o estado de s paulo
Celso Ming: O rombo fiscal e o risco de hiperinflação
Paulo Guedes pode ter exagerado no risco de hiperinflação, mas ministro tem razão a respeito da deterioração das contas públicas do Brasil
O ministro da Economia, Paulo Guedes, pode ter carregado demais nas tintas, mas tem de ser levado a sério na sua advertência de terça-feira de que “o Brasil pode ir para a hiperinflação se não rolar a dívida pública satisfatoriamente”.
À primeira vista, parece fora de propósito falar em risco de hiperinflação quando a evolução do custo de vida nos primeiros dez meses deste ano não passa de 2,22%; quando já se tinha como favas contadas a reversão estrutural da inflação; e quando, apesar da atual recaída, que empurrou a inflação de outubro para 0,86%, o Banco Central mantém os juros básicos (Selic) estacionados nos 2,0% ao ano desde agosto deste ano.
No momento, uma hiperinflação não passa pelas telas dos radares. O próprio ministro tem dito que a recuperação da economia já começou e, com ela, espera aumento da arrecadação. Embora o IGP-M tenha disparado para 18,10% nestes dez primeiros meses e, por isso, tenha complicado o reajuste anual dos aluguéis, em consequência da cavalgada dos preços no atacado e da puxada nas cotações do dólar, a inflação continua sob controle. Como mostra o Boletim Focus, do Banco Central, o mercado continua esperando uma inflação em 2020 de 3,02%, portanto abaixo da meta (que é de 4,0%). E, para 2021, as projeções do mercado são de uma inflação de 3,11% (com meta de 3,75%).
Os próprios assessores do Ministério da Economia se viram na obrigação de negar que esse aviso devesse ser interpretado como “terrorismo fiscal”.
Mas o ministro tem razão quando adverte para a ameaça de que a forte deterioração das contas públicas e de aceleração da dívida pode arrastar rapidamente a economia para uma situação de dominância fiscal, aquela em que o Banco Central não poderá fazer nada para evitar a disparada das cotações do dólar e o avanço da inflação.
A frente fiscal só pode ser enfrentada eficazmente de duas maneiras: por meio de aprovação de um orçamento equilibrado e por meio de rápido andamento dos projetos de reforma administrativa e tributária. Sem isso, a falta de confiança tenderá a empurrar as cotações do dólar para a cumeeira e, a partir daí, será inevitável que a alta dos preços dos importados e dos demais produtos nacionais cotados em dólares (como combustíveis, derivados de soja, de milho e de trigo) seja repassada para os preços em reais.
E, no entanto, os políticos do Congresso se comportam como se a questão fiscal não fosse prioritária. A todo momento, deputados e senadores sugerem que nessa hora de calamidade não se pode ficar ouvindo demais os xiitas da contabilidade, que saúde não tem preço, que o governo precisa parar de sentar em cima do cofre e que “lá na frente, quando der, serão consertadas as contas públicas e a dívida”.
O presidente Bolsonaro não se mostra nem um pouco preocupado com o equilíbrio fiscal. Quer aprovar de uma vez o programa Renda Cidadã, destinado à população de baixa renda, sem ao menos incorporar a ele os inúmeros programas de subsídios e de renúncia tributária, para não “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”. Por essas e outras, a inflação preocupa, sim.
Zeina Latif: Sinais perturbadores
A falta de perspectivas de reformas enfraquece os alicerces da economia
Choques econômicos produzem mudanças de preços nos mercados. Os chamados preços relativos são importantes válvulas de ajuste para levar a economia para seu novo equilíbrio de forma eficiente. Porém, há algo maior ocorrendo na crise atual. Alguns preços exibem dinâmica que denunciam problemas na política econômica.
Quando ocorre uma quebra de safra, por exemplo, o aumento de preços agrícolas permite eliminar o excesso de demanda em relação à menor oferta. Ações governamentais para conter altas de preços podem trazer alívio aos consumidores no curto prazo, mas desestimulam a produção, contratando um problema maior adiante.
Muitas vezes, há rigidez de preços, como nos salários, o que dificulta o corte da folha de empresas que enfrentam queda no faturamento. Com leis trabalhistas flexíveis, o ajuste é mais rápido e o novo equilíbrio será com menos desemprego.
Nesta crise, teria sido importante reduzir adicionalmente as amarras nas relações trabalhistas, ao menos durante a calamidade pública, para permitir cortes de salários fora do programa de sustentação do emprego do governo. Um tema que, certamente, demandaria muito diálogo com o STF e o Congresso.
A taxa de câmbio é um importante preço na economia. Com a piora das condições econômicas e a busca de portos seguros por investidores, a cotação do dólar sobe. Como resultado, há uma melhora do saldo comercial, suavizando o ciclo econômico.
A pressão cambial nos últimos meses, no entanto, não reflete mais o choque da pandemia, sendo muito mais uma reação aos equívocos do governo, principalmente na falta de compromisso crível com reformas fiscais estruturais, que se tornaram ainda mais urgentes com a crise. O real descolou-se muito do patamar e da tendência média de moedas de países emergentes. Não se trata de mero ajuste a um choque transitório, mas sim uma pressão mais perene, que denuncia problemas na política econômica, o que impacta a inflação.
A ideia de muitos analistas de que a deterioração fiscal não geraria qualquer risco inflacionário, devido à fraqueza da economia, mostrou-se precipitada. Por outro lado, é curioso que alguns vejam o câmbio e a inflação como parte do ajuste fiscal.
É verdade que, diferentemente do passado, quando a alta do dólar agravava o quadro fiscal, agora ocorre o oposto. A dívida líquida do governo cresce menos com a alta do câmbio, pois o valor das elevadas reservas internacionais em reais aumenta. E alta da inflação no atacado, puxada pelo câmbio, ao inflar o PIB nominal (a inflação da economia como um todo sobe mais que a inflação ao consumidor), reduz a dívida como proporção do PIB. Em um exercício simples, a cada 10% de depreciação cambial, com Selic (por ora) estável, a dívida líquida/PIB cai em torno de 1pp. Há, portanto, um pequeno “refresco” de curto prazo, mas, sozinha, a depreciação não impede o crescimento da dívida ao longo do tempo.
Alguns acreditam que a inflação mais elevada ajudaria a reduzir o déficit público, em uma alusão ao passado, quando a inflação corroía as despesas e preservava a arrecadação. Não mais, pois há elevada indexação de despesas. Em 2019, as despesas corrigidas, direta ou indiretamente, pela inflação chegaram a 68% do total.
Além disso, a aceleração da inflação aumenta o desafio para cumprir a regra do teto, pois o teto de despesas no orçamento é calculado com base na inflação anual em junho do ano anterior, enquanto boa parte das despesas é indexada ao salário mínimo, corrigido pela inflação (INPC) do final do ano.
Reações equivocadas ao choque fazem com que ajustes da taxa de câmbio sejam mais intensos, atrapalhando a superação do próprio choque, por conta da inflação e da elevada volatilidade cambial. Não estamos diante apenas de um quadro de ajuste transitório para um novo equilíbrio da economia, mas, sim, de algo mais preocupante: o enfraquecimento dos alicerces da economia pela falta de perspectiva de reformas.
*Consultora e doutora em economia pela USP
José Serra: Energia renovável e recuperação
O Brasil é a maior potência ambiental e pode se beneficiar das transformações do setor
A aprovação do novo marco do saneamento pelo Congresso Nacional, em julho deste ano, proporcionou, como previ naquela ocasião, a discussão e aprovação de uma pauta de retomada do crescimento pós-pandemia, voltada para a melhoria da produtividade. Publiquei um conjunto de artigos sobre investimentos em infraestrutura: um novo marco regulatório para as ferrovias e no setor de energia, com a aprovação urgente de mudanças na lei do petróleo, para possibilitar a realização de leilões em 2021, e nas leis do gás natural e do setor elétrico.
A cada ano que passa o mundo valoriza mais o que é feito a partir das energias renováveis. A vitória de Joe Biden reforçará essa agenda. O presidente eleito dos Estados Unidos deixou bem claro que dará uma guinada na política energética americana, retornando ao Acordo de Paris. Sua presidência deve lançar as bases para a descarbonização mais profunda e radical da História do país. O novo presidente promete investir US$ 2 trilhões em apoio às energias renováveis, para tornar os Estados Unidos totalmente independente do carvão e do petróleo até 2035. Existe a intenção de tornar toda a nação neutra em carbono até 2050.
O que isso tem que ver com o Brasil? Quais são as oportunidades que se podem abrir para o nosso desenvolvimento econômico e social? Já pensou? Um selo brasileiro de produto à base de energia renovável? Seria possível e altamente benéfico para o planeta!
O Brasil é a maior potência ambiental do mundo e pode se beneficiar fortemente das transformações do setor de energia global, com participação crescente das renováveis, da geração solar e eólica e também da inovação no armazenamento de energia. As baterias vão criar novas possibilidades, e tudo leva a uma expansão cada vez mais acelerada das renováveis. Em futuro não muito distante poderemos transformar-nos em potência energética se nos engajarmos nessa nova agenda.
Cabe lembrar que o consumo eficiente também pode ser o caminho mais fácil para atender às demandas futuras. A tecnologia hoje permite que redes inteligentes de energia conectem todos os seus consumidores, com uma riqueza de detalhes e dados que favorecem um sistema complexo e integrado, como o que já existe no Brasil.
Um exemplo bem cotidiano, que já é realidade em outros países, são os eletrodomésticos – como a máquina de lavar roupa – que esperam o momento de preço baixo da energia para funcionar e são automaticamente acionados. Em breve essa realidade passará a fazer parte dos lares brasileiros. Num simples ato de lavar roupas, o consumidor detém um poder de escolha que é bom para ele mesmo, para o sistema elétrico e para o meio ambiente.
É indispensável integrar as energias. Não esqueçamos que, no Brasil, temos uma frota de veículos movida a etanol, em última instância um derivado da “energia solar”. Em breve já poderemos sonhar com uma cena em que os consumidores geram energia com seus carros a etanol, como células combustíveis injetando energia no sistema. Ou mesmo carregando seus carros com energia de painéis solares. Essa energia também pode ser armazenada em baterias e utilizada quando necessário.
Também chegou a hora da diversidade, da integração, da competição e de dar poder cada vez maior aos consumidores. E, ademais, reconhecer que as soluções baseadas exclusivamente na intervenção dos governos e com dinheiro público se esgotaram. Esse gigantesco potencial de integração, pela via do mercado, vai permitir ao Brasil uma relação proveitosa com nossos vizinhos latino-americanos. Em conjunto, temos energia barata, matérias-primas, mão de obra e mercado para suportar um projeto que nos devolva o protagonismo na economia global.
Para que todo esse futuro se torne realidade precisamos modernizar nosso setor de energia. O caminho certo para criar um ambiente que atraia o capital privado e promova a concorrência passa pela nova lei do gás, pela atualização de regras do setor elétrico, por específicas para renováveis e biocombustíveis baseadas na inovação e na competitividade, e não em subsídios eternizados. Assim, vamos reforçar as estruturas de governo e das agências reguladoras com as vacinas que nos protejam dos riscos da captura do sistema por movimentos oportunistas.
No momento em que pensamos na recuperação do Brasil pós-pandemia, devemos pensar num processo estruturado de desenvolvimento com base na competitividade. A energia é uma chave geral desse projeto.
Só o debate democrático permitirá equilibrar os interesses diversos e fazer as escolhas certas. E o eixo desse debate está colocado nos projetos em apreciação no Congresso. Precisamos todos participar desse debate.
A agenda da energia reflete, no campo econômico, as demandas da sociedade brasileira. Ela envolve diversidade, maior poder para as pessoas, maior concorrência e transparência – e contribui para fazer a riqueza do País chegar a todos os brasileiros. Tão logo terminem as eleições municipais deve ser retomada com prioridade, fazendo da energia o combustível e o motor do nosso desenvolvimento.
*Senador (PSDB-SP)
Sergio Fausto: Lições para o Brasil da eleição nos Estados Unidos
A mais óbvia: há que construir uma ampla coalizão e tirar votos do campo adversário
O título deste artigo deve ser lido com um pé atrás. As características do sistema partidário e do processo eleitoral são muito diferentes nos dois países. Ainda assim, a vitória de Joe Biden sobre Donald Trump deixa lições úteis para as forças de oposição ao governo Bolsonaro.
A mais óbvia delas é a necessidade de construir uma ampla coalizão e subtrair votos do campo adversário. Quando o país está praticamente dividido em duas metades iguais, não basta contar com todos os votos do seu próprio campo político para assegurar a maioria eleitoral. Nos Estados Unidos, a questão se colocou de imediato e influenciou as próprias primárias do Partido Democrata. Aqui, imagina-se que esse seja um problema para o segundo turno. Trata-se de um engano. Em sociedades destrutiva e perigosamente polarizadas, é preciso construir uma alternativa já para o primeiro turno.
Como a chapa Joe Biden-Kamala Harris conseguiu obter apoio maciço de sua base política e, ao mesmo tempo, captar votos de quem havia votado em Trump quatro anos atrás? A escolha dos personagens importa. A soma das características políticas e pessoais dos candidatos democratas explica em boa medida o sucesso da campanha do partido para a Casa Branca: ele, um político capaz de ser aceito, mesmo sem entusiasmo, por um amplo contingente de eleitores; ela, uma mulher negra que, sem puxar a chapa muito para a esquerda, acrescentou à dupla a marca identitária valorizada pelos eleitores mais jovens e “progressistas”. E mais: ele, um homem crivado pela tragédia, pai amoroso, querido pela mulher, pelos amigos e mesmo por muitos adversários, por sua simpatia natural; ela, uma filha de imigrantes que se integrou ao establishment por trabalho e mérito, ex-procuradora geral da Califórnia, “liberal” nos costumes, porém “firme” em matéria de lei e ordem.
Mas na política, como nas artes cênicas, não basta escolher os personagens, é preciso criar o enredo. Ou melhor, é necessário que atores e narrativa sejam congruentes entre si e adequados ao momento. A campanha democrata produziu uma mensagem feliz para definir o que estava em jogo: a battle for the soul of America (uma batalha pela alma dos Estados Unidos). Feliz porque permitiu uma conexão emotiva dos eleitores com a campanha e estabeleceu o terreno onde o Partido Democrata pretendia jogar o jogo: o campo dos valores e do caráter. A ressonância religiosa do slogan é evidente. Bela sacada num país, como o nosso, em que o sentimento religioso é estendido e profundo.
Ao contrário dos republicanos, os democratas não mobilizaram a religiosidade para demonizar o adversário, mas sim para convocar “our better angels” (os nossos anjos bons, em tradução livre) a enfrentar os desafios do país. Não foi uma campanha, como a de Trump em 2016, para insuflar a raiva e o ressentimento, e sim para assoprar a chama do “melhor lado de todos os americanos e americanas”. Foi uma campanha contra Trump, mas não contra os seus eleitores, referidos sempre como “fellow americans” (compatriotas), e não como “a basket of deplorables” (um monte de gente deplorável, como disse Hilary Clinton em 2016).
A batalha pela alma dos Estados Unidos pôs na linha de frente alguns poucos valores básicos – decência, civilidade, solidariedade, etc. – e os traduziu em termos concretos nas propostas de fortalecimento da proteção social (saúde, em particular), transição para uma economia de baixo carbono (com geração de renda e empregos) e luta contra o racismo estrutural (apresentada como uma luta pela igualdade). Dessa maneira projetou uma visão contrastante com a de Trump sobre o que são e o que podem ser os Estados Unidos, capaz de ser compreendida e reproduzida pelo eleitor comum.
Cada país é um país, cada eleição é uma eleição. Faltam dois anos para a próxima eleição presidencial no Brasil. É muito ou pouco tempo? Depende para quê. Para escolher os personagens é muito, mas para criar o enredo está mais do que na hora de começar. Num país com vários e pouco estruturados partidos, onde o personalismo impera, a escolha dos personagens consome tempo e energia excessiva em prejuízo do que deveria ser o essencial, principalmente a esta altura: com base em que valores, em torno de que propostas e por meio de que mensagem política é possível formar uma aliança de forças suficientemente ampla e consistente para derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo e governar o País a partir do próximo mandato presidencial?
Para ajudar na resposta recorro à sabedoria alheia. Perguntado num jantar com “representantes da sociedade civil”, cada qual com sua bandeira, sobre como deveria ser o programa de uma “frente progressista” em 2022, um governador de Estado, relativamente jovem, mas macaco velho na política, respondeu: deve ser mínimo, conter apenas o essencial e falar aos corações e mentes do brasileiro comum, homens e mulheres, pretos e não pretos, cristãos e não cristãos, homo e heterossexuais, na condição de cidadãos brasileiros.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
William Waack: As riquezas dos maricas
Bolsonaro é o pior inimigo de si mesmo quando se trata de ridicularizar sua autoridade
Era óbvio e esperado que, ao perder a aposta feita em Donald Trump, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro fosse incluído na coluna “perdedores” em todas as listas de governantes que se deram mal com a vitória de Joe Biden. Não são poucos, e incluem países tão diferentes entre si como Israel, Arábia Saudita, Turquia, Reino Unido e Hungria. Mas o que a língua solta do presidente está produzindo é uma rápida perda da própria autoridade
A popularidade que resulta de auxílios emergenciais é tão efêmera quanto a duração desses auxílios, e até aqui o governo não conseguiu dizer como vai incluir uma renda básica no Orçamento do ano que vem (que, aliás, não foi votado). Sim, é popularidade que pode ser reconquistada, ainda que a custo literalmente alto para os cofres públicos – e enquanto a economia não sofrer desarranjos maiores, fantasma que o próprio ministro Paulo Guedes anda alimentando.
Com autoridade é diferente. Um presidente não precisa necessariamente ter grande autoridade para ser popular, mas precisa ser levado a sério para governar. A autoridade de Bolsonaro está sendo diluída por ele mesmo ao cair no ridículo, um ácido capaz de corroer qualquer pedestal. Personagens que dizem coisas “folclóricas”, toscas, ofensivas, desvinculadas da realidade, abusivas ou mentirosas avançam até o ponto em que afundam nas próprias palavras.
A briga de Bolsonaro com a vacina “chinesa” conseguiu gerar desconfiança em qualquer vacina, justamente quando os especialistas alertam para o fato de que o Brasil provavelmente enfrentará uma segunda onda de covid-19, tal como acontece no momento na Europa e nos Estados Unidos. E a politização afeta a confiança em duas instituições essenciais para saúde pública: as que produzem a vacina (como o Instituto Butantan) e as que regulam sua aplicação (como a Anvisa). O resultado geral é péssimo para todos os governantes e causou séria apreensão nos governadores.
Da mesma maneira, pode-se argumentar indefinidamente sobre quem atrasa mais a aprovação das reformas que lidem com a questão fiscal, se é o Congresso ou se é a equipe do Ministério da Economia. Mas, no sistema político brasileiro, é o presidente quem tem o poder de ditar a agenda política, e a pergunta cada vez mais pesada no ar é se alguém sabe o que Bolsonaro pretende além de manter popularidade a um custo que a passagem do tempo só torna mais caro do ponto de vista fiscal.
O grau de isolamento internacional do Brasil por conta das apostas de Bolsonaro é inédito, ainda que lhe reste o consolo de estar na companhia de países como China, Rússia e México, que até aqui se recusam a parabenizar Joe Biden pela vitória nas eleições presidenciais. Ocorre que esses três países tem contenciosos importantíssimos com os Estados Unidos, enquanto Bolsonaro está aparentemente ávido para encontrar um: a Amazônia.
Biden mencionou US$ 20 bilhões de possível ajuda, o agronegócio tecnológico e nossa matriz energética têm tudo para ganhar num impulso rumo à economia “verde”, mas o presidente prefere falar de “pólvora” quando esgotar a diplomacia em relação à pressão americana em questões ambientais. No caso brasileiro, nossa diplomacia esgotou-se ao exercer a ridícula opção preferencial de se subjugar a Donald Trump. Os que realmente possuem “pólvora”, como China e Rússia, não ficam falando disso.
De qualquer forma, faltou Bolsonaro esclarecer como pretende usar eventualmente pólvora para enfrentar os malandros de olho nas nossas riquezas, se ele considera que preside um país de maricas.
*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN
O Estado de S. Paulo: Pessimistas sobre luta jurídica, aliados de Trump já falam em volta em 2024
Assessores admitem privadamente que batalha judicial é uma miragem e oficialização da vitória de Biden é uma questão de tempo; para arrecadar fundos, presidente criou comitê que deve ser usado para manter o Partido Republicano em suas mãos
WASHINGTON - Enquanto o presidente eleito dos EUA, Joe Biden, recebe ligações de líderes mundiais e monta seu gabinete, Donald Trump segue encastelado na Casa Branca. Após seis dias sem ser visto publicamente, ele foi ontem a um evento no Cemitério de Arlington, no Dia do Veterano, mas não falou com a imprensa. Privadamente, seus aliados mais próximos admitem que a batalha legal é uma miragem e muitos já falam em lançá-lo como candidato em 2024.
Trump desafia sua derrota na Justiça em seis Estados – até agora, nenhuma ação relevante foi adiante. O fracasso levou seus principais aliados, entre eles Ronna McDaniel, presidente do Partido Republicano, Corey Lewandowski, ex-chefe de campanha, e Mark Meadows, seu chefe de gabinete, a reconhecerem, em conversas privadas, que a oficialização da vitória de Biden é menos uma questão de “se” do que de “quando”.
Por isso, alguns republicanos importantes já apoiam a ideia de uma nova candidatura em 2024, apesar de insistirem publicamente que a eleição “não acabou”. A 22.ª Emenda da Constituição diz que um presidente só pode ser eleito duas vezes. Na história recente, dois perderam a reeleição, mas não se candidataram de novo: Jimmy Carter, em 1980, George Bush pai, em 1992.
Após Joe Biden ser declarado vencedor das eleições, Trump criou um comitê de ação política, uma espécie de fundação autorizada a arrecadar fundos que podem ser gastos em viagens, pesquisas e propaganda política. O objetivo é garantir sua influência e manter o Partido Republicano em rédeas curtas, mesmo fora da Casa Branca.
“O presidente sempre planejou fazer isso, ganhando ou perdendo”, afirmou Tim Murtaugh, porta-voz de sua campanha. “A ideia é apoiar candidatos e questões que lhe interessam, como o combate à fraude eleitoral.”
Muitos aliados já sugerem abertamente que Trump concorra novamente. “Eu o encorajaria seriamente a pensar no assunto”, disse o senador Lindsey Graham à Fox News Radio. Mick Mulvaney, ex-chefe de gabinete da Casa Branca, disse não “ter dúvidas” de que ele será candidato em 2024. “Acho que o presidente continuará envolvido na política e estará na lista de candidatos que concorrerão em 2024”, disse. Segundo o site de notícias Axios, dois assessores teriam ouvido do próprio Trump a intenção de se candidatar outra vez.
O desafio, no entanto, é grande. Paul Waldman, colunista do Washington Post, acredita que Trump deixará sempre subentendida a chance de se candidatar para não perder a atenção da mídia e da base de eleitores. No entanto, ele precisará vencer vários obstáculos.
O primeiro é a Justiça. O presidente enfrenta investigações criminais em Nova York por fraude e sonegação. O segundo são as dívidas. Ele tem centenas de milhões de dólares em empréstimos que vencem no ano que vem – e suas empresas devem precisar de dinheiro. Por fim, haverá concorrentes dentro do partido, esperando para herdar o espólio de Trump, que terá 78 anos em 2024. / W.Post
Vera Magalhães: Masculinidade frágil
Derrota de Trump e agruras do 01 abalam confiança de Bolsonaro
Jair Bolsonaro é uma cobaia ambulante para qualquer tese psicanalítica. Ontem, diante de tantos “eventos adversos graves” para si, sua família e o seu projeto político, o presidente surtou. Como sempre acontece com ele, esses surtos envolvem ao mesmo tempo decisões graves, com consequências para o País, e arroubos que funcionam mais como cortina de fumaça para tentar esconder suas fragilidades.
Vamos separar o joio do trigo. Ou o joio do joio, pois não há trigo nesse silo.
No rol dos absurdos com graves consequências para o Brasil está a decisão da Anvisa de paralisar os testes da Coronavac por conta de um efeito adverso grave com um entre mais de 13 mil voluntários dos testes clínicos da vacina desenvolvida em parceria entre o Instituto Butantan e o laboratório Sinovac. Acontece que a morte desse paciente nada teve a ver com a vacina.
Sem fazer questão de esconder o caráter puramente político da decisão, que escancara o aparelhamento da agência, o presidente se arreganhou: “Mais uma que Bolsonaro ganha”.
A masculinidade frágil é um fenômeno que atinge homens heterossexuais inseguros, que precisam a todo momento reafirmar sua superioridade. Ganha? O presidente comemora vitória sobre seu adversário João Doria Jr. sapateando desrespeitosamente nos cadáveres dos mais de 162 mil brasileiros mortos pela covid-19, e especialmente no desse paciente transformado em bode expiatório.
Como esses surtos denotam justamente o contrário de “vitória”, vê-se que Bolsonaro sentiu as derrotas recentes. A começar pela de Donald Trump, para a qual passou recibo na “superterça” da alucinação. Numa solenidade oficial, buscou ajuda do infalível Ernesto Araújo para dizer que Joe Biden, a quem chamou de postulante a chefe de Estado (a negação é outra característica da psique bolsonarista) estaria ameaçando nossa soberania e, nesse caso, não bastaria a diplomacia. “Tem que ter pólvora, senão não funciona.” É de um ridículo de dar pena.
Não faltou, claro, o tradicional comentário homofóbico, também recheado de desdém com a morte. Diante das perdas para a covid-19, sapecou que temos de deixar de ser “um país de maricas”.
Até quando o Brasil terá de aguentar esse tipo de postura por parte de seu mais importante mandatário?
Para as bravatas e as grosserias que denotam a masculinidade frágil há pouco a fazer, a não ser esperar as urnas e que a onda de racionalidade que ajudou a varrer o trumpismo nos Estados Unidos sopre para cá.
Mas a paralisia da pesquisa de uma de várias vacinas que podem nos livrar do flagelo da pandemia é outra história. Nesse caso é urgente e inescapável que os que têm prerrogativa ajam. É preciso que Ministério Público da União, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Instituto Butantan ou entidades da sociedade civil tomem a frente de uma ou múltiplas ações com pedido de cautelares no Supremo Tribunal Federal para sustar a decisão da Anvisa.
Bolsonaro e o almirante Antonio Barra Torres, o bolsonarista no comando da agência, sabotam o combate à pandemia tendo como objetivo atingir um adversário político. A fala do presidente é prova cabal contra si, e nela há vários indícios de que ele recebeu informações que a agência não poderia lhe fornecer.
E o Supremo precisa voltar a conter os ímpetos letais de um presidente atordoado por derrotas políticas, como o péssimo desempenho de seus candidatos a prefeito de Norte a Sul, o fim do sopro de popularidade do auxílio emergencial, a derrota do “amigão” na América e o agravamento das evidências de crimes variados por parte de seu filho Flávio. É um pacote pesado para quem tem masculinidade frágil, mas descontar na vida da população é crime de responsabilidade.
Rosângela Bittar: Centrão na cabeça
Das disputas municipais saem fortalecidos o PSD, o MDB e o PP, segundo previsões
O presidente Jair Bolsonaro cometeu um erro essencial de política. Transformou um presságio em uma aposta do tipo cara ou coroa. No fim, quedou-se paralisado, à espera de uma decisão por pênaltis que não virá porque nem sequer consta do regulamento. Por este momento de alucinação, torpor e instabilidade, Bolsonaro terá de operar uma desafiadora metamorfose: transformar-se de radical raivoso em moderado condescendente.
Se vai conseguir é o que veremos nos próximos meses. No momento, comporta-se como reles perdedor em série. Perdeu com a vitória de Joe Biden e Kamala Harris. Perdeu com o revés de Donald Trump, um modelo pessoal e político. Perdeu com o péssimo desempenho de seus candidatos nas eleições municipais. Perdeu diante do impulso de reação dos seus adversários presidenciais, que foram acordar logo agora, na sua maré baixa.
Isolado, o presidente consolidou a condição de maior refém do Centrão, sendo a única saída para sobreviver e ainda pleitear a reeleição. Por esta dependência presidencial, o Centrão se fortaleceu. Sobretudo porque sairá revitalizado das eleições municipais.
Para avaliar o preço que o Centrão cobrará não é preciso ter imaginação. Seus parlamentares sabem onde, quando e como tomar de assalto o governo. No restrito grupo de aliados fanáticos do presidente ainda se ouvem apelos esparsos para ele recrudescer nas atitudes de beligerância, fugindo, como sua matriz, à realidade. Mas o Centrão vai pressionar em contrário. Acredita ser fácil mostrar ao presidente que sua tropa é a última reserva de que ele dispõe.
Bolsonaro não tem saída, certamente refletirá sobre as transformações a que deve se submeter. As mais difíceis não estão relacionadas à troca dos ministros, que ele poderá sacrificar, sem problemas, doando-lhes outras vantagens.
Terá, porém, de redimensionar alguns caminhos. A importância da rede social como instrumento principal de campanha se relativizou. Com a chegada da regulação das empresas de tecnologia, que tiram mentirosos do ar, as redes deixaram de ser espaço livre por onde circulavam, impunemente, a falsidade e o conflito. Bolsonaro terá de reinventar o uso e abuso desses meios. Neste capítulo, o difícil será atender a família, insaciável, permanente e agressiva. Desta não dá para se livrar.
Não colou, até agora, a tática de denúncia antecipada de fraudes na eleição. Trump não conseguiu sensibilizar nem todo seu eleitorado e Bolsonaro vem denunciando, sem sucesso, fraude na eleição que venceu, de 2018. Imagine-se o que fará numa eleição que poderá perder. Desde sempre incentiva aliados a apresentarem projetos para a volta do voto impresso. Renegando a tecnologia, cada vez mais dominadora e irreversível.
E o fantasma do comunismo? Não deu certo lá e não tem apelos mais fortes no Brasil. Embora tenha feito sua carreira política em cima destas fixações, Bolsonaro deve avaliar sobre como se livrar destes anacronismos que são a sua essência.
É impossível ter êxito num recuo tão radical em temas de que está impregnado o seu cotidiano, mas pode tentar. A negação da ciência na pandemia, por exemplo, exige-lhe revisão urgente, e ele insiste em politizar a vacina, a doença e a morte. Como fez ainda ontem. Mudar seria uma guinada e tanto para Bolsonaro.
E dele se exige que preste atenção aos fenômenos que, se não configuram nova onda política, podem lhe servir de alerta. Os progressistas que se opõem ao seu receituário estão ganhando todas na vizinhança. Além dos Estados Unidos, vimos Argentina, Bolívia, o plebiscito do Chile e, bem antes, o México. É para pensar.
Desde que se aproximou do Centrão, Bolsonaro tem alternado radicalismo e moderação. Das disputas municipais saem fortalecidos o PSD, o MDB e o PP, segundo as previsões para a votação no domingo. A colheita eleitoral desses partidos dará a dimensão precisa da transformação que Bolsonaro precisa realizar, se quiser se manter no poder.
Monica De Bolle: O governo Biden
Há razões para ver no governo Biden o começo de um ciclo de restauração do conhecimento das ciências
Sim, já devemos pensar no governo de Joe Biden, presidente eleito dos Estados Unidos, independentemente dos esperneios de Trump e da hipocrisia do Partido Republicano. Sim, a tentativa de judicialização e contestação das eleições estarão conosco por um tempo. Mas as margens alcançadas por Biden em todos os Estados onde venceu são largas demais para serem revertidas. A matemática é inexorável. Também não é razoável supor que no complicado sistema norte-americano, em que as eleições para presidente são indiretas, haverá revoltas no colégio eleitoral que culminarão na decisão das eleições por parte da Câmara. A margem de Biden no voto popular e a solidez institucional dos Estados Unidos – ela ainda existe a despeito de Trump – tornam esse cenário quase fantasioso. Portanto, a pergunta é pertinente e oportuna: o que se deve esperar do governo Biden?
O discurso da vitória que o presidente eleito proferiu de Wilmington, sua cidade natal, na noite do último sábado, à nação fornece-nos algumas pistas. Nele, Biden deixou claro que não haverá recuperação econômica caso não exista um plano de combate à pandemia. Além de afirmar a predominância da crise de saúde pública sobre qualquer outro tema, a declaração do presidente eleito deixa em evidência, assim, quais serão as prioridades de seu governo e a ordem delas. Essas impressões se confirmam pelos próprios atos do presidente eleito no pouco tempo que se seguiu. Após a vitória declarada no fim de semana pondo fim a dias de apuração sob escrutínio e ansiedade de todo o mundo, a primeira ação de Biden foi nomear um conselho de especialistas e cientistas para ajudá-lo a reverter o descalabro norte-americano. Há vários dias são registrados aqui nos EUA mais de 120 mil casos diários de covid-19, os hospitais em algumas localidades do país estão chegando à sua capacidade máxima, os óbitos superam a marca de 1.000 por dia. Nesse ritmo, não tardará para que se alcance a marca de 200 mil casos por dia, como têm advertido vários infectologistas de renome.
Biden assumirá a Presidência em 20 de janeiro de 2021, momento em que, por força do descaso do governo Trump, a epidemia provavelmente estará em seu ápice – e isso contando as duas ondas anteriores de disseminação do vírus no país. A boa notícia, entretanto, é que até lá é provável que se tenha clareza sobre o sucesso das vacinas no último estágio de ensaios clínicos, antes que elas possam ser autorizadas para a comercialização. O recente anúncio da Pfizer sobre os resultados preliminares de sua vacina em colaboração com a BioNtech é promissor por várias razões. A principal delas é o uso de uma parte da mesma proteína do vírus – codificada no material genético da vacina – que vem sendo usada para o desenvolvimento de outras vacinas. Ou seja, se a vacina da Pfizer de fato tiver a eficácia comprovada nas próximas semanas, é razoável supor que outras vacinas também apresentarão eficácia, ainda que em níveis diferenciados. Portanto, a primeira metade do governo Biden pode vir a ser marcada pela resposta bem-sucedida à pandemia, com o auxílio das vacinas que serão distribuídas ao longo de 2021 e 2022. Caso tudo corra bem, o presidente eleito chegará no meio de seu mandato com um legado definitivo.
Tal legado terá grande influência nas eleições para o Congresso em 2022, com ou sem trumpismo residual ou escancarado. Nos EUA, há eleições a cada dois anos, e em 2022 será eleita nova Câmara e um terço do atual Senado. Se Biden conseguir dar cabo do vírus até lá, a chance de que obtenha um Congresso de maioria democrata será concreta. Nesse cenário, poderá pôr em andamento sua agenda legislativa com vistas aos planos de infraestrutura verde, fortalecimento das redes de proteção social nos EUA, reconfiguração do sistema de saúde, cujas falhas ficaram tão visíveis ao longo da pandemia.
Soa bom demais para ser verdade? Talvez. Mas a política e, por conseguinte, a história não são feitas apenas de obscurantismo, negacionismo, terraplanismo e outros “ismos” nefandos. A política e a história também são espaço do imprevisto, do imponderável, de grandes construções, de avanços e do término de ciclos de horror cujo fim muitas vezes não vemos e temos mesmo dificuldade de imaginar. Há razões para crer que o ciclo do trumpismo esteja no início do fim . Há razões para ver no princípio do novo governo o começo de um ciclo de restauração do conhecimento, das ciências – todas as ciências –, da verdade, isto é, a promessa que a política também nos oferece, para além do horror. Torçamos para que essa promessa também retorne ao Brasil em pouco tempo.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Pedro Fernando Nery: Nosso norte
A Amazônia é fundamental para a economia, mas ganhos precisam ser compartilhados
Saindo de São Paulo, leva-se menos tempo para chegar em Tel-Aviv do que a Ipixuna – a cidade brasileira com o pior nível de desenvolvimento no índice Firjan. É localizada no Amazonas, mas o aeroporto de médio porte mais próximo fica no Acre, de onde partem barcos para a longa viagem para a cidade. A precariedade da infraestrutura no Norte do Brasil vai muito além da rede elétrica do Amapá, às escuras depois de um incêndio que chamou a atenção do resto do País nos últimos dias.
Na Região Norte, 1 milhão de brasileiros não correm risco de apagão: eles já não têm acesso a energia elétrica, segundo o Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema). Outros milhões estão em um sistema ainda vulnerável, como mostra o caso do Amapá, cuja solução definitiva levará dias e depende da chegada de balsas.
O País ainda tem um Estado inteiro – Roraima – desconectado do sistema elétrico nacional. A ligação é historicamente polêmica, pelas questões ambientais e indígenas envolvidas. Elas também aparecem na polêmica da pavimentação da BR-319, ligação de uma das maiores cidades brasileiras – Manaus – com o restante do País.
No Norte do Brasil, 40% dos cidadãos vivem abaixo da linha da pobreza – número quase igual à taxa do Nordeste. Mas a pobreza amazônica não ocupa ainda muito espaço no imaginário do Centro-Sul como a pobreza nordestina. É preciso admitir uma verdade inconveniente: esse baixo PIB per capita é um complicador para a preservação da floresta. A influente revista Science publicou este ano um artigo sobre as obras da BR-319: o título é “Estrada para o desmatamento”. Mas estamos falando de uma conexão terrestre com a 7.ª maior cidade do Brasil, ou a nossa Filadélfia.
E se a detestável política ambiental que temos tiver o apoio da população local? Nas eleições de 2018, somente quatro Estados entregaram votação para algum candidato acima de 70% (todos para Bolsonaro). À exceção de Santa Catarina, eles estão na Amazônia: Roraima, Rondônia e o Acre – este com a maior votação. Bolsonaro teve 77% no Estado de Marina Silva e Chico Mendes. Se tivéssemos um colégio eleitoral como o americano, esses não seriam battleground states.
Como convencer tantos brasileiros que devem ter aspirações menores e conviver com infraestrutura de país subdesenvolvido? A floresta de pé se justifica claramente pelos seus ganhos econômicos, seja por limitar a mudança climática que ameaça a atividade econômica de diversas regiões do planeta, seja pela biodiversidade da selva – que guarda informação valiosas geradas por milhões de anos de evolução. Mas quase todos esses potenciais benefícios, futuros e difusos, não são auferidos hoje pelos habitantes locais.
É momento de discutir pagamentos à população nortista como compensação pelos serviços ambientais? Se aceitamos que a região não pode se urbanizar como o resto do País, devem receber recursos federais para que as famílias não sejam tão vulneráveis à pobreza? O PIB da área é tão incipiente que, apesar da crise severa deste ano, a arrecadação em quase todos os Estados da região cresceu – por conta dos efeitos no consumo do pagamento do auxílio temporário aos mais pobres.
Afinal, a ideia simpática de que a Região Norte pode se desenvolver normalmente apenas com empreendimentos verdes esbarra em uma dificuldade: ali moram 18 milhões de pessoas. É mais que a Pensilvânia e a Geórgia somadas.
A ciência pode orientar a política pública nas escolhas para desenvolvimento da região. Publicado na Nature Sustaintability em 2018, um estudo literalmente mapeia tanto as áreas da floresta de maior biodiversidade quanto aquelas em que sua conservação pode resultar em mais produtos (madeira, borracha, castanha) e serviços (como chuvas para hidrelétricas e agropecuária) – onde a necessidade de preservação é portanto mais inquestionável. O trabalho é assinado por pesquisadores brasileiros apoiados pelo Banco Mundial e pela Noruega (Strand et al.).
Enquanto os votos nos Estados Unidos indicavam a eleição de Joe Biden, o que pressionará para uma mudança dramática na nossa política ambiental, centenas de milhares de brasileiros não acompanhavam o resultado porque não havia como fazer chegar energia elétrica ao Amapá. A Amazônia preservada é fundamental para a economia do País e do planeta, mas ganhos precisam ser compartilhados com a população local – e não há clareza sobre solução inteligente e efetiva para fazer isso.
A agenda de conservação precisa do apoio de habitantes que ainda vivem com carências que não existem no resto do Brasil. Os eventos da última semana são alegóricos de uma tensão que deve existir nos próximos anos na definição sobre o nosso norte.
*Doutor em economia
Eliane Cantanhêde: O impacto em 2022
Além de reinventar seu governo, Bolsonaro vai ter de se reinventar
Derrota de Donald Trump nos Estados Unidos, fragilidade do presidente Jair Bolsonaro nas eleições municipais e total falta de estratégia para enfrentar a crise econômica e social. É nesse ambiente que viceja a articulação de uma chapa alternativa de centro para 2022, com participação de Luciano Huck, João Doria, Rodrigo Maia, Luiz Henrique Mandetta e agora Sérgio Moro, além de Fernando Henrique Cardoso. O cerco vai se fechando contra Bolsonaro.
Mais à centro-direita do que propriamente ao centro, a ambição é atrair a direita moderna, que votou em Bolsonaro, mas agora só pensa em se descolar dele, e a parcela da esquerda que cansou da hegemonia e dos erros do PT, mas tem como prioridade livrar o País de Bolsonaro. Os ventos favoráveis vêm de fora, com a eleição de Joe Biden e Kamala Harris, e de dentro, com as eleições municipais e as investigações sobre rachadinhas no Rio.
Como sempre, Bolsonaro vai na contramão do mundo democrático e se recusa a cumprimentar o vitorioso nos EUA, até mesmo a explicar por que não, o que só piora as perspectivas para a relação com o novo governo. Tão negacionista quanto Trump na pandemia, ele também nega os votos e a realidade, como ele. Bolsonaro acha que Trump venceu? Foi tudo fraude?
Assim, ele repete a campanha de 2018 só na forma, animando claques com muita antecedência pelo País afora, mas vai ter de inventar um novo conteúdo. O de dois anos atrás caducou: “nova política”, combate à corrupção, apoio à Lava Jato, reformas e carta-branca para o “Posto Ipiranga”, caneladas no mundo árabe e alinhamento automático com os EUA de Trump.
No governo, ele mergulhou no Centrão, derrubou Moro, botou a mão em PF, Coaf e Receita, abandonou as reformas tributária e administrativa, tirou gás de Paulo Guedes e agora fica sem Trump – e sem política externa. É bem mais complicado dar caneladas na China. Sem falar da pandemia…
Logo, Bolsonaro precisa, para se reeleger, muito mais do que fazer piadas de profundo mau gosto com Guaraná Jesus, assim como precisa mais do que Celso Russomanno em São Paulo e Marcelo Crivella no Rio para escapar da derrota no domingo. Dificilmente a onda bolsonarista de 2018 se mantém agora e em 2022. O PSL foi um meteoro e passou.
O quadro que se desenha também é outro. Pela esquerda, o ex-presidente Lula, sem viço e sem discurso, já não é o mesmo. E as eleições municipais são um bom presságio do que vem pela frente, com o PT perdendo espaço para PSOL, PDT e PSB, pela ordem, em São Paulo, Rio e Recife e projetando que em 2022 é cada um por si, ou todos por um – que não será o PT.
Pela direita, Bolsonaro reina sozinho, agarrado ao mesmo Centrão que não deu para o gasto com o tucano Geraldo Alckmin em 2018. Mas ele, Bolsonaro, não é mais novidade, sofre o desgaste do poder e não tem o que mostrar. As “qualidades” eram falsos brilhantes, os defeitos se tornam mais e mais evidentes.
Há, portanto, um cenário que favorece o centro conhecido, confiável, que não dará cambalhotas, com surpresas e choques. Os articuladores de uma chapa alternativa veem insegurança por toda parte – na economia, na política, no meio ambiente, na política externa… – e chegaram a uma conclusão: a palavra de ordem de 2022 será estabilidade.
Reunir tanta gente, com tantos interesses e divergências ideológicas, porém, não será fácil. Rodrigo Maia se opõe à integração de Moro, que tenta incluir até o general Hamilton Mourão, rifado da chapa de Bolsonaro. De concreto, portanto, só é possível dizer que a derrota de Trump é um forte baque no bolsonarismo e terá impacto na eleição presidencial de 2022. Além de reinventar seu governo, Bolsonaro vai ter de se reinventar. Alguém acredita que seja capaz?
Rubens Barbosa: Notas sobre a eleição presidencial nos EUA
A sociedade americana optou por um presidente moderado e conciliador
A histórica vitória de Joe Biden será analisada por muitos anos. O resultado da eleição foi surpreendentemente equilibrado, refletindo a profunda divisão do país. A onda azul, democrata, não se concretizou, mas a sociedade americana preferiu eleger um presidente moderado e conciliador, que promete reduzir o ódio e unir os EUA. O resultado das urnas mostrou que o eleitor separou a figura do presidente falastrão do seu partido. O Partido Republicano, que teve desempenho muito melhor que Trump, saiu fortalecido, com maior número de deputados na Câmara dos Representantes e com a possibilidade de manter a maioria no Senado.
A polarização política nos EUA vem se acentuando nas últimas décadas e esse quadro não se deve alterar no futuro previsível, em razão, entre outros fatores, do aprofundamento, com a pandemia, dos contrastes existentes no país mais rico e mais avançado do mundo. A crescente concentração de renda acentuou as desigualdades entre as pessoas, as regiões e entre os centros urbanos e as áreas rurais, fato agravado pelas consequências econômicas. O impasse, se o Senado continuar republicano, dificultará a execução das reformas prometidas por Biden nas áreas de saúde, economia, energia, imigração, meio ambiente e no fortalecimento da democracia e dos direitos humanos.
Os EUA estão deixando de ser um país com maioria branca e calvinista para se tornarem uma democracia multirracial e multicultural. Quase 75 milhões de eleitores se manifestaram contra um presidente com abordagem não convencional na política, negacionista, percebido como egoísta, mentiroso, vaidoso e que põe seus interesses pessoais e eleitorais acima dos interesses do país. Trump impôs políticas que favoreceram o populismo, o protecionismo, o racismo e o isolacionismo, sempre ressaltando que isso ampliaria o emprego do trabalhador norte-americano e reforçaria a ideia de que os EUA sempre estariam em primeiro lugar. As políticas seguidas por Trump acentuaram o divórcio racial e os conflitos relacionados à imigração. Em alguns Estados, porém, os votos de jovens negros, latinos e muçulmanos foram acima do esperado para o Partido Republicano, apesar de algumas políticas de Trump terem sido claramente contrárias aos interesses dessas minorias. Acentua-se, assim, a divisão em torno de temas culturais, enquanto há mais convergência em torno das políticas econômicas, menos conflitivas por estarem voltadas para o crescimento do emprego e da renda.
Apesar da rejeição pessoal, as bandeiras que Trump levantou deverão permanecer. O movimento populista, nacionalista e conservador se fortaleceu com o voto nas áreas rurais, mais pobres, de maioria branca, sem instrução superior e de menor renda. Os republicanos emergem estranhamente como o partido da classe trabalhadora, mais afinado com os anseios da nova composição social e racial da sociedade norte-americana.
Outro aspecto relevante que ficou claro com os resultados eleitorais é a questão do uso político da religião. O recado das urnas aos políticos foi claro: igreja e Estado não devem ser misturados e confundidos. Os eleitores manifestaram-se a favor de discussões sobre questões práticas que afetam diretamente seus interesses e refutaram uma guerra religiosa, em especial contra imigrantes muçulmanos.
As incertezas que as transformações internas na sociedade norte-americana acarretam deixam também uma lição sob o ângulo das relações externas. O alinhamento político e econômico com os EUA é perigoso. Depender dos EUA não representa um apoio estável de médio e longo prazos, dadas as modificações que pode haver nas tendências dos eleitores em eleições seguintes. As políticas de Trump em relação aos aliados dos EUA, no tocante aos organismos internacionais, ao grau de confrontação com a China, à política de meio ambiente, deverão, como já anunciado, ser modificadas no governo Biden. O que poderá acontecer em 2024? Serão mantidas as políticas do governo democrata? Voltarão as políticas isolacionistas?
Uma vez que são muito fortes as instituições no país, as acusações de fraude e a judicialização do processo eleitoral promovidas por Trump, que tantas incertezas despertam e de certo modo representam um sério problema para o funcionamento do sistema eleitoral, não chegarão a ameaçar a democracia, nem a credibilidade das eleições, mesmo com eventuais violências isoladas.
Os institutos de pesquisa voltaram a se equivocar de maneira grave. Os meios de comunicação (TVs, jornais e rádios) tornaram-se, na prática, braços dos dois partidos políticos, estimulando a divisão. O papel da mídia social foi menor do que na eleição de 2016.
Ficam no ar algumas perguntas. Dada a força de Trump como líder de uma parte do Partido Republicano, e sobretudo pelo peso dos mais de 70 milhões de votos, qual será o papel do atual presidente a partir de 20 de janeiro? Trump vai se recolher, como fizeram todos os seus antecessores, ou continuar ativo no Twitter, mantendo-se como uma presença forte no cenário político norte-americano? A Constituição dos EUA determina que nenhuma pessoa poderá ser eleita mais de duas vezes para o cargo de presidente. Trump poderá muito bem querer se apresentar novamente em 2024. Como o Partido Republicano vai reagir ao trumpismo?
*Presidente do IRICE