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O Estado de S. Paulo: 'Vou apoiar qualquer coisa contra Bolsonaro em 2022', diz Felipe Neto
Youtuber afirma ainda que indiciamento do qual foi alvo é uma ‘tentativa de silenciamento por parte da extrema-direita'
Roberta Jansen, O Estado de S.Paulo
RIO - Indiciado pela Polícia Civil do Rio por supostamente divulgar material impróprio para menores, o youtuber Felipe Neto afirmou que, em 2022, pretende ir “para a luta como nunca antes na vida”. O objetivo, disse, é impedir uma reeleição do presidente Jair Bolsonaro. Para ele, o “Brasil precisa derrotar o bolsonarismo como os Estados Unidos derrotaram o trumpismo”, após a vitória do democrata Joe Biden.
O youtuber atribuiu seu indiciamento por corrupção de menores a “pressões” que, segundo ele, passou a sofrer após se declarar como opositor do governo federal. “Vou apoiar qualquer coisa que chegue ao segundo turno contra o Bolsonaro”, declarou Neto ao Estadão. “Seja (Luciano) Huck, (Fernando) Haddad, Lula, Marina (Silva), Ciro (Gomes), (João) Doria ou Tiririca.”
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Aos 32 anos, Neto tem 40 milhões de assinantes em seu canal no YouTube e 11 milhões de seguidores no Twitter. Fez um editorial e um vídeo para o New York Times no qual critica Bolsonaro e entrou na lista da revista Time como uma das personalidades do ano (juntamente com o presidente brasileiro) em 2020.
O sr. é considerado a principal voz da oposição ao presidente Jair Bolsonaro no mundo digital. Por isso, tem sido alvo de ataques de grupos bolsonaristas. Acha que seu indiciamento é parte desse processo de pressão?
Sem sombra de dúvidas. Todo jurista que analisou tecnicamente o indiciamento ficou em estado de choque. Juízes, advogados criminais, procuradores. É só qualquer um procurar pela internet para ver a reação. Eu fui acusado de “corromper menores” por um delegado que não mostrou qualquer menor corrompido como prova de sua investigação. O caso do indiciamento é uma tentativa nefasta de silenciamento por parte de fundamentalistas da extrema-direita. Eles só querem que as pessoas espalhem que fui indiciado, mesmo sabendo que não dará em nada na Justiça.
O Ministério Público do Rio devolveu o procedimento, com o indiciamento, à Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática para “diligências”.
Recebi essa informação com enorme satisfação, pois o promotor não aderiu à precipitação do delegado, ao contrário, determinou que fizesse as investigações que não fez, e inclusive, em sua manifestação, chamou a atenção para o fato de que ainda irá apurar para analisar se há crime ou não. Estou absolutamente tranquilo e confiante que o Ministério Publico vá compreender que esse indiciamento é um absurdo.
O senhor se arrepende de ter se tornado uma voz de oposição ao governo?
Não, apenas não queria ter ficado tão isolado. Realmente acreditei que, em algum momento, outros comunicadores com o meu tamanho de influência, ou maiores que eu, fossem se engajar na mesma intensidade. Isso não aconteceu.
Teme ser vítima de algum tipo de violência?
Tenho um forte sistema de segurança implementado para mim e minha família.
Como avalia as fake news a seu respeito?
Todas as pautas de pseudomoralidade são cortinas de fumaça. A extrema-direita está sempre levantando teorias da conspiração e elegendo inimigos que vão contra a “moral e os bons costumes”. Sem isso, eles não conseguem formar base. Na época da Hillary (Clinton, candidata democrata à Casa Branca, derrotada por Donald Trump em 2016), do que a acusaram? Pedofilia. Nas eleições do Biden, do que o acusaram? Pedofilia. Do que me acusaram? Pedofilia. É sempre a mesma ladainha, as mesmas teorias conspiratórias contra os opositores, transformando-nos em demônios para pessoas influenciáveis.
Uma articulação está sendo costurada pelo apresentador Luciano Huck, o ex-ministro Sérgio Moro, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, o governador João Doria, entre outros, como um caminho para derrotar Jair Bolsonaro em 2022. Apoiaria esse movimento?
Não. Porém, vou apoiar qualquer coisa que chegue ao segundo turno contra Bolsonaro. Seja Huck, Haddad, Lula, Marina, Ciro, Doria, Tiririca.
A esquerda é sempre acusada de não se unir. Foi apontada, inclusive, como parte da ascensão do bolsonarismo. Concorda com essa análise?
Temos que colocar o PT e o PDT em um cercadinho e falar: “Vocês só saem daí quando acordarem para a realidade”. A desunião da esquerda não foi a grande causa da ascensão do bolsonarismo, mas sem dúvida contribuiu significativamente. Basta olharmos o que aconteceu no Rio de Janeiro (nas eleições municipais) para entendermos o quanto a situação está problemática. PT, PDT e PSOL lançaram candidaturas próprias. Conclusão? (O atual prefeito Marcelo) Crivella foi para o segundo turno com 21% dos votos (contra Eduardo Paes, que teve 37%) e ninguém chegou nem a ameaçar o pastor bolsonarista.
Por que resolveu se envolver na campanha de São Paulo? Não acha que a atitude de não querer falar com Bruno Covas ajuda a agravar a polarização que critica no caso do Rio?
Bruno Covas fez parte de todo o movimento BolsoDoria (aliança informal de Bolsonaro com Doria nas eleições de 2018, contra a esquerda). Bruno Covas tirou selfie com um sorriso de orelha a orelha ao lado do Bolsonaro. Bruno Covas tem como vice um sujeito que compõe a bancada religiosa, que foi acusado de violência doméstica e é investigado como possível envolvido na máfia das creches. Não dialogo com esse tipo de político.
Como avalia os resultados das eleições municipais?
Foi uma derrota contundente do bolsonarismo. As eleições serviram como termômetro da insatisfação do povo brasileiro com essa extrema-direita doentia e autoritária.
Qual será o seu papel e o impacto da sua posição política nas eleições presidenciais de 2022?
Não consigo dimensionar, mas eu vou para a luta como nunca antes na minha vida. O Brasil precisa derrotar o bolsonarismo como os Estados Unidos derrotaram o trumpismo.
Na sua opinião, qual será o impacto do governo de Joe Biden no governo de Jair Bolsonaro?
A credibilidade internacional do Bolsonaro é zero. Ele é visto como um bobalhão que nunca sabe o que está falando. Somente um sujeito com Q.I. de batata faria uma ameaça brasileira de pólvora aos EUA, tanto que não obteve sequer uma resposta. A questão agora é como o Biden vai lidar com esse presidente bobalhão que comanda o País que controla a Amazônia. Não tenho conhecimento suficiente para fazer essa previsão.
Elena Landau: Memória tumultuada
Ministro Guedes marcou sua gestão por tentar adaptar a realidade a seus devaneios
A Controladoria-Geral da União (CGU) organizou um seminário sobre Os Desafios da Desestatização há poucos dias. Uma das estrelas do evento foi Paulo Guedes, que se confessou frustrado por não ter vendido nada, apesar das promessas de campanha. De fato, é inexplicável que um governo eleito com uma pauta de desestatização tão clara e com metas tão ousadas tenha feito tão pouco.
Infelizmente, não ouvimos um mea-culpa. Sem um bom entendimento dos desafios, não se consegue traçar um plano para superá-los. Repetindo a cantilena de sempre, atribui aos acordos políticos no Congresso a responsabilidade da tibieza do programa. Mas não disse em que exatamente nossos parlamentares estão atrapalhando.
Como não há desejo de vender Petrobrás, Caixa ou Banco do Brasil, muito pouco depende de anuência do Legislativo. Só a Eletrobrás está pendente. A lista de intenções do governo chama atenção pela ausência das empresas que não precisam de autorização específica, como EBC, EPL, Infraero ou Valec. Ou mesmo, a liquidação de outras, como Hemobrás.
Enquanto o ministro falava, o Gabinete de Segurança Institucional enviava para publicação no DOU uma resolução recomendando a criação da Alada – Empresa de Projetos Aeroespaciais SA. Já será a segunda estatal criada neste governo.
Se for para achar os inimigos da privatização, Guedes não precisa atravessar a rua, estão todos na Esplanada dos Ministérios. Cabe a ele, como presidente do Conselho do PPI, convencer seus colegas a desapegarem de suas estatais.
Ao final, não faltou, é claro, a promessa de fazer quatro grandes vendas em 2021. Semana que vem, ano que vem, 90 dias, tanto faz. Ninguém dá bola mesmo.
Não fosse o introito, a palestra não teria trazido nenhuma novidade. É ali que Guedes se revela como historiador. Em tom professoral, inicia explicando por que temos um Estado tão grande. A razão é ter sido moldado pelos militares, com objetivo de acelerar o tempo e aprofundar a infraestrutura. E então completa o raciocínio: “A estrutura de Estado foi montada durante um regime politicamente fechado… Era até relativamente sofisticado que em vez de ter um, houve um rodízio de presidentes. Então, ao contrário de alguns lugares onde a gente pode caracterizar claramente como um regime ditatorial, aqui o Congresso ficou funcionando, operando, havia uma eleição indireta”.
Guedes marcou sua gestão por tentar adaptar a realidade aos seus desvarios. São os trilhões das privatizações, os 40 milhões de testes do amigo inglês ou o mundo se surpreendendo com o Brasil. Mas, dessa vez, passou de qualquer limite. Pode fazer a projeção delirante que quiser, mas reescrever a história política do País não dá. É um desrespeito a quem viveu durante o regime militar; a quem perdeu parentes para a tortura; aos que foram exilados; aos inúmeros deputados cassados, assim como ministros do STF; à imprensa que foi calada; aos artistas censurados; à toda sorte de perseguição que sofreram os que ousaram se colocar contra esse regime “relativamente sofisticado”.
Sem falar na herança econômica da hiperinflação, da concentração de renda, da década perdida e das suspeitas de corrupção que envolviam obras faraônicas, como a Transamazônica ou as usinas nucleares de Angra.
Ele pode até ser a favor do golpe e da ditadura, mas não pode fingir que não aconteceu. Impossível ignorar as atrocidades do governo muito sofisticado de Garrastazu Médici.
Diz ele que tinha apenas 13 anos quando foi “instalado” o governo militar, muito jovem para ter percepção ou opinião. Eu nem era nascida quando Getúlio se matou, nem por isso eu posso afirmar que o presidente morreu de causas naturais.
Para quem leu Keynes três vezes no original, deve ser fácil encarar os cinco volumes de Elio Gaspari. Se tiver com preguiça pode ir direto para o A Ditadura Escancarada.
Eu tinha seis anos quando veio o golpe. Com apenas dez, ouvi com meu pai o discurso de Mario Covas e lembro dele dizendo: “Belíssimo, mas vai ser cassado”. Logo depois, veio o AI-5. Quem era um adolescente em 64, já era um homem em 68.
Paradoxalmente, Guedes falou do ato institucional mais de uma vez em seu mandato. A memória volta quando lhe convém. Pode ser ato falho de quem acha melhor governar sem Congresso.
Ao fim da palestra, prometeu o desfazimento do Estado gigante porque “agora temos um governo liberal-democrata”. Com um porta voz desses não é à toa que o liberalismo tem sido tão questionado.
Vade retro.
Um belo resultado dessas eleições e uma boa notícia para os liberais: o aumento da diversidade nas Câmara de Vereadores pelo País.
*Elena Landau, economista e advogada
Eugênio Bucci: De Trumpiniquim a maricocéfalo
Maricas é quem só usa palavras dóceis, como as de Bolsonaro para Trump: ‘Love’
Pertencente à grande nação tupi, o povo tupiniquim foi o primeiro desta terra a descobrir os portugueses. Quando caravelas lusitanas aportaram no litoral do continente que agora habitamos, os navegantes deram de cara com os tupiniquins. Não se sabe bem que histórias contaram os índios, de geração em geração, sobre o dia em que descobriram Pedro Álvares Cabral, mas o nome deles virou um sinônimo “brasileiro”. Com razão.
No mais das vezes há um viés jocoso nessa acepção da palavra. Normalmente, quando dizem que isso ou aquilo é uma versão “tupiniquim” de uma mercadoria ou de uma ideia vinda de fora, querem dizer que ela é pior que a original estrangeira. Portanto, na fala do brasileiro que desvaloriza o próprio brasileiro quando usa a palavra “tupiniquim” como um termo pejorativo existe um preconceito contra si mesmo, um impulso autodepreciativo.
É bem verdade que outras vezes a memória da nossa ancestralidade indígena não tem preconceito algum, mas o contrário. Quando sabe devorar a identidade do outro que, chegado de “Oropa” ou França, cai na Bahia com más intenções, o brasileiro não se desvaloriza em nada, mas cria valor novo para si. O Manifesto Antropófago, proclamado por Oswald de Andrade em 1928, o “ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha”, defendeu com ênfase esse tipo de mastigação simbólica. As chanchadas no cinema brasileiro, que tantas paródias fizeram para caçoar dos galãs empostados de Hollywood, também tinham que ver com isso, embora sem o apetite revolucionário de Oswald. Se você consegue rir do opressor, meio caminho gástrico andado. “A alegria é a prova dos noves.” Assim, se o uso autopreconceituoso do termo “tupiniquim” internaliza no brasileiro a opressão vinda de fora para dentro, a antropofagia política e cultural vira a opressão do avesso e, de dentro para fora, gargalha.
Tudo isso para perguntar o seguinte: quando imita Donald Trump com tanta paixão, quando posa de cover do seu ídolo imperial, o atual presidente da terra dos tupiniquins incorre numa vertente do autopreconceito ou está apenas exercendo seu suspeito direito de fazer da política uma paródia? Devemos olhar para ele – para o presidente daqui – como um personagem que despencou de uma chanchada fora de cartaz há décadas, mais ou menos como um lobisomem de filme de Mazzaropi, ou como um vassalo voluntarista oferecendo solicitudes não solicitadas ao senhor estrangeiro que o despreza? A atitude do brasileiro que quer ser um Trump tropical fortalece ou desmerece o Brasil? Há nele um piadista de mau gosto ou um índio encarcerado que sonha em se fantasiar de Pedro Álvares Cabral para se olhar no espelho? No caso do presidente local, de quem é o preconceito? E contra quem é?
Antes de respondermos – o que, aliás, talvez não seja necessário –, levemos em conta que a divindade blonde foi destronada, o que solapa não o chão de seu servo, que pés no chão nunca os teve, mas o poleiro em que ele se dependura, pelo lado de baixo. O que estamos vendo é uma tragédia amorosa escancarada, explícita, cheia de dilacerações e lágrimas. O subalterno vai perdendo o objeto do desejo à medida que o poleiro perde a materialidade. O sôfrego adulador não reconhece que o cetro ao qual devota sua reverência genuflexa está sumindo do horizonte. Entra em desespero sentimental. Não reconhece a perda de poder em seu amo e patrão.
O espetáculo inspira pena. Quanta dor. Dia destes, o presidente dos tupiniquins usou a palavra “love”. Em seu vocabulário, o termo “love” mora no coração do termo “obediência”. Incondicional. O escritor austríaco Leopold von Sacher-Masoch concordaria. Em via de perder o ser idolatrado, o ser idolatrante enlouquece em seu fetiche adente. Sua fantasia não era devorar, nunca foi. Sua fantasia mais sublime era ser devorado. O que fazer agora? Ele entra em pane. Entra em parafusos abstratos. Endoida. Fica fora de controle. Então, para assombro dos mortais, o homem começa a falar em maricas. Ele grita: “Maricas!”. Haja maricas. O presidente destampa a sua obsessão pelo vocábulo. Ele, que nunca pensa coisa alguma, agora só pensa em maricas.
O que vem a ser isso, “maricas”, em tão presidencial vocabulário? Em primeiro lugar, o termo denota algo – no referido vocabulário – como falta de valentia. No mesmo léxico, tem que ver com “bundão”, palavra já pronunciada publicamente pela mais alta autoridade da República para insultar os jornalistas e os que adoecem com a covid-19. “Quando pega num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor”, disse ele aos repórteres em agosto. “Maricas” é quem não usa pólvora, só saliva, só palavras dóceis, como as dele para Trump. “Love”.
Niquim é o nome indígena de um peixe marinho de corpo mole e cabeça achatada (Thalassophryne nattereri). A palavra, de origem tupi-guarani, significa feio (ni) e espinhoso (quim). Com cerca de 15 centímetros quando adulto, o niquim gosta de ficar parado no fundo de areia em águas rasas. Tem espinhos venenosos no dorso. Se você pisa nele, bem, pode ser um aborrecimento e tanto. Caminhemos com cuidado.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Zeina Latif: Responsabilidade nas promessas
Embora com tom mais moderado, Guilherme Boulos repete o nefasto e equivocado discurso populista
Os debates eleitorais têm muito a melhorar. Candidatos da oposição muitas vezes constroem a imagem de que é fácil resolver os problemas e que, se nada foi feito antes, foi por descaso ou desonestidade. A simplificação excessiva, como na campanha de Bolsonaro em 2018, atrapalha a decisão consciente e o amadurecimento do eleitor.
O discurso fácil e eloquente dá voto, pois segmentos da sociedade continuam em busca de “salvadores da pátria”. Porém, cedo ou tarde, chega a fatura, como na decepção de eleitores com o presidente.
É necessário ir além da superficialidade e afastar promessas descabidas, pois enfrentar os desafios do desenvolvimento requer maturidade política.
Os candidatos à reeleição, por sua vez, falham ao não explicitar problemas e diagnósticos, talvez por temerem críticas. Ao final, há uma cumplicidade perversa entre contendores no debate eleitoral, ao evitarem temas polêmicos.
A campanha para a eleição da Prefeitura de São Paulo não foge à regra.
Mal se discute, por exemplo, o grave desequilíbrio da previdência municipal. Em 2019, o rombo foi de R$5,4 bilhões, o que equivaleu a 16% da arrecadação tributária. O déficit atuarial estava em quase R$163 bilhões.
Depois da desistência de Fernando Haddad e o insucesso de João Doria, a reforma da Previdência foi aprovada no fim de 2018. A pressão do funcionalismo foi enorme e houve greve no início de 2019, data escolhida a dedo para coincidir com o calendário escolar, segundo os próprios sindicalistas.
A reforma, porém, foi tímida, prevendo praticamente apenas o aumento da alíquota de contribuição dos servidores de 11% para 14% e a previdência complementar para entrantes com benefício acima do teto do INSS.
Não foi alterada a idade mínima de aposentadoria, diferentemente da reforma federal, que, diga-se de passagem, foi atacada por Guilherme Boulos, candidato do PSOL à Prefeitura de São Paulo. Agora, ele defende mais contratações para aumentar a arrecadação previdenciária do município. Argumento incompreensível.
O jovem político reproduz o discurso da velha esquerda que não acredita em restrição orçamentária e acha que tudo se resolve com mais recursos. Nada se ouve sobre melhorar a gestão nas diversas áreas. A lista de promessas de campanha é inexequível, pela falta de recursos e por contemplar medidas tecnicamente equivocadas.
Para cobrar a dívida ativa, em boa medida irrecuperável neste País de crises frequentes, Boulos promete contratar mais procuradores. Para reduzir a população de rua, propõe usar a rede hoteleira e contratar mais agentes. Para a saúde, mais médicos. E por aí vai.
Promete uma “renda cidadã” paulistana, uma política onerosa e mais adequada para a União, e defende o que chama de economia solidária – por exemplo, a compra de alimentos de pequenos produtores no cinturão verde, fora de São Paulo, para prover escolas. No entanto, em uma grande metrópole, ganhos de escala são necessários para garantir a efetividade das políticas públicas e, ao mesmo tempo, evitar despesas em demasia.
Para financiar seus programas, o candidato diz contar com a recuperação da dívida ativa e com a suposta sobra de caixa – um recurso já comprometido e exigência da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ele confunde fluxo com estoque (fluxo de despesa permanente pago com estoque finito de recursos), erro básico, que, de quebra, fere a LRF.
Faltam bons diagnósticos sobre os problemas da cidade, as prioridades e a realidade fiscal.
O próximo prefeito terá muitas outras missões, como povoar e adensar os bairros centrais com infraestrutura urbana, o que reduziria tempo no transporte, pressionaria menos o preço da terra – tema caro ao Boulos – e ajudaria a preservar o meio ambiente, em meio ao aumento de loteamentos ilegais.
Oxigenar o debate público, como fazem alguns candidatos “nanicos”, é saudável. O crescimento de Boulos exige, porém, maior responsabilidade nas propostas. Embora com tom mais moderado, ele repete o nefasto e equivocado discurso populista.
*Consultora e doutora em economia pela USP
William Waack: A onda acabou
Jair Bolsonaro é, agora, a perfeita expressão do ‘sistema’
A causa do fracasso eleitoral de Jair Bolsonaro nas eleições municipais é simples de ser resumida. Ele interpretou de maneira equivocada a onda disruptiva que o levou ao Palácio do Planalto em 2018. Achou que tinha sido o criador desse fenômeno político quando, na verdade, apenas surfava a onda.
O fato é que essa onda, depois de arrebentar o alvo primordial (as forças políticas ao redor do PT), se espraiou, perdeu sentido e direção, dividiu-se entre seus vários componentes antagônicos. Esvaziou-se, com Bolsonaro achando que apenas falando, apenas no gogó, manteria o ímpeto de uma onda dessas – um fenômeno político raro.
Na verdade, a principal lição oferecida a Bolsonaro pelas eleições do último domingo é a do primado da organização, capilaridade e peso das agremiações partidárias no horizonte político mais extenso. Pode-se adjetivar como se quiser o conjunto de partidos que elegeu o maior número de prefeitos e vereadores ou colocá-los onde se preferir no espectro político. O denominador comum entre eles é a existência de estruturas profissionais voltadas para a política.
É exatamente o que Bolsonaro desprezou logo que assumiu. Trata-se de um dos aspectos mais relevantes para ilustrar o fato de o presidente eleito com 57 milhões de votos há apenas dois anos ter um desempenho tão pífio como cabo eleitoral. Todo dirigente populista, não importa a coloração política, cuida de criar um movimento para chamar de seu – com seus emblemas, palavras de ordem (ou “narrativa”), mitos e, sobretudo, uma estrutura razoavelmente hierárquica e definida, com sede e endereço.
Embora tivesse à disposição da noite para o dia um grande número de deputados federais e seus correspondentes recursos públicos, o surfista da onda política atuou para implodir o partido pelo qual se elegeu e não conseguiu colocar de pé nada parecido a uma agremiação consolidada com um mínimo de coesão. É bem provável que Bolsonaro tenha sido vítima do mito que criou para si mesmo (e dá provas quase diárias de acreditar nisso piamente): a de ter sido escolhido por Deus e beneficiado por um milagre (sobreviver à facada) para conduzir o povo do Brasil.
Com tal ajuda “de cima”, é só esperar as coisas acontecerem. Ocorre que mesmo os homens tornados mitos por desígnio divino precisam, como dizem os alemães, do “Wasserträger”, aquele que vai trazer a água. E isto não se consegue apenas com redes sociais. Foi outro aspecto interessante das eleições de domingo: a demonstração dos limites de atuação das ferramentas digitais, que adquiriram relevância permanente como instrumentos de mobilização, sem serem capazes por si só de garantir predominância na luta política.
Passada a onda disruptiva (alívio para alguns, desperdício de oportunidade histórica para outros), o que se pode prever para as próximas eleições, em relação às quais Bolsonaro sacrificou qualquer outro plano? Se ele foi capaz, em 2018, de vencer o “establishment” e o jeito convencional de fazer política, ainda por cima dispondo de menos recursos que seus adversários “tradicionais”, em 2022 Bolsonaro só tem chances dentro do que ele mesmo chamou de “sistema”.
Do qual, ironicamente, o “outsider” acabou se tornando uma perfeita expressão: vivendo para o próximo ciclo frenético de manchetes, sem um plano ou estratégia de longo prazo, cuidando em primeiro lugar de seus interesses familiares e paroquiais, cultivando popularidade com programas assistenciais e preocupado acima de tudo em ficar onde está. É onde a onda nos deixou.
Monica De Bolle: Estupidez brutal
Brutal e renitente. O melhor a fazer, por certo, é ignorá-la com a leveza do mais absoluto descaso
Daqui dos EUA de onde escrevo, a bruma da estupidez, do negacionismo, da incompetência já começou a se dissipar. Sim, Trump ainda é presidente, mas ele e seus asseclas não dominam mais as páginas dos jornais. De um lado, isso acontece porque Trump, apesar de sua frívola judicialização eleitoral, já desistiu de presidir o país dois meses antes da posse de Joe Biden. De outro porque o presidente eleito tem ocupado os espaços com anúncios sobre quem vai compor o seu governo, quais serão as medidas prioritárias, o que fará para combater a terceira e a mais terrível onda da pandemia, e como pretende resguardar a economia. No Brasil, ao contrário do que ocorre ao Norte, a estupidez brutal corre sem rédeas.
Que a estupidez brutal impere não é uma surpresa. Ninguém espera que esse governo que está aí aprenda o que quer que seja, até porque sua incapacidade já se revelou tamanha que todas as máscaras caíram. As eleições municipais deram sinais – ainda tênues, é verdade – de que a população pode estar começando a se cansar das gritarias, dos absurdos, dos desditos.
As pessoas querem políticas públicas, clamam por uma agenda, uma estratégia, um plano, qualquer coisa, enfim, que permita um vislumbre dos rumos do País e da vida de cada um quando 2021 chegar. E 2021 é o ano em que o Brasil estará lidando com desafios simultâneos: o de uma campanha eleitoral precoce para 2022 e o de uma segunda onda da pandemia. A segunda onda da pandemia é tão certa quanto a existência do vírus que a provoca. Ela já está evidente em vários números: o de leitos ocupados nos hospitais, o de novos casos, o de óbitos. Mesmo assim, há quem a negue.
Claro que há quem a negue e é claro, também, que os negacionistas não poderiam estar em outro lugar senão dentro do Ministério da Economia. Há um quê de março no ar. Lembram-se de março? Mais especificamente, do dia 16 de março? Foi há oito meses. Nesse dia, quando a pandemia já estava presente no Brasil, o ministro da Economia veio a público dizer que a economia cresceria mais de 2,5% em 2020. Perto da mesma data, Paulo Guedes também disse que enxotaria o vírus do País jogando sobre o RNA encapsulado uns R$ 5 bilhões. Não se deu conta de que o RNA encapsulado não reage nem às notas, nem às palavras que profere. A única coisa da qual ele precisa é de uma célula hospedeira para parasitar, replicar e se proliferar. Dito e feito, a primeira onda estourou bem na cara do ministro. Com volúpia.
Passada essa experiência, era, se não razoável, justificado imaginar que o Ministério da Economia não iria deixar-se pegar novamente no contrapé, sobretudo porque o vírus nunca deixou o País. Mas as oportunidades de engolir as ondas sucessivas de um RNA encapsulado e obstinado não podem ser desperdiçadas.
Em pleno alvorecer da segunda onda, um dos secretários de Guedes veio a público dizer que não há onda alguma e que os Estados brasileiros estão muito bem, obrigado, porque muitos já obtiveram a imunidade de rebanho. Lembram-se dela? Lembram-se de como teve gente insistindo que era esse o caminho, o modelo da Suécia? “Deixem a infecção natural acontecer, que logo, logo estará todo mundo imune!”, bradou a estupidez brutal.
É curioso porque a Suécia acaba de abandonar o modelo sueco por causa da segunda onda e acaba de abandoná-lo devido à segunda onda porque já está comprovado, inclusive na Suécia, que imunidade de rebanho é conceito inaplicável a uma situação de infecção natural. Como já escrevi neste espaço, o termo usado por epidemiologistas se refere àquelas situações em que existe uma vacina para uma doença infecciosa com eficácia comprovada.
Por exemplo, se a eficácia das vacinas genéticas da Pfizer e da Moderna forem comprovadas, quando começarem a ser distribuídas e as campanhas de imunização estiverem em andamento, seremos capazes de dizer algo sobre imunidade de rebanho. Mas não agora. E certamente não será pelo secretário de Guedes, que já revelou não entender nem de pandemia, nem de economia. Trata-se do mesmo secretário que inventou conceitos inexistentes na disciplina, como PIB privado. Melhor nem perguntar o que é.
Portanto, a estupidez brutal. Brutal e renitente, como o RNA encapsulado. O melhor a fazer, por certo, é ignorá-la com a leveza do mais absoluto descaso.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Vera Magalhães: Novo começo de era?
Disputa em São Paulo mostra que tutela de padrinhos é dispensável
É redutor atribuir o bom nível do debate entre Bruno Covas e Guilherme Boulos ao fato de serem dois políticos moderados. O adjetivo é impreciso para rotular dois políticos com características, trajetórias e propostas tão distintas.
Além do que, avaliar suas chances e seus projetos para São Paulo a partir de uma palavra tão vaga não faz jus ao momento rico e importante que a improvável eleição da pandemia acabou por provocar.
Covas é um político de centro. As circunstâncias dos diferentes momentos de sua carreira política – deputado, vice-prefeito, prefeito – mexeram esse ponteiro ora para a centro-esquerda, ora para a centro-direita.
Apostou, quando assumiu a cadeira de prefeito, que, no embalo da eleição de Jair Bolsonaro e do próprio João Doria, enfrentaria um adversário da direita neste ano.
Vestiu um figurino de social-democrata a partir dessa avaliação, e procurou se distinguir do “Bolsodoria”, o personagem que seu correligionário vestiu em 2018, e rapidamente caiu em desuso depois da posse.
O drama pessoal que viveu e a pandemia foram novas oportunidades para Covas procurar mostrar personalidade dentro do PSDB paulista, resgatando a imagem do avô, inclusive.
Muitos imaginaram que, diante da ida ao segundo turno contra Boulos, um candidato de esquerda, ele flertaria com o discurso de direita para atrair os bolsonaristas. Houve, inclusive, ensaios dessa mutação no discurso logo após a posse, quando ele classificou Boulos três ou quatro vezes de “radical” e fez uma exortação à “lei e à ordem”.
Mas, a partir desta segunda-feira, a ordem no comitê era manter o tom sereno, por vezes gélido, que ele demonstrou no primeiro turno. Um gesto neste sentido foi telefonar para Boulos para pedir desculpas por uma ofensa de um aliado.
E o candidato do PSOL? Moderado ou radical? Ele mesmo refuta o primeiro adjetivo e qualifica o segundo: gosta de dizer que é radicalmente diferente do PSDB em doutrina social e econômica.
Mas Boulos demonstra que mudou desde os primórdios de sua atuação à frente do MTST: refinou conceitos, estudou a cidade, compreendeu a necessidade de construir pontes para alcançar objetivos. Isso nada tem de exótico: é o caminho natural dos políticos e dos partidos quando enfrentam sucessivas eleições e amadurecem.
O risco, para ambos, é serem tragados para as caricaturas deles mesmos e de seus partidos por aliados mais interessados em usá-los como cavalos de Troia para os próprios projetos que em contribuir com sua eleição.
Ambos prescindiram de padrinhos no primeiro turno, por motivos distintos. No caso de Covas, andar com Doria era ruim eleitoralmente, dada a rejeição do governador na cidade.
Para Boulos foi meio falta de opção. A candidatura de Jilmar Tatto impediu Lula de apoiá-lo. Mas, na primeira hora, quando as urnas não saíam do 0,39% apuradas, o cacique petista já tratou de pular em cima do palanque do candidato do PSOL, avistando nele uma chance de reduzir o tamanho da derrota do PT.
Doria também já ensaiou o discurso de que o resultado em São Paulo aponta para a viabilidade da “frente ampla”, um papo lá para 2022 e que interessa só a ele.
Covas e Boulos demonstrarão maturidade se recusarem a tutela de padrinhos. Uma característica nacional desta eleição foi a renovação geracional mais qualitativa, diferente da horda de youtubers de 2018.
Ambos têm um futuro político promissor pela frente se souberem entender o que seus partidos e seus campos políticos fizeram de errado para causar repulsa no eleitor. Isso tem menos a ver com conceitos como esquerda e direita, moderado ou radical, que com práticas políticas e de gestão e propostas para o País e a sociedade. Até aqui, a eleição de São Paulo é um alento nesse sentido.
Roberto Romano: A pandemia do ódio, Trump e o Brasil
A governança é arte de promover a amizade entre cidadãos, laço essencial do Estado
Tristes povos os que suportam mal perigos naturais e rompem os laços de sociedade. Coletivos bem constituídos no campo civil enfrentam doenças em melhores condições do que os carentes de elos internos sólidos. Uma via para entender o caso é o livro de Tucídides sobre a catástrofe militar do Peloponeso.
Espartanos invadem o solo onde governa Péricles, cuja política, mesmo apoiada pela Assembleia, enfrenta a desunião social. A pandemia também ameaça o líder. Deixando o poder, logo ele morre como vítima. A narrativa de Tucídides mostra como os atenienses reagem à peste. O mal biológico acelera a fragmentação do regime. No início, “nem os médicos puderam debelar a praga, por ignorância do que era ela. Eles próprios morreram mais rápido pela proximidade dos enfermos” (The Peloponnesian War, tradução de Th. Hobbes, Livro II, 47).
O termo para designar a ignorância dos médicos e sua morte é agnoia (ausência de saber, erro). Cidadãos morrem por agir “normalmente” na moléstia. Muitas lições a passagem traz hoje aos médicos, políticos, militares, empresários, trabalhadores. Raros aprendem com a pandemia política ou biológica. O “normal” reside em ignorar o perigo.
“O aspecto mais terrível da doença é a apatia das pessoas atingidas (…). O contágio ocorre nos cuidados de uns doentes para com os outros e os mata em rebanho. É a maior causa da mortandade, pois se os doentes se abstêm por medo de visitar uns aos outros, todos perecem por falta de cuidados (…). Quem sobrevive com maior frequência se compadece em face dos enfermos e moribundos, pois conhecem a doença por experiência própria e confiam na imunidade. O mal nunca atacaria a mesma pessoa duas vezes com efeitos letais. Eles recebem elogios de todos e, no entusiasmo alegre daquelas circunstâncias, alimentam a esperança frívola de que pelo resto da vida não serão atingidos por outras doenças.”
Quem vive no campo vem para a cidade e perece espremido. Mortos postos em pilhas, cada um enterra os seus como pode. Corpos para serem incinerados são lançados em fogueiras alheias. Não existe a polis, a sociedade, a vergonha (Aidós), o respeito. Mesmo as aves carniceiras fogem dos corpos apodrecidos.
Elias Canetti comenta a passagem de Tucídides para evidenciar o fenômeno das massas que perdem o sentido da vida social e a visão política (Massa e Poder). Quando regimes políticos sucumbem à anomia, doenças oportunistas corroem suas bases e ressurge o estado de natureza. Vemos o interesse de Hobbes pela Guerra do Peloponeso: Tucídides permite entender o pacto proposto no Leviatã. (cf. Mario Ricciardi, Le retour du Léviathan. Peur, contagion, politique). Sob Péricles, brilhante estadista, embora tisnado pela demagogia, Atenas perde forças vitais em razão da inimizade crescente, não apenas em face dos atacantes externos, mas nas lutas internas. Quando a epidemia chega, o corpo cívico já está fragmentado, sem defesas.
A governança é arte de tecer elos entre cidadãos, promover a sua amizade, laço essencial do Estado. Tal doutrina é posta no diálogo Político de Platão. Se, pelo contrário, o dirigente divide as pessoas, a tirania surge com o signo da morte. Segundo Platão, a polis é ligada internamente pela philia. “O maior bem para a cidade é o que a une e a torna una”(República, 462 a-b). Tal elo faz dos múltiplos indivíduos um conjunto poderoso. “Entre amigos tudo é comum” (República 424 a). O Estado pertence a todos e cada um deve respeitar os concidadãos. No século 20 um jurista inverte a tese platônica e proclama que a política é arte de gerar inimigos internos e externos. Carl Schmitt morreu, mas sua doutrina vive em cabeças ignaras e poderosas. “Não se pode razoavelmente negar: os povos se unem conforme a oposição amigo/inimigo. Tal oposição é uma realidade atual e virtual em todo povo que existe politicamente” (Der Begriff des Politischen, 1927).
A passagem foi usada, de modo infeliz, por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Regimes tirânicos criam o inimigo interno, e assim temos o Holocausto e muitos genocídios. Até o fim da vida Schmitt insiste sobre a inimizade política: “Um povo só está seguro de sua identidade quando, de modo claro e sem equívoco, ele tem um inimigo” (Sobre a Tele-democracia, 1970, in Machiavel/Clausewitz).
Se a democracia grega falece com Péricles e ignora os conselhos platônicos, o que poderíamos dizer ontem dos Estados Unidos dominados por Trump e agora da nossa pátria, cujo presidente fomenta a divisão, gera inimigos, despreza a ciência médica e a própria ameaça da pandemia? Os norte-americanos exorcizaram o pesadelo político que desnorteia seu Estado. Será difícil ali retomar a via da comunidade, estratégica para garantir a força de um povo.
Aqui, infelizmente, as portas da UTI democrática se fecham, a moléstia do ódio e da ignorância corroem os pulmões do País E a liderança política não chega ao calcanhar de Péricles… Ou de qualquer outro estadista digno do título. Aqui d’el-rey!
*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)
O Estado de S. Paulo: Eleições reforçam centro e avanço de pauta identitária
Votação mostra preferência por nomes conhecidos da política convencional e avanço de transexuais, mulheres negras, indígenas e mandatos coletivos nos Legislativos municipais
Adriana Ferraz, Ana Lourenço e Fernanda Boldrin, O Estado de S.Paulo
Dois anos após uma eleição geral marcada pelo discurso antissistema – que ajudou a eleger não apenas o presidente Jair Bolsonaro, mas consolidou um campo político associado à extrema-direita também nos Estados e no Congresso Nacional, a votação em primeiro turno das eleições municipais indicou que esse movimento se arrefeceu. Além de eleger ou levar para o segundo turno mais representantes de centro do que dos extremos, ao menos nas capitais, o resultado da votação sob o impacto da pandemia do novo coronavírus ainda revelou uma preferência por nomes conhecidos da política convencional.
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Segundo analistas ouvidos pelo Estadão, as urnas ainda apontam para um outro fenômeno: o crescimento da chamada política identitária nas Câmaras Municipais. Ao menos 25 transexuais e travestis foram eleitos vereadores em todas as regiões do País. Mulheres negras, indígenas e mandatos coletivos também obtiveram sucesso em 13 capitais – onde candidaturas que encamparam pautas LGBT, feministas ou antirracistas figuram entre os 10 mais votados para os Legislativos municipais.
Em Curitiba, por exemplo, a população elegeu pela primeira vez uma mulher negra como vereadora, a petista Carol Dartora. O mesmo ocorreu em Cuiabá. Já em Belo Horizonte, a professora Duda Salabert (PDT), que é trans, se tornou a parlamentar recordista de votos.
“Sou professora há mais de 20 anos e também atuo em causas ambientais”, afirmou Duda, que não é adepta da polarização política. “Todos são bem-vindos: centro, direita. O que não podemos tolerar é desrespeito aos direitos humanos. Debate se constrói na diversidade.”
O cientista político Márcio Black, da Fundação Tide Setúbal, diz que a eleição de ontem mostrou uma certa inversão em relação a 2018. “A ‘nova política’ está chegando às Casas Legislativas enquanto a ‘velha política’ se converte em eleições para o Executivo. O que teremos como resultado serão Câmaras com vereadores mais progressistas em conflito com gestores ditos mais conservadores”, avaliou Black, para quem o avanço identitário revelado nas urnas pode ser atribuído a construções políticas que ocorrem no Brasil há pelo menos 15 anos.
Carol já projeta o mandato. Diz que vai lutar pela reeducação social para combater a violência contra a juventude negra em Curitiba, especialmente nas regiões periféricas. “A gente não pode mais falar sobre democracia no Brasil com 56% da população sub-representada. Isso não é democracia. A gente precisa avançar muito mais. Ser a primeira mulher negra? Ótimo, maravilhoso, mas eu espero que tenha mais futuramente.”
Para o professor Claudio Couto, cientista político da FGV, houve um retorno do eleitor à política convencional, em vez da antipolítica representada em discursos associados ao bolsonarismo, com alto grau de moralismo. “Mas não se trata exatamente de uma fuga dos extremos. Mesmo porque, entendo, que só há um extremo relevante na política brasileira, que é a extrema direita. A extrema esquerda é politicamente irrelevante, representada pelo PCO e o PSTU.”
Reeleição
Colega de Couto na FGV, a Graziella Testa também considera que o primeiro turno das eleições deste ano marcaram uma resposta ao discurso da antipolítica de 2018. “A própria taxa de reeleição dos candidatos e o perfil dos que foram para o segundo turno, no caso do Executivo, mostra que a coisa dos outsiders e da antipolítica não está pegando mais”, disse.
Enquanto vê uma desarticulação na esquerda – que deixou partidos como PT e PDT de fora do segundo turno no Rio, por exemplo –, Graziella chama atenção para o crescimento do PSOL nas eleições. A cientista política avalia que o sucesso nas urnas de candidaturas ligadas a pautas identitárias se insere no contexto de crescimento do partido, mais ligado a esses temas. “Em municípios maiores, o PSOL teve um ganho, e é o partido que traz essa pauta de forma prioritária, mesmo no Congresso Nacional”, ressaltou.
O fenômeno ocorreu não apenas aos centros urbanos do Sudeste. Levantamento feito pelo Estadão mostra que candidatas que encamparam pautas LGBT, feministas, antirracistas ou em defesa dos povos indígenas obtiveram vitória em todas as regiões do Brasil. Nas 13 capitais citadas, elas ficaram entre as dez mais votadas.
Em Belém, por exemplo, Bia Caminha (PT) saiu das urnas como a vereadora mais jovem da história da cidade. Aos 21 anos, ela se define como feminista negra e bissexual. Cenário que se repete em Aracaju, com a trans Linda Brasil (PSOL) alcançando o maior número de votos entre os eleitos. “Essa vitória deu um sopro de esperança também para que a gente possa cada vez mais ocupar esses espaços”, disse Linda.
Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o aumento da representatividade é resultado de um número recorde de candidaturas pelo País. Estudo da entidade mostra que foram registradas neste ano 294 postulantes, com 25 pessoas eleitas – alta de 212% em relação a 2016.
Eliane Cantanhêde: O grande derrotado
Urnas derrotaram os candidatos, os apoiadores e tudo o que Bolsonaro fala e representa
Tal qual o verdadeiro Trump nos Estados Unidos, o Trump tupiniquim, Jair Bolsonaro, também nega a realidade, não reconhece a derrota e, como não dá para acusar a mídia desta vez, ataca a urna eletrônica e já ensaia o discurso da fraude! Nenhuma pirotecnia, porém, é capaz de anular ou esconder Suas Excelências, os fatos. E os fatos são claríssimos: Bolsonaro é o grande derrotado das eleições municipais de 2020.
Não apenas seus candidatos perderam feio e os votos do seu filho Carlos encolheram 34% na base eleitoral da família, o Rio, como tudo o que Bolsonaro representa afundou: 1) a antipolítica cedeu lugar à política, à experiência, aos partidos; 2) o PSL, que inflou e se transformou em segunda força na Câmara, murchou; 3) tanto bolsonaristas renitentes quanto arrependidos, que brilharam em 2018, apagaram em 2020.
As eleições confirmaram que o Brasil é de centro e que a chegada ao poder da extrema direita bruta, virulenta, delirante e sem programa, foi um ponto fora da curva, que vai ficando rapidamente no passado. O novo normal é normal mesmo. DEM, PSDB, MDB, PSD e Cidadania, que formam um sólido bloco de centro que não se confunde com o Centrão, vão recuperando o espaço perdido para Bolsonaro.
Assim, 2020 projeta a volta do centro e uma polarização atualizada: a direita não é exclusivamente bolsonarista e a esquerda não é mais apenas petista. A direita experiente e confiável amplia seu leque e se articula inclusive com setores da esquerda moderada. A esquerda ganha nova cara e frescor. Basta ver o desempenho no primeiro turno e as perspectivas no segundo de PSOL, PDT, PCdoB e PSB.
Mais do que a derrota de tudo o que Bolsonaro significa e de tudo que ele trouxe à cena nacional em 2018, a guinada político-eleitoral deve ter efeitos práticos e imediatos. Onde? No governo. Não dá mais para fingir que as falas e atos de Bolsonaro são normais e que os militares continuam indiferentes ou coniventes. Muita coisa está mudando e até parte dos militares já admitiu o óbvio: o rei está nu.
O resultado das eleições reforça a posição e os argumentos dos generais, almirantes, brigadeiros e assessores que mantêm os pés no chão e tentam chamar o presidente à realidade, alertá-lo para o que está ocorrendo. Com nomes, siglas, números e porcentuais, talvez alguém possa convencê-lo de que ele faz mal à saúde – dele, do governo e do País. Precisa parar e refletir.
A eleição coincide com a explicitação do racha do governo entre duas “alas”. De um lado, “os meninos” da ala ideológica, capazes de ameaçar o Supremo, ironizar o Congresso e chamar um general de quatro estrelas de “Maria Fofoca”. De outro, a “ala militar”, que mais e mais aplaude em silêncio o vice-presidente, general de Exército Hamilton Mourão.
Os “meninos” pululam em torno dos filhos de Bolsonaro, brincando de ideologia, reverenciando gurus, fazendo apologia de armas, guerreando a favor das más e contra as boas causas. Já a “ala militar” tenta dar ordem à bagunça e se descolar do linguajar do presidente: “pólvora” (contra os EUA), “maricas”, “boiolas”, “gripezinha”, “conversinha fiada”… Como reagiu o general Santos Cruz pelas redes, “é uma vergonha”. Quem há de discordar?
Assim, a derrota de Bolsonaro vem bem a calhar, para dar um choque de realidade e tentar acordar o presidente para o que de fato importa: a pandemia, a economia, a crise social. Assim como Trump perdeu nos EUA, a extrema direita, os seguidores e o blábláblá que levaram Bolsonaro à Presidência também perderam no Brasil. Bolsonaro despedaçou suas promessas e princípios de 2018 e os eleitores fizeram picadinho do que havia sobrado. Os militares estão vendo tudo isso. O Centrão também.
Carlos Melo: Na ressaca de 2018, Dem e PSOL deixam de ser coadjuvantes…
Necessário ainda pesar todos os números da eleição, nos 5.568 municípios do Brasil, de modo a verificar quem está realmente distribuído em território nacional. Como, por exemplo, ficou o Centrão de Jair Bolsonaro, nos rincões do país. Mas, olhando exclusivamente para resultados de maior visibilidade, já é possível fazer algumas afirmações sobre o saldo da eleição.
Antes de definir vencedores e vencidos, uma questão estrutural já parece clara: em 2020 o eleitor foi às urnas com ressaca do porre político de 2018. Há dois anos, as urnas se moveram pelo ressentimento contra a política – aquilo que os singelos e, também, os espertos chamaram de “velha política”, que na verdade era mais ou menos a política de sempre.
A “nova política” – de resto um clichê – não vingou; foi nada mais que uma cachaça de má qualidade, responsável por considerável dor-de-cabeça, cujo maior exemplo, até aqui, é o destino de Wilson Witzel. Mas, claro, não só: são vários os Witzels que podem ter o mesmo destino.
Desiludido com os frutos de sua própria desilusão, nascida possivelmente lá em 2013, o eleitor de 2020 se manifestou diante do que lhe foi entregue pelo ressentimento de 2018. Parece compreender que não será pela truculência e estupidez que os problemas se resolverão. Nesta eleição, a demagogia e o populismo contaram muito menos – embora, é claro, existam e sempre existirão no reino da Política.
Isto posto, o primeiro balanço é possível. A extrema-direita não teve o êxito que esperava: a vitória em 2018 foi eleitoral, mas não política. Não expandiu os limites de adesão orgânica que vigoram desde o Integralismo, de Plínio Salgado O grande desafio da democracia é manter seu reacionarismo atado à coleira.
Outro ponto: a polarização entre PT e PSDB parece superada. Os dois partidos – como os conhecemos – parecem ultrapassados pela história, embora continuem vivos aqui e acolá. Isso não significa que a velha disputa entre a esquerda e o centro tenha desaparecido. Essa continua, possivelmente com novos atores ou, pelo menos, com uma reviravolta no elenco: coadjuvantes de ontem almejam o protagonismo.
É o que se pode dizer inicialmente de PSOL e Democratas: apêndices de PT e PSDB, se descolaram. A despeito de São Paulo (Capital) onde o Dem nunca teve grande expressão, a jovem-guarda do antigo PFL ganhou corpo em várias e relevantes capitais, se desvencilhou do Centrão, assumiu-se como centro-centro. Já percebido no Congresso Nacional, isso parece ter ganho as cidades.
Por sua vez, o PSOL pede passagem em duas frentes. Na primeira, representando a esquerda nova – mais identitária e cultural, nas jovens periferias do Brasil; gente que vê o PT como “coisa de tios”. Na outra, onde exatamente está boa parte desses “tios”, que buscam no PSOL o PT do passado, na pureza e romantismo perdidos. Isso demonstra a necessidade de reinvenção nesses dois campos: o centro e esquerda. Se os dirigentes não o fizeram, a sociedade o fará. — já começou a fazê-lo, neste domingo.
No mais, como se intuía, os padrinhos perderam: Jair Bolsonaro, como a raposa da fábula, hoje diz que “as uvas estão verdes”, jogando o fracasso para o quintal do vizinho – a esquerda –, camuflando a grande derrota, cujo maior símbolo é a queda expressiva de votação de seu filho, Carlos, como vereador do Rio de Janeiro, e a não eleição de sua ex-esposa. Não há bolsonarismo, mostrou a eleição: há Bolsonaro, seu mito e sua seita.
Lula, que, de última hora, entregou a cabeça de Jilmar Tatto para não se comprometer com a derrota, tenta agora se associar a sucessos esparsos: se de fato era Boulos desde criancinha, por que não contornou interesses e evitou a vexaminosa derrota de seu partido? Já João Doria ou de Ciro Gomes passaram ao largo da eleição, com o governador “explicitamente escondido” por Bruno Covas – uma contradição em termos, mas reveladora. Enfim, 2020 pode demarcar uma interessante inflexão na política nacional. A história dirá.
*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
Carlos Pereira: Combate à corrupção tem ideologia?
Rotular iniciativas e movimentos de combate à corrupção como “de direita” tem sido uma alegação comum da esquerda, não apenas no Brasil.
Tem-se argumentado que, ao expor os meandros e bastidores do suposto “jogo sujo” da política, movimentos anticorrupção desempenhariam um papel central de fortalecimento da antipolítica. A devastação moral do governo de plantão fortaleceria o sentimento de que a política não seria mais um veículo de mudanças – todo o sistema seria corrupto e só um líder messiânico, fora do sistema – ou seja, fora da “política” – seria capaz de exercer mudanças significativas e, finalmente, higienizar a política.
Movimentos de combate à corrupção seriam, assim, paradoxais. A rejeição generalizada da política levaria necessariamente à fragilização do sistema vigente e ao surgimento de políticos de perfil populista e carismático que prometem acabar com a corrupção. Entretanto, uma vez eleitos, esses líderes “antipolítica” acabariam por colocar em risco as próprias instituições do País. Como exemplos, Rodrigo Duterte nas Filipinas, Silvio Berlusconi na Itália ou Jair Bolsonaro no Brasil.
A resposta que a esquerda tem dado a esse paradoxo, especialmente quando políticas anticorrupção atuam contra governos supostamente progressistas, é a de tratar as alegações ou evidências de irregularidades, ou condenações na Justiça como campanha de difamação da direita e perseguição da mídia conservadora.
Alegam que tais políticas adotam uma concepção de direito punitivista, que não respeitaria o devido processo legal. Pior ainda, associam a retórica anticorrupção e suas lideranças à própria direita. Rechaçam a participação de quem outrora impôs perdas judiciais a líderes corruptos de governos desviantes de esquerda na construção de alternativas políticas não polarizadas. O inverso também é verdadeiro: quando governos conservadores de direita são pegos praticando atos de corrupção, estratégias semelhantes são igualmente adotadas.
Apesar de, num primeiro momento, os movimentos de combate à corrupção terem causado um choque no sistema político, permitindo a eleição de “outsiders” como Bolsonaro, não chegaram a enfraquecer o sistema político nem a destruir o sistema partidário. Os resultados de ontem, das eleições municipais, sinalizam que os candidatos “antipolítica” e que apostaram na polarização foram os grandes derrotados.
É um erro, portanto, associar o combate à corrupção a uma agenda de direita ou de esquerda. O combate contra a corrupção não tem ideologia. É fundamentalmente uma luta contra governantes que apresentam comportamento desviante, sejam de esquerda, centro ou direita.
Na verdade, a luta contra a corrupção é mais que a imposição de restrições a trocas ilícitas no sistema político. Compreende também iniciativas que diminuam a captura do Estado por interesses específicos e escusos. Ela é, em essência, a luta contra a privatização da vida pública.
Em países com extrema desigualdade, como o Brasil, essa luta é um movimento contra os que capturam o Estado para interesses privados. Neste sentido, é uma política de inclusão social. Assim, só uma análise enviesada poderia rotular ideologicamente uma política anticorrupção que, essencialmente, visa diminuir a desigualdade social por meio do aumento da inclusão.
A luta contra a corrupção não é de esquerda ou direita, mas contra o incumbente
*Cientista Político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV Ebape)