o estado de s paulo
Paulo Hartung: 2020, o ano que não termina
Desafios desta dúzia de meses atormentados ecoarão firmemente no correr dos dias de 2021
Hoje é o primeiro dia do último mês do ano. E o fim não parece próximo. É evidente que no continuum dos dias, dos meses, enfim, da vida compartimentada em calendários, nada nunca termina abruptamente, tudo transborda limites. Mas esta passagem de ano terá ainda menos ares de virada dado o acúmulo de questões a resolver no futuro próximo, em volume e significação inéditos.
Em múltiplos campos, temos questões surgidas ou incrementadas neste 2020 cujas repercussões já pautam atenções, decisões e desfechos nos dias de 2021. Ainda estamos em plena travessia da pandemia do novo coronavírus, pois enquanto não houver vacina disponível não haverá um ponto final possível para esta tragédia humanitária que assola o planeta.
Além de impor reveses dramáticos ao convívio social, a pandemia desligou a economia planetária, com variações de gravidade diretamente proporcionais à capacidade e à racionalidade dos gestores nacionais. Salta aos olhos o desempenho extraordinário de duas mulheres, em nações democráticas, a chanceler alemã, Angela Merkel, e a primeira-ministra da Nova Zelândia, reeleita em plena pandemia, Jacinda Ardern. Esse fato alentador pode e deve chamar a atenção para a impositiva oxigenação na seara das lideranças, hoje tão esvaziada de boas novidades e carente do vigor de olhares diferentes sobre a existência humana.
A relevância da diversidade e da inovação nessa área aumenta ainda mais quando se tem em conta que, com o almejado efetivo controle da covid-19, o mundo precisará debruçar-se sobre uma verdadeira tarefa de reinvenção, imposta por fatores como a piora das desigualdades socioeconômicas, o terremoto na esfera produtiva, especialmente nos modos de trabalhar e na extinção de atividades, e o empobrecimento das populações, via desemprego e recessão, entre outros.
Mas não é só de repercussões desafiantes deste ano que viverá o próximo. Ainda que dinamizados por deveres de casa árduos e complexos, movimentos promissores se colocaram em 2020 e projetam um ano com alguns toques de relevantes novidades. Ao menos três âmbitos estão com luzes amarelas à frente, tendendo fortemente ao sinal verde, nesta travessia anual: o fortalecimento do multilateralismo, a busca da sustentabilidade no planeta e as vastas experiências da digitalidade.
A eleição de Joe Biden nos Estados Unidos acena com uma mudança crucial para a vida em bases civilizadas. A caminhada política é cheia de desvios, obstáculos e surpresas, mas com a nova presidência estadunidense ao menos retomamos o rumo da lucidez. Impôs-se um freio de arrumação na marcha da insensatez que estava guiando o planeta para o precipício de nacionalismos radicais, obscurantismos tantos e negação da ciência, a mesma que rapidamente conseguiu sintetizar conhecimentos sobre uma doença desconhecida e em menos de um ano dotou a humanidade de vacinas capazes de nos livrar da maior crise sanitária em um século.
Também ganham energia com esta mudança política o multilateralismo e todos os seus preceitos de democracia, enfraquecendo a onda global de populismo conservador. Da mesma maneira, a preservação do planeta e a qualidade de vida das futuras gerações se fortalecem com a anunciada decisão norte-americana de voltar ao Acordo de Paris e suas premissas de mitigação das mudanças climáticas. Mas temos de estar atentos ao fato de que continuaremos a testemunhar a disputa de hegemonia entre China e EUA, prejudicial por diminuir o dinamismo econômico mundial, e ainda num cenário de países mais endividados no pós-pandemia.
A remediação da covid-19 via isolamento social, que tantos males tem provocado às relações humanas, acabou incrementando como nunca a migração digital. Educação, trabalho, consumo, medicina, entre tantos outros aspectos da nossa vida, ganharam novos modos de fazer, abrindo-se ainda um universo de oportunidades de acesso a serviços e de melhorias na vida urbana, entre outras.
Mas vale lembrar que esse movimento também ampliou o espaço para verdadeiras pragas, como as fake news e as trevas da intolerância, potencializando o animalesco que habita o humano, cujos instintos só se freiam por limites civilizatórios assumidos como organizadores dos laços sociais. É um desafio sociopolítico investir na apropriação humanística das mais dóceis técnicas jamais inventadas, como salientou o saudoso geógrafo Milton Santos.
Como se vê, ainda que o ano acabe oficialmente na virada de 31 de dezembro para 1.º de janeiro, desafios desta dúzia de meses atormentados ainda ecoarão firmemente no correr dos dias do novo ano. Assim, que sejamos capazes de enfrentar um 2021 com uma certa cara de 2020, com aprendizados, com a esperança da mudança sempre possível e a certeza de que a História não tem destino prescrito. Que sigamos inspirados rumo à experiência das possibilidades e à superação das demandas postas em meio a um tempo trágico, mas que, como toda crise, terá efetivo fim, porta lições, abre caminhos.
*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)
O Estado de S. Paulo: Fux conduz no STF agenda de contraponto ao Planalto
Em menos de 3 meses à frente do Judiciário, ministro manobrou para evitar derrotas da Lava Jato em julgamentos e defendeu questões raciais e temas ambientais
Rafael Moraes Moura e Breno Pires, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - À frente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o ministro Luiz Fux tem emplacado uma agenda “progressista” de contraponto à pauta conservadora do Palácio do Planalto. Contrariando a linha do antecessor, Dias Toffoli, que mostrou proximidade com Jair Bolsonaro, Fux tem mantido uma relação distante do presidente, sem trocas de afagos públicos – uma convivência protocolar e institucional.
Em menos de três meses na chefia do Poder Judiciário, Fux já instituiu cotas para negros em estágios na Justiça, criou um observatório no CNJ para questões ligadas ao meio ambiente e costurou uma mudança no regimento do Supremo para evitar novas derrotas da Lava Jato em julgamentos.
Os contrastes entre Fux e Bolsonaro ficaram explícitos na semana passada. Responsável por definir os casos que serão analisados pelos colegas nas sessões plenárias, o presidente da Corte colocou na pauta do STF um caso que discute se a injúria racial é uma espécie de racismo, crime imprescritível, inafiançável e sujeito a pena de reclusão.
O julgamento foi agendado após a comoção provocada pela morte de João Alberto Freitas, homem negro assassinado em uma loja do Carrefour em Porto Alegre na véspera do Dia da Consciência Negra. Bolsonaro, por outro lado, negou o problema do racismo no País.
O tema também ganhou tratamento prioritário de Fux no CNJ, órgão responsável não apenas por investigar juízes, mas também por desenvolver políticas que melhorem o funcionamento da Justiça. Uma das primeiras medidas aprovadas pelo conselho, sob o comando de Fux, foi a reserva de ao menos 30% das vagas de estágio na Justiça para negros. Já o presidente disse reiteradas vezes ser contrário a ações afirmativas nesse sentido.
“Nossa gestão baseia-se em cinco eixos: a proteção dos direitos humanos e do meio ambiente, a garantia da segurança jurídica para a otimização da economia, o combate à corrupção, o acesso à justiça digital e o fortalecimento da vocação constitucional do STF”, disse Fux ao Estadão. “Todos esses eixos estão alinhados com a Constituição Federal e suas aspirações de institucionalidade, espírito republicano e democracia.”
Interlocutores de Fux e analistas ouvidos pela reportagem avaliam que a agenda do ministro do STF não é uma resposta direta a Bolsonaro nem uma tentativa de fazer oposição ao Planalto, mas expõe que “os princípios e as prioridades” de cada um são diferentes. “Não é de se esperar outra coisa de um presidente da Suprema Corte que não seja a defesa da Constituição. Vemos um Executivo que ataca constantemente a Constituição, e um Supremo que a defende”, avalia o professor de Direito Constitucional da FGV, Roberto Dias.
Novo ministro
O chefe do Executivo deixou o presidente do STF de fora das articulações que levaram à escolha de Nunes Marques para uma cadeira na Corte, na vaga de Celso de Mello, que se aposentou. As pontes de Bolsonaro no tribunal são com os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli, que chancelaram a indicação.
Durante os dois anos em que presidiu o tribunal, a postura de Toffoli foi vista internamente por colegas como a de uma espécie de “consultor jurídico” do governo, dando aval, por exemplo, à sanção da criação do “juiz de garantias”, polêmica medida prevista no pacote anticrime – e rechaçada pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro. “(Na gestão Toffoli) Houve uma mistura de papéis absolutamente não saudável do ponto de vista democrático, republicano. O que mostra que há uma certa reversão dessa atuação quando a gente fala na presidência do ministro Fux”, opina Dias.
Mudança
A escolha de Nunes Marques mudou o perfil da Segunda Turma do STF, que passou a ter maioria “garantista” (mais propensa a ficar do lado dos réus) em julgamentos. Para evitar novas derrotas da Lava Jato, Fux articulou a retirada de inquéritos e ações penais da operação na 2.ª Turma, levando esses casos para o plenário, onde é apreciado pelos 11 integrantes da Corte. “Todas as ações penais e todos os inquéritos passarão pela responsabilidade do plenário porque o STF tem o dever de restaurar a imagem do País”, discursou Fux na abertura do 14.º Encontro Nacional do Poder Judiciário.
A agenda ambiental é outro ponto de contraposição entre Supremo e Planalto. Enquanto o governo federal tem postura de confronto com a comunidade internacional, ONGs e ambientalistas no que diz respeito ao combate ao desmatamento na Amazônia, Fux criou um Observatório do Meio Ambiente no âmbito do CNJ.
“A preservação ambiental propulsiona o Brasil no mercado internacional, é um elemento primordial na realização de investimentos no País, necessários para a retomada da economia, em especial no cenário pós-pandemia”, disse Fux. Assim, é essencial que o debate sobre a sustentabilidade seja transversal na elaboração e implementação de nossas políticas públicas, sejam do Judiciário, sejam dos demais poderes nos três níveis da federação.”
Pontos de divergência com o Executivo
- Lava Jato
Para impedir novas derrotas da Lava Jato, Fux articulou mudança no regimento e tirou da 2ª Turma a análise de denúncias e ações da operação.
- Meio ambiente
Fux colocou o tema como prioridade número 1 de sua gestão e criou o Observatório do Meio Ambiente no âmbito do Conselho Nacional de Justiça.
- Ações afirmativas
A gestão Fux no CNJ determinou que pelo menos 30% das vagas de estágio no Judiciário sejam reservadas para candidatos negros.
- Direitos humanos
Após o espancamento até a morte de João Alberto Freitas, Fux colocou na pauta de julgamento do STF um caso que discute se o crime de injúria racial é imprescritível.
NOTÍCIAS RELACIONADAS
- Consultoria americana anuncia contratação de Sérgio Moro para diretoria de ‘disputas e investigações’
- Após manobra de Fux, Primeira e Segunda Turma mantêm casos contra políticos
Carlos Pereira: Nova face da polarização
A não obrigatoriedade da vacina é o novo mote identitário de Bolsonaro
Vínculos identitários para serem duradouros necessitam de novas e constantes narrativas polarizadas que reforcem conexões de lealdade entre seus membros. Funcionam como elos que dão a sensação de aconchego e pertencimento. Também atuam como barreiras de proteção contra informações que contrariem as crenças e preferências do grupo. Como consequência, tendem a desenvolver hostilidades e aversão a valores e crenças de grupos rivais podendo até enxergá-los como inimigos.
Contrariando suas promessas de campanha, o presidente Jair Bolsonaro se aproximou dos partidos do chamado Centrão em busca de uma coalizão mínima que garantisse sua sobrevivência política. Além do mais, moderou o tom de seu discurso como uma forma de diminuir animosidades com outros poderes que caracterizaram o início do seu mandato.
Essas mudanças deram fôlego governativo ao presidente, mas paradoxalmente enfraqueceram suas conexões identitárias ao deixar sua base conservadora dispersa e sem referências. Percebendo a derrota iminente que seus candidatos sofreriam nas eleições municipais, Bolsonaro teve de encontrar, mesmo que tardiamente, um novo mote que reconectasse suas identidades polares com a sua base mais fiel.
A nova face da polarização política no Brasil parece ser a obrigatoriedade da vacina contra a covid-19. Essa é uma das evidências que acabam de ser reveladas pela terceira rodada da pesquisa de opinião sobre os impactos políticos da pandemia, que venho desenvolvendo com os colegas Amanda Medeiros e Frederico Bertholini, com o apoio da FGV e do Estadão.
Das 4.569 respostas válidas obtidas na pesquisa, 58% dos respondentes são favoráveis a que a vacina seja administrada de forma obrigatória aos brasileiros, 34% são contrários e 8% não sabem ou não responderam.
Como pode ser observado na figura 1, a distribuição dessa preferência é extremamente polarizada. A grande maioria dos que aprovam a performance do governo Bolsonaro (ótimo e bom, 20%) é contra a obrigatoriedade da vacina (84%). No extremo oposto, a grande maioria dos que reprovam o desempenho do governo (ruim e péssimo, 71%) defende que a vacina seja obrigatória (74%).
Para se ter uma ideia do impacto político desse tema, perguntamos aos respondentes se eles pretendem votar na reeleição de Bolsonaro em 2022. A figura 2 mostra que, como esperado, a esmagadora maioria dos que defendem a reeleição do presidente (pró-Bolsonaro, 18%) são terminantemente contra a obrigatoriedade da vacina (81%). Por outro lado, a maioria dos eleitores que não votariam em Bolsonaro em nenhuma circunstância (anti-Bolsonaro, 65%) defendem que a vacina seja obrigatória (76%). Existe ainda uma parcela não trivial de eleitores (anti-esquerda, 17%) que consideram votar na reeleição do presidente apenas se for para evitar a vitória do PT ou outro candidato de esquerda no segundo turno. Para esse grupo de eleitores supostamente decepcionados com o Presidente, a preferência em relação a obrigatoriedade da vacina não é polarizada (54% não e 37% sim).
O presidente tem defendido que a vacinação é um direito individual ao afirmar que “quem não tomar a vacina está fazendo mal para si mesmo e não para os outros”. Nas suas próprias palavras, quem defende a vacinação obrigatória é um “ditador”… “Não vou tomar, é um direito meu”, disse ele. Entretanto, para que uma vacina surta o efeito imunizante é necessária uma cobertura mínima. No caso específico do coronavírus, estudos indicam que, para alcançar uma eficácia de 80%, seria necessário a aplicação da vacina em pelo menos 75% da população.
Independentemente da recomendação científica, parece que Bolsonaro não consegue prescindir da polarização.
- Cientista político e professor titular da FGV Ebape
Eliane Cantanhêde: Frente antibolsonarista toma forma
Segundo turno confirmou estrondosa derrota dos extremos
O segundo turno confirmou a estrondosa derrota dos extremos, PT e bolsonarismo, e a consequente vitória do centro, com o PSDB em São Paulo, o DEM no Rio e o MDB reunindo o maior número de prefeituras no País. Esse resultado projeta e dá forma a uma frente contra o presidente Jair Bolsonaro e tudo o que ele representa.
No discurso da vitória do DEM no Rio, Eduardo Paes e Rodrigo Maia não apenas deram uma senha, mas praticamente formalizaram o lançamento dessa frente ao cumprimentar o tucano Bruno Covas pela eleição em São Paulo, com apoio de Fernando Henrique a Marta Suplicy. Em política, nem cumprimento é por acaso. O gesto de Paes e Maia diz muito.
Bolsonaro coleciona derrotas, desde a de Donald Trump, passando por todos os seus candidatos no primeiro e no segundo turno e desembocando no sonoro não das urnas às suas bandeiras, seu negacionismo e sua beligerância árida, abjeta. Venceu o oposto: a rejeição ao ódio, o respeito à política e a disputa consequente que Bruno Covas e Guilherme Boulos, do PSOL, travaram em São Paulo.
Como fecho de ouro, ou de latão, Bolsonaro produziu ontem, justamente no dia D, as piores manifestações de toda a eleição. O presidente do Brasil acusar a eleição norte-americana de fraude, com base nas suas “fontes”? É patético, de uma irresponsabilidade que choca o mundo. E insistir no ataque às urnas eletrônicas, pregando a volta ao passado, à cédula de papel? É igualmente patético e irresponsável, faz mal ao Brasil.
Bolsonaro vai se isolando, falando sozinho e tornando possível a construção da frente, enquanto o PT perdeu em exatamente todas as capitais e deixou que PSOL, PSB e PCdoB alcem voos solos. Assim, a polarização abre caminho para o futuro e uma ampla frente antibolsonarista.
As prioridades e desafios imediatos dos prefeitos eleitos, porém, são outras: crise econômica, desemprego, falta de recursos e a covid implacável. A todos ele, votos de moderação, bom senso e sucesso, porque o sucesso deles será dos brasileiros e do Brasil.
Gustavo H. B. Franco: Um acordo de transição
Não, o mercado financeiro não está enxergando nenhum golpe, ou descontinuidade, mas vislumbra ao menos oito boas razões para presumir que a Presidência Bolsonaro iniciada em 2018 vai terminar diferente do que começou
Mesmo antes da derrota de Donald Trump parecia que o Brasil passava por uma transição, como se a segunda metade da Presidência Jair Bolsonaro fosse uma mudança de governo, uma sensação curiosa e paradoxal, pois mudança mesmo só teremos mais adiante, depois das eleições de 2022, ou não.
Entretanto, a “sensação de transição” foi se acentuando nas últimas semanas.
O problema começou com dificuldades com (a rolagem de) a dívida pública (os deságios nas LFTs), um clássico sinalizador de problemas em transições (o sujeito não quer comprar um título de um governo que vai ser pago, ou não, pelo próximo).
O Tesouro e o BCB têm experiência nesse assunto, sabem trabalhar de forma tópica, mas não são capazes de eliminar as dúvidas ensejadas por uma transição. Só o novo governante é capaz de fazê-lo.
Bem, como o novo governante é o mesmo, não deveria ser tão complexo. Porém, é fato que estamos experimentando a “sensação de transição” no meio do mandato presidencial. O que pode estar produzindo essa distorção?
Não, o mercado financeiro não está enxergando nenhum golpe, ou descontinuidade, mas vislumbra ao menos oito boas razões para presumir que a Presidência Bolsonaro iniciada em 2018 vai terminar diferente do que começou:
- O ocaso do populismo em escala global, iniciado nos EUA e criando um vento de fim de festa na Hungria como em Brasília;
- Uma segunda onda de covid, ou simplesmente o desdobramento da primeira, com amplos impactos em escala global, e impactos relevantes na recuperação que o País vinha experimentando;
- Mudanças nas lideranças das duas Casas legislativas e, consequente, revisão da equação de apoio parlamentar do governo. Talvez mesmo com reforma ministerial para atender ao “Centrão”.
- O ministro da Fazenda parece uma sombra de si mesmo, não é mais o “infiltrado liberal”, mas alguém mais organicamente ligado ao projeto de poder da família Bolsonaro. O ministro não vai cair, mas não é mais o mesmo, ou ao menos, não é mais atacante nas pautas reformistas, mas um “meia de contenção”, focado em evitar retrocessos. O casamento arranjado com os liberais terminou, pois as entregas em matéria de privatização, abertura e reformas mais profundas foram pífias;
- O fim dos auxílios emergenciais, sem que se saiba o que vem no lugar;
- O fim das linhas especiais, e de outras tantas providências dependentes da vigência do estado de calamidade que se encerra oficialmente em 31 de dezembro;
- Novos patamares de déficit primário e de dívida pública, o primeiro ultrapassando R$ 800 bilhões, e a segunda se aproximando de 100% do PIB.
- Recrudescimento da inflação que, em novembro, pelo IGPM, alcançou estonteantes 24,52% no acumulado de 12 meses;
Portanto, é como se a segunda metade tivesse se convertido no segundo governo Bolsonaro, e com desafios econômico aterradores.
Bem, o Brasil possui uma larga experiência em transições turbulentas, normalmente de um governo para o outro, não dentro do mesmo, para as quais a receita canônica é um acordo com o FMI. Uma das funções mais importantes, e menos faladas, desse tipo de acordo é a de terceirizar culpas, bem como responsabilidades sobre medidas que precisam ser tomadas, que se tornam imperativos de um tratado internacional, e que seriam inexecutáveis fora disso.
Será que é o caso?
Bem, é claro que o FMI, nesse caso, funciona apenas como um exercício retórico.
Nosso problema agora é fazer um acordo com o FMI, sem o FMI, um acordo do Brasil com ele mesmo. É fácil em tese, mas dificílimo de fazer, no atual estado de polarização, quando o governo está tão isolado que não consegue fazer acordo nem com ele mesmo.
Há sobre a mesa um desafio gigante e urgente, no terreno fiscal, de conciliar uma versão prática e socialmente aceitável da ideia de responsabilidade fiscal, que compreenda a preservação do teto (uma “última defesa” já bastante combalida), com iniciativas que coíbam um aumento catastrófico do desemprego e a volta da inflação.
O verbo aqui é conciliar, um que o governo não costuma conjugar, e para o qual não estava preparado.
* EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS
Bolívar Lamounier: O primeiro passo é conhecer o Brasil
No atual cenário social, econômico e político, hipótese de retrocesso não pode ser descartada
Se você acredita que o Brasil está progredindo a um ritmo medíocre, está certo; se pensa que estamos na iminência de um retrocesso grave, é provável que esteja certo também.
Só estará errado se achar que dispomos do tipo e do montante de conhecimentos de que vamos precisar para sair desta enrascada em que há anos nos vimos arrastando. Afirmação arrojada, bem o sei. No transcurso das últimas três ou quatro décadas, as pesquisas de opinião e os levantamentos do IBGE têm nos proporcionado uma montanha de informações de altíssimo valor. O problema, creio eu, é que tais informações não respondem em sua inteireza às indagações que se imporão quando nos depararmos com o inexorável desafio de reformar a sério nossa sociedade e nossas instituições políticas.
Ao dizer “inexorável”, peço permissão para passar ao largo do mar de mazelas que debatemos dia sim e outro também: estagnação econômica, desigualdades abissais, nível médio de escolaridade abaixo da crítica e condições sanitárias cujas deficiências conhecíamos de longa data, mas sobre as quais agora, com a pandemia, não cabe mais discussão. Tampouco me parece caber dúvida quanto à persistente perda de consistência das instituições: da alta administração pública, civil e militar, assim como do Legislativo e do Judiciário.
Volto aos conhecimentos de que necessitamos. A montanha de informações de que dispomos se compõe basicamente de dados “atomizados”, quero dizer, colhidos por meio da aplicação de questionários a indivíduos isolados e depois agrupados em categorias (classes A, B, C, D, diferenças entre grandes e pequenos municípios, etc.). Os resultados de tais operações não são grupos reais. Se nosso objetivo é evitar retrocessos e construir um sistema político capaz de impulsionar o desenvolvimento, informações desse tipo não são suficientes. Sociedades e sistemas políticos assentam-se sobre estruturas, vale dizer, sobre tramas de relações interindividuais e intergrupais, por sua vez amalgamadas por valores e crenças que não se dão a conhecer ao primeiro estímulo de um entrevistador.
Quem deu um passo adiante foi o antropólogo Roberto DaMatta, ao dissecar a expressão “você sabe com quem está falando?”. De fato, a proverbial “carteirada” é um retrato da estratificação autoritária que permeia nossa sociedade. Penso, no entanto, que a necessidade de um indivíduo de status superior se dirigir a um de status inferior ordenando-lhe pôr-se “em seu lugar” indica que a estratificação já está sendo questionada. Não precisaria fazê-lo caso se tratasse de uma estratificação estática, imemorial.
Façamos uma comparação com a França. Em 1920, em sua maravilhosa Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust evoca “... a ideia um tanto indiana que os burgueses (de algum tempo atrás) formavam a respeito da sociedade, considerando-a composta de castas fechadas, onde cada qual se via, desde o nascimento, colocado na posição que ocupavam seus pais, e de onde nada os poderia tirar para que penetrassem numa casta superior, a não ser raros acasos de uma carreira excepcional ou de um casamento inesperado” (vol. 1, pág. 21).
Vinte anos mais tarde, em sua igualmente maravilhosa Suíte Francesa, Irène Némirovsky trafega por um labirinto praticamente igual, o da França invadida pelos nazistas. Claro, não tendo tido escravidão, os pobres franceses não eram miseráveis desprovidos de tudo, como os nossos, nem precisavam as camadas mais altas de recorrer à “carteirada”. A estratificação, os limites prescritos nas interações e nos modos que os indivíduos observavam ao se dirigirem uns aos outros, tudo era rígida e minuciosamente regulamentado.
Voltando ao Brasil, o que mais chama a atenção é a inexistência sequer de uma classe média claramente delineada, com valores e padrões próprios de comportamento. Nunca tivemos uma petite bourgeoisie assentada sobre a pequena propriedade urbana ou rural. A maioria das camadas que têm o privilégio do vínculo empregatício vive de empregos instáveis e de má qualidade. Na área educacional do atual governo tivemos três ministros, mas nenhum plano.
Tampouco temos elites no sentido positivo da palavra, ou seja, grupos de pessoas (com ou sem recursos econômicos vultosos) com vocação de exemplaridade, devotados em alguma medida ao bem comum, e capazes de transitar pelos diferentes setores funcionais da sociedade, agregando atitudes e balizando o modo de agir dos três Poderes. Não estranha, pois, que estejamos presenciando um processo de “desinstitucionalização”, com sinais bem perceptíveis de deterioração em toda a extensão do tecido político.
Sem uma classe média robusta, sem elites no sentido que acabo de expor, com um ritmo pífio de crescimento econômico e um sistema de ensino de péssima qualidade, a hipótese do retrocesso não pode ser descartada. Nas condições aventadas, as instituições democráticas tendem a perder respaldo e robustez, permanecendo incapazes de impulsionar a economia, vulneráveis às formas de corrupção mais obscenas e aumentando a possibilidade de crises graves.
*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
José Roberto Mendonça de Barros: Um primeiro balanço da economia global
Uma primeira observação é notar o sucesso relativo de várias regiões em lidar com a pandemia; dentro do espaço econômico, porém, a assimetria de situações e ampliação das desigualdades foram a marca universal
A covid-19 dominou totalmente 2020: pela surpresa com que apareceu e velocidade com que se espalhou pelo mundo, por sua durabilidade e pelos catastróficos efeitos sobre as pessoas, as sociedades e o desempenho econômico. O único alívio é a certeza de que teremos vacinas disponíveis já no primeiro trimestre do próximo ano.
Vai levar muito tempo para que análises mais consistentes possam ser feitas quanto aos impactos do vírus. Entretanto, é útil fazermos um primeiro balanço. Uma primeira observação é notar o sucesso relativo de várias regiões em lidar com a pandemia, pois o ano foi mostrando resultados bastante diversos. Dentro do espaço econômico, porém, a assimetria de situações e a ampliação das desigualdades entre pessoas, regiões e empresas foram a marca universal.
Não há nenhuma dúvida de que a Ásia sai ganhadora do enorme desafio de voltar à normalidade. Isso porque a maior parte dos países do continente – a grande exceção é a Índia – acabou por lidar bastante bem com a pandemia. A estratégia bem-sucedida foi similar: quarentena e testagem da população em larga escala. Após um eventual teste positivo, as autoridades sanitárias isolavam todos os contatos do paciente, o que terminou por conter rapidamente a contaminação. Como o vírus apareceu no primeiro trimestre de 2020, já a partir de abril a maior parte dos asiáticos foi voltando ao trabalho. Com isso, alguns países, como a China, apresentarão crescimento do PIB já neste ano. E todos vão crescer com robustez em 2021. Além disso, no dia 15 de outubro, 15 dos países da região assinaram um acordo comercial denominado Parceria Econômica Regional Abrangente, que certamente acentuará a já avançada integração das cadeias produtivas asiáticas, reforçando o crescimento.
Eis aí mais um custo da gestão Trump, que em uma de suas primeiras medidas retirou os Estados Unidos de outro acordo longamente negociado no governo Obama, o Acordo Transpacífico. Essa negociação buscava reforçar a posição dos parceiros americanos na Ásia de sorte a conter a expansão chinesa. A decisão de Trump criou a oportunidade para a China, que dela alegremente se aproveitou. O crescimento de boa parte dos países da Ásia entre 2020 e 2021 será significativo, especialmente na China, cujo PIB expandirá 10%, segundo as últimas projeções do FMI.
Os Estados Unidos, por outro lado, ainda estão sofrendo muito com a disseminação do vírus. Na média móvel de sete dias terminada no dia 23, ocorreram quase 170 mil novos casos e mais de 1.500 mortes por dia, um número elevadíssimo. Isso é o resultado do negacionismo do governo americano – aliás, similar ao do brasileiro. A economia deve se contrair 4,3%, o que não será compensado pela projeção de um crescimento de 3,1% no próximo ano. No biênio, a economia americana, embora apresente dinamismo na área tecnológica e no mercado imobiliário, ainda andará de lado porque largas frações dos serviços e o mercado de trabalho continuarão sofrendo com a imposição do distanciamento social. O resultado da eleição mostrou um país muito dividido, que torna muito mais difícil implantar novas políticas públicas.
Com essas projeções, a distância entre a economia da China e a americana encolherá incríveis 10% em dois anos!
O terceiro bloco econômico relevante é o europeu. O impacto da segunda onda da covid no Velho Continente está sendo muito grande. O FMI projeta queda no PIB em torno de 10% na França e na Itália e de 13% na Espanha. O ponto positivo é que, em meio à tormenta, França e Alemanha se puseram de acordo quanto à política fiscal, decidindo pela emissão de € 750 bilhões em bônus para apoiar a retomada. Além disso, o grupo decidiu também estimular investimentos de uma agenda de futuro: descarbonização e novas energias, baterias e eletrificação da frota, inteligência artificial e outras.
Finalmente, e lamentavelmente, as perdas na América Latina serão enormes, especialmente na Colômbia, no México, no Peru e na Argentina, com retração próxima ou superior a 10% no PIB. Mesmo no Chile, país exemplo da região, a economia deve recuar 6%. Em todos os países, exceto o Uruguai, vemos crises políticas significativas. O Brasil, com nossa projeção de queda de 4%, até que não se sai tão mal no meio desse banho de sangue.
* Economista e sócio da MB Associados.
Carlos Melo: Balanço positivo, até aqui
Resultado estaria definido, não fosse política e não fosse São Paulo
A apreensão sobre as eleições de 2020 era legítima. Desde 2014, o clima foi de degradação política, níveis crescentes de conflito, ataques pessoais, e muitas, muitas fake news. A expectativa quanto à extrema-direita, disposta a desqualificar e a maldizer a democracia liberal, também estava presente – a começar pela postura desde sempre beligerante do presidente da República.
Contudo, as eleições terminam com balanço positivo, pelo menos até aqui – infelizmente, a prudência ainda exige o reparo de precaução. Os conflitos ocorreram sob limites impostos pela civilização. À exceção do caso do Rio de Janeiro, onde Marcelo Crivella, no desespero da última hora, resolveu reviver 2018, as divergências foram discutidas em níveis aceitáveis; rusgas políticas e até familiares – caso do Recife – emergiram; denúncias foram feitas baseadas em pelo menos algum indício. De tudo um pouco, mas nada que o tempo e a aceitação dos resultados não superem.
A extrema-direita teve crescimento apenas relativo nas Câmaras, contudo não logrou sucesso nos Executivos. Os candidatos intensamente apoiados pelo presidente Bolsonaro em seu horário eleitoral fake foram solenemente ignorados pelos eleitores. Políticos experientes foram resgatados e a ideia de que a solução dos problemas deve se dar pela via da negociação foi fortalecida.
Também o fim das coligações proporcionais foi importante. O número de Câmaras Municipais com até cinco partidos quase triplicou, já a quantidade de parlamentos municipais com mais de cinco legendas foi reduzida a menos da metade. No geral, os prefeitos terão melhores condições de negociação com as forças políticas, a representação ficará mais nítida; em tese, a sociedade observará sistema mais coeso. Agora, cabe não permitir que, no Congresso Nacional, interesses contrariados anulem avanços nesse campo.
Na maior cidade do País, São Paulo, a eleição transcorreu calmamente, em que pese um ou outro excesso das torcidas. Como informou a jornalista Vera Magalhães, Bruno Covas sabe que Guilherme Boulos não é radical e extremista; Guilherme Boulos reconhece que Covas não é fascista ou bolsonarista.
Na véspera, pesquisa Ibope/Estadão/TV Globo aponta estagnação: o prefeito consolidado nos 48% do total de votos, e o psolista com significativos 36%; indecisos, brancos e nulos ainda podem mudar o quadro. Mesmo assim, o resultado estaria definido, não fosse política e não fosse São Paulo. No primeiro turno, Boulos embolava em segundo lugar; na boca de urna, disparou.
As urnas são soberanas e São Paulo é expressão da diversidade e autonomia da política. Qualquer que seja o resultado, ele será democraticamente válido e reconhecido. Deveria ser óbvio, mas isso tudo é muito positivo.
*Carlos Melo, cientista político e professor do Insper
Fernando Gabeira: Um momento decisivo no Rio
Um potencial de desenvolvimento limpo e grandes problemas sociais pela frente são um enorme desafio para o novo prefeito
As eleições de hoje são importantes em todas as 57 cidades em que há segundo turno. Mas, no Rio de Janeiro, parecem ser uma questão de vida ou morte porque a cidade vive um longo processo de decadência prestes a ultrapassar um ponto de não retorno.
Personalidades cariocas enfatizam que a cidade, bonita por natureza, ainda pode encontrar sua vocação no desenvolvimento sustentável, produção do conhecimento, turismo e cultura.
Segundo algumas pesquisas, mais da metade do território do Rio é controlado pelas milícias. Um entre quatro moradores do Rio vive em favelas, sem endereço legal, título de propriedade, serviços públicos, sobretudo saneamento básico.
Uma velha canção diz que quando derem vez ao morro, toda a cidade vai cantar. Um potencial de desenvolvimento limpo e grandes problemas sociais pela frente são um grande desafio para o novo prefeito.
As pesquisas indicam que Eduardo Paes tem 70 dos votos contra apenas 30 do atual prefeito Marcelo Crivella.
Tudo indica que as necessidades de uma metrópole cosmopolita chocaram-se com a estreita visão religiosa de Crivella que subestimou até o carnaval, ponto central do calendário turístico, ao lado de outros como o Rock in Rio.
Apesar da crise profunda, ou talvez por causa dela, a sociedade se move. Durante a pandemia, morros como o do Alemão criaram comitês de crise para angariar fundos e ajudar a população, algo semelhante ao que aconteceu em Paraisópolis, São Paulo, embora num nível menor.
Há mais de um ano, um grande grupo de profissionais e urbanistas foi constituído na internet: o Juntos somos +Rio.
No momento mais intenso da crise, os debates sobre o futuro da cidade abriram para ações, como por exemplo alugar hotéis para que funcionários da saúde descansassem sem colocar em risco suas famílias.
Eduardo Paes foi prefeito do Rio duas vezes. Parece sensível a todos os problemas. É um político, sobrevivente da era Cabral, e terá de provar que aprendeu com os erros e não apenas se adaptou ao novo momento para vencer as eleições.
As lagoas da Barra da Tijuca, bairro onde Paes vive, jamais foram recuperadas num projeto urbano que poderia reviver na área o movimento aquático de uma Veneza.
Da mesma forma, Paes contraiu covid-19 um pouco antes da campanha e teve sintomas leves. É importante que se organize para enfrentar a pandemia e preparar o caminho para uma vacinação em massa, o que pode viabilizar o carnaval remarcado para o meio do ano que vem.
Até o momento não se dedicou muito ao tema, sequer visitou a Fundação Oswaldo Cruz, onde a vacina será fabricada.
O final de campanha no Rio foi marcado pelo baixo nível. Crivella acusa Paes de ter o apoio o PSOL, que iria para o setor de educação promover a pedofilia. O padrinho de Crivella, Bolsonaro, fortalece essa acusação, revivendo a famosa mamadeira de piroca que foi uma das estrela de sua campanha de fake news.
Se conseguir realmente demonstrar maturidade, Paes pode mobilizar o potencial da sociedade assustada com o processo de decadência. Se quiser, por exemplo, além da qualidade de vida num território contido entre o mar e Mata Atlântica, poderá implementar os passos de uma cidade inteligente.
O conhecimento para esse passo revolucionário na administração já é desenvolvido na Universidade Federal do Rio e estaria à sua disposição.
Portanto, apesar de discretas, sob o impacto da pandemias, as eleições no Rio podem marcar o futuro, inclusive porque este ano está prevista uma revisão do Plano Diretor da cidade - decisões que envolvem praticamente tudo no cotidiano dos cariocas.
Vera Magalhães: Segundona braba
Pós-eleições, decisões amargas sobre pandemia e economia aguardam governos
Ninguém estava muito aí para as eleições municipais pelo menos até outubro. Pouco se ouvia falar em propostas, mal se sabia quem eram os candidatos. Mas, ao fim e ao cabo, elas foram um breve momento de vigor cívico e esperança num ano marcado por mortes, renúncias e retrocessos.
Ao fim do dia deste domingo, se o supercomputador do TSE ajudar, já serão conhecidos os prefeitos em todo o Brasil, menos em Macapá, que recebeu uma dose extra e absurda de infortúnio no 2020 distópico.
O balanço dos ganhadores e perdedores finais ainda será feito, mas uma conclusão inequívoca é de que a democracia sai robustecida. Dito isso, há tarefas urgentes nesta segundona braba que bate à porta.
Jair Bolsonaro viveu a ilusão de que seria um sucesso eleitoral à base de auxílio emergencial e lives com uso de recursos públicos. Foi um retumbante fracasso. O presidente não entendeu algo que poderia ser compreendido com uma metáfora simples: o auxílio emergencial era aquela gasolina que você compra num saquinho e joga no tanque de combustível do carro para ele chegar até o posto. Mas o capitão usou a reserva, continuou rodando e a popularidade acabou antes de a eleição ou o posto chegarem.
Iludido com a possibilidade de eleger prefeitos aliados sem ter sequer um partido, o presidente mandou parar todas as decisões amargas. Paulo Guedes ficou de stand-by nas últimas semanas, vivendo de outra crença: a de que, passado o pleito, vai se abrir finalmente o caminho para o imposto sobre transações eletrônicas, que parece ser a única ideia na cabeça do ministro para financiar uma versão perene da transferência de renda que seja maior e mais potente eleitoralmente que o Bolsa Família.
Acontece que os fundamentos da economia, que Guedes disse que se recuperariam em “V”, estão em frangalhos. A inflação é um dragão que estava adormecido e acordou com fome, os empregos sumiram e a dívida pública explode, como o próprio Guedes já alertou. Bolsonaro tem asco dessa agenda, gostaria de passar batido por ela, e não tem nenhuma vocação para entender do que se trata ou decidir que caminho tomar.
O agravante é que a tempestade perfeita da economia vem conjugada com um previsível recrudescimento da pandemia, depois de um “libera geral” prematuro, quando não se tem ainda vacina aprovada para o novo coronavírus.
A segunda-feira será pródiga em anúncios de governadores e prefeitos de novas medidas restritivas, que foram irresponsavelmente seguradas por eles até que as urnas fossem fechadas.
Qual será a reação de empresários caso haja novo fechamento do comércio em diferentes lugares do Brasil às vésperas do Natal, chance de recuperação de vendas num ano praticamente perdido?
Para evitar uma onda de protestos que poderia ganhar contornos similares a 2013 é necessário que cessem as escaramuças políticas que nos levaram a uma das mais deploráveis respostas globais à pandemia e os diferentes níveis de governo articulem suas ações.
Plano de contingência para evitar uma nova onda, plano de logística para usar os recursos orçamentários para a calamidade que o governo Bolsonaro ainda não liberou, blitz antiburocracia para destinar os testes estocados que estão prestes a vencer, divulgação urgente de um Plano Nacional de Imunização que preveja insumos, gastos e procedimentos necessários para quando uma ou mais vacina vierem e adoção de medidas que contenham o avanço do vírus.
Esses são alguns passos fundamentais para que dezembro transcorra dentro de um mínimo de normalidade e com menor dose de sofrimento de um país que teve um breve respiro com a lembrança da normalidade trazida pelas eleições, mas que ainda não completou suas provações.
João Gabriel de Lima: O telefonema de Kennedy e os tuítes do Carrefour
O crime recente envolvendo racismo no Brasil poderá influenciar pleitos municipais?
Uma história envolvendo racismo mudou uma eleição e, no longo prazo, toda a política americana. No dia 19 de outubro de 1960, três semanas antes do pleito presidencial que opôs John Kennedy a Richard Nixon, um grupo de ativistas negros invadiu uma loja de departamentos no sul dos Estados Unidos. Era um protesto contra a segregação racial no restaurante da loja.
Todos foram presos e soltos em seguida. Menos um: o reverendo Martin Luther King Jr., maior ativista de direitos civis da história americana. Dias mais tarde, ele seria transferido para uma prisão de segurança máxima. Coretta, mulher de Luther King, entrou em desespero. Temia que o marido fosse vítima de violência dentro da cadeia. Ela ligou para Harris Wofford, conselheiro da campanha de Kennedy. Wofford – que narra o fato num episódio da série Race for The White House, produzida pela CNN – disse que ia ver o que poderia fazer.
Em 1960, o partido mais próximo do movimento dos direitos civis era o Republicano. Os democratas eram identificados com movimentos racistas do sul, entre eles a Ku Klux Klan. Nixon conhecia Luther King pessoalmente, e ligou para a Casa Branca pedindo que intercedessem pelo ativista. Não foi atendido. Nixon ficou em silêncio – não quis fazer uma declaração pública sobre um assunto tão delicado. Bob Kennedy, irmão de John e coordenador de sua campanha, defendia que os democratas também deveriam guardar silêncio para não afastar os eleitores do sul. Wofford sabia disso. Fez com que a informação sobre Coretta chegasse a John por meio de um assessor, sem que Bob soubesse.
Num misto de impulso e cálculo político, John ligou para Coretta e apresentou sua solidariedade. A imprensa noticiou o fato, e Bob ficou irado, achando que o gesto custaria a eleição do irmão. Pouco depois, percebeu que havia ali uma oportunidade. Passou ele próprio a defender Luther King. O ativista foi solto, e o voto dos negros americanos acabou sendo decisivo para que Kennedy ganhasse uma eleição apertada contra Nixon. Os democratas, que tinham a pecha de racistas, viram seu partido se tornar, aos poucos, o campeão dos direitos civis.
Mudanças de trajetória em partidos políticos são comuns nas democracias, já que eles existem para representar tendências e ideias que surgem na sociedade. No minipodcast da semana, o cientista político português António Costa Pinto fala sobre o assunto. Conhecedor da vida americana – ele lecionou em Stanford e Berkeley – Costa Pinto aponta os novos desafios dos democratas. No século 21, o partido deu outra virada, tornando-se a sigla da nova economia e dos jovens urbanos. No caminho, perdeu os operários e a classe média dos rincões. Precisa recuperá-los na guerra contra o derrotado (mas ainda bem vivo) Donald Trump.
Em tempos de eleições, o telefonema de Kennedy deixa uma pergunta no ar. O episódio recente envolvendo racismo no Brasil – o crime do Carrefour – poderá influenciar os pleitos municipais? A resposta, ao que tudo indica, é negativa. O País não se dividiu. A imensa maioria dos candidatos, da esquerda à direita, de Sebastião Melo a Manuela D’Ávila, de Guilherme Boulos a Bruno Covas, tuitou contra o crime bárbaro e nomeou sua motivação: racismo. Sessenta anos se passaram entre o telefonema de Kennedy e os tuítes do Carrefour. O racismo não morreu, mas algo mudou na política. Uma vitória do movimento dos direitos civis.
Cristovam Buarque: Desculpas pelo atraso
Não teremos futuro sem escola com máxima e igual qualidade para todos
No dia seguinte ao pleito de 15 de novembro, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, pediu desculpas pelo atraso de algumas horas na divulgação dos resultados eleitorais. Surpreende que ninguém antes tenha pedido desculpas pelo atraso educacional de cem anos. Nem temos a quem responsabilizar: não há TSE da educação nacional.
Presidentes e ministros cuidam de universidades e escolas técnicas, enquanto a educação de base é responsabilidade de quase 6 mil prefeitos e alguns governadores. A população com renda não culpa o governo, porque utiliza escolas particulares; os pobres acostumaram-se a ver a escola como restaurante para os filhos receberem merenda. O eleitor não dá à educação a mesma atenção que ao resultado rápido da eleição.
Todos os presidentes e políticos, desde 1889, especialmente depois de 1985, devem pedir desculpas pelo atraso e pela desigualdade educacional no Brasil.
Fui ministro por 12 meses e devo pedir desculpas por não ter construído força política para me manter no cargo pelo tempo necessário para implementar as ferramentas que defendo, e iniciei, como a Escola Ideal, embrião de um sistema nacional de educação de base. Como governador, implantei a Bolsa Escola e diversos programas na educação de base no Distrito Federal. Como senador, criei duas dezenas de leis, como a do Piso Salarial Nacional dos Professores, a obrigatoriedade de vaga desde os 4 até os 17 anos de idade. Mas nada disso mudou a realidade. Como candidato a presidente só consegui 2,5% dos votos.
Reitero as desculpas por não ter convencido a opinião pública de que educação é o vetor do progresso e a estratégia para isso passa pela nacionalização do sistema municipal. A educação não será de máxima qualidade, nem será igual nas 200 mil escolas do Brasil, enquanto a responsabilidade pela educação das crianças brasileiras não for do governo federal.
Para isso cinco passos são necessários: 1) transformação do MEC em ministério com a responsabilidade exclusiva de cuidar da educação de base; 2) criação de uma carreira nacional do magistério, todos os professores com muito boa formação, avaliados permanentemente, com dedicação exclusiva e, para isso, muito bem remunerados; 3) prédios escolares com a máxima qualidade e instalações culturais e esportivas; 4) escolas com os mais modernos equipamentos da pedagogia, que permitam saltar das tradicionais aulas teatrais para as aulas cinematográficas com recursos da teleinformática, adotando métodos que desenvolvam a criatividade; 5) todas as escolas em horário integral.
Raríssimas cidades são capazes de financiar a execução dessa estratégia. Ela requer processo de nacionalização da educação de base ao longo de alguns anos, com adesão voluntária de cidades que queiram substituir seus frágeis sistemas educacionais por um robusto sistema nacional.
O custo para ter essa “escola ideal” é de R$ 15 mil/ano por aluno. Valor que permitiria financiar todos os gastos e investimentos e pagar salário de R$ 15 mil ao professor por mês, em salas com 30 alunos. Esse salário faria do magistério uma profissão atraente, permitindo que o selecionado aceitasse ir para a cidade que lhe fosse determinada, com dedicação exclusiva à sua escola e submetido a avaliações periódicas. Num ritmo de 300 cidades por ano, o novo sistema chegaria a todo Brasil em 20 anos. Se o PIB crescesse a um ritmo médio de 2% ao ano, o sistema nacional custaria cerca de 7% do PIB, para atender 50 milhões de alunos.
Considerando que o número de alunos deverá ser menor e que as novas técnicas permitirão diminuir o custo por aluno, a dificuldade dessa estratégia é política: convencer os ricos de que a escola com qualidade apenas para seus filhos amarra o progresso do País e limita o bem-estar e o futuro de todos; e os pobres, de que seus filhos têm direito a uma escola que ofereça muito mais do que merenda e seja tão boa quanto as melhores do país. Convencer também os políticos de que terão de enfrentar eleitores mais conscientes; e mostrar aos sindicatos que os interesses dos professores devem ser associados aos interesses das crianças, da educação e do futuro do país.
Não será fácil atrair a população para a ideia de que as escolas brasileiras poderão ser tão boas quanto as de países com educação de qualidade. E que crianças pobres devem ter escolas com a mesma qualidade das dos ricos.
No final do século 19 tivemos dificuldade para convencer que era possível o Brasil ser um país industrial e para isso era preciso abolir a escravidão. Agora o desafio é convencer que sem escola com a máxima qualidade para todos não completaremos a Abolição, nem avançaremos para o progresso com eficiência econômica, justiça social e sustentabilidade ecológica no mundo global da civilização que caracteriza o século 21. Antes não tínhamos futuro com a escravidão, agora não teremos futuro sem escola com máxima e igual qualidade para todos. E que nenhum cérebro seja deixado para trás. Enquanto isso não for feito, precisamos pedir desculpas pelo atraso a que condenamos o Brasil.
*Professor Emérito da Universidade de Brasília