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João Gabriel de Lima: O réveillon da discórdia e o jogo na retranca
Bolsonaro fica na retranca, cultivando e eletrizando sua base de eleitores fiéis
João Gabriel de Lima / O Estado de S. Paulo
Era uma vez uma turma de jovens liberais que admiravam Ronald Reagan e Margaret Thatcher. No limiar do século 21, passaram um réveillon juntos. Foram dormir acreditando no “fim da História” – um mundo cada vez mais capitalista, democrático e globalizado. A ressaca veio 20 anos depois. Metade dos convivas não fala com a outra metade. Abriu-se entre eles um fosso com nome e sobrenome: Donald Trump.
A história é contada por Anne Applebaum,
pena mais inquieta da direita liberal americana, em O Crepúsculo da Democracia. O livro é um dos melhores lançamentos do ano da editora Record – que, sob a batuta de Rodrigo Lacerda, ex-colunista do Estadão, vem se concentrando em autores relevantes, como Applebaum, e descartando os irrelevantes, como Olavo de Carvalho. “Muitos de meus amigos chegam a trocar de calçada quando me veem”, disse-me Applebaum quando do lançamento do livro. Ela permaneceu do lado liberal – portanto, radicalmente anti-trump.
Um hipotético réveillon em 2018 poderia ter reunido, em torno da mesma garrafa de champanhe, João Amoêdo, João Doria, Kim Kataguiri e Sérgio Moro, junto com Jair Bolsonaro e os bolsonaristas. Em 2021, uma festa assim não seria mais possível. Moro saiu do governo atirando – e Kataguiri, Amoêdo e Doria, simpáticos a Bolsonaro em 2018, hoje namoram a tese do impeachment.
“A direita liberal que estava com Bolsonaro por causa do antipetismo se descolou”, diz o cientista político Carlos Melo, professor do Insper e entrevistado do minipodcast da semana. O tabuleiro de 2022 será marcado pela divisão das direitas e mais dois fatores: a rejeição a Bolsonaro e sua estratégia eleitoral.
A popularidade do presidente está em queda desde fevereiro. Nesse período, cresceu em 14% o número de eleitores que consideram seu governo “ruim” ou “péssimo”. Nesta semana, o índice chegou a 53%, configurando pela primeira vez a rejeição da maioria absoluta. Os números são do Ipec.
Diante desse quadro, Bolsonaro “joga por uma bola”. Em vez de se lançar ao ataque, tentando reconquistar a direita liberal que “se descolou”, o presidente fica na retranca, cultivando e eletrizando sua base de eleitores fiéis. Considera que isso é suficiente para levar o jogo para a prorrogação – o segundo turno. Sua esperança é que as direitas se unam em torno de seu nome para derrotar o PT.
O discurso do dia 21 na ONU segue esse esquema tático. De olho em sua base (e para vergonha dos demais brasileiros), Bolsonaro descreveu um país de fantasia onde não há corrupção, desmatamento ou instabilidade política. Um vídeo-exaltação circulou nos grupos bolsonaristas de Whatsapp. Ele mostra o presidente brasileiro sendo supostamente ovacionado num aeroporto em
Nova York. A imagem, na verdade, é de 2018, e em outro aeroporto – o de Natal, no Rio Grande do Norte.
O jogo na retranca tem seus riscos. Como mostrou o Ipec, Bolsonaro é hoje mais rejeitado que a esquerda. Não à toa, o PT faz corpo mole quando se fala em impeachment. Apoiadores propagam que Lula deseja ardentemente enfrentar Bolsonaro no segundo turno. O impeachment é um bom negócio para os que buscam a “terceira via”, não para o PT.
O cenário lembra o dos Estados Unidos em 2020. A queda de popularidade de Donald Trump impulsionou a vitória de Joe Biden – com o voto de liberais como Anne Applebaum. Se os números do Ipec se mantiverem, a rejeição crescente a Bolsonaro pode eleger Lula.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,o-reveillon-da-discordia-e-o-jogo-na-retranca,70003850103
Bolívar Lamounier: O poder da decadência
Poder político brasileiro é pateticamente débil, e nada autoriza a crer que logo seremos um colosso
Bolívar Lamounier / O Estado de S. Paulo
Centenas de pessoas não perdem uma chance de cobrar “realismo” dos jornalistas e analistas políticos, como se a realidade política fosse uma coisa unidimensional, percebida sempre da mesma forma por toda a sociedade, hoje, amanhã e sempre.
Poucos se dão conta de que a “realidade” de hoje pode não ser a de amanhã, que por sua vez poderá diferir bastante da que teremos na próxima década. Esta observação seria inútil, se tivéssemos como superar as crises e acertar os rumos do País sem um grau razoável de convergência em nossas percepções. Sem esquecer que nossas preferências também divergem: alguns querem a democracia, outros anseiam por alguma forma de ditadura. Isso posto, peço licença para hoje escrever sobre uma realidade um tanto indefinida, que combina elementos de hoje com alguns de nosso passado histórico e outros situados no futuro, sendo que, sobre estes, é pouco o que nos é dado conhecer.
Ainda assim, atrevo-me a antecipar que o poder político brasileiro – vale dizer, nosso Estado – é pateticamente débil, uma decantação hoje virtualmente petrificada de muitos fracassos, e que nada nos autoriza a crer que logo seremos um colosso. Em 1958, Celso Furtado explorou esse tema pelo lado da história econômica, com o objetivo de demonstrar que os grandes ciclos econômicos que vivemos (cana-de-açúcar no Nordeste, mineração de ouro e diamantes em Minas e, finalmente, o café em São Paulo) não deixaram uma base sólida para um processo sustentável de industrialização, sem o qual não teríamos desenvolvimento, bem-estar e autonomia nacional. Examinando o mesmo fato pelo lado político, vemos que os resultados logrados foram ruins para a industrialização e desastrosos para a construção do Estado, uma vez que abriram espaços para um contínuo relançamento do patrimonialismo – a apropriação do poder político por setores empresariais decadentes, que se especializaram em concentrar os ganhos e socializar as perdas. Duas exceções permitem amenizar em certa medida esse argumento. A exaustão do ouro deixou alguns núcleos favoráveis à pecuária bovina; nessa área, o empresariado do Triângulo Mineiro, lixando-se para o governo federal, desencadeou um poderoso crescimento a partir da importação e aclimatação das raças zebuínas da Índia. O café, cujo legado foi mais importante, a começar pela passagem do trabalho escravo para o assalariado, não diferiu totalmente da cana-de-açúcar, uma vez que, forçado pela superprodução, teve de recorrer à generosidade estatal, trocando sua altivez política pelas mesmas bênçãos do Estado, que atuou como intermediário em mais uma reedição da “socialização das perdas”.
Essa, em grandes linhas, é a história de nosso mastodôntico Estado, cuja congênita inviabilidade se evidenciou com o experimento da industrialização em “marcha forçada” deslanchado pelo governo do general Ernesto Geisel. A “realidade” com que hoje nos deparamos é, pois, uma estrutura de poder incapaz de promover o crescimento num ritmo compatível com o aumento da população, com a superior organização de nossos competidores internacionais e com nossa dramática anemia educacional, científica e tecnológica.
Esta é a base sine qua non que precisamos levar em conta para delinear futuras realidades que podem estar à nossa espreita logo ali, ou um pouco à frente. O Brasil vive hoje uma polarização política infantil e estéril, contrapondo dois líderes populistas que bem fariam em se aposentar, dado já terem feito tudo o que ninguém os julgava capazes de fazer pelo Brasil – para o bem e para o mal. Lula, aos 77 anos, já bateu no teto, e o mesmo acontece com Bolsonaro, na pujança de seus (presumíveis) 15 anos. Sabemos todos que o clima de radicalização e turbulência é música para os ouvidos de Bolsonaro, reforçando a condutibilidade atmosférica que lhe facilita mobilizar seus fanáticos. Dá-se, no entanto, que este clima mantém o dólar valorizado e empurra a inflação para cima, a última crueldade que nossa medíocre politicagem pode perpetrar contra os 46 milhões de indivíduos que vivem em lares com zero reais de renda mensal.
Eu, com certeza, serei acoimado de irrealista se disser que ambos, Lula e Bolsonaro, poderiam fazer-nos o favor de ir para casa, para que o Brasil possa voltar à sua precária normalidade e retomar o processo de crescimento econômico. Realistas são os que tentam ver Lula não só como o imbatível antibolsonaro, mas também como o grande estadista-pacificador que ele nunca foi e não tem condições de ser. Com lápis e papel à mão, os que insistem em enxergar a realidade por esse prisma já podem, então, pôr mãos à obra, rascunhando seu cenário para daqui a dez anos. No centro de seu idílico desenho estará – Deus seja louvado – nossa política, finalmente renovada pelo Centrão. Os 46 milhões sem renda terão subido um nível, compartilhando a felicidade dos que auferem ao menos até um salário mínimo de renda mensal. Entre os Três Poderes, reinarão a harmonia e a independência que a Constituição tão sabiamente prescreve.
*Membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, seu mais recente livro é ‘Antes que me esqueça’ (Editora Desconcertos)
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-poder-da-decadencia,70003849682
Marco Aurélio Nogueira: Crises, transformações, pesadelos
Democratas têm de saber usar a inteligência política para desenhar um caminho unitário
Marco Aurélio Nogueira / O Estado de S. Paulo
Há muito mais coisas no ar além dos tiranos de plantão. Eles perturbam porque são um subproduto delas. Sobrevivem porque manipulam os medos.
A nossa é uma época de transformações rápidas e profundas, que tumultuam o modo como vivemos. As mudanças fazem com que tudo pareça solto no ar, como se faltasse um centro de gravidade. As crises se sucedem, varrendo o que está instituído. É outro capitalismo, outro modo de trabalhar, outros padrões de família, outra escola, e assim por diante.
Os cidadãos, compreensivelmente, ficam atônitos. Carecem de referências e portos seguros onde ancorar. Frustrados por não conseguirem conquistar o que lhes é prometido, afastam-se de governos, partidos e políticos, responsabilizando-os pelo que não recebem, seja como direitos, seja como bens e serviços.
O estado de espírito coletivo passa a desconfiar da democracia, muitas vezes atacando-a como desnecessária ou prejudicial. O povo fica contra a democracia, escreveu Yascha Mounk. As pessoas têm raiva e pressa, o sistema democrático é lento e não inclui as grandes massas. As redes sociais canalizam essa miríade de vozes ressentidas. A democracia representativa entra em estado de sofrimento.
Ao mesmo tempo, crescem as lutas por identidade e reconhecimento, que projetam novos patamares de direitos, mas também criam mais fragmentação e complicam as unificações necessárias. Os partidos políticos não sabem como tratar os impulsos identitários, os novos grupos, temas e expectativas. Abre-se uma rachadura na política, por onde escapam sentimentos e emoções, que ficam disponíveis. Evapora-se a agenda reformadora. Os democratas se desorientam, os autoritários ganham terreno.
Todo este processo transcorre molecularmente, deixando pegadas no chão da vida. Quando menos se espera, produzem-se estrondos que lançam as pessoas às ruas, como a anunciar rupturas iminentes. Foi assim em 2013, no Brasil, quando o estrondo polifônico deixou evidente que nada mais poderia ser pensado como antes. O sistema político, porém, não ouviu as palavras, não decodificou a mensagem.
Aumentaram, então, as atitudes “antissistêmicas” radicalizadas, que dizem o que não aceitam sem saber o que pretendem ou como realizar os desejos. A frustração permanece pulsando e muitos saem em busca de salvadores, que se agigantam quanto mais se apresentam como portadores de uma purificação geral. Entram em cena tiranos e autocratas de um novo tipo, que ora surgem como extremistas, ora como populistas, ora como xamãs prontos para produzir milagres com suas feitiçarias e beberagens.
Há de tudo entre eles. Tecnocratas, militares, empresários, cantores, parlamentares inexpressivos. Apresentam-se como conservadores honestos, tementes a Deus, defensores da família; prometem recriar a democracia de modo “iliberal”, para que o povo tenha mais voz. Muitos são caricatos. No início, são tratados com arrogância e subestimados pelos democratas, que não levam a sério as “narrativas” tecidas para manipular os descontentes.
Numa articulação global, o extremismo de direita sai das catacumbas em que se enfurnava para anunciar uma “nova política”, livre de comunistas, liberais, imigrantes, pobres, refugiados, gente tratada como detrito.
Os “salvadores” se distinguem pelo destempero, pelo negacionismo, pela busca de polarizações artificiais com que procuram manter as sociedades em estado de guerra permanente. Inventam problemas, criam realidades paralelas nas quais a desordem imperaria, o povo estaria acuado, clamando por armas e resgate. São líderes sem estofo, péssimos governantes. Sobrevivem à custa de expedientes bélicos, falseamentos e mentiras, que despejam incessantemente sobre a opinião pública. Vão, assim, ocultando sua incompetência e pescando incautos nas águas sujas que derramam na vida.
No Brasil, em particular, este tipo de líder tem sua hierarquia. Há muitos chefes, chefetes e militantes, mas somente um Mito. O movimento se espalha, incorpora elites sem orgulho próprio, vazias de ambições cívicas. Como um Duce fascista falsificado, o Mito recusa-se a governar: sua essência é o combate, seu desejo é a ditadura, sua intenção é criar confusão. Sustenta-se no espanto social, no amorfismo ideológico da população, na desorientação impulsionada pela desunião dos democratas, no ativismo boçalizado da extrema-direita. Estigmatiza adversários para assustar eleitores e ascender.
A pobreza, as desigualdades, o desemprego, a pandemia, a inflação que retorna complicam sua situação, mas não ajudam a oposição. A imagem do Mito esfarela.
Há resistência nas instituições (STF, TSE), na grande mídia, nos partidos democráticos, em crescentes setores da sociedade civil. A Câmara dos Deputados, sob pressão, atua com excessivo fisiologismo. Os pesadelos se repetem, noite após noite, à espera do raiar de um novo dia, que virá na medida em que os democratas souberem usar a inteligência política para desenharem o caminho unitário que os projetará como construtores do futuro.
*Professor de Teoria Política da Unesp
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,crises-transformacoes-pesadelos,70003849686
Rosângela Bittar: Promenade bolsonarista em Nova Yorque
Bolsonaro proferiu o discurso de sempre, sem alma, sem ideias, recheado de mistificações
Rosângela Bittar / O Estado de S. Paulo
O balanço dos vexames de Jair Bolsonaro na 76.ª Assembleia-Geral da ONU mostrou como um governante pode estragar uma conquista da diplomacia do seu país. O presidente levou o Brasil a perder uma grande oportunidade de se fazer ouvir. Seu negacionismo agressivo com relação à pandemia, as insistentes falsidades, as referências reacionárias à família, além dos desvios de comportamento, superaram as expectativas.
O contragosto começou na véspera, quando Bolsonaro teve de ouvir o discurso de más-vindas do prefeito de Nova York. A partir dali, enfrentou uma sucessão de reações que o obrigaram a zanzar de um lado para o outro fazendo-se de desentendido. A comitiva do governo brasileiro, sem agenda, seguiu o mestre, promovendo cenas inacreditáveis de degradação.
Almoçar uma pizza na calçada porque, ao descumprir regras sanitárias de Nova York, está proibido de entrar em restaurantes, não é uma cena natural para um presidente da República. Bolsonaro contamina o cargo com sua incivilidade e péssima educação.
O ministro Marcelo Queiroga, autor do gesto obsceno surpreendente da promenade em NY, fundiu-se à laia presidencial e confirmou o seu papel de fingidor laureado. Festejou, neste passeio, o caos que promove na política de imunização do País. Queiroga conseguiu, ali, a foto oficial de sua própria campanha eleitoral na Paraíba. Até o discreto chanceler, Carlos França, resolveu introduzir, na linguagem diplomática brasileira, a marca da família Bolsonaro: nos dedos polegar e indicador em riste, o desenho da arma que ameaça os passantes.
Que estes acontecimentos fiquem para a agenda de um psicanalista junguiano especializado em países humilhados ofendidos por seus governantes. A ver se grosseria tem cura.
A data de ontem, reservada à audiência mundial do pensamento brasileiro, foi desperdiçada. Bolsonaro proferiu o discurso de sempre, sem alma, sem ideias, recheado de mistificações. Apresentou-se, mais uma vez, como o garoto-propaganda da cloroquina, na desqualificada forma da defesa do tratamento precoce da covid-19. No item Meio Ambiente, de interesse extremo para todas as nações, pinçou dados que disfarçam sua sanha destruidora e a incompetência do governo.
Ocultando referências à carta de rendição em que desmentiu a si mesmo do que disse no palanque do 7 de Setembro, contou aos estrangeiros uma lorota sobre as multidões que levou às ruas. Nem foi a maior manifestação popular do Brasil nem aqueles seus eleitores estavam clamando por liberdade. O bolsonarismo chama de liberdade a imposição da mentira e o ataque à democracia. O desemprego e a inflação crescentes foram cinicamente manipulados como exemplos de sucesso da política econômica.
Bolsonaro não honrou sequer as citações que costuma fazer dos governos militares, imaginando-se um deles. No caso, nem sequer conhece a política externa criativa praticada pelos generais-presidentes da ditadura militar.
Do governo Ernesto Geisel, a história registra uma política externa consistente, comandada pelo chanceler Azeredo da Silveira, em cujo desfecho há resultados concretos, como o reconhecimento da China, Angola e Moçambique, além do acordo nuclear com a Alemanha.
Já do general João Figueiredo, ficou o registro de um discurso de estadista, de conteúdo doutrinário, filosófico e político. É verdade que todo orientado pelo chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro, que, como o antecessor Silveirinha, integrava a elite da diplomacia brasileira respeitada mundialmente. Mas o general teve o bom senso de se curvar à sabedoria dos formuladores da política externa.
Se não sabia, o mundo percebeu, nesta terça-feira, que o Brasil é um país encurralado por seu presidente e este, um ser isolado do planeta. Como definiu o pré-candidato a presidente da República Aldo Rebelo, ele desempenha “o papel do malandro em delegacia de polícia”.
Bolsonaro está tentando explicar o inexplicável.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,promenade-em-ny,70003846845
Chapada dos Veadeiros tem 10º dia de incêndios; fogo avança 12% no Cerrado
Desde o início do ano, foram 46.693 focos de incêndio detectados por satélite, superando a marca de 41.674 de 2020
Gonçalo Junior e Isabel Cristina / Especial para o Estadão
O fogo na Chapada dos Veadeiros já dura dez dias, chegou à área do Parque Nacional e consumiu mais de 23 mil hectares de vegetação na região, o equivalente a 23 mil campos de futebol. As queimadas ocorrem em meio a um cenário de aumento de focos de incêndio no Cerrado.
Essas queimadas cresceram 12% no bioma em 2021, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Desde o início do ano, foram 46.693 focos de incêndios detectados por satélite, superando a marca de 41.674 de 2020. Só em agosto foram 15.043 focos de calor, o que significa um crescimento de 48% em relação ao mesmo mês do ano passado. O registro foi o maior valor desde 2014 (15.525 focos).
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De acordo com o coordenador da força-tarefa, capitão do Corpo de Bombeiros de Goiás, Luiz Antônio Dias Araújo, 170 pessoas estão envolvidas no combate ao fogo, entre bombeiros, brigadistas do Instituto Chico Mendes de Preservação da Biodiversidade (ICMBio) e voluntários. Além disso, as equipes continuam fazendo o monitoramento das áreas durante a noite. Nesta quarta-feira, 22, a expectativa é de que o efetivo deve aumentar para 190.
As condições climáticas não ajudam e a velocidade do vento tem dificultado muito esse controle das chamas. Na terça-feira, juntamente com o pessoal que estava em solo, três aviões fizeram o lançamento de água durante todo o dia. "A expectativa é de que a gente possa progredir nessas linhas e que amanhã tenhamos um panorama melhor", enfatiza o capitão.
Os bombeiros têm contado com auxílio de aeronaves para o lançamento de água. "Estamos usando o combate direto com a tropa em terra, utilizando abafadores, soprador, bomba costal e ferramentas para manuseio de terra (enxada, enxadão e pá). Outra técnica é o ataque combinado, que é quando os Air Tractor, os aviões que lançam água, auxiliam a tropa em terra", explica o coordenador da operação.
De acordo com o brigadista Alex Gomes da Silva, as condições climáticas (tempo seco e a baixa umidade do ar) e as reignições têm dificultado o trabalho de combate às chamas. "Em relação aos locais mais atingidos, no Vale da Lua e no Vale de São Miguel, temos reignição todos os dias. Mas o maior estrago na verdade está sendo em toda a Área de Proteção Ambiental (APA) de Pouso Alto, com um terço atingido", informou.
A Polícia Civil está na Chapada dos Veadeiros mapeando a área para investigar se os incêndios, que começaram no último dia 12, são criminosos. Luiz Antônio, que é coordenador da força-tarefa que combate as chamas, acredita que o fogo tenha sido causado por um incendiário, mas, com a proporção de destruição, não é um trabalho rápido de investigação e essa apuração demanda tempo. O fogo teve início no Vale da Lua, onde cerca de 100 turistas que estavam no local foram resgatados após cerca de 1h30 de espera.
Na terça-feira da semana passada, o fogo atingiu 8 mil hectares e, por causa do incêndio, o Vale da Lua e a Cachoeira do Segredo foram fechados. Já na quarta-feira o incêndio provocou o fechamento do Parque Estadual Águas do Paraíso, depois que uma linha de fogo com 7 quilômetros de comprimento começou a se aproximar da unidade.
Em meio ao incêndio que já dura mais de uma semana, um agricultor relatou perda de cerca de R$ 1,5 milhão da produção de milho depois que a lavoura foi atingida pelo fogo. A fazenda fica em São João D’Aliança, no nordeste de Goiás. O vento forte e redemoinhos de cinzas fizeram o fogo se espalhar rapidamente.
Turismo
Segundo o coordenador de prevenção e combate a incêndios do Instituto Chico Mendes de Preservação da Biodiversidade, João Morita, as chamas chegaram à área do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros por dois pontos específicos, mas não apresentam risco para os locais de visitação e aos turistas.
Na terça-feira, 21, as ações se concentraram na região conhecida como Cascata e Ponte de Pedra. "Esses dois focos adentraram o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros e estão cerca de 60 quilômetros distante das áreas de atrativos turísticos. Portanto, não oferecem risco até o momento aos turistas", afirma Luiz Antônio Dias Araújo. O Parque Nacional continua com a visitação sem comprometimento. O guia de turismo e condutor credenciado da Chapada dos Veadeiros João Paulo por exemplo, destaca que ainda não houve impactos até agora. "A cidade continua cheia, mesmo em dias de semana. Ao meu ver, não abalou o turismo que retomou o fluxo original pré-pandemia, e está numa crescente agora. Alguns locais fecharam, mas, logo após o incêndio ser controlado, já foram reabertos", contou.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,chapada-dos-veadeiros-tem-10-dia-de-incendios-fogo-avanca-12-no-cerrado,70003846805
Luiz Sérgio Henriques: Do Terceiro Reich até nós
Não estamos em 1930 e os embriões de Hitler e Mussolini não passam disto: embriões
Luiz Sérgio Henriques / O Estado de S.Paulo
Há versos ou poemas inteiros que grudam na memória e, mudos, passam a nos desafiar para sempre, retornando em particular nos momentos agudos de crise. Entre tais lembranças, difícil deixar de incluir Inquisitorial, de um jovem e talentoso José Carlos Capinan de meados dos anos 1960, ainda no rescaldo da guerra e do vasto sentimento antifascista que ela havia desencadeado.
“O poeta não mente, dificulta” – dizia Capinan –, e a dificuldade que propunha retirava-nos qualquer conforto possível: uma coisa é zombar, levados pelo gênio de Chaplin, do ridículo do Terceiro Reich, mas, de fato, o que faríamos se vivêssemos naquele tempo e tivéssemos de encarar em primeira pessoa o que só depois se revelaria absurdo?
Lição de arte e de vida, sem dúvida. A lição, porém, não implica comparações imediatas, como seria o caso se aplicássemos automaticamente o rótulo infame – fascismo ou nazismo – aos modernos ou pós-modernos movimentos de corrosão da democracia liberal ou, mais apropriadamente, da democracia tout court. Mais adequado é observar o modo como tais movimentos contemporâneos, repropondo em novas bases a figura do homem providencial, buscam arregimentar o povo, ou a “sua” parte do povo, indispondo-a contra as instituições republicanas que garantem as liberdades individuais e os direitos humanos.
Por óbvio, aqui nos valemos da engenhosa fórmula, criada por Yascha Mounk, para descrever a ação dos novos homens fortes. Da Rússia de Putin à Venezuela de Chávez e Maduro, países e estruturas políticas variam e personalidades podem não ser decalques umas das outras, ainda que haja entre elas imitadores baratos. Contudo, há algo de inquietantemente regular nos procedimentos que, hoje, buscam dissociar democracia e liberalismo e instaurar o cerco populista aos mais variados “Capitólios”, inclusive o nosso.
Deixando de lado os fatores “estruturais” da grande transformação, que põem de ponta-cabeça as relações entre economia e sociedade, nação e mundo, as respostas regressivas apoiam-se sempre em pesados elementos ideológicos, no sentido mais negativo do termo.
Há quem tenha detectado, como os autores de um relatório da controvertida Rand Corporation (Paul & Matthews, The Russian ‘Firehouse of Falsehood’ Propaganda Model, de 2016), a matriz putiniana do emprego maciço e coordenado de meias-verdades e mentiras consumadas, criando uma realidade paralela a partir da qual milhões de pessoas interpretam a realidade, fazem escolhas e se orientam, ou desorientam, na vida real. Não há ideologia inocente e não deixa de ser curioso que, aceita a hipótese da origem putiniana, haverá algum resquício de tipo “soviético” nas técnicas manipulatórias que se disseminaram, com o Brexit e a eleição de Trump, nos países ocidentais mais emblemáticos.
O “jato de mentiras” que jorra da boca dos autocratas não é um simples meio de “desviar a atenção” de questões incômodas para o governante ou fazer com que a sociedade se distraia de outros assuntos mais cruciais. Tal efeito não está de modo algum excluído, muito ao contrário, mas nos interessa sublinhar que este tipo de violação da linguagem é que permite a imposição de estratégias para a extração do consenso ao menos passivo de expressivos contingentes da sociedade.
Um consenso ativo pressuporia, por parte das camadas dirigentes, recursos hegemônicos capazes de dinamizar a vida cívica, enriquecer as formas da política e incorporar forças e ideias divergentes e até antagônicas num contexto de liberdade e pluralismo. Mais democracia, portanto, e não menos. À falta de tais recursos, a direita populista e iliberal dos nossos dias, ao contrário do que queria o poeta, mente e dificulta, corrói as instituições e faz adoecer as palavras. Congênita a ela é a busca obsessiva e paranoica do inimigo geopolítico e dos seus agentes internos a serem aniquilados, numa imóvel guerra fria que se limita a substituir espantalhos: antes, a Rússia de 1917, agora a China de 1949.
A liberdade que a direita autocrática apregoa é internamente contraditória. Ela é, acima de tudo, a liberdade do indivíduo autarquicamente concebido, desembaraçado de vínculos e obrigações, e armado até os dentes para defender o que discricionariamente entende ser seus “direitos”. A contradição interna fica patente quando se observa que, para fazer valer a liberdade sem laços e os direitos sem contrapartida, torna-se necessária a implantação de um Estado baseado, primariamente, na força e, secundariamente, na fabricação artificial do consenso. Em resumo, na mentira, na distorção e na enfermidade de palavras e sentidos.
Elites políticas, de direita, centro ou esquerda, dirigentes econômicos e cidadãos comuns, como qualquer um de nós, quase podemos “tocar” na história que se desenrola à nossa frente, com seus fatos e personagens precários e bizarros. É verdade, não estamos em 1930 e os embriões de Hitler e Mussolini não passam disto: embriões. O Inquisitorial, no entanto, continua a incomodar e a tirar o fôlego: “Tu, ante o presente, / Como te defines ao que será passado?”.
*TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,do-terceiro-reich-ate-nos,70003842196
“Em defesa da democracia, contra a desinformação”
Fundações esclarecem, em nota, que a mobilização política, manifestações, comícios ou marchas cívicas são tarefas próprias dos partidos políticos organizados
Vinculadas a partidos do campo democrático, nove fundações divulgaram nota conjunta, neste sábado (18) para esclarecer reportagem do jornal O Estado de São Paulo, publicada no dia 15 de setembro de 2021, sob o título “Partidos acertam nova agenda de protestos e vão financiar campanha pelo impeachment”. O texto afirma que “fundações de formação política mantidas por nove partidos de oposição vão financiar a criação de publicações e materiais para difundir a campanha pelo impeachment do Presidente Jair Bolsonaro”. A nota, intitulada “Em defesa da democracia, contra a desinformação”, esclarece que a mobilização política, a organização de manifestações, comícios ou marchas cívicas escapam às finalidades das fundações, constituindo tarefas próprias dos partidos políticos organizados.
Confira a íntegra do texto:
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Eliane Catanhede: No Dia da Democracia, Bolsonaro é alvo de juristas, CPI, ONG
Os fatos que se sucederam contra ele são igualmente impressionantes e mais perigosos que as fotos do 7 de Setembro
Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo
O presidente Jair Bolsonaro prefere as fotos das manifestações de apoio a ele no Sete de Setembro, realmente impressionantes (por diferentes motivos), mas os fatos que se sucederam contra ele, aglutinando poderosos agentes políticos de dentro e de fora do País, são igualmente impressionantes (neste caso, por motivos óbvios). E mais perigosos.
Vejamos a quarta-feira, 15 de setembro, justamente o dia internacional da velha, boa e tão atacada democracia: Bolsonaro sofreu uma enxurrada de más notícias, confirmando que há várias frentes políticas, econômicas, jurídicas e internacionais fechando o cerco não apenas contra o que ele diz e faz, mas ao que representa.
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CPI da Covid lavou as mãos sobre os planos de saúde na pandemia
A notícia de maior alcance partiu da comissão de juristas que entregou à CPI da Covid 200 páginas tipificando os crimes que teriam sido praticados pelo presidente da República durante a pandemia. Todas aquelas coisas que a gente sabe, viu e ouviu, mas sempre chocam, irritam e, agora, vêm acompanhadas dos respectivos artigos de códigos, leis e da Constituição.
O parecer, como o próprio relatório final da CPI, que está no forno, pode ter efeitos drásticos para Bolsonaro, porque será usado para pedido de impeachment na Câmara, de abertura de processos de crime comum na PGR e de crime contra a humanidade no Tribunal de Haia. Uma das juristas, aliás, é Sylvia Steiner, ex-juíza dessa corte.
“As acusações contra Bolsonaro são mais graves do que aquelas contra Collor e Dilma Rousseff. E suas consequências são terríveis”, disse à Rádio Eldorado o coordenador dos juristas, Miguel Reale Jr., ex-ministro da Justiça, autor do pedido de impeachment dos dois ex-presidentes. Ele sabe das coisas...
Ainda na CPI, o depoente foi Marconny Albernaz Faria, lobista da Precisa Medicamentos, que só não vendeu vacina Covaxin para o governo por causa da própria CPI. Mas o importante são suas ligações, bem próximas, com o filho 04 do presidente, Jair Renan, a ex-mulher do presidente Ana Cristina Vale e a advogada do presidente, Karina Kufa. Isso vale ouro.
Enquanto isso, a Human Rights Watch citava os ataques ao Supremo e às eleições para acusar o presidente do Brasil de ameaçar a democracia. “O presidente Bolsonaro, um apologista da ditadura militar no Brasil, está cada vez mais hostil ao sistema democrático”, segundo José Miguel Vivanco, diretor de Américas da ONG.
Uma semana após o manifesto de Bolsonaro, pró-moderação, a ministra do Supremo Rosa Weber destacou os “mares revoltos em que temos navegado” e o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, alertou que a democracia está sob ataque no mundo, “por populismo, extremismo e autoritarismo”. Nunca um Dia da Democracia foi tão animado.
E foi também na quarta-feira que saiu a lista dos cem líderes mais influentes do mundo da revista Time. Do Brasil, o único nome foi de Luiza Trajano, do Magazine Luiza, candidata a vice de nove entre dez presidenciáveis e sonho de alguns para a própria Presidência. Jair Bolsonaro, que constou da lista de 2020, ficou de fora.
Se o 7 de Setembro pró-Bolsonaro foi um sucesso de presença e um desastre de discurso, o 12 de Setembro anti-Bolsonaro foi um fiasco em número e grau. As oposições, porém, começam a se aprumar. Nove partidos pretendem financiar a convocação dos próximos protestos, no início de outubro e em 15 de novembro, já embalados pelo relatório da CPI.
Nesses quase três anos, Bolsonaro esteve tão ocupado em manter e atrair aquela gente toda que foi à rua que não teve tempo para governar e, assim como não viu a economia desandando, as queimadas na Amazônia e a crise hídrica chegando, ele também foi incapaz de reagir devidamente à única tempestade que realmente lhe interessa: o cerco se fechando.
COMENTARISTA DA RÁDIO ELDORADO, DA RÁDIO JORNAL (PE) E DO TELEJORNAL GLOBONEWS EM PAUTA
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,no-dia-da-democracia-bolsonaro-e-alvo-de-juristas-stf-cpi-ong-e-partidos,70003842494
Morte de Lamarca completa 50 anos e atuação na guerrilha ainda incomoda militares
Pressões políticas e jurídicas mantêm em suspenso definição sobre a reparação financeira à viúva e aos dois filhos do capitão
Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Há exatos 50 anos, em 17 de setembro de 1971, Carlos Lamarca era metralhado sob a sombra de uma baraúna, no sertão da Bahia. A história do capitão do Exército que desertou para participar da luta armada contra a ditadura ainda provoca desconforto. As Forças Armadas não aceitam a anistia concedida em 2007. Até o presidente Jair Bolsonaro tenta inserir na própria biografia uma suposta contribuição decisiva à captura do combatente.
Pressões políticas e jurídicas mantêm em suspenso a definição sobre a reparação financeira à viúva e aos dois filhos de Lamarca, quase dez anos depois da lei criada no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 2022, que permitiu o pagamento de indenizações a famílias de perseguidos políticos. O processo que discute a indenização entrou na pauta de uma das turmas do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, nesta semana, mas o julgamento acabou adiado, sem data para ser retomado. A depender do desfecho, o caso ainda pode ir ao plenário e, em seguida, às instâncias superiores.
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Desde 2015 a reparação financeira à família Lamarca está suspensa por decisão do primeiro grau da Justiça Federal do Rio, com determinação para o ressarcimento dos valores recebidos. Duas ações semelhantes, que depois passaram a tramitar unidas, questionam os benefícios. Uma é assinada pelos clubes Militar, da Aeronáutica e Naval, que defendem interesses de militares da reserva. A outra foi movida pelo advogado João Henrique Freitas, hoje chefe da Assessoria Especial de Jair Bolsonaro e presidente da Comissão da Anistia.
A mesma comissão, em 2007, reconheceu como anistiados o capitão Lamarca; a viúva, Maria Pavan; e os filhos César e Cláudia. Determinou o pagamento de R$ 100 mil a cada um deles, a título indenizatório, uma reparação econômica à viúva, de R$ 902 mil, a promoção do capitão a coronel e a fixação da pensão em valor correspondente ao ganho de um general de brigada.
Maria e César vivem hoje em Portugal. Claudia, no Brasil. Procurados, não quiseram comentar a data histórica nem o processo que se arrasta na Justiça. Sem ligação com as bandeiras de Lamarca, os três se exilaram em Cubapouco antes de ele optar por combater a ditadura, em 1969, e foram monitorados pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), no exterior e depois do retorno ao Brasil.

Os advogados do Clube Militar esperam a manutenção da decisão de primeiro grau. “A expectativa que a gente tem é a de que seja mantida a sentença. Pelo nosso entendimento, o que ocorreu é que o ex-capitão cometeu deserção e furto de armamento. Não foi afastado das fileiras do Exército por perseguição política, mas por crimes julgados pela Justiça Militar”, comentou Alexandre Fortes da Costa.
Por sua vez, o presidente da Comissão de Anistia em 2007 Paulo Abrão afirma que, independentemente do “juízo de valor” das práticas de Lamarca, é “dever” do Estado promover a reparação. “Me parece muito sintomático que estejamos em pleno 2021 criando obstáculos para complementar o ciclo da reconciliação nacional.”
Caçada. Lamarca é um dos adversários da ditadura mais lembrados por Jair Bolsonaro, para quem a figura histórica não passa de um terrorista da pior espécie que matou um tenente do Exército enquanto fugia de um cerco. Como deputado, dedicou entrevistas e discursos contra o ex-militar. Na disputa à Presidência em 2018, apresentou a versão de que embrenhou-se nas matas de Eldorado, região do Vale do Ribeira, onde cresceu, na caçada a Lamarca. “Eu participei da luta armada no Vale do Ribeira, na caça do Lamarca (...). Esse grupo do Lamarca era o mesmo grupo da Dilma Rousseff”, disse, em entrevista ao Roda Viva, em julho de 2018.
Em 1969, Lamarca fugiu do quartel, no bairro de Quitaúna, em Osasco (SP), numa Kombi carregada de fuzis e metralhadoras. No ano seguinte, ele e mais sete guerrilheiros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) passaram em fuga por Eldorado. Jair Bolsonaro tinha 15 anos recém completados. O presidente narra que os militares que participaram de confrontos com Lamarca na cidade ganharam prestígio. E foi deles que recebeu recomendações para seguir a carreira militar. Ainda que Bolsonaro tenha oferecido alguma contribuição – algo do que não existe registros, e considerado pouco crível por especialistas –, quase nada adiantou. Lamarca ainda estaria livre por quase um ano e meio.

Anistia. Ministro da Justiça à época em que a anistia foi concedida a Lamarca, Tarso Genro afirma que a condição foi atestada não a partir dos feitos do ex-capitão, mas por conta do tratamento dado a ele pelo Estado. “O assassinato de Lamarca foi feito fora das regras da própria ditadura. Portanto, ele tem que ser anistiado. Sofreu a punição máxima, assassinato a sangue frio”, diz. “Com essa formulação, queríamos criar uma concepção dialógica dentro da transição, para que ocorressem duas coisas: as pessoas que sofreram as agruras da perseguição fossem assistidas e as pessoas que se comportam fora da legalidade do próprio regime fossem responsabilizadas”, ressalta. “O que ocorreu, apesar do nosso esforço, foi o contrário.”
Homenagens na Bahia
O 17 de setembro é feriado em Brotas de Macaúbas e em Ipupiara, cidades vizinhas localizadas no sertão da Bahia, a cerca de 600 quilômetros de Salvador. Foi nessa região que Lamarca escreveu seu último capítulo e entrou para o imaginário local.
Assim como ele, por exemplo, o sindicalista José Campos Barreto também é lembrado e homenageado até hoje. Natural de Brotas, Zequinha, como era conhecido, liderou importantes greves em Osasco (SP) no fim dos anos 1960 e, mais tarde, integrou os quadros da VPR. Ele e Lamarca foram capturados juntos, após dias de fuga pela caatinga à base de rapadura.
Uma grande operação liderada pelo major Nilton Cerqueira foi montada para dar fim a ambos, mortos a tiros em um distrito de Ipupiara e expostos em um campo de futebol da comunidade de Brotas.

Irmão de Zequinha, Olderico Campos, 73, conta que os militares espalharam muitas “fake news” para convencer os locais a darem informações que levassem ao paradeiro de ambos. “A elite da repressão veio toda para Brotas, o ponto central deles foi aqui. Eles colocavam na cabeça das pessoas que Lamarca tinha uma bomba que, se soltasse, não sobraria uma pessoa, uma cabeça de gado, num raio de 20 quilômetros”, lembra.
Sabendo da perseguição ao irmão, Olderico, com 23 anos, chegou a trocar tiros com os militares. Foi ferido na mão e no rosto e torturado na propriedade da família. O irmão Otoniel, de 20 anos, foi morto a tiros. Aposentado e dono de uma pequena propriedade rural, Olderico conta que costuma receber admiradores de Lamarca e Zequinha que visitam a região para reconstituir os últimos passos e render homenagens à dupla. “Eu tenho admiração profunda por aquela força, intelectual e física. Eu não ia brigar com o esquadrão da morte por qualquer coisa, não é? Considero Zequinha como vivo. Nenhum dos dois, nem Zequinha nem Lamarca, a gente chama de finado”, disse.
A principal homenagem anual parte da Igreja Católica. O bispo da Diocese de Barra, Dom Luiz Cappio, 74, que ficou conhecido nacionalmente pelas greves de fome que fez contra a transposição do Rio São Francisco no início dos anos 2000, organiza uma procissão seguida de missa acompanhada por moradores de Ipupiara. Por iniciativa do sacerdote, foi construído no local em que os dois foram mortos o Memorial dos Mártires, em homenagem a Lamarca, Zequinha e outros quatro filhos da cidade que lutaram contra a ditadura. “Fazemos isso há aproximadamente 20 anos. Sempre tem pessoas de fora, a palavra é aberta. As pessoas dão seus testemunhos”, destacou o religioso. “No começo houve resistências, mas hoje já faz parte da opinião pública de toda aquela região o valor dessas pessoas.
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Rosângela Bittar: Os mitos do mito Jair Bolsonaro
Legislativo e Judiciário mostraram-se mais fortes do que as ameaças do presidente
Rosângela Bittar / O Estado de S. Paulo
Ruíram os mitos que sustentavam a imagem popular de Jair Bolsonaro e que ele usava como argumento de força para ser reconhecido, desde já, presidente vitalício do Brasil. Sem passar por nova eleição.
Bolsonaro havia feito crer que, com seus poderes extraordinários de cavaleiro do apocalipse, daria voz de comando ao Judiciário, ao Legislativo, às espadas e aos fuzis. Imaginava-se, no mínimo, que o País se encaminhava para um golpe. Tal como expresso nas faixas exibidas por seus eleitores que foram às ruas para apoiá-lo: intervenção militar e novo AI-5. A senha do golpe já estava registrada, poderia até ser o insulto violento ao ministro Alexandre de Moraes (STF), que nomeou seu algoz, proferido nos microfones do palanque.
O governo jamais desfez esta impressão, dominante entre seus apoiadores, inclusive.
Antes mesmo do 7 de Setembro, esfumaçaram-se alguns desses mitos. A elite do agronegócio, por exemplo, ao defender a democracia, mostrou que o bolsonarismo radical, em seu meio, é restrito. O sistema financeiro garantiu, de papel passado, a Constituição e suas instituições democráticas. Os poderes Legislativo e Judiciário mostraram-se mais fortes do que as ameaças de destruição feitas pelo presidente da República e seus porta-vozes.
Restava a expectativa sobre de onde viria, então, o primeiro tiro, uma vez que o apoio armado a Bolsonaro não se mostrava ostensivo.
Ao descer, trêmulo, do palco do comício que fez em São Paulo, Bolsonaro mostrou que a manipulação que faria das polícias militares, do Exército Nacional, do Ministério Público e da Polícia Federal tornara-se, sem que percebesse, um sonho impossível.
O domínio discricionário das Forças Armadas, o mais temido dos mitos que cercam o poder de Bolsonaro, nem sequer foi tentado. O Exército não se afastou um milímetro do seu papel constitucional. Os generais em evidência na cúpula presidencial saíram silenciosos da refrega que promoveram na data nacional. Já pequenos, reduziram-se mais.
O País deve observar, na sequência, a descompressão forçada do presidente sobre os comandantes militares de tropa. Poderão estas forças, também, reagir com mais firmeza ao não atender a pedidos de atuação política fora de seus regulamentos, insistentemente feitos pela Presidência e pelo atual Ministério da Defesa.
O apreço dos militares por Bolsonaro permanece elevado. A ele reservam lealdade, respeito à hierarquia e disciplina. E esperam que o presidente faça o mesmo e tenha se convencido de que cumprirão com rigor suas funções, catálogo em que não está previsto o golpe.
Outro mito cuja ausência as manifestações revelaram foi o de controle total das polícias militares, sobre quem, inclusive, Bolsonaro patrocina legislação para torná-las submissas ao comando federal. Nenhuma PM descumpriu ordem de seu governador.
As manifestações apontaram ainda que a Polícia Federal são muitas e nem todas estão sob as ordens diretas de Jair Bolsonaro. Cada delegado é um poder. O presidente domina alguns deles. Não todos. Estão conduzindo inquéritos e fazendo prisões de amigos, parlamentares aliados e cúmplices. O “meu pessoal”, como Bolsonaro os define.
O Ministério Público, outro mito da aliança incondicional, nutrido no comportamento dúbio do procurador Augusto Aras, não está agindo como esperado. Até Aras, e não apenas os demais integrantes da instituição, tem contrariado os caprichos do presidente. Bolsonaro, até hoje, quase três anos de mandato, ainda não entendeu a natureza das funções presidenciais que deveria exercer.
À medida que caíram da mitologia da força irresistível de Jair Bolsonaro, estas instituições cresceram tanto quanto se fortaleceu o Supremo Tribunal Federal. Alvo principal dos tiros de Bolsonaro que, por enquanto, só têm saído pela culatra.
Deputados do PSL querem aprovar lei que cria a 'KGB de Bolsonaro'
Projeto bolsonarista coloca em risco direitos como 'a liberdade de expressão, associação e reunião pacífica, além do próprio direito de protesto'
Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo
O bolsonarismo prepara mais um ataque à democracia e ao Estado de Direito. É o que dizem especialistas ouvidos pela coluna e procuradores da República que analisaram o projeto de lei antiterror de autoria do deputado federal Vitor Hugo (PSL-GO). A peça recebeu parecer favorável de seu colega da bancada, o delegado Sanderson (PSL-RS), na sexta-feira, dia 10. E agora a dupla quer levá-la a voto nesta semana na Comissão Especial da Câmara que analisa a matéria.
Em nota técnica, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) disse sobre o texto dos bolsonaristas: "a ampliação e generalização de conceitos (de terrorismo) e a sobreposição de previsões e competências inspiram o fundado temor de aplicação da lei eventualmente aprovada a um amplo conjunto de pessoas, de forma direcionada ou enviesada, o que colocaria o Brasil em rota de colisão com o próprio Estado de Direito".
Os procuradores dizem ainda que "há um risco de recrudescimento na atuação de forças de segurança, com a concentração de poderes nas mãos do Presidente da República, e possibilidade de perseguição a movimentos sociais e defensores de direitos humanos". A nota foi publicada no dia 3 de Setembro, pouco antes de Jair Bolsonaro discursar na Avenida Paulista. O contraterrorismo de Bolsonaro quer combater "grupos que atuem contra os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil por meio da realização de atos terroristas".

Em seu discurso na Paulista, Bolsonaro incluiu o Supremo Tribunal Federal entre os grupos que atuam contra os princípios da Constituição. Eis o tamanho da encrenca do que se pretende aprovar no Congresso. Bolsonaro quer criar uma Autoridade Nacional Contraterrorista e igualar qualquer crime que ameace vidas humanas ao terrorismo ou que "afete a definição de política pública por meio de intimidação". Está ali no projeto: "Esta lei será aplicada também para prevenir e reprimir a execução de ato que, embora não tipificado como terrorismo, seja perigoso para a vida humana ou potencialmente destrutivo a alguma infraestrutura crítica , serviço público essencial ou recurso-chave".
Tudo o que afete por "intimidação" as políticas de Bolsonaro seria, pois, combatido. A esse respeito, diz a ANPR: "A diferença entre um ato terrorista e crimes comuns residiria em consequências genéricas como 'perigo para a vida humana' e 'afetar a definição de políticas públicas', bastando a 'aparente intenção' de causá-las. Com essa previsão, no entanto, o texto amplia de forma inadequada o alcance do conceito de ato terrorista, além de violar o princípio da legalidade e da taxatividade da lei penal".
Dezenas de condutas poderiam ser tratadas como terrorismo. Um governo impopular, que vê nascer contra si manifestações de rua, poderá usar atos isolados de vandalismo para criminalizar todos que protestam. Ao tratar da proposta, o líder da oposição na Câmara, deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), disse: "A maior ameaça ao Brasil hoje está no Palácio do Planalto, e não nas manifestações democráticas". Ele explica por quê: "Nosso temor é que, de fato, a Autoridade Contraterrorista seja mais um instrumento a se transformar na polícia política de Bolsonaro, o que ele já tenta fazer com outras instituições de Estado".
Não é segredo que os Bolsonaros sonham em criminalizar a ação de movimentos sociais e da oposição. Seu filho Eduardo Bolsonaro disse ao Estadão que não via problema em prender cem mil pessoas ao responder sobre seu desejo de classificar como terrorismo as ações do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST). Também defendeu a criminalização do comunismo. Ora, eis aqui outra encrenca. Para o bolsonarismo, quem lhe faz oposição é desde sempre comunista.
Banqueiros que assinaram o manifesto contra a escalada antidemocrática são esquerdistas. Vermelho é o MBL, é Fernando Henrique Cardoso, são os ministros do STF – chamados de comunistas por generais bolsonaristas ouvidos pela coluna – e todo aquele que atrapalha os caprichos do bolsonarismo. Seguem aqui os ensinamentos do coronel francês Roger Trinquier, veterano da contrainsurgência e da Batalha de Argel. Ele escreveu em A Guerra Moderna: "Todo indivíduo que de uma forma qualquer favoreça os desígnios de nossos adversários será considerado um traidor e tratado como tal".
Ou seja: para os Bolsonaros, criminalizar o comunismo é uma forma de criar instrumentos para perseguir os que discordam do governo, indistintamente considerados aliados do Foro de São Paulo. Após o voto impresso e o dia 7 de Setembro, surge o projeto de Vitor Hugo. Ele traz um artigo que dá à Autoridade Contraterrorista o poder de ter acesso a qualquer informação, ainda que protegida por sigilo nos termos da Lei de Acesso à Informação. A intimidade e a privacidade das pessoas podem ser violadas para "prevenir crimes" – quaisquer crimes e não só o terrorismo, conforme diz a lei. Cria-se um monstro, sem controle do Ministério Público, uma KGB que vigiará os cidadãos para combater "crimes". Quais? Qualquer um que a autoridade antiterror queira investigar.
Não se trata apenas de mais um ente estatal para arrumar emprego aos integrantes de forças especiais que se aposentam cedo e podem assim acumular novos salários na gestão pública. Seus poderes autorizam a infiltração de agentes com identidades falsas para fazer a prevenção de crimes. Diz a ANPR sobre os infiltrados : "Quer pelos riscos ao agente do Estado a ser infiltrado, quer pela necessidade de fixação de parâmetros para a sua atuação, quer, ainda, pela abertura conceitual das hipóteses previstas no PL, demandaria um conjunto estrito de regras e de hipóteses autorizadoras, inclusive para evitar o uso indevido do mecanismo".
E isso não é tudo ainda. O projeto confere aos agentes secretos de Bolsonaro o direito de matar por meio do chamado excludente de ilicitude, já rejeitado durante o pacote anticrime. Diz a ANPR: "Há ainda a previsão de excludente de ilicitude (art. 13) do agente público contraterrorista, que traz de volta o debate acerco dos limites do uso da força, ainda mais diante da previsão de sua aplicação 'quando a situação vivenciada o impuser'". Para os procuradores, o resultado pode ser "a legitimação de violações de direitos fundamentais por parte dos agentes públicos, mediante a disseminação de uma atuação ostensiva e violenta".
Molon diz que esse não é o momento para se votar um projeto como esse. "É preciso aprofundar o debate, com calma." O deputado Sanderson defendeu seu relatório. Disse não haver "nada que aponte para a criminalização de manifestações, qualquer que seja a pauta das mesmas, enquanto manifestações de natureza social, política ou ideológica, mas que não podem servir de fachada para abrigar atos de selvageria que provoquem terror físico ou psicológico, causem danos ao patrimônio público ou privado ou, até mesmo, mortes". Ou seja, o parlamentar confessa que deseja fazer isso mesmo que a ANPR considera ser ilegal.
Ou alguém pode acreditar no bom senso de um bolsonarista para definir o que é uma manifestação legítima? Se o movimento acha que o direito à liberdade de expressão protege atentados ao Estado de Direito e à harmonia entre os Poderes, como confiar em seu discernimento sobre o que põe em risco a ordem pública? Diz a ANPR: "O texto acena com esse objetivo ao estabelecer uma previsão genérica e ampla do conceito de terrorismo e a indicação de um conjunto de atos preparatórios que podem ensejar as chamadas ações contraterroristas. Com isso, coloca-se em risco a preservação do núcleo essencial de direitos como a liberdade de expressão, associação e reunião pacífica, além do próprio direito de protesto".
BOLSONARO 2021




























































Por fim, faltava a cereja desse imbróglio. Ela está na submissão da Autoridade Nacional Contraterrorista ao controle direto do presidente Jair Bolsonaro. Dizem os procuradores: "O estabelecimento de atribuições e funções na política nacional contraterrorista à autoridade nacional contraterrorista acarreta sobreposição de funções e usurpação de atribuições de outros entes federativos. Com isso, há a preocupação com a formação de um sistema paralelo de vigilância e segurança e a estipulação de poderes concentrados nas mãos do Presidente da República". Maduro é capaz de pedir uma cópia do projeto...
Está claro? Depois do discurso do dia 7 de Setembro, cabe ao País indagar se é possível pôr nas mãos de Bolsonaro ou de qualquer outro inquilino do Planalto um poder tão grande sobre os cidadãos e envolto no mais absoluto sigilo. Hannah Arendt dizia que "o verdadeiro poder começa onde o segredo está". Tinha razão. Mas o projeto dos prepostos do capitão é um segredo de polichinelo. Seus críticos não têm dúvida: em vez de combater o terror, ele se destina apenas a aterrorizar os que se opõem a Bolsonaro.
PRINCIPAIS PONTOS DO PROJETO:
1 - Cria a Autoridade Nacional Contraterrorista
2 - Os agentes antiterroristas precisam de curso em grau máximo de forças especiais
3 - A Autoridade terá acesso a toda informação sigilosa que precisar.
4 - Ela pode não só investigar crimes, mas também prevenir crimes e ameaças.
5 - Os crimes que ele pode investigar e prevenir não são apenas o terrorismo, mas todos aqueles que a autoridade entender que sejam: perigosos à "vida humana" ou "potencialmente destrutivo a alguma infraestrutura crítica, serviço público essencial ou recurso-chave" ou que "afete a definição de política pública por meio de intimidação".
6 - Quem decide quais crimes investigar é a autoridade bem como ela decide o que é um crime em preparação ou uma ameça.
7 - Ela pode infiltrar agentes sem que haja critérios que diferenciem ações de combate ao terror de ações de inteligência.
8 - Projeto desconsidera o papel do Ministério Público no controle externo da atividade policial e o seu papel como titular privativo da promoção da ação penal.
9- Seus agentes poderão matar segundo a teoria bolsonarista do "excludente de ilicitude"
10- A Autoridade Nacional Contraterrorista terá um chefe policial e um chefe militar que ficarão diretamente subordinados ao presidente da República.

*Marcelo Godoy é repórter especial. Jornalista formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015).
Pedro Dória: Lições para aprender após a tentativa de golpe de Estado
Nada do que estamos vivendo ocorreria se aprendêssemos algo com o passado
Pedro Dória / O Estado de S. Paulo
Esta coluna tem tema — o impacto das transformações digitais no mundo. Mas esta não é uma semana qualquer. Na terça-feira, logo um 7 de Setembro, o presidente Jair Bolsonaro juntou uma pequena multidão na avenida Paulista e ameaçou violar o artigo 85 da Constituição. É aquele que obriga alguém em seu cargo a cumprir decisões judiciais sob a pena de impeachment. Durante aquele dia, a PM do Distrito Federal resistiu a sete ofensivas contra o Palácio do Supremo. Foi uma tentativa de golpe de Estado, que se frustraria, o que não faz disso menos grave. Dois dias depois, na quinta, perante um impeachment posto no radar, Bolsonaro se acovardou. Tenta recuar do desastre com uma carta escrita pelo ex-presidente Michel Temer. Peço licença, pois, aos leitores habituais da coluna para vestir só nesta semana meu outro chapéu profissional — o do jornalista que escreve sobre história. Porque nada do que estamos vivendo ocorreria se aprendêssemos algo com o passado.
A primeira lição: existe um germe militar autoritário na cultura política brasileira. Sempre que o País se desorganiza, um grupo grande o suficiente de brasileiros bate à porta dos quartéis. Por algum motivo, acreditamos que os militares representam ordem, disciplina e competência. Foi assim em 1889, quando Deodoro pôs abaixo o Império. Também foi assim em 1937, quando Getúlio se apoiou em dois marechais para cercar o Congresso e encerrar o período da melhor Constituição que tivemos até 1988. A eleição de Eurico Gaspar Dutra foi isso. Ia sendo assim em 1954, quando o mesmo Getúlio — agora na outra ponta — meteu um tiro no peito evitando um golpe. Em 1964. E, em 2018, perante o caos deixado pela instabilidade da década de 10, com a eleição de Bolsonaro.
Nunca dá certo. Os governos militares foram uniformemente incompetentes, ineptos, desordeiros, corruptos e desorganizados. A única promessa que militares cumprem no poder é que, ora, autoritários eles são mesmo. Por que não aprendemos que é um desastre? É um mistério. Mas o resultado é sempre o mesmo.
A segunda lição é uma que a centro-esquerda não consegue aprender. É incapaz de pactuar com o Centro democrático. Para a Esquerda brasileira, é como se o Centro não existisse. Tudo para além é a ‘Direita’. Com a Direita fisiológica tem conversa — Getúlio fez muito disso. A Centro-Esquerda então transforma sua vertente radical em massa de manobra. Jango fez muito disso. Pactuar com o Centro? Nunca. Sequer reconhecer a existência de tal coisa. É assim que Fernando Henrique Cardoso passou sua presidência sendo chamado de fascista.
Se tivesse havido um diálogo cordial e democrático em cima da extensa interseção de objetivos de Centro-Esquerda e Centro, a história da Nova República teria sido outra.
Mas este Centro, do qual fazem parte os Liberais, também tem culpa no cartório. Mesmo alguns de nossos melhores Liberais, dentro os mais convictos democratas como Ruy Barbosa e Afonso Arinos, sempre existe esta ilusão do atalho autoritário. Uma ditadura curta vai promover reformas tão difíceis de realizar na Democracia. Um autoritário de pulso firme fará o que é preciso para o Brasil entrar nos trilhos.
Como pode um Liberal apoiar um autoritário? Está entre nossas jabuticabas brasileiras. Sempre dá errado.
A mais cruel das lições é outra. Assim como a Frente Ampla que juntou Carlos Lacerda, João Goulart e Juscelino Kubitschek demorou três anos de ditadura para enfim sair, os democratas são incapazes de caminhar juntos perante uma ameaça à democracia. A gente não aprende.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://link.estadao.com.br/noticias/geral,licoes-para-aprender-apos-a-tentativa-de-golpe-de-estado,70003835960