o estado de s paulo

Rosângela Bittar: Pandemia tem impacto no voto

O eleitor se distanciou de 2018, quando apostou numa nova política que caducou em menos de dois anos

O impacto da pandemia do coronavírus sobre o eleitor municipal foi amplo, sem limites. Longe de impor seu peso apenas sobre a esperada abstenção dos mais velhos, o efeito maior se deu sobre a definição dos critérios do voto.

O eleitor se distanciou de 2018, quando apostou numa nova política que caducou em menos de dois anos. Também se mostrou alheio a 2022, indiferente à sucessão de Jair Bolsonaro. Pensou no aqui e agora. Valorizou a experiência, a política convencional. Quis escolher as lideranças que, com paixão, compreendessem o drama principal. Menos ideologia, mais emoção.

Ao longo do ano, o eleitor municipal veio informando sobre a prioridade que atribuía à pandemia. Os que negaram a crise sanitária sentiram agora sua presença eleitoral.

A pandemia já fizera vítimas eleitorais derrubando, inclusive, o projeto de reeleição do presidente americano Donald Trump. Se estivesse disputando a sua sorte agora, Bolsonaro teria sucumbido. Restam-lhe dois anos para rever sua teimosia. Como este quadro evoluirá no segundo turno das duas maiores cidades do País é a nova dúvida.

Nesta fase, surge com peso decisivo o voto plebiscitário. No caso do Rio, a questão se concentra nos efeitos do uso da religião e da força do apoio de Bolsonaro. O fanatismo da campanha de Marcelo Crivella prevalecerá contra o patrimônio político de Eduardo Paes?

Em São Paulo, foi surpreendente o desempenho da esquerda, com Guilherme Boulos (PSOL) e Jilmar Tatto (PT). Os dois somados levam Boulos ao segundo turno com índice próximo ao do líder Bruno Covas (PSDB).

Os votos de Márcio França (PSB), de centro-esquerda, podem ser decisivos. Mas não devem ir em bloco para um dos dois finalistas. Pessoalmente, França relutaria em aplicar sua força eleitoral para favorecer um candidato de João Doria.

Mas o seu eleitorado, moderado, pode ter mais afinidades ao centro do que à esquerda.

Em São Paulo, a campanha será influenciada por uma desconstrução recíproca. De um lado, Covas identificado ao desgaste de Doria; e de outro, Boulos identificado às invasões e depredações.


Vera Magalhães: Há espaço contra polarização Bolsonaro-PT

O que fica evidente é que há espaço para projetos alternativos à polarização Bolsonaro-PT, porque o eleitor está cansado do primeiro e sem saudade do segundo

Existe a máxima segundo a qual eleições municipais levam em conta apenas fatores diretamente ligados aos municípios. É verdade. Mas também é impossível, sobretudo nos grandes centros urbanos, dissociar esse voto de algumas balizas nacionais.

A primeira delas neste 2020 é a pandemia. Ela não só mudou a maneira como se fez campanha como moldou a disposição do eleitor de encarar os candidatos de forma mais racional e desapaixonada. Os gestores que demonstraram responsabilidade no trato da pandemia foram reconhecidos pelo eleitor.

A segunda grande conclusão possível é que houve um resgate da política do pântano no qual ela foi jogada depois de eventos traumáticos como Lava Jato, impeachment de Dilma Rousseff, prisão de Lula, desmoralização de Aécio Neves e denúncias em série contra Michel Temer no curso de sua curta Presidência.

Esse conjunto surreal de eventos, em menos de quatro anos, permitiu que um outsider como Jair Bolsonaro virasse um Cacareco com sucesso eleitoral.

A pandemia, a maneira irresponsável com que Bolsonaro se comportou ao longo do ano e a rápida debacle de outras figuras histriônicas eleitas na sua aba levaram a que agora, apenas dois anos depois, a “nova” política fosse devolvida às redes sociais.

A terceira conclusão é o surgimento de uma nova esquerda não petista com musculatura em todo o País. PSOL, PDT, PSB e até o PC do B, com histórico de ser um satélite petista, vão avançando em várias capitais, ao passo que o PT tem a cabeça de chapa em apenas duas disputas de segundo turno – sem ser favorito em nenhuma delas.

O partido segue negando as evidências: o fato de que não fez nenhum gesto sincero e efetivo de reconhecimento de que promoveu corrupção sistêmica no governo, ao mesmo tempo em que destruiu a economia.

Por fim, a eleição mostra um espaço de reconstituição do centro, também ele dizimado em 2018. A abrangência desse centro, suas delimitações à esquerda e à direita e quem será aceito na festa do céu são questões postas desde já. O que fica evidente é que há espaço para projetos alternativos à polarização Bolsonaro-PT, porque o eleitor está cansado do primeiro e sem saudade do segundo.


Eliane Cantanhêde: Eleitor dá uma grande vitória ao País

Depois de se aventurar sem racionalidade em 2018, eleitorado desta vez preferiu caminhar em terra firme e a grande vitória destas eleições é da política tradicional

As eleições de 2018 foram um hiato e as de 2020 repõem as coisas nos devidos lugares. Assim como nesses dois anos evaporaram todas as bandeiras de campanha do presidente Jair Bolsonaro, também sumiram de Norte a Sul os partidos, candidatos e compromissos inventados sob o rótulo de “nova política”. Eles não tiveram vez.

Depois de se aventurar sem racionalidade em 2018, o eleitorado desta vez preferiu caminhar em terra firme e a grande vitória destas eleições é da política tradicional, do conhecido, de quem tem serviço prestado. A direita belicosa de Bolsonaro ficou pelo caminho, junto com o PSL, militares, policiais, bombeiros e juízes que se meteram onde não deviam.

A “nova-velha” centro direita, que se contrapõe à extrema direita bolsonarista, é mais moderna e confiável, não surpreende a vantagem de DEM e PSDB, que concorreram separados, mas devem se encontrar em 2022. O DEM ganhou em primeiro turno Salvador, Curitiba e Florianópolis e, no Rio, o ex-prefeito Eduardo Paes enfrenta no segundo turno o atual prefeito, Marcelo Crivella, que tem índices recordes de rejeição.

O PSDB chega em primeiro em São Paulo, reelegeu Cinthia Ribeiro em Palmas e disputa bem em Natal, Campo Grande e Porto Velho. Se Bruno Covas for reeleito, como tudo indica, deverá gerar um outro troféu: o MDB deverá ter o maior número de prefeituras, mas os tucanos poderão governar o maior número de eleitores no País.

Na outra ponta, a esquerda surpreende bem na reta final, mas não o PT. Guilherme Boulos (PSOL) terá dificuldades contra Covas no segundo turno, porque a resistência será forte em São Paulo, mas ele já teve uma conquista: a liderança das esquerdas, que estão bem em Belém, com PSOL, Porto Alegre, com PCdoB, e numa disputa em Recife entre PSB e PT, aliás, entre bisneto e neta do velho Miguel Arraes, grande referência política no Estado.

É assim que, apesar dos problemas do TSE, já se pode concluir que o eleitorado parou de brincar de novidades perigosas e voltou a olhar quem é quem, quem fez o que e o que são e representam os reais partidos. Só isso já é uma grande vitória.


Celso Lafer: ONU, 75 anos

Diplomacia do governo almeja para o nosso país a condição isolacionista de pária internacional

O multilateralismo e suas instituições têm como função criar mecanismos institucionalizados de cooperação entre os Estados. Resultam das realidades de um mundo finito e interdependente. Respondem à necessidade de lidar com desafios que não estão ao alcance das relações bilaterais e muito menos de ações unilaterais, como pandemias e mudança climática. É o que convém lembrar preliminarmente, afastando desqualificações “globalistas”, ao comemorar os 75 anos da Organização das Nações Unidas (ONU).

A ONU representa a presença da figura do terceiro no pluralismo do mundo dos Estados. Há na figura do terceiro um potencial de favorecimento do entendimento, que se revela nos conflitos bilaterais.

Os bons ofícios, a mediação, a arbitragem são exemplos da intercessão do terceiro nas soluções pacíficas de controvérsias.

A diplomacia é uma arte do terceiro, que opera no âmbito internacional no trato da governança da complexidade, negociando, persuadindo, contendo tensões, desdramatizando conflitos.

A ONU é um terceiro. Não é um terceiro acima das partes, um tertius super partes, porque não é um governo mundial. É um tertius inter partes, um terceiro entre as partes, criado pelos Estados e institucionalizado pela Carta das Nações Unidas, assinada em 26 de junho de 1945.

Tem como função ser uma instância de abrangência universal de interposição e mediação entre Estados. É dotada de personalidade jurídica própria, que não se confunde com a dos seus Estados-membros. É o que confere à ONU a sua identidade internacional. Para cumprir sua função de instância de interposição e intermediação, rege-se pelas normas da sua Carta. Guia-se pela “ideia a realizar” de ser “um centro destinado a harmonizar a ação das nações” para a consecução dos objetivos comuns dos seus propósitos – paz, segurança, relações amistosas e cooperação internacional.

Os propósitos da ONU e suas realizações foram reafirmados na resolução da Assembleia-Geral de 21 de setembro deste ano, que registra o muito que precisa ser feito, apontando que os grandes desafios do presente são interconectados e interdependentes. Por isso só podem ser enfrentados por meio de um multilateralismo revigorado e pelo reforço do pilar da cooperação internacional.

Do espaço da ONU tem se valido a diplomacia brasileira no correr das décadas, exercendo com competência a arte diplomática do terceiro para articular, na interação com os Estados que integram a sociedade internacional, a voz própria e os interesses gerais do Brasil na dinâmica do funcionamento do mundo.

O multilateralismo vem propiciando soft power para o nosso país, que agrega substância à diplomacia bilateral brasileira. É o que comprovam os estudos acadêmicos e a experiência dos que viveram “de dentro” a responsabilidade de representar o Brasil em instâncias multilaterais.

É o que não percebem a diplomacia do governo Bolsonaro e a vocação negacionista de seu chanceler Ernesto Araújo, que almeja para o nosso país a condição isolacionista de pária internacional.

A figura de secretário-geral corporifica a identidade do tertius inter partes. Ele é um agente administrativo, mas também um ator político, proveniente de seu poder de iniciativa que lhe dão a Carta e a prática construída por sucessivos secretários-gerais, cabendo destacar o papel inaugural que teve Dag Hammarskjold.

Ele, aliás, dizia que a missão da ONU não era a de elevar a humanidade ao céu, mas salvá-la do inferno. Daí a responsabilidade do secretário-geral de promover iniciativas de cooperação que façam da ONU um tertius ativo no encaminhamento dos grandes problemas internacionais.

Muito tem feito, em condições difíceis, o atual secretário-geral, António Guterres, com criatividade e determinação no exercício de suas funções, para as quais vem mobilizando a opinião pública e a sociedade em prol de um mundo mais sustentável e menos precário.

Concluo lembrando conhecida elaboração de Albert O. Hirschman sobre o papel da voz, da saída e da lealdade na dinâmica da vida de organizações. A lealdade numa instituição equilibra a voz e a saída. A saída pressupõe a existência de alternativas, no caso a alternativa ao multilateralismo e suas instituições, como a ONU. Eu não creio, dada a natureza da realidade internacional, que seja possível conviver com os unilateralismos de um Estado de natureza hobbesiana e sua propensão à guerra de todos contra todos. “Somos do mundo, e não apenas estamos no mundo”, como observa Hannah Arendt.

Daí a relevância da lealdade à ONU, que é uma característica histórica da diplomacia brasileira.

Quanto à voz, não faz sentido o monólogo da discussão contra, com a qual se compraz a diplomacia de confronto do governo Bolsonaro, mas sim o diálogo de discussão com os outros integrantes da comunidade internacional, tendo como propósito encontrar interesses comuns e compartilháveis, cujos caminhos o secretário Guterres vem desbravando de maneira corajosa e pertinente.

*Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Vera Magalhães: Reocupar o centro

Mesmo premida pela pandemia, eleição 2020 pode ser início do resgate da política

Foi só na semana passada que as pessoas parecem ter acordado para o fato de que hoje tem eleição. Nos últimos dias, três debates tiraram a campanha de São Paulo da clandestinidade imposta pela pandemia e pela omissão de quem a usou como desculpa para se esquivar do seu dever de promover a discussão como combustível da democracia.

O que esses debates e as pesquisas mostraram é que, mesmo driblando as restrições do ano do vírus e privado de informações, o eleitor parece ter chegado à conclusão de que é preciso votar com a cabeça, e não com o fígado ou com o coração. As disputas municipais vão resgatando a política, feita de bode expiatório em 2018, e escanteando a nova política estridente e feita de lacração nas redes sociais.

Com o pesadelo que é aguentar Jair Bolsonaro e sua Presidência buliçosa todos os dias há quase dois anos, depois de dois governadores eleitos na sua aba defenestrados, seu partido implodido e seus náufragos boiando dispersos por legendas amorfas, parcela significativa do eleitorado que votou nele (porque votaria até no demônio para não votar no PT) parece ter acordado do transe psicótico.

No outro lado, também sumiu da praça o eleitor negacionista dos descalabros do PT, aquele que fez ouvidos moucos para uma série de revelações baseadas em fatos e provas que mostravam que houve um assalto sistemático ao Orçamento público e ao patrimônio de estatais como forma de perpetuar um projeto de poder.

Isso era razão para se eleger um deputado ligado a milícias, com a família inteira empregada na política e se locupletando dela na forma de desvio de recursos de gabinetes para engordar patrimônio, defensor de tortura, assassinato de Estado, apologista do estupro e da homofobia? Certamente não. Portanto podem guardar o blablablá da falta de simetria porque não é disso que eu falo.

Justamente porque os ventos da política sopram rápido, a rápida corrosão da imagem fake do justiceiro minou as chances de simulacros de Bolsonaro de Norte a Sul do País. O presidente, ainda enebriado por aquela popularidade transitória do auxílio emergencial no meio do ano, achou que seria bom cabo eleitoral e se jogou no palanque.

Não satisfeito em conspurcar todas as instituições em 23 meses, enfiou mais o pé na jaca ao fazer lives diárias para promover seus candidatos. O resultado? Esses e os que levaram o capitão à TV viram suas chances minguarem. Enquanto isso, o centro, humilhado nas urnas em 2018, parece ter voltado a ser um lugar de conforto para um cidadão traumatizado por morte, doença, desemprego, inflação e falta de perspectiva.

Políticos experimentados, sem histrionismo, e uma nova esquerda não-petista avançam em capitais e cidades importantes.

A lição para partidos e lideranças de centro será clara: é pela via da política que o Brasil construirá uma saída para seu impasse, como fizeram os Estados Unidos.

Não se trata de correr para achar um dublê de Joe Biden, ou perder tempo nas redes sociais com a discussão ridícula de se vai ter frente ampla ou não, e quem pode entrar nela. Mas de reconhecer a emergência de se construir pontes para o dissenso democrático, que reconheça adversários e suas pautas como legítimos e representativos de parcelas da sociedade.

É só assim que o legado de destruição do tecido social, institucional e civilizatório de Bolsonaro poderá ser superado em 2022. Ele não é carta fora do baralho, e tem dois anos para tentar construir sua sobrevivência, a depender da economia. Além disso, eleição municipal nem sempre é prévia de nacional.

Com todas as ressalvas, é alentador que tenha sido o eleitor, quietinho numa campanha quase fantasma, a apontar o caminho para superar essa distopia. A bola agora está com os políticos.


Eliane Cantanhêde: Haja pólvora

Sem Trump, Mourão, governadores, prefeitos e parte dos militares, quem sobra para 2022?

Se o presidente Jair Bolsonaro insistir nesse ritmo de metralhadora giratória contra tudo e todos, quem estará com ele na reeleição em 2022? Bolsonaro não deve eleger um único prefeito de capital hoje, joga o vice Hamilton Mourão ao mar, cria tensões e cisões desnecessárias nas Forças Armadas, não entrega reformas e privatizações ao empresariado e ao mercado, não gera empregos, irrita médicos, professores, o pessoal da cultura e qualquer um que defenda o verde e a vida.

Quem sobra? Por questões ideológicas, interesses diretos, conveniências pontuais ou simples incapacidade de compreender o que se passa, os bolsonaristas dirão que sobram o Centrão e uma faixa considerável das redes sociais e do eleitorado. É preciso saber, porém, até onde, e quando, o Centrão e esse eleitor fiel, ou recentemente conquistado, resistem. As urnas de hoje serão um teste. Trarão boas respostas e indícios.

O Centrão está de olho na contagem de votos não só para consolidar suas bases como para projetar os próximos passos: as eleições para Câmara, Senado, governos estaduais e Presidência em 2022. O que os líderes de PP, PTB, PL… vão fazer, se o apoio de Bolsonaro se revelar tóxico? Serão fiéis na alegria e na tristeza? As eleições, portanto, devem deixar claros os limites da aliança. É restrita ao Congresso e dura enquanto a caneta tiver tinta. Bagaço de laranja e caneta sem tinta não servem para nada.

Pelas pesquisas, muito mais confiáveis no Brasil do que nas eleições americanas, Bolsonaro vai colher derrotas significativas em São Paulo e no Rio e assistir ao fim precoce da “nova política” que, dois anos atrás, empurrou policiais, militares, juízes e promotores para governos, Congresso e assembleias. Exemplos: o juiz Wilson Witzel e o bombeiro Carlos Moisés, já afastados dos governos do Rio e de Santa Catarina.

O sonho virou pesadelo. Os eleitos na onda bolsonarista não vão bem das pernas, o PSL voltou à sua real dimensão e o presidente não conseguiu criar um partido para chamar de seu. Assim, Bolsonaro vai encerrando o seu segundo ano de governo se despindo da fantasia do Jairzinho Paz e Amor e abrindo flancos por todos os lados. Encampou a derrota de Trump como sua, ameaça o futuro presidente Joe Biden e, hoje, a perspectiva é de derrota interna também.

Sem aliados externos e internos, nas mãos do Centrão, com horizontes nebulosos na economia e segunda onda da covid-19 na Europa, era hora de Bolsonaro criar caso com os militares? A um dos muitos oficiais militares que estão preocupados, perguntei se o presidente não precisa dormir mais para parar de falar besteira. E ele: “Sim. E de tomar um remedinho”.

A moda é dizer que Forças Armadas (FFAA) “são de Estado, não de governo” e os militares não são parte da política nem querem a política nos quartéis, como repetiu o general Edson Pujol, que também estava no Seminário de Defesa, na Escola Superior de Guerra - que, aliás, não teve ninguém do Planalto. No cafezinho, ele me disse: “Não sei por que tanta repercussão. Eu falei o óbvio”. O que leva à seguinte reflexão: quando o comandante do Exército precisa dizer obviedades, é porque elas deixaram de ser óbvias.

Em nota, ontem, o ministro da Defesa e os três comandantes declararam que o presidente “tem demonstrado (…) apreço pelas FFAA, ao que tem sido correspondido”. Por que dizer isso, a esta altura? Isolado no plano internacional, Bolsonaro será derrotado hoje na eleição para prefeitos e tem contra si parcelas expressivas de governadores, juristas, cientistas, médicos, professores, ambientalistas, diplomatas, artistas e analistas. Não satisfeito, bate boca com Mourão, o que divide os militares. Aonde, afinal, Bolsonaro quer chegar?


Luiz Sérgio Henriques: Os fenômenos mórbidos da crise

O assustador número de mortos na pandemia não parece comover Trump nem Bolsonaro

Com sua torrente incomum de surpresas e sobressaltos, os dias em curso parecem confirmar que estamos em meio aos fenômenos mórbidos que, segundo a frase famosa, se colocam entre o velho que morre e o novo que não consegue nascer. Longe de virar jargão, a frase descreve situações por certo inéditas e espantosas. Comecemos pelo fato de que um dos dois grandes partidos que vertebram a democracia norte-americana acaba de ser definitivamente tomado de assalto por uma extrema direita subversiva, “leninista”, a qual, impossibilitada eleitoralmente de levar a cabo a fatídica obra de esvaziamento das instituições, ameaça uma das regras mínimas da democracia, a saber, o exercício da regular alternância no poder.

Não é nada fácil para esse tipo de extremismo ter êxito na empreitada, mas o simples fato de tentá-la já é um mau presságio. Indica, antes de mais nada, alto grau de confiança na novíssima estratégia de erguer despudoradamente uma realidade paralela a partir de “fatos alternativos”. Para tanto se deve metodicamente corroer o bom senso e degradar o senso comum, implodindo a realidade objetiva e os modos compartilhados de vivenciá-la. Tudo o que é sólido se desmancha numa sequência estonteante de conspirações, irrealidades, fantasmagorias. A Terra não é redonda, ninguém jamais pisou na Lua e Trump não perdeu as eleições, pelo menos se forem contados os votos da sua preferência. E com a certeza dos simples muitos se associarão a essas sandices.

Muitos, mas não todos e menos ainda a maioria. Por isso, neste tempo de situações patológicas, a estratégia da direita “revolucionária” – não confundir com a direita constitucional, que participa normal e legitimamente do jogo democrático – renuncia previamente ao argumento racional, só ele capaz de agregar consensos e sustentar as boas sociedades, mesmo quando se transformam. Não diria que, para os “leninistas” de direita, tudo seja política, mas certamente tudo é ideologia: o mundo, assim, sem maiores escândalos, pode ser impunemente virado do avesso ou percebido de ponta-cabeça. E para que esse objetivo insano seja atingido se requer uma alucinada obra de regressão cultural que, ao fim e ao cabo, afaste as pessoas das modernas promessas de autonomia e as torne prisioneiras de um passado de fábula.

Veja-se, para dar um só exemplo, a realidade dos dois maiores países ocidentais – Estados Unidos e Brasil –, que desgraçadamente experimentam a associação entre governos extremistas e pandemia do novo coronavírus. O assustador número de mortos em nenhum momento parece comover Donald Trump, Jair Bolsonaro e as respectivas equipes dirigentes. Falece a esse tipo de governante, por princípio, a capacidade de “sentir com”, a inspiração de falar a verdade à população, de mobilizá-la para usar os recursos disponíveis, seja o distanciamento social, seja uma simples máscara. Estão alheios até mesmo ao “conservadorismo com compaixão” de épocas mais previsíveis; o que lhes importa é que a máquina econômica continue a girar, como se, bem ali ao lado, a pilha de mortos não importasse ou só merecesse um “lamento” vazio e falso.

Pior: dirigentes desse tipo agem conscientemente para promover a involução cultural de que se nutrem e com que se afirmam. Ao longo dos meses ambos apregoaram curas falaciosas e medicamentos nocivos, como no caso da cloroquina (antes, o curandeirismo do presidente Bolsonaro já se manifestara com uma certa pílula do câncer, o que o singulariza como um reincidente problemático). As vacinas em desenvolvimento são tratadas como matéria de política rasa – de ideologia –, de sorte que, como subproduto indesejado, se dissemina entre muitos uma atitude contrária à vacinação e à própria ciência. Arenga-se inutilmente, irracionalmente, sobre a “nacionalidade” do vírus, como se a irrupção deste e de outros vírus não fosse catástrofe prevista e até potencializada por um conjunto de práticas deletérias, entre as quais o desmatamento, em que nosso país tem tido um protagonismo acabrunhante.

Em tempos mais convencionais, há um nexo entre democracia, conhecimento e elevação intelectual generalizada, um dos poucos indicadores certos de que o gênero humano progride e consegue disseminar, ainda que desigualmente, os frutos deste seu progresso. Inversamente, em tempos atribulados, autocracia, obscurantismo e rebaixamento intelectual andam de mãos dadas, golpeando a convivência civil e a boa política, que assim perde a capacidade de estimular o confronto de paixões e interesses, ao mesmo tempo que recompõe o terreno comum entre os que se confrontam.

A vitória de Joe Biden e os bons ventos que inspira, ao prenunciarem as dificuldades da direita “revolucionária”, não constituem só um fato político, mas têm alcance, por assim dizer, moral e cognitivo. Se tivermos sorte, marcam o início do fim de um ciclo de pesadelos antimoderno ou típico de uma modernidade reacionária. De algum modo nos permitem ver além dos fenômenos patológicos do presente e devolvem a esperança em nossa comum humanidade.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Marco Aurélio Nogueira: Bolsonaristas perdem ímpeto

Nas capitais, o eleitor não se dispôs a apoiar candidatos vinculados ao presidente da república

A pandemia não impediu a realização das eleições de 2020. É um marco para a democracia brasileira, tão maltratada ultimamente. Em ano tão atípico e cruel, algo para comemorar. Como sempre, a disputa foi aguda nas capitais, onde os temas locais prevaleceram sem que a política nacional deixasse de ressoar. Novos polos ganharam destaque, deslocando o embate PT x PSDB. Na corrida paulistana, todos bateram em Bruno Covas e tentaram associá-lo ao governador João Doria. O PT minguou, em benefício do candidato do PSOL, Guilherme Boulos. O quadro ficou diferente.

O bolsonarismo procurou sobreviver girando em torno de um "anticomunismo" estapafúrdio, que não adere aos fatos da vida. Nas capitais, o eleitor não se dispôs a apoiar candidatos vinculados a Bolsonaro. Em São Paulo, a aposta em Russomanno foi um fiasco. Assim também no Rio, com Crivella. Os bolsonaristas perderam o ímpeto de 2018, perturbados pela charlatanice errática do presidente.

Despontaram caras novas: Manuela D’Avila em Porto Alegre, Boulos, Marina Helou e Arthur do Val em São Paulo, João Campos e Marilia Arraes no Recife. Sinal de que pode estar amadurecendo uma nova geração política. Entre os candidatos a vereador, muita disposição renovadora. O fim das coligações para as Câmaras Municipais fez os partidos mostrarem a cara, mas não ajudou a unificá-los. Os velhos caciques da política mal apareceram.

Nas grandes cidades, a disputa foi para saber quem irá ao segundo turno. Na capital paulista, a candidatura de Bruno Covas à reeleição ultrapassou 30% das intenções de voto. Chegará com força ao segundo turno, ainda sem saber quem o enfrentará.

Falou-se a língua das cidades: mobilidade, transporte, saneamento, enchentes, habitação, lixo. Os debates entre os candidatos foram pobres. Pouca atenção foi dada ao problema ambiental, à saúde pública e à batalha contra a covid-19, temas que dramatizarão a pauta dos próximos gestores. A omissão evidenciou o despreparo dos candidatos e as incertezas que cercam a evolução do vírus e as perspectivas de vacinação.

*Marco Aurélio Nogueira é professor Titular de Teoria Política da Unesp


Fernando Gabeira: Um grande exorcismo

Se foi possível nos EUA, por que não aqui, com personagens tão caricatos?

A derrota de Donald Trump não só tranquilizou, como trouxe alento a muitos países no mundo. A expressão de Francis Fukuyama referindo-se ao exorcismo para definir a vitória de Joe Biden é muito precisa. Parece que tudo volta lentamente a um curso mais racional, menos imprevisível. O Acordo de Paris volta a ser um instrumento potencialmente eficaz para combater o aquecimento global. Angela Merkel saudou a volta de uma aliança transatlântica e suas possibilidades.

Alguns países se recusam a reconhecer a derrota de Trump. China, Rússia e Brasil estão entre eles, por motivos diferentes, creio. Na linguagem diplomática o atraso é uma mostra inequívoca de insatisfação com o resultado. Tanto a China quanto a Rússia contavam com o avanço do processo de decadência americana, encarnado por Trump e seu isolacionismo.

O caso brasileiro é de orfandade. Bolsonaro perdeu seu grande inspirador. E a política externa, comandada por Ernesto Araújo, não tem mais o que considera o líder do Ocidente que iria fazer prevalecer os valores morais sobre o materialismo reinante. Não se sabe de onde se trouxe uma figura laranja, cheia de problemas com o Fisco, rude com as mulheres, para o cargo de guardião do cristianismo.

A pior das ilusões foi a expectativa provinciana de Bolsonaro se tornar amigo de Trump. Este sabe que nações não têm amigos e está escorado no slogan “America first”. Objetivamente, fez de Bolsonaro um fiel seguidor, pronto para aprovar tudo em nome de uma pretensa amizade pessoal, ali onde estavam em jogo interesses nacionais. A exportação do aço foi taxada, Bolsonaro dilatou o prazo para a importação do etanol e colocou sua diplomacia num ato de campanha eleitoral na fronteira com a Venezuela, quando da visita de Mike Pompeo. Para dar mais uns votinhos a Trump na Flórida. O Brasil armou o circo que Pompeo precisava.

Agora tudo acabou. Se há esperanças na Europa, aqui há apreensão. É muito difícil Bolsonaro adaptar-se à posição ambiental de Biden. Para Bolsonaro será mais uma forma de adotar uma falsa postura nacionalista e não interromper o processo de destruição da Amazônia, o único caminho que vê para o progresso, nos termos em que o entendem as pessoas que ficaram congeladas nos anos 70 do século passado.

Logo depois da eleição de Biden Bolsonaro pensa em lançar um marco regulatório das ONGs. Na verdade, é uma promessa antiga, pois afirmou que iria acabar com o ativismo no Brasil. Trata-se de algo inconstitucional, que deve encontrar resistência no Congresso e no Supremo.

Além disso, circula um documento no Conselho da Amazônia dizendo que chineses e europeus têm planos para levar a água de lá. Não se sabe como o fariam sem o consentimento brasileiro É mais uma história para fantasiar uma luta nacionalista e ampliar o processo de destruição em nome dos interesses do Brasil.

No passado era o minério e agora, a água. Não creio que elaborem essas teorias de má-fé. Lembro-me, no passado, de já se ter discutido a possibilidade de exportação de água. Foi uma discussão baseada no Canadá, também exportador. Não foi adiante. Era uma exportação controlada, mas não se demonstrou a viabilidade.

Se os chineses podem levar nossa água, por que não nosso açaí, nossa castanha e todos os outros recurso naturais? Essa formulação alucinada só servirá para aumentar o isolamento brasileiro. Sem o deus laranja da nossa diplomacia, com Bolsonaro atuando de forma estúpida num contexto externo delicado e caminhando para uma crise interna sem precedentes, o grande exorcismo ainda não atingiu o Brasil. O mundo ficou mais inteligível e racional, mas os espíritos secundários que baixaram por aqui ainda não permitem que nos livremos de seus delírios maníacos. Uma coisa nos anima: se foi possível em escala maior, por que não aqui, com personagens tão caricatos?

O último pronunciamento de Bolsonaro nos indica o nível de insanidade a que chegou o governo brasileiro. Ele insinuou um conflito armado com os EUA ao dizer que vai usar a saliva, mas quando acabar restará a pólvora.

Uma forma de desestimulá-lo é informar-lhe que a pólvora foi descoberta pelos chineses – ele certamente vai duvidar desse instrumento, como duvida da vacina contra o coronavírus. Outra é apelar para sua generosidade. Os EUA acabam de sair de uma eleição difícil, combatem como nós uma pandemia, não é justo amedrontá-los com um conflito armado. Eles seriam jogados na máquina do tempo, sentiriam no contato com nossos equipamentos como se estivessem entrando de novo na 2.ª Guerra Mundial. Talvez valesse mais a pena fazer o general Mourão e alguns militares reformados que jogam vôlei no Posto 6, em Copacabana, invadir a Filadélfia e reverter o resultado eleitoral. Isso traria menos conflito e bom material para programas humorísticos mundo afora.

Na verdade, o governo Bolsonaro seria risível se não se tratasse de uma pandemia que mata tanta gente e de uma política ambiental que reduz as chances de vida no planeta. Por isso se tornou uma tragicomédia, cujo prazo de duração até 2022 é muito doloroso.

*Jornalista


Eliane Cantanhêde: Sem saliva, sem pólvora

Como Geisel e Aureliano, Mourão dá um choque de realidade nos absurdos

A ira despudorada do presidente Jair Bolsonaro não é só contra o futuro presidente da maior potência do planeta e o governador do principal Estado do Brasil, mas também contra o seu próprio vice-presidente, o general de quatro estrelas Hamilton Mourão, que parece, no íntimo, se divertir com o descontrole e os absurdos do presidente, que vira piada mundo afora.

“Quando acaba a saliva, tem de ter pólvora.” A patética ameaça de Bolsonaro foi dirigida a Joe Biden, mas poderia ter sido para Mourão, já que os dois estão sem se falar. Acabou a saliva e sobrou a pólvora entre eles, lembrando João Figueiredo e Aureliano Chaves. A diferença é que Figueiredo era general e Aureliano, civil; Bolsonaro é capitão e Mourão, general.

O último presidente do regime militar também era destrambelhado, não raro ridículo, mas não estimulava golpistas, nunca ameaçou presidente nenhum, muito menos o dos EUA, nem pôs a saúde dos brasileiros em risco por ignorância e autoritarismo. O médico sanitarista Paulo Almeida Machado foi muito bem no Ministério da Saúde.

Figueiredo também abandonou o governo para lá, mas na ditadura não havia votos nem reeleição e ele não se lançou nos braços do “Centrão” da época e não saiu agredindo o Guaraná Jesus e as pessoas como “maricas” e “boiolas”. Quanto mais Figueiredo afundava no ridículo, mais Aureliano liderava a dissidência, civil e logo militar, pela redemocratização.

Por trás disso, impunha-se a autoridade do general Ernesto Geisel, que antecedeu Figueiredo, patrocinou sua ascensão à Presidência e depois se tornou fator decisivo para acordar as Forças Armadas contra o desmando, a bagunça e o próprio Figueiredo. Entre o Brasil e o seu apadrinhado, Geisel ficou com o País.

Em outras dimensões e circunstâncias, Mourão tem mais diplomacia do que Geisel e Aureliano, mas corrige e tenta justificar o presidente e sua força é sua fraqueza: Bolsonaro não engole as comparações com seu vice, homem culto, que morou fora, fala línguas, gosta de livros, história e geopolítica. Como não suporta as comparações, Bolsonaro não suporta o próprio Mourão.

Quando o presidente desmentiu o general Eduardo Pazuello e disse que o governo não compraria a vacina “da China” ou “do Doria”, Mourão declarou: “Vai comprar, sim. Lógico que vai”. Quando o presidente fez birra e se recusou a cumprimentar o vitorioso nos EUA, Mourão foi mais ameno: ele deve estar esperando o resultado oficial…

Do outro lado, só pólvora. Bolsonaro já descartou Mourão em 2022, disse que não gasta saliva com o vice sobre assunto nenhum e ontem atacou uma proposta feita pelo Conselho da Amazônia como “mentira” do Estadão, que a publicou, ou “delírio” de “alguém do governo”. Bem… o conselho é presidido por Mourão.

Está em estudo a expropriação de terras de quem cometer crime ambiental e o presidente, furioso, disse que “o Brasil não é socialista/comunista” e que demitiria o autor – “a não ser que seja indemissível”. Só há um indemissível no governo. Logo, a pólvora teve destino certo.

Bolsonaro diz que sua vida “é uma desgraça”, ataca tudo e todos, isola-se no mundo, no País e nas suas patologias, com pólvora, armas, ameaças e zero medo do ridículo. Sobram o Centrão, que pula fora num estalar de dedos, a “ala ideológica”, dos filhos enrolados e um punhado de bobos, e os militares, que fazem o “toma lá (cargos), dá cá (apoio)” que sempre condenaram nos políticos.

Mourão cria horizonte para o Centrão, desdenha de filhos e ideológicos e repete Geisel no fim da ditadura, dando um choque de realidade nos militares. Não é à toa que Sérgio Moro inclui o vice nas articulações que se dizem “de centro” e para 2022, mas são de resistência. Bolsonaro passou dos limites.


Simon Schwartzman: Dançando por Biden

Na eleição americana, o dado mais esperançoso é a grande rejeição de Trump pelos jovens

Vendo as imagens do povo dançando nas praças, festejando a derrota de Donald Trump, mais do que a vitória de Joe Biden, é inevitável comparar com 12 anos atrás, quando da eleição de Barack Obama. Tal como agora, Obama derrotou um presidente medíocre e inescrupuloso, que jogou o país numa guerra insensata no Iraque e deixou a economia afundar. Havia a sensação de que algo realmente novo e importante estava acontecendo nos Estados Unidos, com impacto em todo o mundo. Obama era negro, mas foi eleito com a bandeira de uma sociedade pós-racial. Era um intelectual com fortes valores humanistas, que projetava uma política internacional de respeito e consideração para diferentes culturas. No ano seguinte ganhou o Prêmio Nobel da Paz, não pelo que já tinha feito, mas pelo que prometia. Sua eleição parecia indicar que os Estados Unidos, finalmente, haviam rompido as barreira do racismo, do isolacionismo e do descaso com as políticas sociais.

Oito anos depois, sem ter conseguido fazer tudo o que prometia, era normal que Obama não conseguisse fazer seu sucessor. Mas a eleição de Trump não foi uma simples alternância de poder, mas uma indicação de que a nova era anunciada pela eleição de Obama era, em grande parte, uma ilusão, e que coisas piores estavam por vir. Ao tomar de assalto o Partido Republicano, Trump capitalizou uma forte corrente de preconceitos raciais, anti-intelectuais e de xenofobia que pareciam ter sido postos à margem da sociedade americana e subitamente mostraram suas garras. Com ele, a mentira sistemática das fake news, a prevalência descarada dos interesses comerciais privados sobre o interesse público, o desmonte das instituições governamentais e sua ocupação por bajuladores, o racismo, a xenofobia e todos os preconceitos que antes não se manifestavam se tornaram “normais”. O passo seguinte, inevitável, era o ataque às instituições mais centrais do sistema democrático, culminando, agora, com o próprio sistema eleitoral.

A vitória de Biden mostra que nem tudo está perdido, mas deixa um gosto amargo, porque a “onda azul” foi menor do que se esperava e Biden provavelmente terá ainda menos condições de cumprir o que promete do que Obama, tanto pela oposição sistemática que receberá como por um contexto internacional menos favorável, com a ascensão inevitável da China. A democracia americana sobreviverá, mas longe do vigor que a era de Obama parecia prenunciar. A História americana recente é semelhante à de muitos outros países, incluído o Brasil, de surgimento de lideranças radicais que conseguem forte apoio popular e partem para o assalto às instituições democráticas, e da dificuldade dos partidos moderados de prevalecerem. O que explica a força desses movimentos antidemocráticos e a fragilidade das democracias?

A pergunta, na verdade, deve ser posta ao contrário, porque a democracia é uma flor frágil, e é quase um milagre que tenha sobrevivido em tantos lugares até aqui. Em livro recente, O Ocaso da Democracia, a jornalista americana Anne Applebaum, casada com Radosław Sikorski, também jornalista e político de destaque dos governos democráticos da Polônia, conta a história da conversão à extrema direita de muitos de seus amigos e colegas que, como os dois, haviam se engajado na oposição ao stalinismo e na esperança de uma nova era democrática para a Europa e os Estados Unidos, e viram em seu lugar surgir os regimes de Jarosław Kaczynski na Polônia, Viktor Orbán na Hungria e Donald Trump nos Estados Unidos. Cada história é diferente, combinando em diversas doses oportunismo, ambição e impaciência com a lentidão dos regimes democráticos em produzir os resultados esperados. Mas existem problemas mais gerais. A ideia de que a democracia, combinada com a valorização do mérito e da economia aberta e competitiva, é a melhor forma de governo perde força quando ela se torna disfuncional, com muitas pessoas se sentindo excluídas de seus benefícios. E a democracia não consegue dar respostas aos anseios das pessoas por identidade pessoal, comunitária ou nacional. Ao se opor ao surgimento da extrema direita, a oposição liberal, nos Estados Unidos e outras partes, ao invés de tentar reconstruir o consenso nacional ao redor dos valores democráticos e do interesse comum, muitas vezes dá prioridade às políticas de identidade de grupos minoritários e setores marginalizados e discriminados, reduzindo ainda mais o espaço para a democracia consensual.

A democracia, para sobreviver, precisa de lideranças capazes de interpretar o interesse geral, de instituições capazes de resistir aos assaltos dos tiranos de plantão, e de uma população capaz de entender que a política é mais do que a expressão de suas ansiedades e frustrações. Na eleição americana, o dado mais esperançoso é a grande rejeição de Trump pelos eleitores mais jovens.

Anne Applebaum também termina seu livro falando de uma nova geração que busca novos caminhos, além das políticas exauridas da democracia complacente e da extrema direita enlouquecida. O futuro é incerto, mas há esperança.

*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências


O Estado de S. Paulo: Mourão reconhece vitória de Biden, mas diz não responder pelo governo

Em entrevista à Rádio Gaúcha, vice-presidente afirmou que julga a vitória do democrata como 'cada vez mais irreversível'

Emilly Benhke, O Estado de S.Paulo

O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou nesta sexta-feira, 13, que, apesar de não responder pelo governo, julga a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos como "sendo cada vez mais irreversível".

"Como indivíduo eu reconheço, eu não respondo pelo governo, mas como indivíduo eu julgo que vitória de Biden está cada vez mais sendo irreversível", afirmou em entrevista à Rádio Gaúcha nesta manhã.

LEIA TAMBÉM

Qual o tamanho da 'pólvora' do Brasil? Comparamos o poderio com o dos EUA

Mourão citou que é responsabilidade de Bolsonaro o possível pronunciamento sobre o pleito norte-americano. O governo brasileiro é um dos poucos que ainda não reconheceu o resultado das eleições norte-americanas. Outros países que não o fizeram são a Coreia do Norte, liderada por Kim Jong-Un, a Rússia, de Vladimir de Putin, e o México, de López-Obrador.

A China, que ainda não havia reconhecido a vitória do democrata, parabenizou Biden nesta sexta. "Respeitamos a escolha do povo americano. Enviamos nossas felicitações a Biden e a Harris", declarou o porta-voz da diplomacia chinesa, Wang Wenbin.  

Nesta sexta, a imprensa americana informou que o democrata venceu no Estado do Arizona e consolidou a liderança no Colégio Eleitoral que escolherá formalmente o novo chefe da Casa Branca. Com isso, chegou a 290 delegados, contra 213 de Trump. 

O vice-presidente negou que haja uma tensão entre Brasil e EUA e afirmou que os dois países mantêm uma relação de "Estado para Estado". Disse ainda que continuaram buscando pontos em comum nas suas relações diplomáticas. “Independente do momento que for reconhecido resultado da eleição americana, vamos manter diálogo constante”, disse.

Mourão também voltou a minimizar a fala do presidente Jair Bolsonaro de que "quando acaba a saliva tem que ter pólvora". "Vejo a coisa da seguinte forma, o presidente, a gente tem que prestar atenção mais nas ações do que nas palavras (de Bolsonaro)", justificou.

Na última terça-feira, 10, sem citar Biden diretamente, Bolsonaro comentou possíveis barreiras comerciais impostas ao Brasil pelos EUA caso as queimadas na região amazônica não fossem contidas. "Apenas a diplomacia não dá", disse o presidente na ocasião.