o estado de s paulo

Vera Magalhães: Mas sua filha vota

Degrau geracional no voto em SP mostra urgência de falar com eleitor jovem

Apenas dois anos separam os jovens Bruno Covas (40 anos) e Guilherme Boulos (38). Mas as estratégias definidas pelas duas campanhas à Prefeitura de São Paulo levaram a que se estabelecesse um “degrau geracional” no voto de ambos que pode projetar cenários importantes para a política nacional, além das fronteiras da capital paulista.

Em 16 de novembro, dia seguinte ao primeiro turno, o ex-jogador de futebol e comentarista esportivo Walter Casagrande postou a mesma pergunta a Boulos e Covas: ele, dependente químico em recuperação, queria saber a política de ambos para as drogas. Boulos levou menos de duas horas para responder. Covas levou dez. No último fim de semana, Boulos fez uma live com o youtuber Felipe Neto, que tem 40 milhões de seguidores no YouTube, para jogar AmongUs, um jogo eletrônico que é febre entre jovens, acompanhado das filhas. Até a noite de ontem o vídeo tinha 3,1 milhões de visualizações.

Pesquisa Datafolha divulgada na madrugada desta terça-feira explicita a diferença geracional que se estabeleceu no voto do paulistano. A idade é “O” fator de decisão de voto em Boulos, mais que renda, como poderia supor o militante de esquerda. O prefeito vence em todos os extratos sociais, mesmo entre os eleitores que recebem até 2 salários mínimos.

Quando se analisa a faixa etária do eleitor, a coisa muda drasticamente de figura. Boulos dá uma lavada em Covas na faixa entre 16 e 24 anos, vence com folga no grupo imediatamente mais velho, até 34 anos, e quase chega lá entre os eleitores entre 35 e 44 anos.

E é aí que mora o maior risco para a reeleição de Covas, ao qual seus aliados estão atentos: o eleitorado mais velho é também o mais suscetível a não comparecer para votar, num ano marcado por um recorde de abstenções. O risco de contaminação pelo novo coronavírus no momento em que os casos voltaram a subir de forma preocupante pode impactar ainda mais o segundo turno que o primeiro.

Covas praticamente não tem engajamento nas redes sociais. Preferiu fazer uma campanha “old school”, com grande tempo de TV e muito profissional. Deu certo: ele passou tranquilo pelo primeiro turno e lidera com margem de 10 pontos a poucos dias do pleito. Mas ignorar as redes sociais e a personalidade que o eleitor jovem adquiriu nessa campanha pode ser um erro para políticos que queiram alçar voos futuros, e é nesse ponto que a campanha de Boulos serve como case nacional.

A distopia bolsonarista parece ter atingido o eleitor jovem mais que qualquer outro. A forma desrespeitosa e ameaçadora com que o presidente trata mulheres, negros e LGBTQIA+ e questões como a preservação ambiental causa urticária natural em um eleitorado para o qual diversidade, representatividade e sustentabilidade não são pautas “identitárias”, mas sim o modo pelo qual enxergam o mundo.

Falar com esse eleitor nada tem a ver com “lacrar" na internet ou se eleger à custa de memes e fake news, como fez Bolsonaro em 2018. Significa acordar para a necessidade de se comunicar de forma sincera, orgânica e eficiente com um público que vai, nas eleições vindouras, decidir qual o perfil do político para enfrentar Bolsonaro e também para ocupar cadeiras no Congresso.

A “virada” pregada por Boulos parece difícil, pelo voto consolidado de Covas nos segmentos e nos bairros da cidade, além da máquina mais poderosa a seu dispor e da avaliação consistente que tem como prefeito num ano em que as escolhas também se pautaram pela experiência dos gestores. Mas fica o aprendizado de que a disputa civilizada, sem gravata e dentro das balizas da política travada na cidade pode ser laboratório para conquistar corações e mentes de um eleitor ainda não viciado em polarização raivosa.


Rosângela Bittar: A terceira eleição

PSDB não teme solução radical para buscar um novo nome: a realização de prévias

Ao apurar as urnas, no domingo, o município de São Paulo terá o resultado de três eleições. A primeira revelará a identidade do novo prefeito. A segunda, de dimensão nacional, indicará os efeitos desta definição na peleja do governador João Doria e do presidente Jair Bolsonaro. A terceira e mais complexa deflagrará a disputa interna no PSDB, de que pouco se fala mas, com certeza, desabrochará.

A resistência a João Doria definirá sua proporção, no PSDB, a partir de agora. Com o desempenho eleitoral do prefeito Bruno Covas este grupo, que contava apenas com a presença discreta do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, passa a ter um novo ponto de articulação.

Se conseguir levar seu eleitorado a comparecer, Covas continua favorito para vencer o segundo turno, apesar do impulso de crescimento de seu oponente em cima do contingente de indecisos. Se não, pelo resultado até aqui, passou a ser um ator importante nas definições político-eleitorais do PSDB. Não é mais o vice, de carona em um mandato tampão de prefeito. Sua votação tornou-se pessoal. A campanha lhe permitiu, também, mostrar uma gestão reconhecida, apesar da travessia de períodos dramáticos que viveram os cidadãos e ele próprio.

Desempenho eleitoral e gestão o credenciam como força partidária. Não necessariamente em futuro benefício próprio, devido aos problemas de saúde, mas para fortalecer a oposição interna que não vê em Doria o destino do PSDB. Doria está desgastado. Sabe-se, inclusive, o ponto nevrálgico de seu esgotamento, e não está na gestão. O governo é bem avaliado, tem uma equipe melhor que a do governo federal, fez uma reforma administrativa que Bolsonaro levará ano e meio para começar. Como se formou, então, tão denso desgaste? Especialistas identificaram sua origem em um fenômeno que definem como “excesso de imagem”.

Desde o momento inicial, que ficou conhecido como a fase de traição a Geraldo Alckmin, ao abandono precoce do mandato de prefeito, passando pelas dificuldades para desatar a armadilha BolsoDoria, mais os palanques diários, a voz onipresente. Acreditou na comunicação direta como um ativo e cansou o distinto público.

A tese se comprova. Tanto que o momento mais bem sucedido de Doria, no quesito aceitação, se deu quando saiu de cena e deixou Bolsonaro falando sozinho, a comemorar a suspensão da vacina anticoronavírus do Butantã. Colocou médicos e cientistas para duelar com o provocador, levando o Presidente da República a murchar seu ímpeto num instante, completamente sem graça. Mas foi exceção. O PSDB sente-se preparado para articular alternativas. Eduardo Leite, considerado um belo produto político, galvaniza estas forças. Como é pouco conhecido, foi um opositor discreto internamente. Mas agora pode contar com São Paulo. Além de oferecer ao partido a construção de uma candidatura a partir do zero.

Estão todos conscientes de que uma reação como esta é de difícil operação. Bruno Covas tem a política na sua natureza, conhece o centro do poder e sintoniza-se melhor com Leite do que com Doria. Mas é certo que terá enormes dificuldades de liderar o movimento de dentro para fora de São Paulo. Não só pelo constrangimento que, em política, se dilui, mas por questões de outra natureza, como a relação do prefeito com o governador e do partido com o Estado onde se encontra o maior colégio eleitoral.

Reconhecer que é difícil não significa que não vai haver. O PSDB já sente profundamente a necessidade de buscar um novo nome. Gosta de seu dilema de sempre que considera sua marca: não se discute se o partido terá candidato, mas quem será. E não teme, em último caso, a solução radical para este tipo de impasse: a realização de prévias. Que podem ser organizadas num estalar de dedos. Para o PSDB, isto é muito.


Michel Schlesinger e dom Odilo Scherer: Uma só casa de oração

O rabino Sobel e sua palavra de diálogo e pluralismo fazem falta nestes tempos difíceis

“Porque a minha casa é uma casa de oração querida por todos os povos” – essa frase, gravada sobre os portões de inúmeras sinagogas ao redor do mundo, é de Isaías, que viveu há 2.800 anos e é considerado um profeta por judeus, cristãos e muçulmanos.

Diz a tradição judaica que Isaías, certa vez, ouviu Deus perguntar-se: “Quem eu devo enviar para transmitir minha palavra a meu povo?”. O profeta teria então dito: “Aqui estou, manda-me”.

E a resposta de Deus foi: “Minhas crianças são problemáticas. Se você está preparado para receber insultos e até golpes, pode aceitar minha mensagem. Se não estiver, é melhor renunciar à missão.”

Isaías aceitou e cumpriu a missão. Previu vitórias, como o colapso dos exércitos assírios às portas de Jerusalém, em 701 a.C. Mas também criticou duramente os erros do povo hebreu e, principalmente, os excessos dos governantes ao exercerem o poder. E, como Deus dissera, pagou um preço alto – a própria vida, tirada por quem se sentiu atacado por suas profecias.

Nada mais apropriado que lembrar Isaías e sua citação mais famosa no momento em que se aproxima a Haskará, a cerimônia de primeiro aniversário da morte do rabino Henry Sobel (1944-2019), falecido no dia 22 de novembro do ano passado.

Sobel nasceu em Portugal e educou-se nos EUA, mas foi no Brasil que se destacou na luta em defesa dos direitos humanos. Uma luta que começou ao lado de dom Paulo Evaristo Arns, então cardeal-arcebispo de São Paulo, e do reverendo Jaime Wright, da Igreja Presbiteriana, com a resistência a autorizar o enterro do jornalista Vladimir Herzog, assassinado pelo regime militar em 1975, na ala dos suicidas do Cemitério Israelita do Butantã, em São Paulo.

O ato ecumênico em homenagem a Vladimir Herzog, liderado por esses três gigantes na Catedral da Sé, foi a primeira das inúmeras mobilizações populares que conduziram ao fim do regime militar, dez anos depois.

O envolvimento de Sobel em causas humanitárias se estenderia por quatro décadas. Do apoio aos despossuídos da cidade e do campo à defesa de uma solução negociada para o conflito entre Israel e palestinos, Sobel jamais se acovardou. Por isso era recebido e respeitado por todos os presidentes da República – de Fernando Henrique a Lula –, assim como por todos os papas e mesmo pelo líder palestino Yasser Arafat.

Ao longo de seu período de atividade, ele também foi um grande expoente do diálogo inter-religioso e da promoção da convivência pacífica entre as diferentes denominações religiosas no Brasil. Seu sotaque inconfundível, a quipá (solidéu) cor de vinho sobre os cabelos loiros desalinhados e sua voz poderosa em defesa dos humildes lhe garantiram um lugar especial na História do Brasil. E, claro, também multiplicaram seus detratores, dentro e fora da comunidade judaica, sempre prontos a aproveitar qualquer brecha para desacreditá-lo diante de uma opinião pública que retribuía o carinho com que ele agasalhou o Brasil em seu coração nova-iorquino.

Sobel era um personagem extraordinário e, como todos nós, seres humanos, sujeito a erros. E os cometeu, porque só não erra quem não age – esse talvez seja o maior de todos os erros. Muitas vezes Sobel foi muito mais duro com suas próprias falhas do que com os erros de outros. Ele mesmo o reconheceu quando prestou solidariedade a outro grande expoente da defesa dos direitos humanos, o padre Júlio Lancellotti, perseguido injustamente por quem nunca aceitou sua dedicação aos sem-casa de São Paulo.

Ao longo da história das religiões sempre houve quem visse a fé das pessoas como um instrumento de união, de promoção de um mundo melhor, mais fraterno. Aqueles para quem a crença em algo superior humaniza no dia a dia e estimula um olhar generoso para com o próximo.

Mas também sempre houve quem utilizasse a religião como instrumento de intolerância, uma fórmula sectária de acumulação de poder. Aqueles que constroem o “seu” Deus e em nome dessa exclusividade – que fere o princípio básico das religiões, que é dar alívio a quem sofre – mobilizam audiências e, por vezes, exércitos.

É em momentos como este que estamos vivendo, de pandemia, isolamento e dificuldades econômicas, que essas duas visões sobre a religião – opostas e irreconciliáveis – se tornam mais evidentes. Daí a relevância de marcar a Haskará do rabino Sobel com uma iniciativa inter-religiosa, reunindo líderes judeus, cristãos, muçulmanos, budistas, do candomblé e da fé Baha’i.

Como o profeta Isaías, Henry Sobel colheu grandes vitórias em seu trabalho pastoral. E também pagou caro por sua ousadia. Na conta final, o rabino Sobel e sua palavra permanente de diálogo e pluralismo fazem muita falta nestes tempos difíceis. Porque a casa de oração de Henry Sobel sempre foi um templo querido para todas as religiões. E aberto a todos os povos e cores que constituem este Brasil plural.

O evento, virtual, será realizado hoje, dia 24 de novembro, às 19h30 (link https://bit.ly/3eIvsPf).

RESPECTIVAMENTE, RABINO DA CONGREGAÇÃO ISRAELITA  PAULISTA (CIP) E CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO


Ana Carla Abrão: O longo prazo é hoje

Apesar da pandemia, o mercado de capitais reagiu e chega ao fim de 2020 acumulando números muito positivos

Em um ano tão turbulento e tão difícil, era de se esperar que o mercado de capitais tivesse, na melhor das hipóteses, andado de lado. Não foi assim o ano todo. Esse mercado viveu, até antes da abrupta interrupção da atividade econômica pela pandemia, um período de notável expansão. Mas sofreu, em março e abril deste ano, o baque que todos nós sofremos, se retraindo como reação à esperada recessão econômica, ao aumento da volatilidade e da aversão ao risco como no resto do mundo. Mas reagiu e chega ao fim de 2020 acumulando números muito positivos.

Somos mais de 3 milhões de investidores individuais em renda variável na B3, nossa Bolsa de Valores. Após a paralisia dos primeiros meses, que interrompeu a tendência crescente de emissões que vinha ainda de 2019, vimos os números de operações de abertura de capital baterem recordes, com 18 novas estreias na B3 (mais do triplo do que vimos em todo 2019) e R$ 22 bilhões em ofertas públicas individuais (IPOs), o que equivale a mais do que o dobro dos R$ 10 milhões observados no ano passado. Somem-se a essas, as ofertas subsequentes (follow-ons) – quando a empresa volta ao mercado para ofertar mais ações – que aconteceram a partir de agosto e chegamos a R$ 78 bilhões em operações até setembro de 2020, equivalente a 87% do total registrado no ano de 2019.

No mercado de renda fixa não foi diferente. Devemos fechar o ano com uma participação recorde dos instrumentos de financiamento privado na matriz de financiamento de longo prazo das empresas. Aqui o crédito bancário público (majoritariamente BNDES, com volumes generosos e juros subsidiados) chegou a representar 48% de toda a carteira de crédito de longo prazo das empresas no Brasil. Ao final do primeiro trimestre de 2020 esse número representava 36%. Uma queda expressiva cuja tendência deverá se manter, devolvendo ao mercado de capitais a posição que ele deveria sempre ocupar.

Se olharmos outra métrica, a dos volumes de emissões mobiliárias públicas em comparação com emissões no mercado de capitais, o movimento de expansão se mostra igualmente consistente e vem de mais longe. Enquanto em 2016 as emissões privadas representavam apenas 18% do que foi emitido pela União, ao fim de 2019, elas chegaram a representar 58%. Este ano, a vida foi mais dura, ainda assim, o número se manteve em 38%, consolidando a tendência de maior representatividade do mercado privado.

Ou seja, apesar da pandemia e dos seus consequentes reflexos sobre a atividade econômica no mundo e no Brasil, o mercado de capitais local seguiu uma lógica própria em 2020. o contexto adverso afetou a trajetória de expansão que se desenhava forte em 2019, mas não interrompeu a tendência de ampliação que acompanha um ambiente que se beneficia de uma combinação de taxa de juros baixas, melhoras regulatórias e importantes correções de distorções que se acumulavam e limitavam o seu crescimento.

Mas há uma agenda a ser perseguida para que possamos consolidar de forma definitiva essa tendência positiva que, sabemos, deverá enfrentar as dificuldades de um país com grandes incertezas fiscais e enormes desafios estruturais. E essa é uma agenda fácil, se comparada com as grandes reformas necessárias em outros campos. Nesse contexto vale chamar a atenção para um conjunto de propostas que vem sendo discutidas desde 2018 pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) em conjunto com a B3. O objetivo aqui é garantir continuidade ao processo de aprofundamento e desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro.

A agenda Anbima/B3, cuja atualização acaba de ser apresentada, traz os quatro desafios que deverão nortear o fomento e o desenvolvimento do mercado de capitais nos próximos anos: i) a diversificação da base de investidores; ii) a ampliação da base de emissores; iii) o impulsionamento do mercado secundário de renda fixa; e iv) o fomento à negociação de títulos de dívida privada, a chamada securitização que hoje se vê concentrada nos setores imobiliário e agrícola. Temos ali um conjunto de contribuições que farão parte das discussões com governo, reguladores e legislativo e deverão nortear os avanços que se somarão ao que vimos observando recentemente.

Seguindo a definição da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o mercado de capitais, juntamente com os mercados de crédito primário, de câmbio e o monetário, formam o que conhecemos como mercado financeiro. Neste, é o mercado de capitais aquele que exerce a função de viabilizar recursos de longo prazo para empresas, canalizando a poupança dos investidores para instrumentos privados de captação de recursos, ou seja, dando liquidez a títulos que são emitidos por empresas para viabilizar seus projetos de investimento e a expansão dos seus negócios.

Logo, é fundamental lembrar que quando falamos de crescimento e mais ainda de desenvolvimento econômico, o mercado de capitais emerge como protagonista e precisa, como tal, ser foco de constante evolução. A agenda está colocada e precisa avançar, apesar ou em função das enormes dificuldades que o Brasil enfrenta e ainda enfrentará – no curto, médio e longo prazos.

*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman


Rubens Barbosa: Visões de futuro, China e Brasil

Os chineses fazem um sólido planejamento e o País deixa o grupo das dez maiores economias

A quinta sessão plenária do 19.º Comitê Central do Partido Comunista da China (PCCh), concluída em 29 de outubro, apresentou as linhas gerais do 14.º plano quinquenal econômico e social do país (2021-25). O plano quinquenal registra os objetivos gerais para os próximos cinco anos e, além disso, estabelece o planejamento de médio prazo, até 2035. Mantendo a retórica de “paz e desenvolvimento”, o PCCh traçou as principais linhas estratégicas levando em conta, sobretudo, a crescente competição global. Os documentos indicam que as lideranças do partido, refletindo as incertezas no cenário global, buscaram mudanças em três áreas: fortalecimento da economia, autossuficiência em tecnologia e mudança de clima.

Na sua visão de futuro, os líderes chineses abandonam a ênfase no crescimento econômico com o aumento do PIB e passam a focar “o aumento significativo no poderio econômico e tecnológico” do país até 2035, com foco em questões estruturais e qualidade de vida. O comunicado final do plenário do congresso não fixa uma taxa de crescimento para 2035 e menciona somente o objetivo de alcançar, “em termos de PIB per capita, o nível de países moderadamente desenvolvidos”. Manter o foco no crescimento faz sentido para a China num momento de crescente competição entre grandes potências, que o comunicado, em outras palavras, denomina “profundos ajustes no equilíbrio de poder internacional”. Uma economia forte vai “assegurar que a China tenha recursos necessários para a defesa nacional e a pesquisa científica” e para a expansão de seus interesses globais.

Em vista da gravidade da crise pandêmica, a China teve de adiar o projeto da Rota da Seda (Belt and Road Initiative), uma forma de projetar seu poderio econômico além-fronteira.

As sanções dos EUA e as restrições à venda de semicondutores a empresas chinesas motivaram mudanças na atitude da liderança do PCCh no tocante à dependência de tecnologia do exterior. As vulnerabilidades da China foram exploradas geopoliticamente pelos EUA, apesar dos custos econômicos e da oposição de parte da indústria norte-americana. O plenário do partido afirmou que “autossuficiência em ciência e tecnologia é um pilar estratégico do desenvolvimento nacional” e demandou que “importantes avanços sejam conseguidos em tecnologias críticas” para que a China se torne “líder global em inovação”. Essa diretriz já estava presente nas medidas tomadas para o avanço na política industrial Made in China 2025, com resultados concretos em várias áreas, entre as quais o país já mostra significativa liderança global: tecnologia 5G e 6G e inteligência artificial.

A liderança chinesa passou a ver na política ambiental e de mudança do clima uma forma de ganhar prestígio global e obter benefícios econômicos. A proteção ambiental tem sido uma prioridade crescente para as autoridades chinesas nos fóruns internacionais. Em setembro, na ONU, Xi Jinping anunciou que a China fixou a meta de o pico das emissões de gás carbono ser alcançado em 2030 e a de emissão zero, obtida em 2060. Embora ambiciosos, esses objetivos indicam a participação cada vez mais intensa da China nas discussões sobre políticas ambientais, com potenciais reflexos sobre outros países.

Enquanto a China faz seu sólido planejamento com visão de futuro, o Brasil mantém uma atitude preocupante em termos de planejamento de médio e longo prazos. O FMI projeta uma queda de perto de 5% em 2020 e um crescimento de mais de 4% em 2021, apesar de estimativas de analistas econômicos de que as questões fiscais, a ausência de reformas, a queda no crescimento do comércio exterior e nos investimentos externos não prenunciam uma saída em V, como repetido pelo ministro da Economia. Por outro lado, o baixo crescimento da economia nos últimos anos, agravado pela pandemia, fez o Brasil deixar de ser uma das dez maiores economias globais, segundo o Ibre/FGV. Em termo de PIB em dólares, neste ano, Canadá, Coreia do Sul e Rússia devem ultrapassar o Brasil, que cairá para a 12.ª posição.

A preocupação aumenta quando se verifica não haver um plano claro de saída da crise atual, nem prioridades para avanços econômicos, sociais e tecnológicos. Sem maior discussão, o governo editou decreto que institui a Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031, com cinco eixos: econômico, institucional, infraestrutura, ambiental e social. Trata-se um uma medida tímida, que vai na direção correta. O Congresso e a sociedade civil deveriam ser chamados a participar da análise e discussão dessa estratégia. Dois aspectos chamam a atenção no documento do governo federal: a ausência de uma clara prioridade para a inovação e a tecnologia e de metas claras no eixo ambiental no tocante à preservação da Floresta Amazônica e à mudança do clima.

China, Europa, Japão e EUA (com Biden), no atual cenário internacional, colocam mudança de clima e tecnologia como objetivos centrais, como ficou evidente na reunião do G-20 no final da semana. Quando o Brasil vai juntar-se a eles?

*Presidente do Irice


O Estado de S. Paulo: João Doria defende uma frente em 2022 com a centro-esquerda

Governador diz não ser candidato à reeleição e afirma que cabem todas as forças nesta aliança, menos os ‘extremistas’

Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo

Depois de se eleger à Prefeitura, em 2016, e ao governo do Estado, em 2018, com um discurso marcado pelo antipetismo, o governador João Doria (PSDB) se reposicionou e, agora, tem pregado um diálogo “contra os extremos”, por meio de uma frente que inclua a centro-esquerda.

Potencial candidato ao Palácio do Planalto em 2022, Doria é, atualmente, desafeto político do presidente Jair Bolsonaro. “O comportamento das pessoas muda ao longo do tempo. Não há comportamento estanque, paralisado”, disse o governador em entrevista ao Estadão, na ala residencial do Palácio dos Bandeirantes. Apesar do embate com o presidente, Doria afirma que ainda não é o momento de fazer oposição ao governo federal.

Leia, a seguir, trechos da entrevista.

Houve um reposicionamento no discurso do sr. entre 2016, 2018 e hoje? O antipetismo perdeu espaço e o sr. parece menos radical e buscando o centro...

O comportamento das pessoas muda ao longo do tempo. Não há comportamento estanque, paralisado, congelado das pessoas nem da sociedade. O comportamento evolui. Pode evoluir para melhor, para pior, mas evolui.

Candidatos passaram a campanha tentando colar Bruno Covas no sr., dada a alta rejeição ao seu nome na capital. O paulistano não perdoou sua saída da Prefeitura antes do fim do mandato?

Isso é tempo passado. Eu hoje sou governador do Estado de São Paulo, eleito. O Bruno no primeiro turno foi votado para ser reconduzido à Prefeitura de São Paulo. Em suma, o que vale na democracia é o voto.

O presidente Jair Bolsonaro antecipou o debate sobre a eleição presidencial de 2022. É hora de se discutir a construção de uma frente para disputar as eleições contra ele?

A frente não deve ser contra Bolsonaro, mas a favor do Brasil. A frente deve reunir o maior número possível de pessoas e pensamentos que estejam dispostos a proteger o Brasil e a população. (Essa frente) Comporta o pensamento liberal de centro, que é o que eu pratico, mas comporta também centro-direita, centro-esquerda, aqueles que têm um pensamento mais à esquerda e à direita. Só não caberá o pensamento dos extremistas, até porque os extremistas não querem compartilhar, discutir. Eles querem impor situações ao País, tanto na extrema-esquerda, quanto na extrema-direita. Destes extremos nós temos que ficar longe.

Com qual centro-esquerda o sr. acha ser possível dialogar?

Com todos aqueles que integram um sentimento múltiplo, compartilhador e dedicado ao País, sem interesses pessoais se sobrepondo ao interesse do País. Temos que ter a capacidade de diálogo com humildade. Saber ouvir e valorizar o contraditório. O contraditório ajuda o Brasil, e não prejudica. O que prejudica é o extremismo.

É possível incluir nas conversas Ciro Gomes e Marina Silva?

Não devemos excluir ninguém que tenha esse sentimento. Todos que têm esse sentimento são bem-vindos, até mesmo os que no passado praticaram posições mais extremistas, mas que possam ter mudado e estejam hoje no campo do diálogo.

Não é difícil que alguém abra mão de ser candidato à Presidência em 2022? Nas conversas estão Sérgio Moro, Luciano Huck...

O pressuposto para unir o maior número possível de pensamentos pelo Brasil é não haver prerrogativa pessoal.

Sérgio Moro desponta nesse grupo?

Ele deve fazer parte dessa frente. Tem história, biografia e posicionamento. Nunca declarou que era candidato. Sempre teve altivez e grandeza para defender o País, independentemente dos interesses pessoais.

O sr. evita falar que essa frente é contra Bolsonaro. Por quê?

A frente não deve ser de oposição, nem contra o Bolsonaro. Deve ser a favor do Brasil. Esse é o sentimento que une. O sentimento do contra não agrega. Tudo tem a sua hora. Agora é hora de estarmos unidos pelo Brasil, e não fazer oposição a este ou aquele governo.

O PSDB pode estar à frente desse projeto de centro em 2022?

O PSDB deve participar desse movimento, mas não é preciso liderar. Esse é um movimento de compartilhamento, não de exclusão ou de escolha, um lidera e os outros são liderados. Todos devem liderar.

Essa aliança partidária feita em São Paulo, com DEM, MDB e PSDB, pode se repetir na eleição para a presidência da Câmara?

Por que não? O sentimento desses partidos é dialogar para achar um nome e apoiá-lo.

O sr. descarta disputar a reeleição para governador?

Não se trata de ser ou não candidato a presidente, mas de manter minhas convicções. Sou contra a reeleição. Sempre defendi mandato único de cinco anos. Não critico nem condeno os que disputam reeleição, como Bruno Covas. Mas eu, por ser contra a reeleição, vou manter a minha coerência. Não vou disputar a reeleição.

Ainda é uma ideia promover uma fusão, mudar a logomarca e reformular o discurso do PSDB? Ou, diante da ascensão de Bruno Covas, que prega a volta às origens do partido, retomar a bandeira da social-democracia?

O Bruno não prega a volta às raízes, mas um PSDB moderno, digital, inovador e com uma visão social de atender aos mais pobres. Com respeito aos programas de desestatização, ao liberalismo econômico.

O sr. defende que o PSDB seja mais progressista em pautas como casamento gay, aborto, drogas, escola sem partido?

O PSDB é progressista, tanto na economia quanto no plano social. Sem preconceitos.

Arrepende-se do “Bolsodoria” na disputa de 2018?

A eleição do Bolsonaro foi um grande erro para o Brasil. Eu não mantenho meu compromisso diante de um equívoco tão grande. O Bolsonaro prometeu um país liberal, economia globalizada, combate à corrupção. E não fez.

O que os governadores estão fazendo para evitar a politização da vacina contra a covid-19?

Os governadores estão unidos. Todos defendem as vacinas, a vida, e não a politização nem da vacina nem da covid. O único que faz essa defesa hoje se chama Jair Bolsonaro.

Mas o sr. também não politizou a vacina aqui em São Paulo?

Não politizamos. Nós defendemos a vida, a ciência e a saúde. Vacina não deve ser avaliada pela origem, mas pela eficácia.

Como avaliou essa coalizão que se formou na Assembleia Legislativa contra o ajuste fiscal do governo estadual? Partidos como Novo e siglas de esquerda se uniram contra o pacote.

Um equívoco. O Novo demonstrou que já ficou velho logo no início da sua existência, o que é uma pena. A reforma administrativa foi aprovada e São Paulo foi o primeiro Estado a fazer. Fizemos aquilo que o Brasil deveria ter feito no governo federal e não fez.

Foi precipitado pôr o Estado na fase verde, que é mais flexível?

Não há nenhuma relação do aumento dos casos de covid-19 em São Paulo com o Plano São Paulo. A correlação está no relaxamento que estão, infelizmente, adotando. As pessoas estão saindo sem máscara, participando de aglomerações, festas e encontros em momento inadequado. Enquanto não tivermos a vacina, as pessoas devem se preservar.


Almir Pazzianotto Pinto: Constituição – realidade e ficção

Demagogia em conluio com utopia foi o erro de deputados e senadores eleitos em 1986

É impossível fazer vista grossa para a crise que assola o País e a responsabilidade que recai sobre a Constituição da República.

Exceto raros ex-integrantes da Assembleia Nacional Constituinte, é opinião generalizada que a oitava Carta Magna teve o prazo de validade ultrapassado. Não porque pequeno grupo conspire para derrubá-la. A morte virá por falência múltipla dos órgãos, decorrente de septicemia.

Poderoso argumento utilizado contra a convocação de nova constituinte consiste no receio da perda de direitos sociais, relacionados no Capítulo II do Título II, que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais.

Afinal, o que é a Constituição, também denominada Lei Fundamental? Os especialistas na matéria não costumam pôr-se de acordo acerca da correta definição. Pinto Ferreira, após citar uma dezena, define-a como “conjunto de normas convencionais ou jurídicas que, repousando na estrutura econômico-social e ideológica da sociedade, determina de uma maneira fundamental e permanente o ordenamento do Estado” (Da Constituição, Ed. José Konfino, 1956).

Poderia ter dito apenas “conjunto de normas fundamentais que regem a organização do Estado”.

As definições convergem, todavia, na afirmação de que compete à Constituição determinar regras fundamentais. Tudo o que não for fundamental pertence à esfera da legislação ordinária. Assim o dizia o artigo 178 da longeva Carta Imperial de 1824, que vigorou por 65 anos e recebeu emenda uma única vez: “É só Constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições dos respectivos Poderes Políticos e aos Direitos Políticos e individuais dos cidadãos. Tudo o que não for constitucional pode ser alterado, sem as formalidades requeridas, pelas Legislaturas ordinárias”. A Constituição republicana de 1891 foi a que mais se aproximou do salutar princípio. Daí ter durado 40 anos, com poucas mudanças, feitas de uma só vez, em 3/9/1926.

Para ser verdadeira e não descambar para o enganoso terreno da utopia, a Lei Fundamental deve refletir a realidade e não oferecer mais do que a infraestrutura econômica consegue proporcionar. Como diria Oliveira Vianna, o traço dominante das últimas constituintes consiste na fatídica crença no poder mágico das palavras. Da Constituição de 1988 recolho como exemplos de ilusionismo o elenco dos direitos sociais, a definição do salário mínimo, a proteção contra a automação na forma da lei, as garantias relativas à saúde, à educação, à segurança, ao emprego, ao trabalho (artigos 6.º e 7.º, IV e XXVII, 144, 170, 196, 205).

Os direitos sociais relacionados nos 34 incisos do artigo 7.º oferecem frágil cobertura a minoritário mercado formal, onde se encontram os que têm carteira profissional anotada. Para a maioria desempregada, subocupada ou desalentada prevalece a lei da oferta e da procura, agravada pela crise aprofundada pela pandemia, cuja extensão o presidente Jair Bolsonaro insiste em menosprezar. São 14 milhões de desempregados, 9 milhões sem carteira profissional assinada, 21,4 milhões de autônomos, 51,7 milhões abaixo da pobreza, vítimas das fantasias dos constituintes de 1988.

Direitos fundamentais, inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis são a igualdade perante a lei, a liberdade de imprensa e de opinião, a dignidade, a cidadania, a pluralidade política, o voto universal e secreto, o acesso ao trabalho e à livre-iniciativa. Não basta, para usufruí-los, que se encontrem escritos e encadernados. A Constituição dos Estados Unidos da América, aprovada em 17/9/1789 por 55 delegados representantes de 12 Estados, tem sete artigos, emendados 20 vezes. Não faz referência a direitos sociais, que só se concretizam quando o Estado é democrático e a economia, vigorosa, funciona bem.

Para que a admiremos a Constituição deve ser conhecida e manter vínculos de fidelidade com o povo. Eruditos comentários redigidos por acadêmicos e professores estão fora do alcance do grosso da população. São ótimos para a venda de livros que dissertam sobre mundo irreal. O Idealismo da Constituição, livro de Oliveira Vianna, talvez o único que analisou o fracasso da Constituição de 1934, está fora de circulação. Parafraseando o autor, a Constituição de 1988 falhou por instituir relações conflitantes entre idealismo, utopia e realidade nacional.

Fonte do direito positivo ordinário é a vontade revelada pelo Estado. Fonte do direito constitucional, entretanto, é a vontade revelada pelo povo por meio dos seus representantes, salvo quando não dimana, como em 1964, da ruptura da ordem jurídica provocada por golpe militar. Fazer da demagogia, em conluio com forte dose de utopia, fonte do Direito Fundamental foi o erro em que incidiram deputados e senadores eleitos em 1986, investidos erroneamente de poder constitucional.

Estamos a caminho da nona Constituição. Se não encontrarmos a fórmula política consensual para redigi-la e promulgá-la, a letal combinação entre crise econômica e crise social poderá deflagrar crise institucional cujo desfecho virá, como em 1964, pela violência das armas.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Rolf Kuntz: O apagão das canetas e a perversão da política

O governo tem de gastar, diz o seu líder, para ter seus projetos aprovados

Votos custam dinheiro, muito dinheiro, no Congresso Nacional. Por isso o governo precisa gastar para ampliar sua base e conseguir aprovação de projetos. Quem diz isso é o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR). Diz em público, e suas falas têm sido noticiadas. Na terça-feira ele acusou órgãos de controle de causar um “apagão das canetas”, impedindo a liberação de verbas para obras de interesse de parlamentares. A discussão continuou e na quinta-feira já se falava, em Brasília, de negociações com o Tribunal de Contas da União. A ideia era obter autorização para empenhar recursos, neste fim de ano, para investimentos em 2021. Tudo foi dito abertamente, como se fosse normal e saudável, numa democracia, abrir o cofre em troca de apoio parlamentar.

Nenhum sinal de hipocrisia, até aí. A propósito, a hipocrisia, repetia-se em outros tempos, lembrando La Rochefoucauld, é a “homenagem que o vício presta à virtude”. Pressupõe-se no hipócrita, portanto, alguma noção de virtude, assim como algum respeito aos costumes valorizados numa sociedade. A fala aberta, sem subterfúgios, seria um sinal ainda mais certo da reverência àqueles valores. Será possível, no entanto, sustentar esse pressuposto no caso dos protestos contra o “apagão das canetas”? É duvidoso. Os envolvidos podem ter simplesmente usado em público, sem autocensura, a linguagem própria do seu meio e dos seus costumes.

O apagão, nesse caso, foi luminoso. Tornou mais clara, até ensolarada, a natureza da relação entre o Executivo chefiado pelo presidente Jair Bolsonaro e a sua, por assim dizer, “base de apoio”. Esta expressão é imprópria, embora usada no dia a dia, e também isso pode ter ficado mais visível para os menos atentos. Não se trata, de fato, de uma base, mas de um reservatório de votos, uma fonte acessível de acordo com as condições e as cotações de cada momento.

Outras práticas, diferentes da negociação de votos por verbas, são mais frequentes em outras democracias, especialmente naquelas onde os partidos têm cores mais definidas. Há acordos de conveniência, assim como conchavos e jogadas eleitorais, mas é possível, em geral, associar a votação a princípios partidários e ideológicos. Embora avariado, o Partido Republicano ainda é reconhecível. Nem o presidente Donald Trump conseguiu desfigurá-lo totalmente e convertê-lo em instrumento de seu populismo nacionalista, neofascista e, sobretudo, personalista.

Sem censura, a fala aberta revelou também, no episódio do apagão das canetas, a inversão de noções fundamentais da vida política. Segundo o líder Ricardo Barros, “o deputado quer uma obra”, isto é, quer “mostrar serviço a seus eleitores”. O governo, portanto, deve entregar o benefício ao congressista, para deixá-lo satisfeito. “Precisamos estabelecer a relação republicana que precisa existir entre parlamentar e governo”, concluiu o líder, segundo relato do Estadão.

Esse é um conceito muito particular de republicanismo. “Relação republicana” designa, em sentido próprio, algo muito diferente de um intercâmbio desse tipo, isto é, da troca de um benefício político-eleitoral, pago com dinheiro do Tesouro, por um voto a favor de um projeto.

A noção de república, em sentido próprio, remete a uma ordem comum, sujeita a um poder soberano (atributo do Estado) e caracterizada por leis conhecidas e formuladas segundo processos legitimados. Essas leis estabelecem, entre outros aspectos da vida coletiva, a distinção entre o público e o privado. Essa distinção desaparece quando meios públicos são usados para fins particulares.

Meios públicos podem ser dinheiro, empresas, instalações estatais, recursos humanos de qualquer escalão ou ainda processos e órgãos típicos de Estado. Exemplo: se um presidente, por hipótese, convocar dois altos funcionários para discutir problemas legais de um de seus filhos, meios públicos serão usados para fins privados. Esse uso é estranho às funções e aos poderes presidenciais e nada tem, portanto, de republicano.

A lei submete o Orçamento ao exame e à aprovação do Congresso. Congressistas podem apresentar emendas de interesse de suas bases eleitorais. A lei regula as condições de execução dessas emendas. Mas nenhuma lei confere caráter republicano à negociação de vantagens privadas com base nesse ou em qualquer outro uso de bens públicos.

Em quase todo o mundo o exercício do governo envolve negociações, articulações e trocas de vantagens políticas. A presença de mais de um partido no Ministério pode ser um meio de fortalecer a ação do Executivo. Mas isso pressupõe, normalmente, uma convergência possível entre orientações partidárias distintas – quando cada partido merece esse nome.

Interesses particulares, em escala nacional, regional ou local, sempre serão afetados, de forma positiva ou negativa, por decisões políticas de alguma importância. Decisões de caráter republicano sempre serão tomadas, no entanto, com base em princípios gerais e levando em conta as funções e os limites do poder público. Fugir disso é privatizar o Estado.


Vera Magalhães: João Alberto e as urnas

Casos de grande comoção às vésperas de pleitos podem influenciar o voto

Casos como o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, por espancamento seguido de asfixia numa loja do Carrefour em Porto Alegre, ocorrido na última quinta-feira, quando acontecem próximos de eleições, costumam ter o condão de virar tema das campanhas e mobilizar setores do eleitorado.

O exemplo recente mais rumoroso vem dos Estados Unidos e tem muitos pontos de contato com o caso João Alberto: foi o assassinato de George Floyd por asfixia por policiais em Minneapolis, em maio. Lá como aqui, a ação dos assassinos foi filmada. A frase repetida por Floyd, “I can’t breath”, que significa “Eu não posso respirar”, virou mote de manifestações que cobriram o país.

O movimento Black Lives Matter, ou Vidas Pretas Importam, surgido anos antes, ganhou dimensão nacional e deu força a grupos locais, que tiveram grande engajamento nas eleições presidenciais e peso real na vitória de Joe Biden sobre Donald Trump em Estados como a Geórgia.

No Brasil, os casos mais conhecidos de comoção nacional às vésperas de pleitos são a greve da siderúrgica CSN em Volta Redonda, em 1988, e o massacre do Carandiru, em 1992, em que 111 presos foram chacinados pela Polícia Militar para conter uma rebelião.

No primeiro, operários da Companhia Siderúrgica Nacional, ainda estatal, entraram em greve por reajuste salarial e redução de jornada e tomaram a planta de Volta Redonda (RJ). Quatro dias depois do início da greve, em 9 de novembro, o Exército e a PM invadiram a empresa e três grevistas foram assassinados.

As eleições municipais nas capitais ocorreram no dia 13 e, em São Paulo, venceu Luiza Erundina, feito inédito do PT numa capital. As pesquisas até as vésperas apontavam vitória tranquila de Paulo Maluf, e cientistas políticos e historiadores veem grande peso de Volta Redonda na virada.

Quatro anos depois, o massacre do Carandiru ocorreu na noite de 2 e outubro, a sexta-feira anterior à eleição. Ali, no entanto, a tragédia não teve influência no pleito, porque a Secretaria de Segurança Pública abafou os dados. Paulo Maluf venceu e o candidato do governador Luiz Antonio Fleury Filho, Aloysio Nunes Ferreira, ficou em terceiro lugar.

E agora, como o caso João Alberto vai ecoar nas urnas? Em Porto Alegre, onde ocorreu o assassinato, Manuela D’Ávila (PC do B) enfrenta uma eleição dura, em que foi, ao longo de toda a campanha, alvo de ataques ferozes dos adversários e agora aparece nas pesquisas em desvantagem em relação a Sebastião Melo (MDB). Ela se engajou de imediato nos protestos pela morte de João Alberto.

Em São Paulo também pode haver influência do crime. Foi aqui que ocorreu o maior protesto depois do assassinato, com o quebra-quebra numa loja do Carrefour nos Jardins. Guilherme Boulos não participou. O candidato do PSOL tem lutado na campanha contra a pecha de “radical”. As urnas mostraram que candidaturas em defesa de direitos civis, equidade e diversidade encontraram um eleitor disposto a investir nessas agendas, antes tachadas pejorativamente de “politicamente corretas” ou “identitárias”.

A sanha com que Jair Bolsonaro oprimiu minorias, ou mesmo maiorias sem representatividade política, provocou reação oposta dois anos depois de sua eleição. No caso João Alberto, o presidente só se manifestou 24 horas depois, para negar racismo no ocorrido e sem mencionar o nome da vítima nem se solidarizar com sua família.

Os próximos dias vão mostrar se o caso João Alberto vai virar tema central da campanha ou se os protestos vão perder fôlego. E o que terá mais peso: o voto de protesto contra a recorrência de fatos como esse ou a reação maior de parte da sociedade ao que ela chama de “vandalismo” que ao assassinato em si?


Eliane Cantanhêde: Nosso Floyd, nosso Trump

Por mais absurdo, Camargo faz sentido num governo negacionista e 'daltônico'

O presidente Jair Bolsonaro e o vice Hamilton Mourão têm posições divergentes numa série de questões, inclusive na política externa e na importância das vacinas contra a covid-19, mas em algo eles estão perfeitamente em sintonia: ambos dizem abertamente que não há racismo no Brasil. Nesse caso, o negacionismo não é exclusividade do presidente.

Ao se dizer “daltônico”, Bolsonaro admite que não consegue ver a realidade, os fatos e estatísticas, mostrando, por exemplo, que 75% das mortes violentas no país que governa são de pretos e pardos. Para disfarçar, tira pilhas de fotos com o deputado Hélio Negrão. E Mourão, que já chocou ao falar em “malandragem dos africanos”, voltou à carga. Quando? No dia da Consciência Negra, quando João Alberto foi assassinado brutalmente, como George Floyd nos EUA, por… ser negro.

“Digo com toda a tranquilidade: não existe racismo no Brasil”, declarou Mourão, que chama negros de “pessoas de cor” e, depois de morar nos Estados Unidos, garante que “racismo tem é lá”, aqui “a sociedade é misturada”. Como não é ignorante, muito pelo contrário, deveria olhar os dados oficiais sobre desigualdade, escolas, prisões, violência policial, mercado de trabalho. O racismo é real, massacrante.

A ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, criticou duramente a morte de João Alberto, o Beto, mas sem usar a palavra “racismo” e sem sequer dizer que ele era negro – aliás, como omitiu a própria ocorrência policial. E o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, um negro doentio que nega o racismo, diz que a escravidão foi boa e acusa os movimentos negros de “escória maldita”, fez ainda pior. Em vez de repúdio ao massacre do Beto por dois seguranças brancos – o que não mereceu um gesto ou manifestação dele –, Camargo pregou o fim do Dia da Consciência Negra, porque “não existe racismo estrutural no País”. Partindo de brancos já é inadmissível; de um negro, é imoral. E um negro que preside o órgão responsável pelo rico acervo da história dos afrodescendentes no Brasil.

Por mais absurdo que Camargo seja, porém, ele faz todo sentido num governo que nomeia um cidadão que jamais pisara na Amazônia para o Meio Ambiente, um embaixador júnior de textos e discursos sem nexo para o Itamaraty, uma mulher que é contra os avanços civilizatórios para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.

E na Educação? Um estrangeiro que se atrapalhava com o português, um desqualificado que ameaçava prender os ministros do Supremo, um fraudador de currículos e agora um pastor para quem os gays são fruto de “famílias desajustadas”. Sem falar, claro, de um general intendente para o Ministério da Saúde em plena pandemia e de um secretário de Cultura que usava eventos oficiais para divulgar textos e símbolos nazistas. Camargo, portanto, está em casa.

Uma única palavra resume tudo isso: negacionismo. Porém, ministros e secretários não passam de meros papagaios e executores de políticas que aterrorizam o mundo e o novo presidente dos EUA, Joe Biden, mas vêm “de cima”. Embriagado pela ideologia e por uma desconcertante ignorância sobre tudo, o presidente nega racismo, pandemia, queimadas, ciência, estatística e, principalmente, bom senso e bons modos.

Não, Bolsonaro não é culpado pelo assassinato do Beto, mas ele precisa admitir que o racismo existe, é imoral e criminoso e que o Dia da Consciência Negra é um grito de alerta, de socorro e de Justiça. Mulher branca, eu jamais seria trucidada por dois brutamontes covardes num supermercado. Beto foi por ser um homem negro e pobre, como tantos filhos, pais, irmãos e maridos trucidados neste País todos os dias, toda hora. É racismo, sim! Vidas negras importam!


O Estado de S. Paulo: Nas eleições 2020, 6,3 mil mulheres recebem um ou zero voto

Analistas alertam para risco de que candidatas tenham sido utilizadas por partidos apenas para alcançar a meta de gênero de 30%; parte delas recebeu R$ 877 mil do Fundo Eleitoral

Camila Turtelli, Rafael Moraes Moura e Bruno Ribeiro, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA, SÃO PAULO - Das 173 mil mulheres aptas a disputar o cargo de vereador no domingo, 15, 6.372 tiveram apenas um ou nenhum voto, segundo levantamento do Estadão. A ausência de votos e o fato de nem a candidata ter votado nela mesma provocaram suspeitas de que essas mulheres tenham sido usadas como “laranjas” para que partidos pudessem driblar a lei e cumprir a cota de 30% de candidaturas femininas. Parte delas recebeu R$ 877 mil do fundo eleitoral, dinheiro público usado para financiar gastos de campanha.

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A verba na conta de mais de 500 candidatas causa estranheza, já que todas tiveram desempenho pífio nas urnas, e pode ser mais um indício do “laranjal partidário”, com o lançamento de concorrentes “de fachada”. Desde 2018, partidos devem destinar, no mínimo, 30% do fundo eleitoral para campanhas femininas. Quem não cumprir a regra pode ter as contas rejeitadas, os repasses suspensos e ser obrigado a devolver o dinheiro.

Em Vargem Grande Paulista, interior de São Paulo, a candidata Marjory Piva teve apenas um voto, mas recebeu R$ 17 mil do Republicanos. Não declarou nenhuma receita à Justiça Eleitoral. O presidente municipal da legenda, vereador Zezinho Tapeceiro, disse que Marjory teve um problema pessoal e desistiu de concorrer. “Ela não é candidata laranja, porém ela teve de desistir e esse recurso dela está sendo todo devolvido”, afirmou.

Em Santa Rita, na Paraíba, Edivania Carneiro viveu situação semelhante: recebeu R$ 15 mil do fundo eleitoral do PSL, mas obteve apenas um voto. Marjory e Edivania foram as mulheres que mais ganharam verba do fundo eleitoral de seus partidos. Há indícios de que as duas tenham sido “laranjas”.

Francielle Avila (PSD), candidata em Espigão Alto do Sul (PR), conseguiu R$ 10 mil do partido e, segundo sua prestação de contas, gastou R$ 7 mil com material de campanha. Em sua página do Facebook, no entanto, não há qualquer menção à candidatura, mas, sim, à do postulante a prefeito pelo PSDB, Hilário Czechowski. A reportagem não conseguiu contato com a candidata ou com a direção municipal do PSD.

Em Cabo Frio, no Rio, a comerciante Rita das Empadas (PSL) recebeu R$ 10 mil do fundo eleitoral na disputa por uma cadeira na Câmara Municipal, mas teve um voto. “Todo mundo me conhece em Cabo Frio, muita gente falou que ia votar em mim. Mas, na hora, só tive um voto”, disse Rita ao Estadão. O comando nacional do PSL informou que cada candidato teve de emitir um recibo, comprovando o recebimento dos recursos. “No caso das candidatas mulheres, estas ainda tiveram que assinar uma carta, de próprio punho, afirmando que estavam se candidatando por livre e espontânea vontade”, declarou o partido, em nota.



Questionada se foi “candidata laranja”, Rita respondeu: “Tá ficando doido? Eu sou uma mulher responsável, não sou candidata laranja, não. Tive vários santinhos, eu panfletei. Não tenho culpa se meus votos sumiram ou não votaram em mim”.

O mapeamento do Estadão também identificou que, na lista de mulheres com nenhum ou apenas um voto, predominam candidaturas de pretas ou pardas (59%), enquanto brancas representam 39% e indígenas, 1%.

Raça

O fato vem na esteira de decisão do Supremo Tribunal Federal, que determinou o critério racial na destinação de recursos para financiar candidaturas. Os partidos são obrigados a dividir os recursos do fundo eleitoral, que alcançou R$ 2 bilhões, segundo a proporção de negros e brancos de cada sigla.

“O expressivo número de candidaturas femininas sob suspeita de serem fictícias revela que ainda há nas estruturas partidárias resistência à inclusão das mulheres”, disse a advogada Maria Claudia Bucchianeri, da Comissão de Direito Eleitoral do Conselho Federal da OAB. “As eleições de 2020 ainda trazem outro número preocupante, a sensível concentração dessas supostas candidaturas fake entre negras. Há, portanto, dupla recusa de inclusão: a de gênero e a de raça”, completou ela.

Em município da Bahia, três candidatas e um voto

São Paulo, Bahia e Minas são os Estados com o maior número de mulheres que tiveram zero ou um voto na disputa municipal de vereador. Na Bahia, o município de Condeúba, com apenas 17 mil habitantes, viu três mulheres entre os candidatos a vereador com o menor número de votos. Segundo o TSE, as donas de casa Xuxu e Nice, ambas do PSD, foram ignoradas pela população local – sem nenhum voto, nem o delas mesmas, e nenhum gasto eleitoral.

Sem qualquer despesa informada até agora, Izenilde (PL) teve melhor sorte que as rivais: um voto. A candidata, no entanto, utilizou as redes sociais para fazer campanha para outro nome – Helton da Lagoinha, seu companheiro, que disputou uma vaga na Câmara Municipal de Condeúba pela mesma legenda. À Justiça Eleitoral, Izenilde se declarou solteira, mas no Facebook avisa que está casada com Helton. “Meu vereador arretado”, postou ela, no dia 9. Helton obteve 128 votos.

“A representação feminina é indispensável para uma democracia de qualidade. Mas as candidaturas fictícias ainda são uma realidade”, disse Marilda Silveira, professora de Direito Eleitoral do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). “A investigação, nesses casos, é indispensável e a conclusão de fraude muitas vezes se dá pela soma de indícios, como votação zerada, gastos irrelevantes, campanha inexistente.” Procurados, Izenilde e Helton não responderam até a conclusão desta edição. O PL informou que “lamenta o mau desempenho” das estreantes, mas “cabe a cada candidato responder pela prestação de contas e uso dos recursos recebidos”.


Adriana Fernandes: Prorrogação do auxílio

Experientes observadores do jogo político dão como alta a probabilidade de o benefício emergencial continuar a ser pago

A prorrogação do auxílio emergencial por mais alguns meses já está na mesa. O ministro Paulo Guedes dificilmente conseguirá escapar desse caminho. Vai se consolidando uma convergência política para garantir a prorrogação do benefício, mesmo que pequena (no máximo dois meses).

Experientes observadores do jogo político dão como alta probabilidade a prorrogação. Essa percepção também foi passada pelo diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto, durante apresentação de relatório mensal do órgão do Senado que avalia as contas públicas. Por enquanto, o movimento se dá nos bastidores das negociações políticas que envolvem também as votações de fim de ano e a eleição para a sucessão dos presidentes da Câmara e do Senado.

Mas qual a razão para a prorrogação?

A resposta é que nem o governo nem o Legislativo encontraram outra saída, nem de transição nem estrutural, para o dia 1.º de janeiro, quando acaba o auxílio. Faltam apenas 40 dias.

As incertezas geradas pela velocidade assustadora da alta de casos da covid-19 nos últimos dias empurram a decisão também nessa direção. A prorrogação do auxílio pode ser feita por crédito extraordinário, sem orçamento de guerra, e com o gasto fora do teto. A Emenda Constitucional 95 prevê essa válvula de escape.

O governo preferiu, nos últimos meses, jogar na retranca por causa das eleições, deixou de lado a discussão do novo programa social. Sem conseguir consenso para as medidas impopulares, Guedes passou a apostar na continuidade do programa Bolsa Família, sem grandes reforços – um refresco para a pressão “fura teto de gasto” que parte do governo. O mercado financeiro gostou e se acalmou.

O inusitado é que, agora no mercado, cresce também a corrente de que a prorrogação pode ser uma saída melhor do que dar espaço para furar o teto numa votação no afogadilho de fim de ano. “Com a pressão por causa do auxílio emergencial e a incerteza da atividade no ano que vem, e abrir uma discussão de PEC agora no final do ano, a chance de entrar uma derrapada fiscal é grande”, resume o economista-chefe da XP, Caio Megale. Para ele, melhor jogar para 2021 e discutir com mais calma o programa social.

Com PECs abertas para votação para cortar gastos, a possibilidade de se aprovar uma exceção no teto para o novo programa social não poderia ser descartada. É só ver a lista de lideranças influentes que apoiam deixar o programa social fora do teto, combinado com corte de renúncias tributárias para aumentar a arrecadação ou tributação do andar de cima, como defende a oposição.

Como a hora da verdade para as reformas estruturantes não chegou depois do primeiro turno das eleições municipais e nem vai chegar com o fim do segundo turno, o pensamento no mercado tem sido que é melhor empatar o jogo nas poucas semanas que faltam até o início do recesso parlamentar. Ninguém perde ou ganha e fica tudo para o início de 2021.

O que se pode esperar até o fim do ano é um avanço na aprovação de novos marcos regulatórios e outros projetos, que, embora não sejam PECs, são também importantes. Além da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Já o Orçamento deve ficar para o ano que vem. Para o primeiro semestre do ano, sobraria a última janela de avanço das reformas no governo Bolsonaro.

“O cenário pode abrir uma janela de oportunidade no início de 2021 para avançar na PEC emergencial, importante para blindar o arcabouço fiscal em 2022, ano eleitoral”, avalia.

Ponto importante que mostrou reportagem do Estadão de sexta-feira é o acordo do governo e lideranças políticas com o TCU para uma regra de transição para abrir caminho ao empenho de recursos na reta final do ano para obras que serão executadas ao longo de 2021. O jeitinho que foi cobrado pelos parlamentares, com crítica ácida ao TCU de “apagão de canetas”, está se consolidando.

Enquanto a prorrogação do auxílio não sai, o debate do momento tem sido de que houve exagero na concessão da ajuda e que muita gente recebeu sem precisar. É bom lembrar, no entanto, as condições de urgência em que ele foi montado e também reforçar que o auxílio não tinha como foco somente a contenção da pobreza.

O objetivo do auxílio foi, sim, conter a queda de renda dos informais, mas de modo a propiciar condições para que eles cumprissem o isolamento. O auxílio não seria efetivo como estímulo ao isolamento caso fosse só para pobres ou tivesse valor muito baixo, ainda mais nas metrópoles, onde informais auferem rendimentos maiores e são exatamente os locais de maior aglomeração urbana. Se a piora da pandemia acelerar nos próximos dias, o anúncio da prorrogação pode até vir antes.