida para um tapinha nas costas.
Os democratas são conhecidos por adotar políticas protecionistas quando estão no poder. Com o republicano Trump não foi diferente nessa seara, bem sabemos. Então, nos obstáculos ao aço e alumínio brasileiros e ao jogo duro com etanol e commodities agrícolas pouco deve mudar.
Mas existe uma boa chance de a relação azedar em outras plagas, seja por uma reação política dos democratas aos excessos de torcida brazuca pelo adversário, seja pela mudança de discurso dos EUA no campo da política ambiental.
Joe Biden já deixou claras as restrições à maneira como o governo de Jair Bolsonaro trata os desmates e as queimadas na Amazônia, e os recuos brasileiros no comprometimento com metas climáticas, por exemplo.
Acenou com a ideia de constituir um novo fundo para a Amazônia, desde que mediante contrapartidas do governo brasileiro com políticas de preservação da floresta e fiscalização efetiva do avanço de atividades econômicas clandestinas na região.
Ainda entregue à paixão trumpista e imbuídos da crença mística de que ele venceria, não só o Itamaraty de Ernesto Araújo como o Meio Ambiente de Ricardo Salles se apressaram em recusar o dinheiro e dizer que quem manda aqui somos nós.
O prenúncio das relações entre os dois países com esse time dos terraplanistas ideológicos à frente é o pior possível. É por isso que, se fosse minimamente prático e racional, Jair Bolsonaro deveria considerar seriamente a possibilidade de trocar as peças no Ministério das Relações Exteriores (no Meio Ambiente não há nem o que falar, dado o desastre continuado que a presença de Salles provoca).
Um breve retrospecto do “legado” de Araújo, um diplomata obscuro até ser pinçado por Bolsonaro dado a seu fervor olavista, já seria suficiente para ele levar um bilhete azul num reality-show como O Aprendiz, do ídolo Trump.
Araújo se colocou à frente da tentativa de tirar Nicolás Maduro da presidência da Venezuela, e o Brasil foi um dos primeiros a reconhecer Juan Guaidó como “presidente autoproclamado”. Quase dois anos depois, Maduro se diverte com as agruras de Trump e não arreda pé da ditadura que impôs aos venezuelanos. Sob o comando do chanceler, o Brasil também torceu nas eleições da Argentina e da Bolívia e no plebiscito do Chile, sempre levando de 7 a 1.
Na questão do Oriente Médio, o clã Bolsonaro e seu fiel representante no Itamaraty também fizeram balbúrdia à toa: Benjamin Netanyahu, outro “parça” do Jair, enfrenta contestações internas por acusações de corrupção enquanto se fia nos acordos de paz costurados com a ajuda de Trump para se manter como primeiro-ministro de Israel. Anunciamos com estardalhaço uma mudança de embaixada que nunca se efetivou e vamos ficar falando sozinhos, agora que Trump está de saída. Para quê? Absolutamente nada.
É hora de devolver Araújo à sua carreira obscura e o Itamaraty a alguma racionalidade, que é a tradição da nossa antes reputada diplomacia. Mas esperar algo assim de Bolsonaro é como acreditar que Trump fará uma transição decente e democrática para Biden: não vai rolar.
Eliane Cantanhêde: O Trump tupiniquim
Com derrota externa e interna, Bolsonaro está abatido, isolado e sem referências
É estarrecedor que o presidente dos Estados Unidos acuse adversários e o próprio sistema eleitoral de fraude e corrupção, atiçando seus apoiadores para uma guerra campal e achincalhando a maior democracia do planeta. Mas Donald Trump é Donald Trump, sai da Casa Branca como entrou e leva o raro troféu de presidente que perde a reeleição, pensando sempre nele, só nele.
Biden prega união nacional, Trump mente, agride e é cortado do ar pelas três maiores redes de TV dos EUA, aprofundando a polarização do País e a divisão no Partido Republicano, que começou quando ele impôs sua candidatura no grito. Cara a cara com a derrota, ele expõe desespero e atrai críticas dos próprios republicanos e parte da direita americana que não é belicosa, mentirosa, autoritária e ignorante. Mas ele tem mais de 70 milhões de votos…
No Brasil, o voto é obrigatório com o sistema de um cidadão, um voto, seja ele banqueiro ou pedreiro. Nos EUA, é opcional e o candidato com mais voto popular pode perder a eleição no colégio eleitoral, como os democratas Al Gore e Hillary Clinton. Se o candidato republicano tem 51% em Iowa, todos os votos do Estado vão para o republicano. Se você votou no democrata, seu voto vai para o lixo.
Quanto à votação, o Brasil tem coordenação nacional e regras do TSE e, desde 1996, a urna eletrônica, segura, fácil, rápida, que permite o anúncio do novo presidente no dia do pleito. Já nos EUA cada estado tem suas regras e as cédulas são de papel, do século passado. A apuração é manual, voto a voto, envolve milhões de pessoas, gera incertezas, disputas judiciais e o resultado pode demorar semanas.
Bolsonaro, porém, insiste na volta da cédula impressa, depois de criar uma figura inédita no mundo: a do eleito que denuncia fraude na própria eleição – sem prova nenhuma, aliás, como o Trump real nos EUA. E as semelhanças não param aí. Trump se nega a coordenar a reação nacional à pandemia, diz que é só uma gripe, desdenha de máscaras e isolamento social e fez propaganda da cloroquina. Você já viu esse filme aqui? Mas isso não é brincadeira, é brincar com a vida.
Trump lá e Bolsonaro cá vivem numa realidade paralela, como velhos populistas convencidos de que podem falar e fazer qualquer coisa, espancar a China, aliar-se ao que há de pior e promover retrocessos em gênero, direitos humanos e meio ambiente na ONU. Bolsonaro só não saiu do Acordo de Paris, como fez Trump no dia da eleição, por falta de condições políticas.
Há, porém, diferenças entre o “mito” Bolsonaro e o “Deus” Trump, que não rasga dinheiro e manteve o slogan “America First” com o Brasil. Ganhou todas, inclusive ao derrubar um brasileiro em favor de um americano no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e ao impor cotas de aço, alumínio e etanol para o Brasil. Logo, usou os produtores brasileiros para comprar votos desses setores nos EUA.
Apesar da ridícula convocação de manifestações pró Trump em cidades brasileiras, até o mercado financeiro avalia como positiva a vitória de Joe Biden, que defende princípios, não é dado a maluquices e vai manter o decantado pragmatismo da política externa americana. Os dois presidentes podem se bicar, mas Brasil e EUA manterão acordos comerciais, programas de cooperação e a negociação em prol dos interesses de cada um. E quem discorda da pressão em defesa da Amazônia?
A troca de Trump por Biden é saudável para o mundo, os EUA e o Brasil, mas Bolsonaro tem razão em estar abatido. Ele perde o único grande parceiro internacional e seus candidatos às eleições municipais afundam como Trump. Com derrota externa e interna e a obsessão por 2022, será cada vez mais engolido pelo Centrão, quicando de um palanque a outro e falando besteira.
Carlos Melo: O desafio de Joe Biden
Ao longo dos últimos dias, a maior parte do mundo civilizado se pôs entre perplexa e desolada diante da hipótese concreta de mais uma vitória de Donald Trump. Para quem prefere ver o mundo com valores humanísticos, seu desempenho foi assustador. Goste-se ou não, é um forte. Agiu de modo oposto ao recomendável e ao razoável e ainda assim foi longe. Governou com vistas a desunir, não a agregar; se indispôs com a arte, com a ciência com a Grande Política; plantou a discórdia, colheu o desprezo de boa parte do planeta. E, ainda assim, por pouco não foi reeleito.
Já fiz essa pergunta em outro artigo, nesse Estadão, mas ela ainda vale: qual a razão de sua força? Ela não brota de qualidades pessoais, certamente. Trata-se de um homem grosseiro, de carisma duvidoso; rude nos gestos, estreito intelectualmente. Um canastrão, no palco da História Mundial, um Quixote da direita, franco atirador movido pela vaidade pessoal, pelo hedonismo dos novos ricos, inebriado pelo poder. Fosse brasileiro, seria comparada aos barões decadentes que estacionam seus carrões em vagas proibidas, exigem mesas especiais nos restaurantes e ameaçam chamar “o seu delegado” particular.
Por décadas, a humanidade especulará em torno dessa força – como faço agora. O fato é que, após Barack Obama, a maior democracia da história deu vida política a Trump e quase o reelegeu. Quem, no início da década de 1990 assistiu ao cult movie “Um dia de fúria”, sabe que o mal-estar ronda o mundo – como disse Tony Judt – há muito tempo. A revolução tecnológica deu saltos, mas nem todos a puderam alcançar: restaram milhões de deserdados – os “invisíveis” que somente agora o ministro Paulo Guedes percebeu existir.
Eles não têm formação, não têm profissão, não têm emprego; sem futuro, agarram-se a algum tipo de uber, num processo de precarização aparentemente sem fim.
Foi dessa decadência que se fez a noite, desse pântano que emergiu o monstro que deu vida ao Brexit, a Donald Trump e às mancheias de genéricos que carregam o mesmo princípio ativo: a demagogia, posto que há muita espuma em barulho, mas nenhuma providência concreta para resolver problemas reais. Quais as grandes medidas adotadas por Trump – ou por Bolsonaro ou pelo Reino Unido, pós Brexit – capazes de alterar a rota de exclusão e desalento, catalisada pela covid-19?
Da estagnação econômica e da desigualdade brota a degeneração política – e se o original traz essa degenerescência, o que dizer das cópias espalhadas pelo mundo? Enfim, são ecos do desespero, é a nostalgia de um passado idealizado – make America great again –, são a ignorância e o ressentimento que apelam à violência e ao oportunismo que invade a religião e assenhora-se de um deus, como se Deus fosse só seus.
O iluminismo de Barack Obama foi incapaz de estabelecer vínculos e diálogos com essa população brutalizada pela desigualdade cuja arrogância do liberalismo radical e dogmático apenas ampliou. Hillary Clinton foi vítima da própria presunção, natural dos bem-nascidos formados na Yve League, que acreditam poder passar ao largo do mal-estar que espreita pelas janelas e ocupa as esquinas, presa fácil de todo tipo de milícias.
Donald Trump é o líder demagogo surge nos balcões do desemprego e da cabeça baixa dos invisíveis — assim como aquele outro que surgiu dos balcões das cervejarias de Munique, na Alemanha dos anos 1920. Ele expressa o mal-estar da civilização contemporânea. É isso que o levou tão longe. Se é verdade que tem contas a pagar, verdade também são os saldos que tem a recolher se a dívida social não for liquidada. Por detrás de si, há uma horda de desvalidos a procura de um fiapo qualquer de esperança. É preciso ter atenção para isso e qualificar essa esperança.
Esse será o grande desafio de Joe Biden: compreender os problemas de seu país e do mundo; não fugir à responsabilidade de governar para todos; somar e não mais dividir, incorporar os destroços do século 20 aos melhores sonhos do século 21. Estabelecer vínculos e políticas públicas com e para os rejeitados pela 4ª. Revolução. Retirar-lhes do sanatório, abrir-lhes a porta de um abrigo seguro e as janelas das oportunidades. Terá no seu encalço, se não Donald Trump, o seu fantasma. Se fracassar, do caudaloso lago da desigualdade e da ignorância, outro monstro da demagogia poderá surgir. Inviabilizá-lo é seu desafio e o desafio do mundo todo.
*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
Adriana Fernandes: A indiferença com o apagão no Amapá
Demorou simplesmente três dias para o Brasil começar a acordar para o risco do caos social no Estado
Enquanto o Brasil assiste há quatro dias ao eletrizante desfecho das eleições dos Estados Unidos, um apagão parou o Amapá e jogou um Estado inteiro no escuro e caos provocado pela corte do fornecimento de luz.
A gravidade do problema, em meio à pandemia do coronavírus, se choca com a indiferença do resto do País com o drama vivido pelos amapaenses, que já dura o mesmo tempo da contagem dos votos da disputa entre Donald Trump e Joe Biden.
Demorou simplesmente três dias para o Brasil começar a acordar para o risco do caos social no Amapá, com todas as consequências que a falta de abastecimento de energia gera para a população, inclusive de segurança. Imagine quatro dias sem luz, água (o fornecimento depende de energia), combustível nos postos e hospitais abastecidos por geradores…
O pedido de SOS teve mais eco na bolha das redes sociais do que nas autoridades. O governo federal montou um gabinete de crise, mas pouco se viu dos ministros de Bolsonaro (tão ávidos a divulgar “entregas” nas suas redes sociais), como mensagens de apoio ou no mínimo de solidariedade às famílias do Amapá. Silêncio geral. Até porque o problema é de tamanha complexidade que ninguém quis se expor, já sabendo que a solução poderia demorar muito mais tempo – como de fato está ocorrendo.
Quem quer se meter em confusão? Bom mesmo é dar publicidade e anunciar as tais entregas paroquiais. Bolsonaro fez um breve comentário durante uma live e com uma postagem da Casa Civil, informando a criação do gabinete de crise.
É bem provável que muito menos teria sido feito, não fosse o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, do Amapá, somada à dependência do governo em relação ao Congresso para acelerar a agenda de votações e sair dessa buraqueira fiscal em que se encontra. Alcolumbre foi avisado pelo ministro Bento Albuquerque de que a crise era grave durante uma sessão de votação de vetos.
À coluna, técnicos experientes do setor afirmam que não se vê nada da mesma dimensão desde a noite de 10 de novembro de 2009, quando houve falha nas linhas de transmissão de Itaipu. A queda brusca na demanda de energia levou ao desligamento automático das 20 turbinas da usina, deixando quase 90 milhões de pessoas sem energia elétrica e afetando 18 Estados – quatro deles ficaram completamente sem fornecimento de eletricidade. A diferença entre o blecaute de 11 anos atrás e o de agora é que o fornecimento de energia foi normalizado em poucas horas.
O Amapá está conectado ao Sistema Interligado Nacional (a rede de linhas de transmissão), desde 2015, por meio de uma única linha. O investimento é privado: antes, era da espanhola Isolux, que entrou em recuperação judicial, atualmente Gemini Energy, controlada por fundos de investimentos. São quase 1,2 mil quilômetros de linhas entre Manaus (AM) e Macapá (AP). Foi na subestação dessa empresa que ocorreu a explosão.
Dos três transformadores, um estava em manutenção, um explodiu e o outro foi danificado pelo fogo. Se a operação para purificar o óleo desse equipamento der certo, 70% do Estado poderá ter o fornecimento de energia retomado neste fim de semana – e o governo não descarta a possibilidade de racionamento de energia até que a situação possa ser normalizada. Se der errado, ainda pode levar mais uma semana a chegada de um novo equipamento desse porte até o Estado, já que ele precisa ser desmontado, transportado por avião ou balsas e montado novamente. Uma operação de guerra terá que ser lançada.
Embora o incidente tenha ocorrido numa empresa privada, o Amapá tem outros problemas quando se trata de energia, algo que expõe uma série de fragilidades que criam um ciclo vicioso muito além da falta de investimentos.
A distribuidora CEA, do governo do Estado, responsável pelos postes, nem sequer tem contrato de concessão: opera em um regime precário, à espera de uma privatização, e vive em dificuldades financeiras há pelo menos 15 anos.
Em 2007, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) recomendou ao Ministério de Minas e Energia que cassasse a concessão e a licitasse para um novo operador – o governo negou. Até hoje a União tenta organizar um leilão para privatizar a companhia.
É emblemático que a Amazônia receba tanta atenção e uma crise desse tamanho passe ao largo. Se o apagão fosse em qualquer outro lugar do “sul” do Brasil, estaríamos vivendo um quadro de comoção nacional. Mas o Amapá está sendo tratado como periferia e o Brasil está de costas para ela. Seguimos acompanhando as eleições norte-americanas.
Miguel Reale Júnior: Vacina obrigatória
Campanha contra a vacinação por motivos políticos pode ser crime de responsabilidade
O obscurantismo bolsonariano faz-nos retroceder no tempo mais de um século. Em 1900 a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, era conhecida como empesteada, vítima de febre amarela, peste bubônica e cólera. Oswaldo Cruz, diretor de saúde pública no governo Rodrigues Alves, enfrentou as duas primeiras a partir de 1902 e em 1904 deu início ao combate à varíola, cuja imunização poderia dar-se pela aplicação de vacina já conhecida havia décadas.
Depois de muita discussão, foi aprovada no Congresso Nacional a Lei n.º 1.261, de outubro de 1904, que determinava a vacinação compulsória. Houve, então, já naquele tempo, tanto fake news, difundindo ser perniciosa a vacina, como exploração política de positivistas, seguidores de Augusto Comte, e florianistas, adeptos de Floriano Peixoto, que tomaram a questão da vacina como pretexto para tentar derrubar o presidente.
A contestação à obrigatoriedade, liderada por parlamentares, antes oficiais do Exército, ganhou cores gravíssimas, pois entre 10 e 20 de novembro as ruas foram ocupadas por revoltosos, com um saldo terrível de 30 mortos e mais de 900 presos, dos quais 450, por antecedentes criminais, foram enviados para o Acre. Muitos feridos.
Até Rui Barbosa se pôs contra a vacina, ponderando que, “assim como o Direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme”. A obrigatoriedade foi revogada. Em 1908 muitos morreram de cólera e a população acorreu, então, para tomar a vacina. Rui alterou sua posição e em 1917 homenageou Oswaldo Cruz, reconhecendo dever-se a ele a vitória sobre o flagelo e a diferença entre o “Brasil pesteado, que encontrou, e o Brasil desinfectado, que nos veio a legar”.
Em plena pandemia, antes do meio do mandato, Jair só pensa na reeleição. E por interesse político, como em 1904, lança suspeitas sobre a vacina e nega sua obrigatoriedade para contentar seguidores e atacar governadores, contrariando os valores básicos da Constituição e os termos da legislação específica por ele mesmo sancionada. E daí?
No campo legal, a Lei n.º 6.259/75 e o Decreto n.º 78.231/76 impõem a obrigatoriedade da vacina a todos os adultos, aos quais incumbe submeter à vacinação os menores sob sua guarda.
A prevenção da contaminação da covid-19 é, especificamente, disciplinada pela Lei n.º 13.979/20. No artigo 3.º da lei, dispõe-se: “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (…) III - determinação compulsória de (…) d) vacinação”. Essa conduta pode ser adotada, segundo o parágrafo 7.º desse artigo 3.º, pelos gestores locais de saúde, ou seja, pelos governadores, desde que cientificamente recomendada a providência.
Na Constituição da República consagra-se o valor da solidariedade no artigo 3.º, segundo o qual é objetivo fundamental da República construir uma sociedade livre, justa e solidária. Ser vacinado é ser solidário, pois não apenas se protege a si mesmo, mas todos da comunidade, visando a alcançar a imunização. A solidariedade, na expressão de Dworkin, vem a ser “considerar a vida dos outros como parte de suas próprias vidas” (Uma Questão de Direito, pág. 297), significando “a pessoa se abrir à outra, pensá-la, sofrer com”, no dizer de Arias Bustamante (Alternativa Ideológica: Comunitarismo, pág. 40), unidos todos por grande cordão umbilical.
Pela via da solidariedade social pode-se cimentar, orientar e construir concretamente nossa unidade como povo, surgindo em face desse objetivo da República o dever de solidariedade que a todos vincula (André Corrêa, Solidariedade e Responsabilidade, pág. 313).
Como transmissores, somos todos iguais perante o vírus. Ninguém, por nenhuma razão, pode colocar-se acima dos demais e negar-se a colaborar com a comunidade na precaução contra o malefício da infecção. Rejeitar a vacina, autorizada pela Anvisa, é atuar com desprezo pelo outro, em superioridade antissolidária.
Como elucida o Supremo Tribunal Federal (Oscar Vilhena, Direitos Fundamentais, pág. 388, reproduzindo votos de Celso de Mello), “a proteção à saúde representa um fator que associado a um imperativo de solidariedade social impõe-se ao Poder Público”, em qualquer plano da organização federativa, tomando medidas preventivas e curativas.
Em outro voto, Celso de Mello observa que a negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida com base nos direitos sociais significa a renúncia a “reconhecê-los como verdadeiros direitos” (pág. 399), em arrepio ao princípio da solidariedade.
Assim, campanha contra futura vacinação, por motivação política, significa não reconhecer a precaução eficaz contra o vírus como um direito da comunidade, a ser explicado e exigido de todos pelo chefe da Nação. Tal conduta infringe o artigo 7.º da Lei n.º 1.079/50, ou seja, pode ser crime de responsabilidade consistente em violar o direito social à saúde, pois incita a impedir a imunização, objetivo solidário de todo o povo. Que flagelo!
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
João Gabriel de Lima: A comédia Donald Trump pode estar perto do fim
Se previsões se confirmarem, americanos interrompem peça enquanto se pode ir dela
Comédias têm três atos, ensinam os clássicos da dramaturgia. Tragédias têm cinco. Se as projeções se confirmarem num país dividido, a comédia Donald Trump terá chegado à última cena com o esperneio final – e patético – do presidente dos Estados Unidos.
É possível delinear os três atos da comédia Trump a partir da leitura de O Povo Contra a Democracia, do alemão Yascha Mounk. O livro disseca esse tipo de político que, sem ser propriamente de esquerda ou de direita, fustiga uma e envergonha a outra: o populista.
O primeiro ato de um populista típico é vender soluções simples – e erradas – para problemas complexos. No mundo globalizado, governar não é trivial. Não é possível, por exemplo, criar empregos por decreto, tampouco evitar que eles migrem para outros países. Nem combater pandemias com poções mágicas. Líderes modernos – como Angela Merkel, Emmanuel Macron ou António Costa, para citar exemplos de vários lados do espectro político – são aqueles que conseguem explicar os limites de um governo a seus eleitores. Tratam-nos como adultos.
Um populista, por seu turno, infantiliza os que votaram nele. Trump prometeu tornar os Estados Unidos novamente grandes – e, ao longo de sua presidência, tratou os cidadãos americanos como crianças a quem se promete um chocolate para que parem de chorar. Inventou um muro para evitar que imigrantes mexicanos disputassem postos de trabalho nos Estados Unidos – e seu governo acabou sendo aquele em que mais americanos perderam seus empregos desde a Segunda Guerra. Eis o segundo ato da comédia populista. Os embustes vendidos na campanha eleitoral são esmagados pela realidade.
No terceiro ato, o populista diz que a culpa não é dele. Se algo deu errado, é porque os inimigos não deixaram o governante trabalhar. Por “inimigos” entendam-se a ONU, o Congresso, os “comunistas”, a imprensa, os chineses, os mexicanos. Ou, ainda, os cientistas que sugeriam medidas sensatas contra o coronavírus. Se as projeções se confirmarem, será porque a maioria dos americanos não engoliu a fake news dos inimigos e escolheu Joe Biden presidente da República, encerrando o terceiro ato. Fim da comédia. Cai o pano.
Trump já é, e continuará sendo, um caso de estudo em ciência política. Poucos o entenderam melhor que Mounk, intelectual que milita contra o populismo. Suas trincheiras são o site “Persuasion”, uma rede de defesa da democracia, e um podcast com o nome sugestivo “The Good Fight”, “O Bom Combate”. Nos episódios, Mounk entrevista expoentes da reflexão política num gradiente amplo de convicções, de Anne Applebaum a Francis Fukuyama.
O maior risco de um país governado por um populista é a reeleição. Neste cenário, o ciclo continua: o governante diz que a culpa não é dele, os eleitores acreditam e o reconduzem ao cargo. A peça evolui para um quarto ato, em que o populista dobra a aposta nas soluções simples e erradas. As cenas finais mostram a corrosão das instituições. Temos aí os cinco atos de uma tragédia. As cortinas da democracia se fecham.
Se as projeções se confirmarem, será porque a maior parte dos americanos, cansados de ser tratados como crianças, decidiram que a América deveria ser, novamente, gente grande no mundo. Se as projeções se confirmarem, os americanos terão evitado que a comédia se transformasse em tragédia, ao interromper a peça enquanto ainda era possível rir dela.
*Jornalista, escritor e professor da Faap e do Insper
Marco Aurélio Nogueira: Uma vitória para resgatar a democracia
Se confirmada, vitória de Biden mudará o estado de espírito do mundo
O processo é longo, os resultados demoram a sair, o sistema é intrincado e arcaico. A incerteza o acompanha até as últimas urnas. Ao final, o vitorioso carrega consigo o galardão da legitimidade, dada pelo povo, mas referendada de fato pelos 538 delegados do Colégio Eleitoral. É uma batalha democrática, mesmo que impregnada de seletividade e restrições.
Hoje em dia, as eleições norte-americanas tornaram-se um show televisionado, seguido por todos. Têm forte efeito simbólico, repercutem na política internacional, alteram o humor mundial. Especialmente numa época como a nossa, em que a democracia está sob o assédio de líderes e movimentos autoritários (nacionalistas, populistas) em diversos países. Donald Trump é um deles, o que mais longe levou a corrosão democrática da democracia, quer dizer, a problematização da democracia mediante a manipulação das regras de um sistema que se mantém formalmente democrático.
As eleições de 2020 não foram entre democratas e republicanos, por mais que os dois partidos tenham sido protagonistas. Tratou-se de uma disputa em torno da democracia, do seu significado, da sua defesa e valorização ou de sua desmoralização.
O caso Trump ainda será objeto de estudos sequenciais. Nunca um presidente norte-americano agrediu tanto o sistema democrático de seu país, nunca rompeu tantas regras de conduta, nunca mentiu tão cínica e compulsivamente. Valeu-se de falcatruas constantes, explorando o ressentimento, o medo e a raiva que se acumularam nos EUA com a “desindustrialização”, a vida digital, a perda de força relativa da economia americana diante do avanço implacável do dragão chinês e da mudança dos termos do comércio internacional. Encontrou à disposição uma população preparada para a charlatanice, cortada pelo desespero e pela desilusão, levada pela perda de referências a desconfiar do sistema democrático e a se atirar nos braços de personagens “heterodoxos”, abertamente demagógicos. As redes sociais fizeram com que o rastilho se espalhasse e adquirisse status de verdade.
O personalismo populista e raivoso de Trump, sua agressividade permanente, mobilizou parte importante dos norte-americanos. Apesar de tudo – a resposta pífia à pandemia, as mentiras, o desprezo pela vida, o abandono do meio ambiente, o egocentrismo narcísico, os maus tratos com imigrantes, o racismo, a misoginia explícita – ele conseguiu conquistar mais 4 milhões de votos quando comparado com as eleições de 2016. Tem milhões de seguidores no Twitter, no Facebook e no Instagram. É um poder de fogo não desprezível, que lança torpedos tóxicos a cada minuto, minando a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas.
Chega a impressionar que tal torrente de pessoas tenha aderido a uma plataforma tão mesquinha e reacionária.
Se confirmada, a vitória do democrata Joe Biden mudará o estado de espírito do mundo, impulsionará uma troca de oxigênio, afetará o modo como os cidadãos enxergam a democracia. O movimento em favor de uma internacional de extrema-direita, dita “conservadora”, perderá gás para se viabilizar. Depois do descaso e do reacionarismo antidemocrático de Trump, poderá haver novamente política democrática. Mas nada será automático. Primeiro porque os EUA estão polarizados de cima a baixo. Segundo, porque a democracia norte-americana enveredou por uma senda enviesada, torta, que distanciou o povo das instituições e da confiança nos procedimentos democráticos – uma senda que permanecerá aberta mesmo com Trump derrotado. Muito trabalho terá de ser feito para repor as coisas no lugar, abrindo espaços para as novas gerações, os movimentos de contestação e antirracistas, as mulheres. O momento pede um esforço articulado para neutralizar o populismo e repor a confiança dos cidadãos na política democrática. Sistemas, afinal, precisam saber se atualizar e cuidar de suas válvulas de escapa, para que não se inviabilizem quando as águas subirem e o vapor aumentar.
Os EUA são uma democracia mais imperfeita do que se imagina. Seu sistema político foi desenhado para beneficiar certos grupos da população mais do que outros, os estados em detrimento do poder federal. Tem um corte oligárquico acentuado. Sempre houve, por exemplo, manobras para dificultar o voto dos mais pobres, dos negros, dos menos instruídos. O próprio sistema é elitista, os votos populares não pesam como deveriam, os delegados ao Colégio Eleitoral são escolhidos de forma restrita. Com o trumpismo, o quadro piorou. O movimento conservador atual maltrata os fundamentos da democracia e mais recentemente passou não só a restringir a votação e a corromper a lógica política, como a judicializar o processo democrático, agindo em nome de um projeto que hostiliza a ideia de justeza das escolhas populares, que precisam ser acatadas. Como se vê nas eleições deste ano, faz-se o possível para roubar legitimidade dos resultados eleitorais.
A judicialização não é exclusividade norte-americana. Está instalada no mundo, reflete a crise da política em que se vive. Não é comum, porém, que se ponha em xeque a lisura das eleições ou que se as leve a decisões judiciais. Governantes autoritários e de extrema-direita é que costumam fazer isso. Bolsonaro mesmo, no Brasil, vive dizendo que teria havido fraude na sua própria eleição em 2018. A extrema-direita faz uso intenso e sistemático da deslegitimação dos processos políticos. Levanta suspeitas, faz acusações e ameaças para que se possa confundir e assustar os eleitores. A ideia é desconstruir a democracia liberal, implodir e manipular as regras e os procedimentos democráticos. É uma espécie de “golpe branco”, que interdita o diálogo, o pluralismo, a vigência de direitos e políticas sociais. Tudo contra o “sistema”, mas por dentro dele, usando-o contra a democracia.
O discurso de Trump na noite de 05/11, no qual ele acusou os democratas de estarem inventando “votos ilegais” para “roubar as eleições”, foi uma demonstração clara disso. Uma admissão dissimulada de derrota para o “sistema”.
A derrota de Trump não será o fim do trumpismo, que se enraizou na sociedade norte-americana. Será preciso acompanhar para ver como ela repercutirá no Partido Republicano e como será processada pela população. Perde a pessoa, não necessariamente o movimento por ele representado e por ele ativado. Também não é um recado a governantes que com ele se alinharam e que ajudaram a incensá-lo. Mas é uma indicação clara de que enquanto houver democracia, regras do jogo e eleições competitivas, a extrema-direita não poderá se proclamar dona do universo.
A presidência Biden não terá impacto imediato no Brasil, sobretudo porque o governo Bolsonaro agarrou-se ideologicamente a Trump e optou por seguir uma política externa obscurantista, de isolamento e auto-exclusão das negociações multilaterais. O País deixou de ter voz ativa no cenário internacional. O governo brasileiro poderá optar pelo aprofundamento da condição de “Estado-pária”, manter-se indiferente ao mundo, numa espécie de suicídio nacional. Biden é um democrata pragmático e que seguirá a via diplomática. Deverá, porém, exercer pressões não desprezíveis sobre a política ambiental brasileira e levar o ministério de Relações Exteriores a corrigir o discurso e buscar um realinhamento. Poderá contribuir para mostrar a farsa que o bolsonarismo montou no País.
A vitória democrata nos EUA não é boa notícia para Bolsonaro. Mas poderá ser ótima para o Brasil.
Terá impacto sobre as eleições presidenciais brasileiras de 2022? É difícil dizer, há dois anos de distância e sem considerar os resultados das eleições municipais de 2020. Com a derrota de Trump, o bolsonarismo tenderá a perder parte da “narrativa” e sofrer algum abalo; as correntes democráticas ganharão um fôlego adicional e serão instigadas a procurar maior unidade e coordenação. Mas tudo continuará dependendo das políticas que o governo vier a praticar até 2022 e da capacidade que tiverem os democratas brasileiros de avançarem de fato em termos de articulação. Sem que se forme uma rede sólida de entendimentos unindo liberais, conservadores democráticos, socialistas e socialdemocratas o processo político seguirá curso errático e tenderá a se inclinar em sentido não democrático.
Agora, é preciso esperar o fechamento completo das urnas, o desfecho dos questionamentos judiciais e a posse do novo presidente.
Bolsonaro está obrigado a telefonar para Biden e lhe desejar sorte. O presidente brasileiro, porém, não é dado a tais cordialidades, é mais tosco e bruto. Fará algo protocolar, mas por baixo do pano deverá mergulhar na nostalgia de um tempo em que podia se vangloriar de ser “amigo de Trump”.
Luiz Carlos Trabuco Cappi: Superar a acomodação
Há muito tempo o País cresce de forma letárgica, 1% ou 2%, isso quando não temos recessão
Um dos pensadores mais influentes do século 20, Jean Piaget definiu o termo acomodação como uma etapa natural do processo evolutivo. Podemos dizer que é nessa fase em que nos encontramos, com a economia paralisada diante das atuais circunstâncias.
Passada a fase mais crítica da covid-19, chegou a hora de pensar no futuro que queremos para o Brasil, a economia e a nossa cidadania. Vamos deixar de lado, por enquanto, a hipótese de uma segunda onda da pandemia. O País sairá dessa crise sanitária com problemas econômicos sérios, mas que podem ser resolvidos, e com o desafio de voltar a crescer num ritmo robusto e duradouro. Temos os alicerces para isso: instituições sólidas, democracia, sociedade civil ativa e influente, boas universidades, boas empresas, bons profissionais.
O Brasil não é um país pobre, pequeno ou irrelevante no plano mundial. Já é tempo de reorganizar todos esses ativos com a finalidade de reingressar num ciclo de desenvolvimento econômico e de progresso social compatível com a nossa história e com as nossas possibilidades.
Devemos nos levantar e seguir em frente.
Entre os problemas a resolver está a grave questão fiscal. Os gastos essenciais feitos pelo governo em saúde e no auxílio emergencial provocaram um déficit que deve elevar a dívida pública a algo próximo de 100% do PIB. A parada repentina da economia em 2020 fez subir o número de desempregados para 14 milhões e provocou o fechamento de empresas. É preciso um programa de assistência a vulneráveis, responsabilidade da qual não podemos fugir.
Os manuais de economia têm soluções para crises fiscais, insolvência, desemprego, mas a resposta definitiva é o crescimento econômico consistente. Essa é a pauta que devemos colocar no topo das prioridades do País e fazê-la avançar com foco e energia.
A primeira barreira a ultrapassar, como já vimos, é a da acomodação, um fenômeno natural depois de décadas de programas de estabilização e ajustes, seja por causa da hiperinflação e das crises cambiais, seja, como agora, o descontrole fiscal.
Há muito tempo o País cresce de forma letárgica, 1% ou 2%, isso quando não temos recessão. Com essa situação, damos as costas às nossas desigualdades sociais. Sem crescimento, é impossível combater a miséria e acirram-se os conflitos de interesses.
A primeira coisa a resgatar, portanto, é a ambição de assumir o crescimento como meta central. Na virada das décadas de 1930 e 1940, o País optou pela industrialização e urbanizou-se. A renda per capita dobrou nas primeiras quatro décadas do século 20 e quintuplicou nos 40 anos seguintes.
No referido ciclo, surgiram a moderna indústria brasileira, as grandes obras de infraestrutura e a expansão das fronteiras agrícolas. O sistema financeiro ganhou escala, capilaridade e capacidade de fomentar a economia. Foram anos de crescimento contínuo e a taxas muito mais altas do que as que vemos hoje.
Entre 1946 e 1957, o PIB brasileiro cresceu, em média, 6,33% ao ano. No ciclo seguinte, entre 1958 e 1978, a taxa média anual atingiu patamares chineses: 7,39%.
A partir desse ponto, lidando com fatores como hiperinflação e crise da dívida externa, perdemos a perspectiva do crescimento. A estabilização econômica passou a ser a tônica. Entre 1979 e 2003, a taxa média anual retrocedeu para 2,26% e chegou a 3,80% no período entre 2004 e 2012. Os piores resultados se deram em 2015 e 2016, quando o PIB ficou negativo respectivamente em 3,55% e 3,31%. Desde 2017 não crescemos além de 1,1% ao ano.
Assim como a hiperinflação foi resolvida com o Plano Real, agora precisamos superar a estagnação com um programa abrangente de desenvolvimento e modernização que priorize a educação, a inovação, a tecnologia e a infraestrutura, sem as quais nossas iniciativas serão efêmeras, parciais e isoladas.
Dificuldades fazem parte da evolução humana – não podemos nos vitimizar em razão das ilusões perdidas. É hora de afirmar nossa vocação para o desenvolvimento.
PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. ESCREVE A CADA DUAS SEMANAS
Eliane Cantanhêde: Caindo na real
Se Trump perder, arrasta junto a política externa e os delírios internacionais de Bolsonaro
O Brasil é o Brasil, o presidente Jair Bolsonaro é o presidente Jair Bolsonaro. O que é bom para o Brasil não é necessariamente bom para Bolsonaro e a recíproca é verdadeira. Aliás, muitas vezes é o oposto. O risco de derrota de Donald Trump é também de Bolsonaro, com sua política externa e seus delírios ideológicos, mas não para o Brasil, que lucra com um mundo melhor.
Com Trump e os Estados Unidos era uma coisa, sem ambos é outra. O projeto de um mundo de extrema direita vira um sonho (ou pesadelo) de uma noite de verão. É hora de acordar e cair na realidade – que, aliás, não está fácil, com pandemia, economia quebrada, dívida pública descontrolada e milhões de desempregados. O caos não é ideológico, é real.
Em 2018, após a vitória do pai, o deputado Eduardo Bolsonaro patrocinou a Cúpula Conservadora das Américas, em Foz do Iguaçu, como contraponto ao Foro de São Paulo, das esquerdas, mas a sociedade não deu bola para um nem para o outro. Em 2019, no primeiro ano de governo, ele voltou à carga, anunciando “o maior evento conservador do mundo” em São Paulo, mas só se ficou sabendo que o filho 03 foi recebido aos gritos de “mitinho” e que o seu guru só apareceu no telão, direto da Virgínia.
O 03 orna a parede da sala de jantar com um rifle (ou sei lá o que é aquilo), fritou muito hambúrguer nos EUA, desfilou com o boné da reeleição de Trump e passou vergonha ao ser indicado pelo papai para ser embaixador em Washington. Por sorte (dele e do Brasil), os senadores avisaram que era um pouco demais.
A ideia morreu, mas o delírio conservador – e autoritário – sobreviveu. Em fevereiro deste ano, o chanceler Ernesto Araújo – que definiu Trump como o único Deus capaz de salvar o Ocidente – foi a Washington para a criação, com EUA, Hungria e Polônia, de uma “Aliança Internacional pela Liberdade Religiosa”. O carimbo de “religiosa” escamoteava algo muito mais ambicioso.
O passo seguinte seria a ida do próprio presidente Bolsonaro à Hungria e à Polônia, ainda neste segundo semestre, para consolidar a aliança da extrema direita. Por ironia, a pandemia de Covid 19, tratada com igual ignorância por Trump e sua réplica brasileira, impediu a empreitada. Sem a reeleição de Trump, o que Bolsonaro poderia fazer agora em Budapeste e Varsóvia? Só chorar as mágoas.
O democrata Joe Biden não tem nada de socialista, diferentemente do que disse Trump e os cubanos e venezuelanos da Flórida engoliram. Biden é um liberal na economia, antirracista, defensor de minorias, direitos humanos, meio ambiente Acordo Climático de Paris, ONU, OMC e OMS. Eleito, interromperá as investidas de Trump e dos Bolsonaro, calcadas em ódios e armas, sob inspiração do mentor da extrema direita internacional, Steve Bannon, que nem Trump aguentou e anda às voltas com a polícia.
Sem Trump e EUA, evaporam o projeto ultra conservador e política externa de Bolsonaro. Bolsonaro chutou China e Europa porque tinha Washington na retaguarda, mas, agora sozinho, repete o muxoxo de que as potências querem nos tomar a Amazônia e empurrar a América do Sul para a esquerda. Não tem pé nem cabeça tanto que, sob a perspectiva de vitória de Biden, as Bolsas subiram, o dólar caiu no Brasil. Esse mercado está cada vez mais socialista…
Com a cabeça no lugar, o vice-presidente Hamilton Mourão trata a China com pragmatismo e lembra que a relação entre Brasil e EUA é entre Estados, não entre pessoas. É um claro contraponto a Bolsonaro, tão candidato a perdedor quanto Trump. O Brasil, porém, não perde nada com o equilíbrio político e pessoal de Joe Biden e a obrigação de voltar fazer política externa. Bolsonaro e Ernesto Araújo são capazes de fazer?