o estado de s paulo
Marco Aurélio Nogueira: Uma sociedade à beira de alguma coisa
Se há uma saída luminosa mais à frente, precisa ser apontada por democratas sinceros
Não é só pelos fatos que, dia sim, outro também, causam asco e indignação, como o brutal assassinato do negro João Alberto em Porto Alegre, em 19/11. Há também as grosserias e asneiras dos principais mandatários do País, que insuflam o ódio, o racismo e a bestialidade entre os brasileiros. As mortes da pandemia doem, assustam e devoram parte das esperanças, que já não são muitas. Incluam-se, ainda, as polarizações artificiais, as ofensas e o clima inflamado das disputas eleitorais que se encerram amanhã.
Isso precisa ser conectado ao estado de desgoverno, que prolonga os estragos da pandemia e da crise econômica, misturando-os com apagões irresponsáveis, queimadas, isolamento internacional, declarações impatrióticas, alucinadas, do presidente da República, de seus filhos, ministros e assessores.
Tudo somado, o conjunto é deprimente.
Não se está conseguindo nem sequer assimilar o repúdio popular aos candidatos apoiados por Bolsonaro no primeiro turno. Assimilar, aqui, significa criar condições para que se avance um pouco mais. Porque houve só uma batalha, a guerra ainda será travada, as forças autoritárias estão vivas, não se saíram mal nas eleições. Os partidos do Centrão, por exemplo, mostraram capilaridade. Foram os que mais avançaram, entre tantos fracassos. Eles formam um compósito heterogêneo, sibilino, em que cabe muita coisa e que deveria ser tratado com cuidado, separado em partes, sob pena de não ser compreendido e terminar empurrado apressadamente para o outro lado.
As eleições municipais revelaram dinâmicas e rostos novos, forças com vontade de mudar ou de impedir que as coisas piorem. Isso precisa ser articulado, para que amanhã não se assista a formas renovadas de fragmentação, excitadas pela dualidade esquerda versus direita, pelo protagonismo, hostis ao centro-esquerda, ao centro-direita, à ideia de tornar viável uma composição que dê um “basta!” aos horrores que se reproduzem dia após dia. Se o campo democrático não se integrar e não melhorar seu desempenho, o autoritarismo continuará a nos infernizar. Porque o autoritarismo não é sinônimo de Bolsonaro, vai além dele, nasce das condições concretas em que vivemos.
Ainda não há no País maioria consistente para que avancem unilateralmente as correntes de esquerda, socialistas, social-desenvolvimentistas, o que seja. É ilusório achar que as lideranças desse universo (PT, PSB, PDT, Rede, PSOl, PCdoB) já tenham acumulado gordura suficiente para impor, no curto prazo (isto é, em 2022), um avanço eleitoral categórico. Precisam dos segmentos menos “progressistas”, mas que são democratas.
Muita água ainda correrá e fatos novos podem alterar o que se vê hoje. Justamente por isso não se deveria abrir mais feridas, estigmatizar adversários ou demarcar com fúria os territórios políticos.
A política não existe só para que se conquiste o poder. Seu sentido principal é criar vida comunitária – civitas –, corrigir injustiças, cuidar do que é público, pavimentar o futuro. Construir é sempre mais difícil que destruir. Brigar agora para saber quem foi mais responsável pela vitória de Bolsonaro em 2018, por exemplo, é uma falha de visão estratégica, é trocar a análise política pelo furor passional, o cérebro pelo coração. Sob o pretexto da legítima competição eleitoral, é insensato desgastar adversários que precisarão ser amigos amanhã, afastá-los, sangrá-los sem necessidade. Fazer isso significa transformar uma batalha em guerra final sem que os campos de forças estejam organizados.
A sociedade está sob pressão: da realidade social implacável, da vida dura, da violência, das discriminações, do racismo, da desigualdade, do desemprego, da pandemia, da corrupção. Está sem direção, correndo para todos os lados, armazenando raiva e frustração, pronta para dar um passo a mais.
Um passo a mais para onde?
Poderá despencar no abismo que aprofunda as desgraças acumuladas. No limite, uma “guerra civil” às cegas, menos silenciosa do que a que já temos instalada. Algo não desejável, mas nem por isso impossível.
Mas poderá também encontrar uma tradução política democrática, que aponte rumos, apazigue, solidarize, abra perspectivas coletivas ampliadas, generosas, que deem tempo ao tempo, mas façam o que precisa ser feito no curtíssimo prazo.
Ainda que os agentes políticos permaneçam paralisados e inoperantes, algo há de acontecer. Porque a vida é fluxo, avanços e retrocessos, ambiguidade e ambivalência, ordem e desordem, tensões e contradições. É ilusão achar que as coisas ficarão suspensas no ar, imóveis como um colibri, à espera do néctar que alguém fornecerá. É ilusão pensar que os cidadãos vão marchar, em ordem unida, para um destino estabelecido de antemão por algum chefe ou alguma doutrina.
Se há uma saída luminosa mais à frente, e quero crer que haja, ela precisa ser apontada com lucidez, empenho e equilíbrio, o que só os democratas sinceros poderão fazer. O momento é de diálogo e construção.
*Professor Titular de Teoria Política da Unesp
O Estado de S. Paulo: Brasil se torna alvo de hackers com mais de 20 mil notificações ao ano
Sistema do TRF-1 foi invadido na noite de anteontem; em mensagem enviada ao 'Estadão', hacker negou motivação política e disse ter agido por 'diversão'
Vinícius Valfré, Tânia Monteiro e Patrik Camporez, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Um ataque hacker ao Tribunal Regional Federal da 1.ª Região tirou do ar ontem o sistema do maior tribunal do País. Foi a quarta grande instituição federal a ser atacada em menos de um mês. Ao todo, foram mais de 20 mil notificações registradas por órgãos públicos em 2020, até este mês, segundo monitoramento do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência.
Embora a invasão da maior Corte federal de segunda instância não tenha provocado bloqueio ou vazamento de informações sensíveis, ela ajuda a alimentar desconfianças sobre a segurança de dados do Judiciário. No dia 15, data do primeiro turno das eleições municipais, um ataque hacker ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não chegou a prejudicar o resultado das urnas, mas foi usado por bolsonaristas para impulsionar uma campanha de desinformação.
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O TSE reforçou seu sistema de segurança digital para o segundo turno, que ocorre amanhã. Toda a ação até agora, incluindo o uso das redes sociais para divulgar notícias falsas sobre fraudes nas eleições, está sendo investigada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal (MPF).
Em mensagem enviada pelo Twitter ao Estadão, o hacker identificado como M1keSecurity, que notificou anteontem à noite a invasão ao próprio TRF-1 e postou a figura de um diabo para comemorar o sucesso da ação, afirmou ser ligado ao CyberTeam. Ele negou motivação política e disse ter agido por “diversão”. Liderado por um jovem de 19 anos conhecido como Zambrius, que está em prisão domiciliar em Portugal, o grupo também reivindicou a investida contra o TSE e o Ministério da Saúde.
Notificações
A onda de ataques cibernéticos a instituições está confirmada em números. De janeiro até o último dia 11, o núcleo do GSI que monitora questões referentes à cibersegurança registrou 21.963 notificações desse tipo no País, do governo e de fora do governo. Em todo o ano passado, foram 23.674 registros.
Mesmo com a manutenção do ritmo de notificações ao Centro de Tratamento e Resposta a Incidentes Cibernéticos de Governo, vinculado ao GSI – gabinete comandado pelo general Augusto Heleno –, o alerta crítico está no crescimento das vulnerabilidades encontradas em sistemas tecnológicos. De um ano a outro, as brechas que permitem a exploração maliciosa nos sistemas e nas redes de computadores saltaram de 1.201 para 2.239.
Nem o Exército conseguiu barrar todas as investidas. Em maio, hackers divulgaram exames médicos feitos pelo presidente Jair Bolsonaro entre junho de 2019 e janeiro deste ano no Hospital das Forças Armadas. O ataque mais grave de que se tem notícia foi contra o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no dia 3. Os criminosos criptografaram arquivos e pediram pagamento em criptomoedas para devolvê-los.
No dia 5, foi a vez do Ministério da Saúde. A publicidade da contagem dos casos de covid-19 ficou provisoriamente prejudicada. Logo depois veio a ação contra a Justiça Eleitoral.
Investigadores envolvidos nas apurações dos ataques ao Judiciário admitem a “onda de invasões” e atribuem o fenômeno a uma tentativa de “testar as instituições”. Observam, porém, que apenas bases de dados antigas e com pouca relevância foram acessadas, fazendo com que núcleos centrais de informação continuem intactos. Na prática, grupos hackers costumam alardear invasões para se mostrar importantes. Muitos querem ser chamados para esse tipo de crime, obtendo para tanto benefícios financeiros.
Legislação
As invasões também são desafio para grandes corporações. Para especialistas, no entanto, as vulnerabilidades dos órgãos públicos são explicadas por certo grau de desleixo com sistemas de segurança, lentidão para fazer frente às ameaças e, ainda, por uma legislação passível de avanços.
“Precisamos de uma lei com a política nacional de segurança cibernética. Este projeto está em elaboração e essa nova lei, considerada absolutamente necessária, tem por objetivo, entre outras coisas, atribuir responsabilidades a quem violar a segurança cibernética”, afirmou o diretor do Departamento de Segurança da Informação do GSI, general Antonio Carlos de Oliveira Freitas.
Na avaliação da SaferNet Brasil, que colabora com o Ministério Público Federal no monitoramento da desinformação nestas eleições, órgãos públicos costumam falhar no que é elementar: segurança digital. “Geralmente se falha no básico, com falhas de configuração nos servidores, políticas de atualização inexistentes, autenticações falhas e bugs (defeitos) de softwares”, disse o presidente da entidade, Thiago Tavares.
Após a invasão ao STJ, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, determinou a criação de um “comitê cibernético” para preparar medidas de proteção à Justiça. Uma das críticas de especialistas é o fato de o Judiciário não ter um centro permanente, nesse modelo, para monitorar e reagir a incidentes.
“Estamos todos preocupados. Me parece mais um vandalismo, mas, e se fosse algo mais profissional, para apagar ou inserir dados? Ficamos sem saber qual o grau de vulnerabilidade que o sistema apresenta”, afirmou o advogado Marcelo Bessa, integrante do Instituto de Garantias Penais (IGP).
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Pedro Doria: Duas ideias novas pela democracia
Em essência, elas preveem que os algoritmos das grandes plataformas digitais precisam ser mais transparentes
Esta semana, duas propostas diferentes para como lidar com a desinformação on-line foram postas na mesa. São inovadoras, se implementadas mudarão de forma radical como as grandes plataformas digitais funcionam. Ambas têm por objetivo defender as democracias dos movimentos populistas e autoritários que as capturaram subvertendo as redes sociais. Uma é um projeto de lei da União Europeia. Outra, a ideia de um trio de acadêmicos puxados pelo cientista político Francis Fukuyama. E ambas podem funcionar juntas, se completam.
Os detalhes da nova legislação europeia iam ser divulgados na terça-feira, durante uma teleconferência em que as grandes companhias do Vale do Silício estariam representadas. A conversa foi adiada para a quarta que vem. De qualquer forma, o DSA — ou Ato dos Serviços Digitais na sigla em inglês — será apresentado também na semana que vem ao Parlamento Europeu. A partir daí, ao longo de 2021, os países membros da UE deverão ratificar o texto um por um. Então vira lei no mercado comum.
Em essência, os princípios são simples. Quando o Facebook apresentar ao usuário um post, deverá ter um botãozinho que explique por que aquele e não outro foi selecionado. Vale também para publicidade. E toda propaganda precisa ter explícito quem pagou por sua veiculação.
Em essência, os algoritmos precisam ser transparentes. É fundamental que as pessoas compreendam: as redes sociais, os sites de vídeo, os mecanismos de busca estão escolhendo o que nos apresentam. Pois precisarão explicar por quê. Vale para as grandes: Facebook, Google, Amazon — as líderes de mercado.
A nova legislação também exigirá que as companhias compartilhem os dados com reguladores em determinadas situações. Assim como pode, noutras, exigir que dados sejam compartilhados com concorrentes para não criar vantagens indevidas.
As gigantes digitais apresentam um dilema novo no debate sobre monopólios. Um dos problemas é que por um fenômeno chamado Efeito de Rede, no digital empresas tendem ao monopólio. Quanto mais gente usa uma rede social, mais aquela rede é útil. Quanto mais vídeos há num site, melhor ele é. Mas quando a conversa sobre política se concentra nestes ambientes e o que chega a nós é escolhido pelos algoritmos escritos pelas gigantes do Vale, elas terminam com poder demasiado.
Assim como, descobrimos, suas plataformas podem ser sequestradas por populistas que burlam os sistemas.
A proposta da União Europeia é tornar obrigatório explicar como os algoritmos escolhem a informação que chega a nós. A de Francis Fukuyama e do cientista da computação Ashish Goel, ambos de Stanford, que se reuniram com o economista especializado em antitruste Barak Richman, de Duke, vai em paralelo: middleware.
Ou, ao invés de as gigantes fornecerem o algoritmo, vamos tercerizá-los.
Continuamos usando Facebook, Twitter, YouTube. Mas poderemos escolher outras empresas que fornecem algoritmos de seleção do conteúdo que preferimos. Estes filtros escritos por terceiros podem literalmente escolher o que aparece. Ou serviriam para etiquetar o que é informação falsa, controversa, que falta contexto.
De acordo com a ideia da proposta do trio puxado por Fukuyama, em um artigo publicado na revista Foreign Affairs, estes terceiros seriam obrigados a manter total transparência a respeito de seus critérios editoriais e técnicos.
As duas propostas, a europeia e a dos professores, podem funcionar separadamente ou em conjunto. Em comum têm o fato de serem originais. Além de atentarem para o problema imenso que temos em garantir a proteção da democracia com um ambiente de informação no qual as pessoas voltem a ter voz a respeito do que recebem.
Fernando Gabeira: Gigante solitário
É preciso ocupar todos os espaços para se contrapor ao cercadinho de Bolsonaro
Ainda muito jovem, estagiário, lembro-me de uma tarefa jornalística no Itamaraty. Com a ajuda do poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt, Juscelino acabara de lançar a Operação Pan-Americana. Era uma iniciativa regional, mas partia do Brasil e, de certa forma, expressava o otimismo dos anos 1950.
No mundo de hoje vejo muito movimento. Os Estados Unidos derrotaram Trump e se preparam para voltar às alianças globais e ao Acordo de Paris. A Europa movimenta-se e 15 países da Ásia e da Oceania, um terço do PIB mundial, acabam de celebrar importante acordo sob a liderança da China.
No meio de todo esse movimento, apesar da pandemia, é razoável perguntar pelo Brasil. Jogamos todas as fichas numa relação com Trump, sempre desfavorável ao País. E agora Trump foi para o espaço. Ficamos sós e espetacularmente desarmados, como diria o poeta.
Um projeto especial como o desenvolvido com a Noruega e a Alemanha na Amazônia foi bombardeado por Bolsonaro e Salles. Perdemos investimentos, até para nos protegerem de incêndios na floresta e no Pantanal. Recentemente, numa live sobre os incêndios no Pantanal, autoridades de Mato Grosso lembraram que a modernização de sua estrutura de combate a incêndios dependia desse dinheiro. E não há nada no lugar, exceto o corre-corre do vice-presidente Mourão para seduzir os europeus e uma sensação vazia de nacionalismo no discurso de Bolsonaro. Nem Alemanha nem Noruega exigiam nada senão projetos sustentáveis.
Essa escaramuça amazônica serviu de ensaio para os tropeços posteriores, troca de farpas sobre incêndios e desmatamento – todo um processo que poria em risco o acordo União Europeia-Mercosul. Alguns estadistas, como Angela Merkel, são pragmáticos e têm grande boa vontade com o acordo. Mas a sucessão de erros e o próprio processo destrutivo na Amazônia acabaram repercutindo nos Parlamentos nacionais. E o acordo “subiu no telhado” enquanto Bolsonaro mantiver essa política desafiadora e agressiva com a Europa.
Num encontro do Brics, ele ameaçou denunciar países europeus que importam madeira ilegal. Países não importam madeira, e sim empresas. Ele recuou, mas o tiro no pé já estava dado, até porque ficou bastante evidente que as medidas que afrouxaram as regras de exportação partiram do seu governo.
O próprio Biden fez um aceno durante a campanha prometendo mobilizar US$ 20 bilhões para a Amazônia. Foi contestado por Bolsonaro, ironizado por Salles. Bolsonaro ameaçou usar pólvora quando a saliva faltasse. Todos sabemos que não há pólvora para isso no Brasil, os gastos maiores da Defesa são para manter o pessoal, aposentados incluídos. Mesmo que houvesse mamonas como pólvora alternativa, a verdade é que a ameaça foi ignorada diplomaticamente por Obama quando instado a falar no assunto.
Da mesma maneira, os chineses, nossos maiores parceiros comerciais, procuram navegar ao longo das provocações como se não existissem. Eles têm projetos de décadas, a julgar pelo que Kissinger descreve sobre a política chinesa. Devem considerar Bolsonaro apenas um rápido acidente na relação bilateral. Ainda assim, há temas que vão mobilizar.
No apagar das luzes, Bolsonaro assinou o documento Clean Network, que teoricamente deixa de fora os chinese na implantação da tecnologia 5G no Brasil. É o único tema que irrita os chineses, pela maneira como a família Bolsonaro o trata, classificando-os de espiões.
É uma decisão que representa custos e assusta alguns parceiros nacionais. Suponho que interesse também ao governo Biden. Mas Bolsonaro pensava em Trump quando assinou. E ainda nem reconheceu o presidente eleito americano.
Ninguém se assusta com isso porque, afinal, Bolsonaro nega a covid-19, a ciência, o racismo, a corrupção nos gabinetes familiares, os incêndios na floresta. Ele é um negacionista e de tanto negar acabará duvidando da sua própria existência. O problema é como se comportar nesse vácuo, que pode durar dois anos.
Os governadores da Amazônia uniram-se e podem representar uma alternativa de negociação não apenas com a Europa, mas com os EUA, que agora têm um representante específico para mudanças climáticas. Dificilmente deixará de pôr a Amazônia em sua agenda. Outras iniciativas são possíveis. Cidades como as capitais do Sudeste podem estabelecer também seus vínculos com o exterior, sobretudo num momento em que a articulação das metrópoles do planeta tem muito a contribuir para o combate ao aquecimento global.
É preciso ocupar todos os espaços para se contrapor ao cercadinho de Bolsonaro. Nele, por afinidades ideológicas, cabem apenas a Hungria e a Polônia. Muito distantes e até modestas para nossas pretensões internacionais. No momento em que se discute tanto o racismo estrutural no Brasil, uma revisão histórica em nossa relação com a África abriria novas e inexploradas possibilidades.
Nos anos 50 o otimismo nos abria para as Américas e para o mundo. Com o fim da pandemia e a chegada da vacina, creio que esse movimento será de novo irresistível e arrastará com ele os destroços do negacionismo, o rancor paranoico de quem só vê perigo no mundo.
Celso Ming: Promessas bloqueadas
O Posto Ipiranga não consegue nem mesmo vender gasolina
Nesta segunda-feira, o ministro da Economia, Paulo Guedes, reconheceu que “o programa de privatizações não andou direito”. E ele atribuiu o insucesso à oposição entre os políticos, que, por sua vez, reflete a obstrução produzida pelos lobbies corporativos mais a reação de natureza ideológica da bancada estatizante. Atribuiu também a questões internas do governo – mas isso o ministro não chegou a dizer –, que apontam para aqueles que preferem ter à sua disposição vagas nas diretorias nas estatais para distribuir aos cupinchas.
Em 2018, até mesmo antes de assumir seu posto na Economia, Paulo Guedes garantia que proveria R$ 1 trilhão em privatizações de empresas da União. Seu objetivo era livrar-se de sangrar o Tesouro com transferências destinadas a capitalizar estatais atacadas de raquitismo. Não saiu nem a privatização da Eletrobrás, nem a dos Correios nem a da Casa da Moeda, que pareciam encaminhadas. A 11 de agosto, saiu derrotado no governo o secretário de Privatizações, Salim Mattar.
No entanto – e isso o ministro também não diz –, a maior oposição à privatização vem do presidente Bolsonaro, que faz corpo mole ou interdita iniciativas, muitas delas no caminho correto.
Também antes de tomar posse, Paulo Guedes garantiu que zeraria o rombo fiscal ainda no primeiro ano de mandato. Em 2019, o déficit foi de 0,85% do PIB e, neste ano, não será inferior a 9,0% do PIB.
A nova CPMF foi veementemente negada e renegada nos primeiros meses de governo. Em setembro de 2019, o então secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, foi demitido por defendê-la. Alguns meses depois, eis que o próprio Guedes vem com a conversa de que é preciso taxar as operações digitais com um imposto que, segundo ele, não é a CPMF. Mas, qualquer um sabe, tem cara e focinho de CPMF, embora não leve esse nome.
Em agosto de 2020, Guedes anunciou um “big bang” na economia. Viria o projeto de reforma tributária (com a nova CPMF) e toda a economia seria desindexada, o que acabaria também com a correção do salário mínimo e das aposentadorias. E, no lugar do programa Bolsa Família, seria criada a Renda Cidadã, que receberia a dotação orçamentária de alguns programas de subsídios e de auxílio social, como o abono salarial e seguro-defeso (dado aos pescadores artesanais na época de suspensão da pesca). O presidente Bolsonaro detonou por inteiro o “big bang” do ministro e, assim, esse universo nem teve um início.
Em abril de 2020, caducou a Medida Provisória n.º 905, que criava a Carteira Verde e Amarela, espécie de regime especial de trabalho com mais atrativos para a contratação de jovens, público que mais vem sofrendo com o desemprego, em parte pela sua falta de experiência. Deveria, afirmou o ministro, criar cerca de 1,8 milhão de empregos. Mas morreu de inação e de falta de empenho da Casa Civil em coordenar sua aprovação no Congresso.
Em março de 2020, Guedes garantiu que, com um piparote de R$ 5 bilhões, aniquilaria o novo coronavírus: “Já existe verba na Saúde. Não precisamos mais do que um extra”. Conforme nos dá conta monitoramento de despesas da União, o governo deve gastar cerca de R$ 580 bilhões com despesas derivadas da pandemia, apenas em 2020. E nisso o ministro foi contrariado, porque as metas fiscais que ele queria ver defendidas implodiram.
As promessas que deram errado se multiplicaram. O grande avanço da economia em 2019, de pelo menos 3% do PIB antes proclamados, se transformou em crescimento de apenas 1,1%. A pandemia se encarregou de esmerilhar as projeções de um avanço, “no pior cenário”, de 1,0% em 2020. O resultado provável será uma queda de 4,5%, que só não será maior graças ao despejo de R$ 322 bilhões em auxílios de emergência. A recuperação em “V”, em 2021, por enquanto não passa de boa intenção, minada pelo alargamento do rombo e pelo atraso no andamento dos projetos de reforma.
Agora, passadas as eleições, Guedes acena com o andamento das reformas. A da Previdência só saiu graças ao empenho dos presidentes das duas Casas do Congresso. O projeto de reforma tributária do governo, até agora, foi uma barafunda que parece ignorar os projetos em exame na Câmara e no Senado.
E o projeto de reforma administrativa deixou de fora a situação dos servidores da União. Seria como reformar o carro com 400 mil quilômetros rodados e não mexer no motor.
Enfim, o Posto Ipiranga não consegue nem mesmo vender gasolina… porque seu chefe não deixa.
O Estado de S. Paulo: Indústria voltou ao patamar de antes da pandemia, mostra CNI
Produção total do setor em setembro superou em 1,1% o registrado em fevereiro deste ano, mês que antecedeu a chegada da covid; apesar do resultado, recuperação é desigual entre os segmentos
Eduardo Rodrigues, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Após uma queda vertiginosa na produção nos primeiros meses da pandemia de covid-19, a indústria brasileira conseguiu voltar ao nível pré-crise já em setembro, mas essa recuperação atinge de maneira desigual todos os segmentos do setor. Levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostra ainda que, apesar de já retornarem à atividade do começo do ano, muitas fábricas ainda está estão aquém dos volumes produzidos em 2019.
A recuperação na indústria tem sido bastante heterogênea. Ainda assim, a produção total do setor em setembro superou em 1,1% o registrado em fevereiro deste ano, último mês antes do novo coronavírus desembarcar no País. Com as medidas de isolamento social adotadas para conter o contágio da doença, em abril a produção chegou a ficar 31,3% abaixo do verificado dois meses antes.
Da mesma forma que a produção, o faturamento total da indústria – que chegou a ficar 24,6% abaixo do nível pré-crise - em setembro superou em 6,1% o patamar registrado em fevereiro. Os dois indicadores, porém, seguem abaixo da média de 2019. No acumulado dos nove primeiros meses de 2020, a faturamento tem um recuo 1,7% e se aproxima de igualar o desempenho do mesmo período do ano passado. Já a produção industrial ainda acumula uma queda de 8,2% na mesma comparação.
“Nossa expectativa é que a atividade industrial continue crescendo no quarto trimestre. O faturamento real da indústria certamente registrará um desempenho positivo na comparação do acumulado em 2020 com o de 2019. A produção, no entanto, fechará no vermelho”, avaliou o gerente-executivo de Economia da CNI, Renato da Fonseca.
Essa diferença entre faturamento e produção se deve à estratégia das empresas em interromperem a produção e reduzirem os estoques durante o auge da pandemia, já que a forte queda nas vendas em março e abril causou bastante incerteza sobre quando o consumo iria retornar. Com a retomada forte da demanda, no entanto, esses mesmos estoques baixos estão causando problemas na cadeia de produção.
“Com capacidades de resposta diferentes, as empresas industriais passaram a ter dificuldade de acesso a insumos e matérias-primas e de atender a demanda de seus clientes. Não fosse a dificuldade em se obter insumos e matérias-primas, o crescimento da produção industrial seria ainda maior”, destacou a CNI no documento.
O detalhamento dos dados da indústria mostra ainda que alguns setores seguem sofrendo com os efeitos da pandemia, enquanto outros parecem já ter deixado a crise para trás. As indústrias de alimentos e itens de higiene pessoal, por exemplo, já apresentam um desempenho positivo tanto na comparação com fevereiro como no acumulado no ano.
Outros segmentos de bens de consumos duráveis, como veículos automotores e vestuário ainda não conseguiram recuperar o patamar do início do ano. No acumulado do ano em comparação com 2019, eles apresentam queda de 36% e 31,6%, respectivamente.
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José Serra: Vendendo ilusões a preço de ouro
Lobistas dos cassinos e seus arautos não se detêm ante repetidas derrotas no Congresso
Tal uma praga, que destrói o que há de bom e belo ao seu redor, tal um vírus que volta todos os anos provocando grandes surtos, assim também são as sucessivas tentativas de explorar as piores fraquezas da condição humana, mediante a legalização dos jogos de azar. Tudo, evidentemente, revestido de imensas benfeitorias para as pessoas, as empresas, a economia nacional, enquanto não são mais que venda de ilusões (a preço de ouro). Mas a mesma conversa fiada tem-se repetido, com estranha regularidade, desde que a presidente Dilma Rousseff anunciou que iria aprovar, em 2016, um projeto de lei em tramitação no Congresso. Afinal, essa exploração das fraquezas humanas não tem ideologia.
A criação de cassinos atinge diretamente as pessoas, seu emprego, sua família e a economia local. Não seriam os mais ricos, mas os aficionados de renda média para baixo os principais clientes a tirar seu suado salário do bolso, deixando de gastar em outras coisas para perder dinheiro em roletas e caça-níqueis. Esse dinheiro, escasso e vital, é que financia o jogo e cria os empregos nos cassinos, enquanto elimina outros, vinculados a outras atividades. O bem-estar e o consumo das famílias seriam diretamente atingidos, assim como seus investimentos em saúde, educação ou moradia e lazer.
E a economia local, com seus empregos, seus serviços, sua segurança, seria comprovadamente abalada: a introdução dos cassinos em Atlantic City – superada apenas por Las Vegas em matéria de jogos de azar – reduziu em 25% os empregos nos setores não ligados à jogatina. No Estado americano de Illinois, somente no ano de 1995 os custos associados ao funcionamento dos cassinos superaram em US$ 287 milhões os seus benefícios.
A economia nacional seria também vítima da legalização do jogo, com efeitos negativos tanto nas contas externas quanto na receita. No caso do Brasil, o jogo provocaria déficits significativos, uma vez que o setor é intensivo em importação de equipamentos especializados. E o controle dos cassinos tende a ser dominado por grandes conglomerados internacionais, livres para aplicar seus ganhos em outra freguesia.
Do ponto de vista da receita, de acordo com o Projeto de Lei 530, o mais novo ataque do lobby da jogatina, a tributação dos cassinos e caça-níqueis seria de apenas 10% da renda bruta, enquanto a carga tributária da gasolina é de 48%. Faça as contas, não só o jogo é financiado em grande parte pelos aficionados de renda média para baixo, mas seria, na prática, subsidiado por todos nós mediante renúncia de receita.
Também do nosso bolso sairão outros benefícios fiscais, garantidos pelas normas vigentes e até baseados na Constituição, como no caso dos fundos de desenvolvimento regionais. Além disso, o poder público pode camuflar subsídios, via concessão de terrenos, investimentos em infraestrutura e “flexibilização” das normas em vésperas de votações importantes.
Além de contribuir pouco, quando não negativamente, para as necessidades locais, o jogo tende a inflar as despesas com segurança, uma vez que a simples concentração de grandes fluxos de dinheiro tende a estimular o crime e a articulação de redes de narcotráfico, lavagem de dinheiro e violência contra mulheres. No Estado americano de Wisconsin os crimes aumentaram 6,7% após a abertura dos cassinos. Segundo o Instituto Americano de Seguros, 40% dos crimes de colarinho-branco se originam no jogo. Quando os cassinos nos Estados Unidos foram autorizados a operar fora de Las Vegas, em 1997, as taxas de criminalidade cresceram de tal modo que passaram a aumentar a incidência de seis dentre os sete tipos de delitos violentos.
Ademais, justamente para a área de segurança, que juntamente com programas de educação, esporte e cultura se beneficia de cerca de metade dos recursos das loterias da Caixa, a competição dos bingos e caça-níqueis seria letal.
Mas o maior dano dos cassinos, e dos jogos de azar em geral, não é no bolso dos viciados, mas na alma, o dano moral que contagia toda a família e leva à desagregação familiar.
Em New Jersey, 26 mil chamados telefônicos foram registrados num serviço público, apenas em 1996, de jogadores desesperados pelas consequências das dívidas feitas por causa de jogo. Atrás das dívidas vêm a perda de produtividade, o absenteísmo, os desfalques, a inadimplência de impostos e taxas, que em 1990 provocaram prejuízos de US$ 1,5 bilhão no Estado americano de Maryland.
A antropóloga Natasha Schüll, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), comprovou que esses jogos de frequência ininterrupta, oferecidos pelos cassinos e jogos online, induzem um estado de transe psíquico a que o jogador se mantém preso por muitas horas e até dias. A família do viciado vai sofrer, impotente, a pobreza e a desonra.
Afinal, a legalização do jogo não faz nenhum bem? Tudo considerado, acho que faz bem, sim, aos lobistas e seus arautos, que não se detêm diante de suas repetidas derrotas no Congresso. Para eles, a opinião pública é composta por otários e o Congresso, por oportunistas. Mas até agora não passaram.
*Senador (PSDB-SP)
André Lara Resende: ‘Investimento público é mais importante que juro baixo para atenuar recessão’
Para economista, é preciso superar o arcabouço analítico anacrônico e equivocado que impõe o equilíbrio fiscal como o único objetivo de política econômica
Adriana Fernandes, O Estado de S. Paulo
O economista André Lara Resende é hoje uma voz dissonante do pensamento econômico dominante no Brasil. Quinto entrevistado da série do Estadão "Saídas para a Crise Fiscal”, Lara Resende afirma que o investimento público é hoje muito mais importante do que a política de juros como resposta para a retomada econômica após a pandemia do coronavírus e também para o desenvolvimento de longo prazo do País.
Um dos formuladores do Plano Real e com a experiência de ter trabalhado mais de 30 anos no mercado financeiro, Lara Resende propõe a criação de um órgão, protegido de "pressões políticas ilegítimas", para definir os investimentos públicos. Para ele, essa é hoje uma medida mais valiosa do que um Banco Central independente.
O economista alerta que até agora não houve uma única iniciativa, nem mesmo propostas, de políticas públicas para garantir uma recuperação sustentada, uma vez superada a pandemia. Ambientalista, Lara Resende diz que é incompreensível a postura do governo Jair Bolsonaro em relação à questão ambiental, considerada por ele o mais grave problema a ser enfrentado pela humanidade, e que compromete o Brasil no exterior.
Como o sr. avalia a resposta do governo à pandemia da covid-19?
A resposta à pandemia foi conturbada, incompetente e negacionista no todo. Quanto à política econômica, apesar de alguma hesitação inicial, com o auxílio de emergência, o governo acabou por dar uma resposta que aliviou temporariamente a situação dos que perderam o emprego ou a renda. O auxílio emergencial foi fundamental para aliviar a recessão e a crise social provocada pela pandemia. Até agora não houve uma única iniciativa, nem mesmo propostas, de políticas públicas para garantir uma recuperação sustentada, uma vez superada a pandemia. Quando a pandemia parece recrudescer, volta-se a falar na necessidade de encerrar o auxílio em nome do equilíbrio fiscal. Mais uma demonstração clara de que o governo continua dominado por restrições ideológicas.
Uma das preocupações no Brasil é justamente o crescimento da dívida, que caminha para 100% do PIB. É um problema?
Trata-se de uma preocupação infundada. Em várias ocasiões na história, sobretudo depois de guerras ou catástrofes, inúmeros países tiveram dívidas superiores ao PIB. Hoje, Japão, EUA, Itália, entre outros, têm dívida superior ao PIB. A dívida pública não pode ter uma trajetória explosiva, mas, desde que o seu crescimento acelerado seja transitório, que passada a crise, com as contas reequilibradas e restaurado o crescimento da economia, a relação entre dívida e PIB volte a cair, não há qualquer problema em ultrapassar os 100% do PIB.
Existe um limite para a dívida?
Não existe um limite intransponível para a dívida interna e o PIB. O endividamento externo, que depende de financiamento do exterior em moeda estrangeira, é sim perigoso. Como aprendemos com as sucessivas crises da dívida externa no século passado, quando os credores internacionais passam a ter dúvida sobre a capacidade do País de honrar seus compromissos em moeda estrangeira, a súbita interrupção do fluxo de financiamento pode provocar crises gravíssimas. No século passado, o Brasil era importador líquido de petróleo e derivados, assim como de trigo e outras commodities (produtos classificados como básicos por não ter tecnologia envolvida ou acabamento). Precisava de financiamento externo para cobrir o déficit com o resto do mundo. Hoje, somos autossuficientes em petróleo, exportadores líquidos de commodities e temos um setor agropecuário altamente superavitário. O Brasil de hoje não tem dívida pública externa, ao contrário, tem quase 30% do PIB em reservas internacionais. A nossa dívida é interna, do Estado com os brasileiros.
Em entrevista recente ao ‘Financial Times’, a economista-chefe do FMI, Gita Gopinath, disse que os países precisam evitar o erro de retirar prematuramente os estímulos fiscais, como ocorreu na crise financeira. Ela chama atenção que há formas de investimento público que podem criar empregos e aumentar a atividade econômica e, ao mesmo tempo, serem fiscalmente responsáveis para sair da crise. Como conciliar essas coisas?
Gita Gopinath disse apenas o que se sabe desde a publicação do livro de John M. Keynes (1883-1946, defensor de maior intervenção do governo na economia para estimular o crescimento) na década de 1930. Gopinath não é uma heterodoxa irresponsável, mas economista-chefe do FMI, doutora pela Universidade de Princeton, onde teve como orientadores Ben Bernanke, ex-presidente do Fed, e Ken Rogoff, professor da Universidade Harvard, dois expoentes da ortodoxia econômica. A política fiscal, sobretudo investimentos públicos que aumentem a produtividade e o poder aquisitivo da população, é o mais poderoso instrumento, tanto para se sair de uma recessão como para garantir a retomada do crescimento sustentado. A pergunta mais complicada de ser respondida é por que hoje no Brasil a opinião dos economistas que aparecem na imprensa, assim como a da própria imprensa, regrediu para o que era a ortodoxia do século XIX na Inglaterra? A chamada “Visão do Tesouro”, que sustentava a necessidade de sempre equilibrar as contas públicas, depois duramente criticada por Keynes, deixou de ser levada a sério.
O Brasil, que tinha uma situação fiscal frágil e déficits há sete anos e com previsão de resultados negativos até 2028, pode seguir essa recomendação do FMI em 2021?
É verdade que há mais de duas décadas a relação dívida e PIB do Brasil tem aumentado, mas não temos uma situação fiscal frágil. A carga fiscal do Brasil é de quase 35% do PIB, muito alta para um país de renda média. Apesar da alta carga fiscal, não conseguimos controlar o crescimento da dívida. A razão é que a taxa de juros foi extraordinariamente alta até muito recentemente. Com taxas de juros que chegaram a mais de 25% ao ano e um crescimento medíocre da economia, o resultado é inexorável: a relação dívida/PIB cresce. O Estado brasileiro custa muito e gasta mal? Com certeza, mas não é essa a razão do crescimento da dívida. A política de taxa de juros do Banco Central, do real até muito recentemente, foi um gravíssimo equívoco. A história irá deixar claro o preço de uma política de juros extraordinariamente altos, associada a uma pesada e kafkiana carga fiscal.
Qual a saída a seguir?
Antes de mais nada, é preciso superar a camisa de força imposta por um arcabouço analítico anacrônico e equivocado que impõe o equilíbrio fiscal como o único objetivo de política econômica. Dizem que com equilíbrio fiscal todos nossos problemas estarão milagrosamente resolvidos. Sem ele, caminhamos a passos largos para o abismo. Nada mais falso. Precisamos urgentemente voltar a ter um projeto para o País, ter objetivos de políticas públicas que balizem os investimentos públicos e privados, que norteiem a transição para uma matriz energética limpa e não nos deixe perder o bonde da revolução digital em curso. Precisamos refletir sobre as políticas de emprego, saúde e educação neste novo mundo do século XXI.
Por que o sr. considera ser uma falácia o argumento de que o governo não tem dinheiro para investimento?
Porque é falso. O governo não tem recursos para investir porque adotamos restrições legais-administrativas que deixam relativamente livres os gastos correntes e impõem limites ao total dos gastos. O teto dos gastos (regra que proíbe que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação) é exemplar: se mantido, vai levar ao colapso completo do investimento público. O governo que emite sua moeda fiduciária (documento que possa ser aceito como pagamento, como as notas de real), como é o nosso caso, não tem restrição financeira, pois, quando gasta, necessariamente, emite moeda. A decisão de obrigar o governo a retirar a moeda emitida, seja através da cobrança de impostos ou da emissão de dívida, é uma decisão político-administrativa. Pode se justificar para impedir que o governo gaste de forma irresponsável e incompetente, mas não é uma restrição real.
É mais eficiente deixar os investimentos fora do teto?
Sim. O teto pode até ser uma restrição importante para impedir um Estado inchado, que gaste muito na sua própria operação, mas não faz sentido ter um teto com os gastos correntes não controlados. O resultado é a inviabilização dos investimentos. Os investimentos públicos são muito mais importantes do que juro básico baixo tanto para atenuar os efeitos da recessão quanto para o desenvolvimento de longo prazo. É mais importante ter um órgão sério e competente, protegido das pressões políticas ilegítimas, para definir os investimentos públicos, do que um Banco Central independente.
É possível fazer uma recuperação econômica verde e sustentável pós-pandemia?
Infelizmente, o governo Bolsonaro está na contramão de uma política ambiental sustentável. A incompreensível postura do governo em relação à questão ambiental, hoje considerado o mais grave problema a ser enfrentado pela humanidade, compromete o Brasil no exterior, prejudica nossas exportações e reduz os investimentos externos. Além de fazer a coisa certa, teríamos muito a ganhar com uma política ambiental inteligente e responsável, que poderia servir de balizador de uma nova etapa de nosso desenvolvimento.
Qual o papel das reformas administrativa e tributária para destravar o crescimento?
Me parece que uma reforma tributária, cujos objetivos fossem a simplificação, a racionalização e a equidade, não o equilíbrio a qualquer custo, e que nos livrasse do atual cipoal tributário, seria um passo importante para nos tirar do atoleiro em que nos metemos. Mais do que uma reforma administrativa, nome que se dá ao que é apenas mais uma tentativa de reduzir os salários e os benefícios do funcionalismo, precisamos modernizar a governança do País, inclusive o sistema político, que caminha a passos largos para se tornar disfuncional e corre o risco de perder legitimidade.
*André Lara Resende, economista, graduado em ciências econômicas pela PUC-Rio, André Lara Resende nasceu no Rio de Janeiro em 1951. É doutor em economia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT). Trabalhou mais de 30 anos no mercado financeiro e é um dos formuladores do Plano Real. Em seu livro mais recente, “Consenso e Contrassenso”, uma coletânea de ensaios, propôs uma virada nas perspectivas teóricas da macroeconomia. Foi diretor do Banco Central, negociador chefe da dívida externa e presidente do BNDES. Seus livros "Os limites do possível" e "Devagar e simples", publicados pela Companhia das Letras, ganharam o prêmio Jabuti em 2013 e 2015.
William Waack: Falando sozinho
Os principais freios à política externa de Bolsonaro vêm da iniciativa privada
É preciso um pouco de paciência, mas a força dos interesses privados brasileiros está conseguindo impor severos limites aos rompantes de política externa do governo Jair Bolsonaro. A “linha” externa foi basicamente subordinar-se a Donald Trump, um erro grotesco do ponto de vista “técnico” de diplomacia e um exemplo já clássico de como a cegueira ideológica conduz a decisões que são pura estupidez.
O agronegócio foi o primeiro a gritar contra a gratuita hostilização de parceiros comerciais no Oriente Médio e na Ásia, seguido de perto por setores modernos industriais e do mundo financeiro em relação a políticas ambientais. Os mais novos grupos a entrar no “vamos dar uma segurada” são de setores tecnológicos ligados a telecomunicações e infraestrutura, preocupados com o dano que a hostilidade à China possa trazer a investimentos no 5G.
Especialmente no agro “tecnológico” – aquele que colocou o Brasil como uma superpotência na produção de grãos e proteínas – a postura externa do governo Bolsonaro é vista com consternação e abertamente criticada. O racha já chegou à relação entre entidades que representam os variados grupos desse setor. Aqueles apelidados de “ruralistas”, e identificados com a soja e a pecuária “primitiva”, continuam apegados à noção de que, sendo o Brasil um campeão na produção de alimentos, não importa o que aconteça ou o que se diga, o mundo continuará comprando aqui.
Mas coligação de peso é a que passa pelos bancos, grandes indústrias (química, por exemplo), instituições financeiras (plataformas de investimentos), empresas de ponta no setor digital (aplicação de inovação digital na agricultura, por exemplo), serviços e varejo de massa (por suas ligações com o exterior). Elas se entendem como parte de grandes cadeias internacionais, o que significa levar em grande consideração o que vai pela cabeça de massas de consumidores – e as preocupações de acionistas idem.
Estabeleceram com o presidente do Conselho da Amazônia, o general Hamilton Mourão, uma espécie de interlocução que se faz notar, por exemplo, na maneira como o vice-presidente reagiu ao anúncio de Biden de que retornaria aos acordos do clima de Paris – mais uma vez, a voz de Mourão é abertamente dissonante em relação à de Bolsonaro. Aliás, na cabeça dos executivos desses grupos a vitória de Joe Biden é vista como uma excelente oportunidade de, pelo menos, restaurar parte das cadeias produtivas globais. E fala-se da China com bem menos hostilidade política.
Nenhum desses dirigentes admite em conversas particulares enxergar qualquer vantagem no isolamento internacional a que as posturas de política externa de Bolsonaro levaram o País, e simplesmente ignoram o que diz o governo. Olham para os acordos de comércio recentemente assinados na Ásia (abrangendo 30% do PIB mundial e alguns países “ocidentais” como a Austrália, por exemplo) e examinam em grupos nutridos de análise da situação internacional como não perder o bonde (mais um).
Nesse sentido, a anunciada adesão do Brasil à iniciativa americana de “rede limpa” (clean network), que exclui a chinesa Huawei do 5G brasileiro, foi considerada prematura e desnecessária também por militares envolvidos em programas de Defesa – e que não viram na dedicação de Bolsonaro a Trump qualquer vantagem prática em termos de acesso a tecnologias sensitivas (notadamente nos setores nucleares e de mísseis) tradicionalmente bloqueadas por governos americanos, democratas ou republicanos.
Qual o resultado de tudo isso: será o retorno às deliberações multilaterais (incluindo o acordo de Paris), a moderação na resposta às críticas à política ambiental, mais cuidado no trato com parceiros comerciais importantes na Ásia e Oriente Médio e a reiteração (bem antiga, já) aos que controlam tecnologias de Defesa de que somos internacionalmente “adultos e responsáveis”. Em outras palavras, é deixar a área externa do governo, incluindo filhos, assessores e alguns ministros de Bolsonaro, falando sozinhos.
Marco Aurélio Nogueira: A nova política dos jovens
Pautas identitárias e desejo de renovação põem a juventude paulistana em campanha
Vera Magalhaes acertou em cheio em sua coluna de hoje, no Estadão, quando constata que há um “degrau geracional” separando as candidaturas que disputam a Prefeitura de São Paulo.
É um problema geral, embora se manifeste de forma particular em cada parte do País. Está latejando forte na capital paulistana.
Guilherme Boulos, do PSOL, é o candidato dos jovens entre 16 e 34 anos, que formam uma massa numericamente expressiva e têm lhe dado impulso para ameaçar sobrepujar o atual prefeito, Bruno Covas (PSDB), na reta final.
Uma boa campanha no segundo turno explica parte da situação, mas não explica tudo. O decisivo é que Boulos está conseguindo falar com os jovens, que são sempre dispostos a contestar e buscar coisas novas, além de não gostarem de obedecer. Têm sido eles o motor de sua ascensão. Boulos não entrou nas periferias pobres da cidade, mas está bombando entre os jovens de todos os extratos de renda.
É compreensível que a campanha de Covas não empolgue a moçada mais jovem. O atual prefeito não é midiático, não se atirou nas redes, sua propaganda é fria, ele age como um executivo e, para complicar, é suscetível a muitas “lacrações”: sofre o desgaste de quem está no cargo, é ligado a Dória, o terrível, pertence a um partido considerado “velho”, tem um vice visto como problemático pelo reacionarismo. Até sua doença, um câncer em fase de remissão, é vista como fator de rejeição.
Covas vai bem entre os extratos de maior idade, mais “leais” e chegados à moderação. E seus votos estão distribuídos em todos os distritos da cidade. Mas, se os velhinhos decidirem não votar por receio da Covid, por exemplo, o prefeito poderá perder a eleição.
Os jovens querem movimento, dinamismo, novidade. Estão cansados da mesma lengalenga tucana onipresente em São Paulo. E não se preocupam muito em ligar a eleição paulistana ao futuro do País, ou seja, às urnas de 2022. Não se perguntam, por exemplo, se a vitória de um ou outro candidato ajudará em maior ou menor medida a luta contra o bolsonarismo mais adiante. São majoritariamente contrários às baixarias e ao regressismo de Bolsonaro, não ligam muito para esquerda vs. direita, aderiram para valer às pautas ditas “identitárias”, não só as de gênero e etnia, mas também as ambientais, as da sustentabilidade, da cidade com menos automóveis, da coleta seletiva do lixo, do consumo consciente. Tais pautas são o modo como agem no mundo.
É uma linguagem que não tem sido praticada pelos políticos. E que Boulos soube capturar, ao menos em parte.
Há que considerar que os jovens de hoje não são militantes como foram os seus pais. Não querem saber de comandos partidários, ordens unidas, chefes e agendas rígidas. Engajam-se de modo tópico, seletivo, espasmódico. Não sacrificam a vida pessoal em nome de uma causa coletiva ou da glória de uma organização. Não se referenciam por líderes ou ideologias. São multifocais, abraçam várias causas simultaneamente. Seu ambiente são as redes sociais, sua maior ferramenta é a conectividade.
Numa época de crise da política e da democracia, a exigência de militância, de causas a serem defendidas, permanece. Os engajamentos estão mais próximos da “política-vida” do que da “política-poder”. É uma época com mais “coração” do que “cabeça” politica. As sociedades estão fragmentadas e individualizadas. Há um desencanto com as instituições.
Sem centros claros de coordenação, as partes (grupos, indivíduos, regiões) se afastam umas das outras e seguem lógicas próprias, ainda que, paradoxalmente, tudo fique mais conectado.
Em particular os jovens (mas muitos não tão jovens também) são social e culturalmente hiperativos, movem-se pela necessidade de se autoexpressarem e não são ligados a lutas por poder em sentido estrito. Olham torto para os políticos que só se preocupam em gerir recursos de poder e maximizar interesses eleitorais, que são rotineiros, previsíveis. Gosta-se mais daquilo que não se conhece.
Pouco importa que os mecanismos concebidos para a deliberação (um mutirão, um orçamento participativo, consultas populares) produzam resultados precários O importante é que sirvam para extravasar indignação, carências, desejos, opiniões.
O problema – sempre há um problema – é que o ativismo jovem pode não ser suficiente para que se consiga estabelecer equilíbrios e consensos que articulem um sistema alternativo. A nova “zona de ação política”, por ser pouco organizada e mais individualizada, estar marcada pela movimentação contínua, por pressões antissistêmicas erráticas, produz uma politicidade de outro tipo, cujo teor e formato institucional ainda estão por ser estabelecidos.
Não há, porém, muralhas intransponíveis separando velhas e novas formas de ativismo, que se cruzam e podem se combinar de diferentes maneiras, beneficiando-se reciprocamente. Se suas agendas contém distintas ênfases e questões, também estão repletas de temas que somente podem ser enfrentados com sucesso se se interpenetrarem e forem articulados em uma plataforma de síntese politica.
O novo ativismo pode ser uma importante alavanca de construção do futuro. Será isso, no entanto, na medida em que souber se articular com o “velho ativismo” e considerar o conjunto da experiência social e convergir para a reforma democrática da sociedade, do Estado e da politica. Se tentar evoluir solitariamente, fechado em suas causas específicas e na busca de autoexpressão, produzirá ruído e efervescência, mas perderá em termos de efetividade.
A necessidade dessa articulação está posta pela vida. Afinal, o social que se fragmenta não desaparece como social. A dimensão coletiva da existência não se dissolve só porque a individualização se expande. Ainda continua a ser fundamental combinar ações e promover convergências.
Fábio Alves: Guedes sob pressão
Se ministro conseguir entregar alguma reforma, reputação ficará menos arranhada
Paulo Guedes chega ao fim do seu segundo ano no cargo com a credibilidade seriamente abalada perante analistas e investidores do mercado financeiro, público que foi um dos primeiros eleitores a abraçar a campanha do então candidato presidencial Jair Bolsonaro, em 2018, em razão do apoio irrestrito ao seu escolhido para ministro da Economia.
Mas a imagem de Guedes no mercado passou de respeito e admiração para ceticismo nas palavras do ministro ou até mesmo chacota. Nos últimos dias, corre em mensagens de grupo de WhatsApp entre economistas e investidores a figurinha de Guedes, dedo indicador em riste e um leve sorriso no rosto, com a seguinte legenda: “Semana que Vem”, numa alusão ao histórico do ministro de prometer entregar propostas da agenda econômica sempre para um futuro próximo.
Outra figurinha mostra um posto Ipiranga em chamas, numa referência ao fato de que o mercado deixou de acreditar que Bolsonaro ainda dá a Guedes carta branca para resolver e decidir todos os assuntos da área econômica, ao contrário da campanha presidencial, quando Guedes era chamado de “Posto Ipiranga” pelo agora presidente.
A figurinha mostra o posto em chamas porque o ministro se envolveu em disputas públicas com a ala política e desenvolvimentista do Palácio do Planalto em temas como investimentos, teto de gastos e fontes de financiamento de programas de transferência de renda, sofrendo alguns reveses.
“Ele está desacreditado”, sentencia um gestor estrangeiro. “Faz um papel de distrair de um lado, enquanto o Congresso impõe sua vontade, de outro.”
Esse gestor diz que para a credibilidade do ministro ser mantida requer alguma entrega de resultados. “Quais ele entregou, objetivamente?”, indaga. “A reforma da Previdência aconteceu mais a despeito dele do que por causa dele. Lembra a capitalização?”
O problema, na visão desse gestor, é o tempo perdido em não se aprovar reformas que aumentem a produtividade, reduzam desigualdades e controlem o gasto público. “Falta visão de futuro: ele vê mais as árvores do que a floresta. E ela continua pegando fogo”, diz.
O que tem causado bastante desconforto no mercado é a quantidade de ruído nos preços dos ativos, em particular na cotação do dólar, devido a constantes declarações de Guedes em eventos ou em entrevistas à imprensa.
A mais recente aconteceu na semana passada quando o ministro disse que fará “o que for necessário” para reduzir a dívida pública (que deve superar 96% do PIB neste ano) e citou a possibilidade de “até vender um pouco de reservas”.
Um renomado investidor em juros e câmbio critica duramente a fala do ministro, dizendo que Guedes confunde estoque (o que o governo tem de dívida) com fluxo (que é o que o governo tem de resultado – receita menos despesa – no ano).
“Ao vender parte das reservas internacionais para diminuir a dívida bruta, lembrando que as reservas já têm efeito sobre a dívida líquida, Guedes está diminuindo a dívida bruta, a líquida se mantém estável e ele perde um seguro essencial – como são as reservas – diante da delicada situação fiscal do Brasil”, observa o investidor acima. “Mas ele não cuida do maior problema, que é o fluxo, o qual, para ser resolvido, precisa de reformas a fim de diminuir o tamanho do Estado (custo) e aumentar o PIB potencial (receitas).”
Já o economista-chefe de um importante fundo de investimentos diz que é preciso dividir em dois períodos a avaliação de Guedes. “No primeiro ano no cargo, o desempenho dele foi muito bom, com uma participação fundamental na aprovação da reforma da Previdência e uma narrativa de modernização do Estado e continuidade da agenda de reformas, que manteve o tema em voga no Congresso”, explica. “Mas, já no fim do ano passado, as dificuldades em coordenar projetos e negociar consensos parece que começou a pesar contra. Tudo isso foi sendo agravado com a crise política e a pandemia do coronavírus.”
A questão agora é que as promessas de Guedes encontram ouvidos moucos no mercado, especialmente quando se trata de privatização. O ministro agora quer vender os Correios, o Porto de Santos, a Eletrobrás e a Pré-Sal Petróleo (PPSA) até o fim de 2021. Pouca gente leva fé nisso.
Mas se o ministro conseguir entregar alguma reforma em 2021, como a PEC emergencial, sua reputação ficará menos arranhada.
Monica De Bolle: A transição
Começo da transição do governo Biden deixa claro que os surtos de anomalia aguda vêm e vão
No fim, as profecias mais pessimistas sobre “o fim da democracia americana”, entoadas com ar de gravidade por diversos analistas nos EUA e no Brasil, não se confirmou. E era mais do que esperado que não se confirmasse. Como escrevi tanto neste espaço quanto em coluna para a revista Época, Donald J. Trump gosta de quebrar porcelana, mas, quando se trata das instituições deste país onde vivo há muitos anos, entre idas e vindas, tudo funciona conforme se espera.
O Judiciário descartou praticamente todas as tentativas de Trump de subverter as eleições, muitas das quais risíveis. Cenas absurdas marcaram as semanas que transcorreram desde 3 novembro, e a elas voltarei em um instante. Além do Judiciário, as legislaturas estaduais, os responsáveis pela certificação das eleições, entre outros, não se deixaram abalar pelas investidas do ainda presidente, que já havia desistido de governar para se entregar a tentativas esdrúxulas de invalidar as eleições e a rodadas de golfe nos fins de semana. Prevaleceu o que prevaleceria: a vitória do presidente eleito, o democrata Joe Biden.
Para falar sobre a transição de Biden, é preciso discorrer sobre os absurdos que testemunhamos desde a coletiva no estacionamento da hoje famosa Four Seasons Total Landscaping. Para quem não se lembra do episódio, ele aconteceu no dia em que Biden foi declarado vencedor pelos principais veículos de notícias. Nesse dia, Rudy Giuliani, advogado de Trump, convocou a imprensa para falar sobre a estratégia jurídica da campanha. Desafortunadamente para ele – para muitos foi uma delícia –, alguém da equipe apontou e acertou no Four Seasons errado. Por força do erro, a entrevista se deu não no sofisticado hotel, mas em um dilapidado estacionamento que fica entre o crematório e a “Ilha da Fantasia”, nome do sex shop ao lado. A Four Seasons Total Landscaping desde então faz sucesso com a venda de camisetas e máscaras protetoras com dizeres variados.
O segundo episódio dentre aqueles absurdos se deu na semana passada, quando um Giuliani de aparência desarranjada suava em frente às câmeras, a tinta do cabelo escorrendo pelas bochechas. A imagem foi menos lúdica do que a do famoso estacionamento, mas, no conjunto, os dois episódios ilustram bem por que o ar grave no trato do resultado das eleições e as sentenças de morte da democracia eram descabidos. O que havia era não um ato ominoso, mas uma chanchada, algo burlesco.
Na segunda-feira, a agência responsável liberou os recursos federais e deu permissão para que a transição se inicie. Mas Biden não está perdendo tempo. Antes mesmo de ser “oficializada” a troca de comando, já tinha se reunido com aqueles que pretendia indicar para os cargos mais importantes. Em pouco mais de um par de dias, anunciou quem seriam os principais assessores da Casa Branca, quem ocuparia a chefia do Departamento de Estado, do Tesouro, da Segurança Nacional, entre outros. Para o Departamento de Estado, escolheu Antony Blinken, diplomata de carreira, tarimbado e experiente tanto em assuntos externos quanto em temas de segurança nacional. O presidente eleito sinaliza, assim, que seu governo retomará as rédeas do multilateralismo achincalhado por Trump e por adeptos da tese do globalismo malvado mundo afora. Tal grupo inclui vários membros de alto escalão do governo Bolsonaro, gurus de seus filhos, além de seus filhos.
Para o Tesouro, Biden chamou Janet Yellen. Yellen foi a primeira mulher a presidir o Fed, durante o governo Obama. Agora ela será a primeira mulher a chefiar o Tesouro. Tive o prazer de conhecê-la e estar com ela em várias ocasiões aqui em Washington, tanto em palestras no Peterson Institute for International Economics, onde trabalho, quanto em ocasiões mais prosaicas. Yellen era frequentadora assídua de uma cafeteria onde eu costumava almoçar antes da pandemia. Sempre em companhia ilustre, a economista nunca deixou de me cumprimentar. Yellen reúne qualidades únicas: é uma acadêmica de peso, além de uma grande gestora de política econômica. Sua visão sobre os males que afligem os EUA passa por um entendimento sofisticado e abrangente das mazelas estruturais responsáveis pela desigualdade no país. É de alguém como ela que precisamos na futura liderança do Ministério da Economia.
A transição de Biden, ainda que a pandemia esteja se agravando por aqui, tem deixado claro algo que precisa ser internalizado também no Brasil. Os surtos de anomalia aguda, os gravíssimos acidentes históricos representados pela ascensão de Trump e de Bolsonaro, são parte da história. Vêm e vão. O Brasil não está destinado a perecer nas mãos da incompetência, assim como não o estavam os EUA. Tudo muda. Tudo está sempre em transição.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University