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Felipe Frazão: Disputa pelo comando da Câmara vira novo teste para medir força de Bolsonaro
Centro, que vai lançar candidato contra Bolsonaro em 2022, quer começar a derrotar presidente a partir da disputa pela presidência da Casa
BRASÍLIA - A possibilidade de o Supremo Tribunal Federal permitir a reeleição para o comando do Congresso, mudando a interpretação de mandamento expresso na Constituição, abre caminho para que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), assuma a candidatura especulada nos bastidores e consolide o apoio de partidos de esquerda em torno de seu nome, o que pode ser decisivo. O adversário mais forte é Arthur Lira (Progressistas-AL), um dos líderes do Centrão e aliado do Planalto.
Passadas as eleições municipais, em que praticamente todos os candidatos de Bolsonaro saíram derrotados, a disputa pelo comando da Câmara será mais um teste de fogo para o presidente da República e está sendo vista como a próxima “prévia” à sucessão de 2022. O escolhido de Bolsonaro vai concorrer contra um grupo de oposição que articula abertamente uma candidatura de centro ao Planalto daqui a dois anos.
Ter um aliado no comando da Câmara é imprescindível para Bolsonaro. O titular desse cargo é quem decide o que será votado em plenário, pode barrar todos os projetos de interesse do governo e inicia processos de impeachment contra o presidente da República.
Iniciada na sexta-feira, 4, a análise da possibilidade de reeleição na Câmara tinha até domingo quatro votos favoráveis e quatro contrários no STF; para o Senado o placar está cinco a três pró Davi Alcolumbre (DEM), que não tem adversários de peso na disputa. Maia precisa de mais dois votos no STF para derrubar a vedação legal à recondução ao cargo.
Enquanto Maia está proibido de concorrer, são cinco os nomes do Centro que disputam a vaga de candidato do seu grupo. Baleia Rossi (SP), líder do MDB e presidente do partido; Marcos Pereira (SP), presidente do Republicanos e nome mais forte na bancada evangélica; Luciano Bivar (PE), presidente do PSL, antigo partido de Bolsonaro; e Elmar Nascimento (BA), líder do DEM. Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), líder da maioria e fiel aliado do presidente da Câmara, também é candidato, embora seu partido tenha fechado com Lira. Parte deles pressiona para que um seja escolhido na semana que vem, mas Maia adia, seguindo no comando processo sucessório. Motivo: a oposição só aceita se unir a ele.
Esquerda
Os idealizadores do bloco buscam o apoio de PV, Rede, PSB, PDT, PCdoB, PT e PSOL, o que daria liderança folgada para manter o comando da Câmara. São 137 votos na mesa. As negociações com essas siglas de esquerda estão avançadas, mas há desconforto em fechar uma aliança no primeiro turno.
A esperança de Maia é a de ter, com a esquerda, cerca de 330 votos, suficientes para vencer a eleição em primeiro turno, sem correr riscos de levar a disputa a um segundo escrutínio. A eleição é encerrada por maioria absoluta, quanto um candidato atinge o número mágico de 257 votos. “Os líderes da oposição se acostumaram no trato com ele, confiam de certo modo. Então, não acho difícil ele se apegar nisso e na decisão do Supremo para seguir”, afirma Sâmia Bomfim, líder do PSOL. O partido, que tem dez deputados e é o mais radical na oposição a Bolsonaro, avalia manter a tradição histórica de lançar candidato próprio, desta vez, uma das cinco mulheres da bancada. Mas o objetivo, claro, é marcar posição política.
Outros partidos da esquerda devem intensificar reuniões a partir da próxima semana. “Vamos aguardar se, de fato, Rodrigo vai se declarar candidato”, diz a líder do PCdoB, Perpétua Almeida (AC).
No momento, Maia diz que não será candidato, ainda que venha a ter aval do STF, mas não consegue convencer seus pares. Ele vem sendo avisado que os partidos querem um novo nome. Reservadamente, deputados envolvidos nas negociações apontam PSL e Republicanos, que somam 73 votos, com mais possibilidade de defecção caso ele insista em disputar.
Novo
Contrário à reeleição, o Partido Novo avalia que, apesar da discordância de mérito, a realidade política impõe que as bancadas de oposição a Bolsonaro conversem com o grupo liderado por Maia. “Lira é impossível”, afirma sem titubear o líder do Novo, deputado Paulo Ganime (RJ).
O candidato foi denunciado por um esquema de rachadinha, o que ele nega. “O grupo do Rodrigo Maia é melhor, mas é longe do que o Novo gostaria.” O presidente do Cidadania, Roberto Freire, adverte: “Pode ser um candidato do agrado ou não (da esquerda). O importante é derrotar Bolsonaro.”
Disputas têm candidatos avulsos e reviravoltas
Eleições do Legislativo costumam ter reviravoltas em cima da hora e com articulações em plenário. Há candidaturas registradas no dia da votação e renúncias. A regra prevê a apresentação dos candidatos no dia da eleição. O presidente Jair Bolsonaro conhece os métodos. Antes do Palácio do Planalto, ele tentou duas vezes comandar a Câmara. Em 2011, recebeu nove votos, e em 2017, quatro, de 513 possíveis. Era uma forma de marcar posição e ganhar holofotes. É o que deve ocorrer com a maioria dos contendores avulsos em fevereiro.
O eleito se torna o terceiro na linha sucessória do País. A bancada da bala, por exemplo, promete lançar o deputado Capitão Augusto (PL-SP), na disputa. A tentativa de Bolsonaro de eleger o deputado Arthur Lira (Progressistas-AL) é arriscada.
Só governos que saem fortalecidos das urnas costumam emplacar com facilidade seus favoritos, um mês depois da posse no Planalto. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) emplacou em 1995 o deputado Luis Eduardo Magalhães (PFL) com 385 votos, em primeiro turno. Em 2003, no primeiro ano do governo Luiz Inácio Lula da Silva, o PT lançou o deputado João Paulo Cunha como candidato único. Foram 434 votos. Em 2011, o candidato de Dilma Rousseff, o petista Marco Maia, conseguiu 375 votos.
Enquanto isso, em 2019, Bolsonaro não conseguiu sequer emplacar um candidato. Arthur Lira, sua aposta neste ano, conta com o apoio do PL, PP, PSD, Solidariedade e Avante, que somam 135 votos dos 257 necessários caso todos os 513 deputados participem da votação.
Confira os cotados para a presidência da Câmara
- Arthur Lira (PP-AL) - ícone do Centrão apadrinhado pelo Palácio do Planalto.
- Rodrigo Maia (DEM-RJ) - fiador das reformas, preside a Casa com apoio da oposição desde 2016.
- Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) - aliado de Maia. Racha o Progressistas com Lira.
- Baleia Rossi (MDB-SP) - representa a volta do MDB ao comando do Parlamento.
- Marcos Pereira (Republicanos-SP) - candidato com mais força na bancada evangélica.
- Luciano Bivar (PSL-PE) - presidente do segundo maior partido, o PSL.
- Elmar Nascimento (DEM-BA) - líder dos Democratas na Câmara.
Marcelo Godoy: Vacina e legalidade: as as razões que levaram Santos Cruz à oposição a Bolsonaro
Quando decidiu escrever um artigo para o Estadão, o general decidiu que era chegada a hora de parar de poupar o ex-chefe; falta de ação contra pandemia o fez aumentar as críticas
Caro leitor,
O general Santos Cruz estava cuidando da roça quando tocou o telefone em sua casa. Queriam avisá-lo do conteúdo do inquérito dos atos antidemocráticos da Polícia Federal divulgado pelo Estadão. Pouco depois, começaram as chamadas dos jornalistas. Para a Coluna do Estadão, o general disse que nada daquilo lhe causava surpresa: “É lastimável o fluxo de dinheiro para alguns apoiadores, As consequências tem de ser dentro da lei.” O general torce. Contar a razão disso ajuda a pôr luz em alguns dos principais eventos do governo de Jair Bolsonaro.
Os privilégios aos blogueiros inventados pelo bolsonarismo para fazer propaganda do governo e gerar lucro para os envolvidos nessa operação não surpreenderam o general porque Santos Cruz conheceu de perto a ascensão de pessoas como Alan dos Santos, um dos parvenus investigados pela PF. Afinal, quem bancava as viagens a Brasília, as instalações confortáveis e as estadias no exterior dessa turma? É o que a PF e o general gostariam de saber.
Uma coisa, no entanto, o general sabe: quem abriu o gabinete presidencial para essa tropa de ‘nouveau riche’? A resposta é simples: o próprio presidente, aquele que afirmou na reunião ministerial de 22 de abril que seus adversários queriam a “nossa hemorroida, a nossa liberdade”. Sem explicar até agora o que uma tinha a ver com a outra... Generais como Santos Cruz recebem seus salários de fonte conhecida e descontam os impostos na fonte. A PF indaga como essas coisas funcionam com os blogueiros bolsonaristas.
Santos Cruz fora Secretário Nacional da Segurança Pública no governo de Michel Temer e um dos oficiais que participaram da articulação que levou Jair Bolsonaro ao poder. É criticado, por isso, pela oposição, que não lhe perdoa a adesão ao bolsonarismo. Diz que, ao contrário da maioria dos eleitores que se decepcionou com o governo, ele conhecia Bolsonaro e sabia o que esperar do colega. E se pergunta quais as ligações de Santos Cruz com o chamado “partido militar”, o grupo que resolveu trocar a política do Exército pela opção de tentar fazer política no Exército.
Apesar das desconfianças de alguns, o ex-ministro-chefe da secretaria de Governo é cortejado por partidos políticos e chegou a ser convidado pelo governador João Doria para entrar no PSDB. O general se diz um homem de direita. E, ao lado de colegas, apresentava um argumento para justificar sua passagem pela política: o combate à corrupção. Mas pensava que um governo devia dialogar e ouvir a todos, independentemente de partidos.
Sabia da limitação dos militares para assumir funções civis para as quais não foram treinados. Aos amigos, dizia: "Cabos sabem fazer muito bem as coisas militares que se esperam dos cabos, assim como os sargentos, os tenentes e os generais. É uma ilusão pensar que podemos cuidar de tudo." No governo, teve a Secretaria de Comunicação – e suas verbas publicitárias – subordinada à sua pasta. Estudou como a publicidade oficial funcionava, quais contratos mantinha e com quem. E logo barrou um de R$ 39 milhões para divulgar a viagem de Bolsonaro a Davos. Justificou-se com o fato de que a imprensa já ia cobrir a presença do presidente no evento.
Também não aceitou direcionar a verba de publicidade a aliados e amigos, defendendo critérios técnicos como audiência, tiragem, abrangência e público alvo. Não demorou a entrar na mira da turma de Carlos Bolsonaro, o filho do presidente que é citado 43 vezes no inquérito que apura a existência de uma organização criminosa por trás dos atos em Brasília que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Santos Cruz não entendia por que um contrato de R$ 40 milhões era assinado com uma agência se a execução dele não passava de R$ 12 milhões.
Também não entendia por que o governo pretendia gastar tanto em publicidade com a reforma da Previdência, se era um tema já explorado pelo governo de Michel Temer e se havia apoio à medida ainda maior na atual Legislatura. Dizia então que a sociedade toda já sabia do que se tratava. E, ainda que pensasse que, ser filho de presidente, não é uma função pública, nada pôde contra as intrigas dos parvenus em busca de uma janelinha no Planalto.
Lembrava que a promessa do governo Bolsonaro era “fazer diferente” de seus antecessores. E pensava na Revolução dos Bichos, de quando Bola de Neve escreveu os princípios do animalismo – os sete mandamentos – na parede da granja. Naquele dia, todos partiram para colher o feno e quando voltaram à noite perceberam que o leite das vacas havia sumido.
Acabou demitido antes de apresentar seu plano de comunicação governamental no qual pretendia defender que a “comunicação do governo não pode ser mercadológica, não pode ser ideológica e deve transmitir informações, em vez de mera propaganda de governo ou de pessoas”. Por fim, o general pensava que a política do Planalto não podia concorrer com outros veículos de comunicação.
Após deixar o governo, Santos Cruz permaneceu quase um ano comedido ao falar do governo e poupava o presidente. Foi assim mesmo depois da demissão de Sérgio Moro e das afirmações do ministro da Justiça de que Bolsonaro queria usar a PF para favorecer o filho denunciado por desviar dinheiro público. O que o fez mudar de postura e passar a criticar abertamente o presidente foi a decisão de Bolsonaro comparecer a uma manifestação em frente ao QG do Exército, que pedia o fechamento do Congresso e do STF.
Decidiu falar no momento em que viu colegas da reserva próximos de Bolsonaro defenderem uma extravagância: o papel de Poder Moderador das Forças Armadas diante de conflitos institucionais. Era a tese do golpe de Estado que pretendia fingir legalidade onde só havia a intenção de se praticar um crime contra a Constituição. Ela levou o general a escrever um artigo publicado no Estadão. Seu primeiro passo na mudança de tom em relação ao governo.
Santos Cruz pressentiu a tentativa de se envolver o Exército em uma aventura, assim como o bridaieor Sérgio Xavier Ferolla, ex-presidente do Superior Tribunal Militar. Sabia que a grande maioria dos colegas não se envolveria na discussão, mas acreditava ser necessário enfrentar os extremistas que dominavam a cena. E se justificou para os amigos: “Há três pragas hoje no Brasil: a corrupção, o coronavírus e o fanatismo”. No dia 12 de novembro, foi mais longe ao escrever no Twitter: “Cansado do Show. O Brasil não é um País de maricas. É tolerante demais com a desigualdade social, corrupção, privilégios. Votou contra extremismos e corrupção. Votou por equilíbrio e união. Precisa de seriedade e não de show, espetáculo, embuste, fanfarronice e desrespeito."
CANSADO DE SHOW. O Brasil nâo é um país de maricas. É tolerante demais com a desigualdade social, corrupção, privilégios. Votou contra extremismos e corrupção. Votou por equilíbrio e união. Precisa de seriedade e não de show, espetáculo, embuste, fanfarronice e desrespeito. — General Santos Cruz (@GenSantosCruz) November 12, 2020
Um dia antes, havia desabafado contra Bolsonaro, que comemorara a morte de um brasileiro no que pensava ser o fracasso da coronavac, a vacina desenvolvida no Instituto Butantã em parceria com a Sinovac chinesa. “Ganhou de quem? Vacina, qualquer que seja, é saúde pública. É para a população. Não é assunto particular. O trato tem ser técnico e dentro da lei. Fora disso é irresponsabilidade, falta de noção mínima das obrigações, desrespeito pela saúde dos cidadãos. Vergonha! Sem classificação!"
Recentemente, para um político que o procurou pedindo que assinasse uma ficha de filiação partidária, o general explicou a recusa, afirmando que, assim, acredita que sua voz será ouvida por mais gente e não só pelos filiados daquele partido. Embora comemore a presença de militares na política como mais uma opção para o eleitor, Santos Cruz acredita que a uma ilusão de achar que eles são a solução para a gestão pública é muita vezes propagada pela imprensa. Militares são competentes para as coisas militares; as demais dependeriam da capacidade de cada um. Esse seria o caso do general Pazuello.
Não é de um intendente, como Pazuello, que o País precisaria à frente do Ministério da Saúde, mas de alguém que entenda de políticas públicas. O intendente especialista em logística não consegue comprar seringas e agulhas para vacinar a população. E se submete a um chefe que não o deixa comprar vacinas. Ou como afirmou Gonzalo Vecina, fundador ex-presidente da Anvisa: "Propor vacinação só em março e alcançar no máximo um terço da população em 2021 é um crime". Militar da ativa, Pazuello ajudaria a vincular o Exército ao governo que comete esse crime. Mas antes de responsabilizar o general, Santos Cruz sabe que é preciso olhar para o Planalto. É lá que está o presidente da República, que devia sentar na cabeceira da mesa de reuniões e definir o que se deve fazer na maior crise sanitária do século, em vez de se omitir, brigar por causa de vacina e chamar o povo de maricas.
Murillo de Aragão: ‘O maior rival do presidente é o governo dele’
Paula Bonelli, do Estado de S. Paulo
Jair Bolsonaro não saiu enfraquecido do último pleito com a derrota dos candidatos que apoiou – discretamente – como Celso Russomanno, em São Paulo, e Marcelo Crivella, no Rio. A opinião é de Murillo de Aragão, mestre em Ciência Política e doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Leciona ainda na Columbia University como professor adjunto, em Nova York. “Nesta eleição muita gente correu pra dizer que o Bolsonaro perdeu. Acho que houve exagero em relação a isso”, diz o cientista político.
No seu ver, há outro termômetro político para se fazer este tipo de avaliação: partidos do “centrão bolsonarista”, como Republicanos, PP e PSD, tiveram bom desempenho na conquista de prefeituras. “Hoje, o maior rival do presidente é o próprio governo dele. Se Bolsonaro organizar direitinho, é o grande favorito para ganhar a eleição”, acredita. Afirma que o presidente é bem avaliado pela população. “Ele tem quase 70% de aprovação entre ótimo, bom e regular. Ninguém leva pau na faculdade por tirar regular. É importante reconhecer que o presidente atravessou esse ano e manteve um nível elevado de popularidade.”
As candidaturas alternativas a de Bolsonaro, com chances de vitória, ainda são incertas, de acordo com o consultor político que enxerga João Doria com potencial, depois da vitória de Bruno Covas, e Guilherme Boulos se consagrando como liderança da esquerda. A seguir, os principais trechos da entrevista de Aragão concedida à repórter Paula Bonelli.
Nesta eleição, quem saiu fortalecido e quem perdeu?
Tiveram claramente alguns vencedores. O Doria é um porque fez o Bruno Covas que se elegeu. O PSDB conquistou 179 prefeituras em São Paulo. Já o Republicanos teve um aumento extraordinário de prefeitos eleitos, mas perdeu na capital paulista e no Rio de Janeiro. O PP e PSD, do centrão bolsonarista, também venceram várias prefeituras. Outro que ganhou duplamente foi o Boulos.
Ele venceu?
Boulos sai de um papel periférico para o estrelato. E perdeu a eleição o que é bom para ele, se ganhasse era uma roubada. Teria que lidar com essa caminhada que está fazendo da esquerda radical para esquerda racional e administrar invasão de prédio. Isso ia destruir toda a narrativa de ser um prefeito confiável ou teria que renegar o seu passado muito cedo. O Rodrigo Maia é outro que venceu porque se engajou na campanha do Eduardo Paes, no Rio; fez um gesto muito emblemático de visitar o Ciro Gomes em Fortaleza e Doria em São Paulo. Sai fortalecido principalmente tendo em vista sua campanha ou do seu candidato à sucessão da Câmara. Agora, vou falar do Bolsonaro. Dentro desse negócio que eu chamo de “bolsocentrismo” no Brasil, que fica todo mundo olhando para ele. Nesta eleição muita gente correu pra dizer que o Bolsonaro perdeu. Acho que há um exagero em relação a isso. Ele apoiou quase que discretamente o Russomanno e o Marcelo Crivella que perderam. Agora, perderam por causa do Bolsonaro?
O índice de abstenção nesta eleição foi de 29,5%.
A abstenção tem várias razões. A pandemia afetou a presença dos eleitores isso é inquestionável. Além disso, a eleição municipal traz uma agenda que é meio de síndico de prédio. Não foi polarizada como vimos em 2018. E o outro ponto central é que sem a Lava Jato marcando presença forte na mídia, acusando o centro político, desinflamou a polarização que existia. Também houve um certo continuísmo em muitas capitais importantes.
Como avalia os cotados para concorrer à Presidência da República em 2022?
Tem o Lula que juridicamente não pode ser candidato. Consideram que o Fernando Haddad saiu queimado da eleição porque de certa forma se omitiu não sendo candidato. O Ciro Gomes em Fortaleza foi feliz, seu candidato ganhou, o PDT cresceu. Então, são quatro nomes na esquerda: Lula, Haddad, Ciro e Boulos. No centro há dois nomes: Luciano Huck e Doria. O Sergio Moro desagrada os partidos PSDB, PT, o MDB, o DEM por causa da Lava Jato e os bolsonaristas devido a sua passagem pelo governo. O ACM Neto talvez seja um nome para concorrer pela experiência e o recall por causa do avô. Ele sai de Salvador, que é uma prefeitura grande, com uma aprovação incrível. E é do DEM, não tem mandato, pode passar dois anos aí visitando o Brasil.
Acha que Luciano Huck é um bom nome?
As celebridades às vezes não viram votos. O Luciano Huck tem que sustentar politicamente a popularidade dele. Doria, como disse o Fernando Henrique Cardoso, precisa nacionalizar a sua campanha. A do Fernando Henrique foi nacionalizada pelo Plano Real. Ninguém o conhecia. Ele autografava nota de um real a pedido das pessoas nas ruas.
O que vai pesar na decisão dos partidos para definir candidatos?
Essas candidaturas também dependem de como o Bolsonaro vai desempenhar. Vamos imaginar que consiga fazer o PIB crescer 2,5% ao ano e não se meta em nenhuma confusão nova – as confusões que ele tem são as que já estão aí sendo digeridas pelo noticiário – ele pode aglutinar forças em torno da sua reeleição. Hoje, tem quase 70% de aprovação entre ótimo, bom e regular. Ninguém leva pau na faculdade por tirar regular. É importante reconhecer que o presidente atravessou esse ano e manteve um nível elevado de popularidade. Então, se o Bolsonaro vai mal, aí aparece um monte de candidato, se vai muito bem, esse centrão aí, que na verdade são vários partidos que se aglutinam, pensará duas vezes antes de sair contra ele. Será que vale a pena eu ir lá pra ser rabo de tubarão na chapa do Doria, se eu posso ter um lugar vip aqui com o Bolsonaro? Eles são muito pragmáticos. A política no Brasil é muito regionalizada, cada um pensa sobretudo no seu feudo político.
Então, a candidatura alternativa ao presidente ainda é incerta?
Ela ainda não apareceu e vai depender muito do espaço que o Bolsonaro vai dar. Hoje o maior rival do Bolsonaro é o próprio governo dele. Se o presidente organizar direitinho é o grande favorito para ganhar a eleição.
Pela lógica do continuísmo…
É, mas um continuísmo com sucesso. Porque muita gente atribui o continuísmo ao controle da máquina. E não é bem assim. No dia que o Brasil elegeu o Lula pela primeira vez provou que ninguém manda no eleitorado brasileiro.
Acha que as pautas de costume perderam espaço nesta eleição de algum modo?
As pautas de costume continuam sendo apoiada por quase 30% da população brasileira, não são respaldadas pela maioria. O Bolsonaro virou presidente não foi por causa dessa turma, mas em razão do centro, que não queria o PT. Quem elegeu o presidente foram os eleitores de centro. O Brasil é arbitrado pelo centro. Não existe uma cultura partidária no País. A maioria vota no menos pior.
Covas no discurso da vitória falou que a era do negacionismo e do obscurantismo tinha acabado. O que achou?
A política é palco. Covas era um vice-prefeito que virou prefeito, enfrentou uma grave doença e a pandemia. E é eleito. Ele se sente um super-homem e ele é.
Há uma corrida pela vacina contra covid-19 entre Bolsonaro e Doria.
É evidente que há uma preocupação política. Houve aquele momento em que o governo federal ia assinar um protocolo com o Instituto Butantan para comprar a vacina Coronavac, aí Bolsonaro desautoriza o ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Ele pensou que poderia se enfraquecer. Foi uma reação mais intempestiva dele naquele momento, e que ficou ruim. Mas um dia os governos federal e estaduais proporcionarão a vacina para quem quiser, já que o próprio Supremo Tribunal Federal arbitrou que saúde pública é também competência de estados e municípios. Isso dá grande autonomia.
Vetada pela Constituição, a reeleição dos presidentes Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre está sendo julgada no STF. É tapetão?
Claro que é um tapetão, mas a judicialização da política está colocada. Não podemos criticá-la quando é contra o nosso pensamento. Esse chamamento à Justiça para interferir e interpretar medidas que poderiam ser decididas no âmbito legislativo, se transformou em uma realidade no Brasil por conta da fragmentação partidária que dificulta o consenso.
Quais são s pontos negativos do governo Bolsonaro?
As narrativas de meio ambiente, das minorias, equívoco na política externa, mas na economia eles vão bem. E as brigas internas que vazam periodicamente comprometem um pouco a imagem do governo.
O Estado de S. Paulo: Decisão do STF zera o jogo na disputa na Câmara e no Senado, avaliam líderes políticos
Resultado do julgamento surpreendeu parlamentares, que esperavam um aval para a recondução no Congresso
Jussara Soares e Camila Turtelli, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de barrar a reeleição dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), surpreendeu políticos que estavam acordados no fim da noite deste domingo, 6. A expectativa era a de que a Corte desse aval à recondução, conforme apontavam as tendências. Com a virada, as análises preliminares são que o resultado zera o jogo nas duas casas, mas a disputa se torna mais imprevisível no Senado.
Por 6 a 5, o STF decidiu não dar permissão à reeleição de Alcolumbre. No caso de Maia, a derrota foi ainda maior: o placar foi de 7 a 4. Os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e o presidente do STF, Luiz Fux, votaram neste domingo contra a possibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara. Com os três últimos votos, o Supremo barrou a tese de reeleição no Congresso.
No meio político, a avaliação é a de que a mudança no posicionamento dos ministros do STF ocorreu devido à pressão nas redes sociais diante da possibilidade de reeleição. No fim de semana, as hashtags #STFOrganizaçãoCriminosa e #STFVergonhaNacional foram usadas para criticar os ministros da Corte, que foram acusados de atentar contra a Constituição.
A eleição da cúpula do Congresso está marcada para 1.º de fevereiro de 2021. O resultado traz mais definição para a disputa na Câmara e reduz especulações. Apesar de Maia dizer a toda oportunidade que não era candidato à reeleição, a ideia permanecia.
Com isso, o grupo de aliados deverá definir agora o apoio em torno de um dos cinco nomes já pré-estabelecidos, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), Baleia Rosssi (MDB-SP), Elmar Nascimento (DEM-BA), Luciano Bivar (PSL-PE) e Marcos Pereira (Republicanos-SP). Entre eles, deve prevalecer quem conseguir conquistar os partidos da oposição.
Rossi, no entanto, pode ter de sair da corrida para dar lugar ao seu partido no Senado. Com Alcolumbre fora da jogada, cresce a expectativa de que o MDB tenha maioria para fazer o presidente na Casa. O Senado tem um número menor de candidatos e esperava uma definição do STF para organizar o xadrez de 2021. O líder do MDB, a maior bancada da Casa, Eduardo Braga (AM), já se movimenta para a disputa. No mesmo partido, Eduardo Gomes (TO) e Simone Tebet (MS) são apontados como possíveis candidatos.
O presidente do PTB, Roberto Jefferson, autor da ação que levou ao julgamento ao STF, tratou o resultado como uma vitória do seu partido. “O PTB ganhou de 6x5 no STF. Acabou a farra da reeleição na Câmara e no Senado. Deus seja louvado. Vitória do povo do Brasil”, disse. Jefferson disse que não esperava esse resultado, mas acredita que a virada aconteceu por “medo do povo”.
O presidente do Progressistas, senador Ciro Nogueira (PI), afirmou não ter se surpreendido com o resultado, mas disse que o cenário do Senado agora está imprevisível. Ele era contra a reeleição de Maia, mas a favor da de Alcolumbre.
Pré-candidato à presidência da Câmara, em um grupo de aliados de Maia, o presidente do Republicanos, Marcos Pereira, elogiou a decisão dos magistrados. “O STF agiu com responsabilidade ao recusar a tese casuística de reeleição no Parlamento. O § 4º do art. 57 da CF é absolutamente claro no seu teor, não cabendo interpretação diferente. Mudanças na CF devem ser promovidas dentro do Congresso Nacional, o locus adequado para isso”, escreveu Pereira, em sua conta no Twitter.
O líder do Novo na Câmara, Paulo Ganime (Novo-RJ), comemorou o resultado. “O STF decidiu hoje corretamente sobre algo que nem deveria estar decidindo. A CF é muito clara. O Brasil perdeu tempo, dinheiro e muito mais com essa discussão. Pelo menos não rasgaram a CF, não dessa vez”, disse, em sua conta no Twitter.
O presidente do Cidadania, Roberto Freire, disse que o STF agiu com perfeição. “Rosa Weber, Marco Aurélio, Cármen, Barroso, Fux e Fachin colocaram o gênio de volta na lâmpada. Queriam arrastar o STF pra uma aventura política que enxovalharia a Corte e diminuiria a democracia a pretexto de salvá-la. Na democracia, as instituições são maiores do que os homens”, avaliou.
Aliado do presidente Jair Bolsonaro, o deputado Marcos Feliciano (Republicanos-SP) disse que o resultado enfraquece o DEM, partido de Maia e Alcolumbre. “Decidiram manter a vedação da reeleição no Congresso! Acabou-se o delírio imperial de Rodrigo Maia! Agora é bola ao centro e recomeça o jogo. DEM sai muito enfraquecido”, disse ele, por meio das redes sociais.
O líder do PSB na Câmara, Alessandro Molon (RJ), concordou com a decisão da Justiça. “Saem fortalecidas a Constituição, a democracia, a República. Saímos mais fortes desse episódio pra enfrentar os ataques de Bolsonaro a nossas instituições.”
O Estado de S. Paulo: STF barra reeleição de Maia e Alcolumbre
Os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Luiz Fux votaram neste domingo contra a possibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. Com os três últimos votos, o Supremo barrou a tese de reeleição na mesma legislatura
Rafael Moraes Moura,O Estado de S. Paulo
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu na noite deste domingo barrar a possibilidade de os atuais presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), disputarem a reeleição na mesma legislatura. A eleição da cúpula do Congresso está marcada para 1º de fevereiro de 2021. O resultado do julgamento muda radicalmente o tabuleiro político na sucessão das duas Casas.
Ao longo dos últimos dias, o STF sofreu uma série de críticas por conta do julgamento, o que influenciou o placar final, segundo o Estadão apurou. O ex-presidente do STF Nelson Jobim, por exemplo, disse ao Estadão estar “perplexo” com a discussão. Também proliferaram críticas na classe política e no meio acadêmico.
Por 6 a 5, o STF decidiu não dar permissão para a reeleição de Alcolumbre. No caso de Maia, a derrota foi ainda maior, com o placar de 7 a 4. A diferença nos dois resultados se dá por conta do voto do ministro Nunes Marques. Indicado ao tribunal pelo presidente Jair Bolsonaro, Nunes Marques optou por uma solução intermediária — a favor de Alcolumbre, mas contra Maia –, alinhado aos interesses do Palácio do Planalto, que aposta na candidatura de um dos líderes do Centrão, o deputado Arthur Lira (PP-AL), para a chefia da Câmara.
Na noite deste domingo, os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e o presidente do STF, Luiz Fux, votaram contra a reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado em 2021, marcando uma reviravolta no resultado final, que indicava uma tendência de vitória da tese a favor da recondução.
“A regra impede a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente a do primeiro ano da legislatura. Nesse ponto, a norma constitucional é plana: não há como se concluir pela possibilidade de recondução em eleições que ocorram no âmbito da mesma legislatura sem que se negue vigência ao texto constitucional”, escreveu Fux.
“Com efeito, não compete ao Poder Judiciário funcionar como atalho para a obtenção facilitada de providências perfeitamente alcançáveis no bojo do processo político-democrático, ainda mais quando, para tal mister, pretende-se desprestigiar a regra constitucional em vigor”, concluiu o presidente do STF.
O ministro Luís Roberto Barroso, por sua vez, observou ser “compreensível o sentimento de que existe uma assimetria no sistema constitucional dos Poderes ao não se permitir uma recondução dos presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados”, ao contrário do presidente da República. “Entendo não ser possível a recondução de presidente de casa legislativa ao mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente, porque esse é o comando constitucional vigente”, concluiu Barroso.
A eleição para a cúpula do Congresso é a disputa política mais importante do próximo ano. Os presidentes da Câmara e do Senado comandam a agenda legislativa do País, articulam a estratégia para a aprovação de reformas prioritárias do governo e são responsáveis por controlar não apenas a abertura de CPIs, mas também o andamento de pedidos de impeachment – do presidente da República, no caso da Câmara; dos ministros do STF, no caso do Senado.
O julgamento ocorreu no plenário virtual da Corte, uma plataforma online que permite que os ministros analisem casos longe dos olhos da opinião pública – e das transmissões ao vivo da TV Justiça.
Na madrugada da última sexta-feira, o relator do caso, ministro Gilmar Mendes, havia votado a favor da tese da reeleição, sendo seguido integralmente por Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski. A divergência no julgamento foi aberta pelo ministro Marco Aurélio Mello.
“A tese não é, para certos segmentos, agradável, mas não ocupo, ou melhor, ninguém ocupa, neste tribunal, cadeira voltada a relações públicas. A reeleição, em si, está em moda, mas não se pode colocar em plano secundário o artigo 57 da Constituição”, escreveu Marco Aurélio.
Além de Fux, Fachin, Barroso e Marco Aurélio, as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia votaram contra dar aval às reeleições de Maia e Alcolumbre.
Ditadura. Há mais de meio século, a reeleição é proibida na cúpula do Congresso. Em 1969, o Ato Institucional número 16, editado pela ditadura militar, proibiu a recondução ao cargo dos presidentes da Câmara e do Senado. O veto foi imposto pelo regime ditatorial em uma manobra contra o então presidente da Câmara, José Bonifácio Lafayette de Andrada. Mesmo filiado ao Arena, Andrada provocou irritação em setores radicais do governo ao permitir que colegas parlamentares denunciassem da tribuna a repressão das Forças Armadas.
Antes disso, não eram incomuns a reeleição por mandatos consecutivos, como foi o caso de Ranieri Mazzilli, que comandou a Câmara por um período de sete anos (de 1958 a 1965). Arnolfo Azevedo (1921-1926), Astolfo Dutra (1915-1919) e Sabino Barroso (1909-1914) também foram reeleitos.
A Constituição de 1988, em pleno regime democrático, reforçou o veto à reeleição colocado pelos militares. “Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas mesas, para mandato de dois anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subseqüente”, diz o artigo 57 da Carta.
De lá pra cá, o Supremo flexibilizou a regra: passou a permitir a reeleição no caso de mandato-tampão e em legislaturas diferentes.
Temores. Um dos temores no STF é o de que nomes mais imprevisíveis e mais alinhados ao presidente Jair Bolsonaro assumam o comando da Câmara e do Senado, o que poderia resultar em retaliações contra o Judiciário, como a abertura da CPI da Lava Toga e até mesmo a votação de pedidos de impeachment de ministros do STF. Até agora, Alcolumbre tem resistido à pressão de senadores “lavajatistas”.
Affonso Celso Pastore: Risco de inflação e a reação do governo
A esperança de que Bolsonaro não embarque em uma nova aventura expansionista não se deve ao seu discernimento
Com o resultado do terceiro trimestre, sabemos que a recuperação dentro de 2020 superou todas as expectativas, reduzindo a queda do PIB a algo em torno de 4,5%. As projeções de consenso da última semana informam que em 2021 o PIB deverá crescer em torno de 3,5%, mas não esclarecem que essa taxa é próxima do carry-over de 2020. Ou seja, há um crescimento de 3,5% entre 2020 e 2021, mas praticamente não há crescimento dentro de 2021. Para amenizar as preocupações, argumenta-se que a poupança dos ricos acumulada durante o afastamento social compensará a queda da demanda dos pobres, acarretada pelo fim da ajuda emergencial. Tenho dificuldades enormes com esse argumento. Com uma taxa de desemprego podendo chegar no pico a 20%, é difícil apostar no consumo dos mais pobres e, com a incerteza elevada, é difícil que os ricos não se protejam, guardando boa parte do que acumularam.
O fato é que a rápida recuperação – inegavelmente positiva – deixou uma herança fiscal que dificulta a continuidade do crescimento em 2021. Devido ao risco de insolvência do governo, o nível de incerteza da economia atingiu um recorde, inibindo os investimentos em capital fixo. Uma forma de aferir como a percepção deste risco se transmite é olhando para os prêmios de risco em ativos financeiros em mercados muito líquidos, como os de juros e de câmbio.
Com muito mais habilidade do que eu, em artigo recente Marcio Garcia demonstrou elegantemente o que se passou. Ele definiu a inclinação da curva de juros como a diferença entre as taxas de 10 e de um ano, e superpôs esta série ao câmbio nominal, medido em R$/US$. Iniciou sua série em junho 2019, quando o mercado ainda acreditava que o teto de gastos seria cumprido e o risco de insolvência era mais baixo, e a estendeu por todo o ano de 2020. É notável como estas duas séries caminham juntas. Nos dois casos, o prêmio de risco dá um salto semelhante tão logo se configura a percepção de que cresceu o risco de insolvência.
O aumento das taxas de juros em operações mais longas tem importância porque eleva a dificuldade na administração da dívida, cujo prazo médio de vencimento deverá cair abruptamente, expondo-nos ao risco da repressão financeira, piorando a curva de juros e o comportamento do câmbio. Não há espaço neste artigo para tratar deste problema, por isso me restrinjo ao câmbio. A depreciação cambial, que desde janeiro de 2020 acumula quase 30%, é a maior causa do aumento da inflação nos últimos meses.
Não deveria ser assim. Afinal, a economia deprimida tenderia a reduzir o repasse do câmbio aos preços. Mas não é esse o caso dos preços de alimentos, como a soja e derivados, carne e arroz, entre outros, que são exportáveis. Seus produtores repassam a depreciação cambial aos preços domésticos e, se a demanda cair, exportam todo o excedente. Os reajuste dos preços destes produtos nos armazéns e supermercados produziram nos últimos 12 meses uma inflação de quase 18% no item “alimentação no domicílio”. Não teria grande importância se a taxa de desemprego, que até setembro já havia atingido 14,8%, caísse bastante em 2021, e se houvesse um aumento da renda real. No entanto, sem a ajuda emergencial, a recuperação lenta ou mesmo a estagnação da economia dentro de 2021 não dá perspectivas de uma melhora no mercado de trabalho.
Há alguns meses escrevi sobre uma reação dos indivíduos a ganhos ou perdas imprevistas, cuja autoria erradamente atribuí a Richard Thaler, quando ele próprio reconhece que a autoria é de Kahneman e Tversky. Com o devido pedido de desculpa aos verdadeiros autores, repito o enunciado daquela conjectura: “a felicidade decorrente de um ganho inesperado é menor do que o sofrimento de uma perda inesperada”. Da mesma forma como a ajuda emergencial elevou a popularidade de Bolsonaro, seu encerramento deve derrubá-la o que, aliás, já está ocorrendo. Como reagirá o presidente diante de uma “queda inesperada” de sua popularidade, com a taxa de desemprego elevada, a economia estagnada e com uma inflação de alimentos que corrói o poder aquisitivo das classes de renda mais baixas junto às quais era popular?
Optará pela obediência ao teto de gastos ou terá preferência por gastar, aumentando sua popularidade? A esperança de que ele não embarque em uma nova aventura expansionista não se deve ao seu discernimento, que em matéria de economia é reconhecidamente baixo, e sim ao medo de ser punido pela depreciação cambial, que eleva a inflação.
*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.
Celso Ming: O governo a reboque
O presidente Jair Bolsonaro não poderá tirar grande proveito político da chegada da vacina porque até agora só fez jogo contra
Este início de mês parece caracterizar-se pela criação de fatos econômicos importantes por fatores externos à política econômica propriamente dita. Um deles é a vacina. Em que pesem as informações parciais e desencontradas sobre a eficácia da fase final de testes, a vacina contra a covid-19 está às portas.
As primeiras remessas não estarão disponíveis para toda a população, mas o início da vacinação começará a exercer efeitos econômicos e políticos mesmo antes disso. Investimentos serão destravados, segmentos da área de serviços poderão operar de maneira mais próxima da normalidade, as viagens serão retomadas e algumas incertezas em relação ao futuro, removidas.
Como já avançado por esta Coluna no dia 3, o presidente Jair Bolsonaro não poderá tirar grande proveito político da chegada da vacina porque até agora só fez jogo contra. Sua imagem não está identificada com ela. Ele negou a gravidade da pandemia, recomendou remédios ineficazes, como a cloroquina e hidroxicloroquina, desdenhou da vacina e vem tentando torpedear a ação dos governadores comprometidos com ela. É possível até que, nessa matéria, o Supremo Tribunal Federal meta sua colher nesse caldeirão contra o presidente. Ou seja, o acesso à vacina pela população pouco ou nada contribuirá para que o presidente Bolsonaro adquira poder de barganha política na busca de outros objetivos do governo na área econômica.
Outra novidade com importantes consequências para o jogo de poder e também para a política econômica é a proposta de recondução do deputado Rodrigo Maia e do senador Davi Alcolumbre para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, respectivamente. Se o Supremo remover os obstáculos jurídicos para essa recondução, o governo federal também perderá influência na condução desse processo. E, como as taboas do brejo sempre balançam conforme o vento, esse fato poderá ter força suficiente para reduzir o apoio do chamado Centrão, atual base política do governo no Congresso.
Uma das consequências dessa nova relação de forças poderá ser a de que as próprias mesas da Câmara e do Senado tomem a iniciativa de colocar em votação projetos de reforma, especialmente a tributária, como já aconteceu anteriormente com a aprovação da reforma da Previdência. Nesse caso, caberá ao Ministério da Economia o papel secundário de tentar adaptar alguns dos seus objetivos aos projetos a serem examinados no Congresso Nacional. O mesmo protagonismo do Legislativo pode tornar-se importante em decisões de política fiscal de maneira a garantir um Orçamento federal mais equilibrado.
Durante muitos anos, os brasileiros se acostumaram a ver que a primazia da condução da política econômica partia sempre do Executivo. Agora, tanto a falta de um plano estratégico como as grandes omissões do governo federal em matérias relevantes, sempre à espera de que aconteça alguma coisa, abrem o espaço para que o Congresso e o Supremo tenham a última palavra.
De certa maneira, essa parece ser, também, a percepção do mercado financeiro, que passou a apostar na queda da cotação do dólar e na alta do mercado de ações.
Vera Magalhães: O velho casuísmo
STF, ‘guardião’ da Carta, estende tapetão para Maia e Alcolumbre
O Brasil precisa de Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia no comando do Legislativo? Ambos e alguns ministros do Supremo Tribunal Federal parecem crer que sim. Ou pior: parecem querer convencer o Brasil de que sim, mesmo sabendo que se trata apenas e tão somente de uma briga pela manutenção de um importante naco de poder, num momento especialmente delicado da vida nacional.
O fato é que não, o Brasil não precisa dos dois mais dois anos à frente do Senado e da Câmara, mas sim, caso eles permaneçam lá (com a ajuda suprema), as decisões que eles tomarem terão amplo impacto na vida do Brasil, e não apenas interna corporis das Casas que comandam. O que torna o casuísmo supremo ainda mais deletério para o nosso sempre adiado amadurecimento institucional.
Gilmar Mendes fez um voto tão longo quanto confuso para tentar convencer o País e seus pares de que Rodrigo Maia poderia tentar não o quarto, mas o segundo mandato como presidente da Câmara. E que Alcolumbre pode, sim, se candidatar a mais um biênio na cadeira azul do Senado quando outras raposas que o antecederam bem que gostariam de fazê-lo, se a regra fosse mesmo essa.
Trata-se, como escrevi no BR Político, de querer tratar a Constituição como as irmãs da Cinderella fizeram com o sapatinho de cristal: atochando num pé maior e cheio de joanetes e jurando que serve direitinho.
Acontece que o Brasil vive sob o governo de um presidente da República que já deu inúmeras demonstrações práticas de que gostaria de quebrar o sapato de cristal da Constituição e andar de botinas por aí.
É uma contradição grave que seja justamente a Corte que tantas vezes veio em socorro da sociedade, impedindo atos que atentavam contra o Estado democrático de direito, defendendo o princípio do pacto federativo, e prestes a decidir sobre algo importantíssimo, como a obrigação do Estado de garantir vacina em uma pandemia, resolva fazer um recreio para dar uma forcinha para os amigos do prédio vizinho na Praça dos Três Poderes.
Ao fazê-lo, o STF volta a episódios recentes de triste memória, como aquele em que fatiou o que diz a lei do impeachment de forma textual para assegurar a Dilma Rousseff a manutenção dos seus direitos políticos.
Não surpreende que Alcolumbre, que na própria eleição deixou até de ir ao banheiro para não se levantar da cadeira de presidente do Senado, se lance a essa aventura. Era um novato do baixo clero antes de comandar a Casa, se beneficiou da repulsa nacional a Renan Calheiros e agora quer gozar de mais dois anos de notoriedade. Iria a pé a Macapá por isso.
Mas e Rodrigo Maia? O presidente da Câmara já deixou o baixo clero há tempos. É visto pelo mercado e por setores da sociedade como um garantidor das normas, da legalidade e da previsibilidade. Como esses princípios se encaixam numa narrativa, qualquer que seja ela, para se perpetuar no poder pelo inacreditável período de 2016 a 2022?
Não importa que do outro lado da disputa esteja alguém com as credenciais fisiológicas de Arthur Lira. Isso é fulanizar a discussão. Os 513 deputados que se virem e cheguem a um nome capaz de comandar a Câmara diante do brutal desafio econômico, posto desde já.
Rodrigo Maia tem, até fevereiro, de conduzir a Casa para resolver o nó do fim do auxílio emergencial, da manutenção ou não do teto de gastos e da votação do Orçamento. São tarefas urgentes, que não coadunam com a busca egoica por mais dois anos de poder.
Se for bem sucedido na agenda e se mantiver o importante contraponto que tem feito aos abusos e erros do governo Bolsonaro, terá todas as credenciais para fazer seu sucessor sem precisar se enrolar no tapetão que o STF está disposto a estender diante de seus pés.
O Estado de S. Paulo: 'Perdemos a capacidade de planejamento. É urgente ter um plano fiscal', diz Felipe Salto
Economista defende uma fase de transição e ‘teto de gastos 2.0’ para financiar as despesas com uma eventual prorrogação do auxílio emergencial e o pagamento das vacinas
Diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, o economista Felipe Salto sugere a criação de um teto de gastos 2.0 combinado com medidas de aumento de receitas. Décimo e último entrevistado da série do Estadão Saídas para a Crise Fiscal, Salto diz que o governo precisa botar na mesa medidas para a volta ao azul, com superávits primários nas suas contas.
O economista defende uma ponte de transição na regra para financiar os gastos adicionais que devem surgir com uma eventual necessidade de prorrogação do auxílio emergencial em 2021 e o pagamento das vacinas para acabar com a pandemia da covid-19. “O teto não é um Fla-Flu. A regra foi positiva e teve o seu valor, mas para que ela não seja abandonada terá de ser adaptada. Apenas corrigir pela inflação não vai funcionar”, diz.
Para ele, é possível ser feito um regime temporário, mantendo o teto e abrindo espaço para os gastos que vão ser necessários. A palavra chave, diz, é transparência. “Por isso, a meta de resultado primário das contas públicas passa a ter uma importância muito grande”, avalia.
● O sr. já disse que o teto de gastos não é a Santa Sé. O que significa isso?
Estamos vivendo no Brasil um momento de muita polarização. Quando ela está fundamentada em questões técnicas e avaliações, até pode ajudar a explicitar o que as pessoas pensam e seus diferentes pontos de vista. Mas essa polarização danosa que estamos vendo acaba apenas turvando o debate e prejudicando a discussão das questões fundamentais, como é o caso das regras fiscais e do teto de gastos (regra que impede que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação), particularmente.
● Como assim?
Tem o grupo dos que são a favor do teto e não abrem mão e tem aqueles que dizem que se deve abandonar o teto, pois seria muito ruim. Na verdade, o que precisamos é encontrar o caminho do meio. Quando eu disse que o teto não é a Santa Sé, quis dizer que aprimorar as regras fiscais é positivo. Se for possível regulamentar os gatilhos (medidas de contenção de gastos, focadas principalmente nas despesas com servidores públicos) ou pensar numa combinação de resultado primário (receitas menos despesas sem levar em conta o pagamento dos juros da dívida) que envolva o lado das receitas, isso seria salutar. Não adianta dizer que é a favor do teto, como o governo tem feito, se os números não fecham. Quem faz um mínimo de contas e planilhas vê que no próximo projeto de Orçamento tem uma despesa discricionária (aquelas que não são obrigatórias e incluem, por exemplo, investimentos) de R$ 108,4 bilhões. Destes, R$ 16,3 bilhões são emendas parlamentares (indicações feitas por deputados e senadores de onde os recursos federais são aplicados). Se tirar essa parte, sobra algo como R$ 92,1 bilhões, que é um nível extremamente baixo. O governo precisa mostrar que esse nível é suficiente para não parar a máquina pública e paralisar as políticas que estão lá. E, mais do que isso: como vai incorporar os gastos quase certos, como algum auxílio para as pessoas mais pobres e compra de vacinas.
● Esses gastos adicionais já são certos?
Vão ter de acontecer. E qual o espaço orçamentário? Não existe.
● Vai faltar dinheiro no orçamento para pagar vacina?
Não há necessidade, se houver planejamento. Tem alguns caminhos. Se ele não colocar no Orçamento agora, pode fazer crédito extraordinário no ano que vem. Vai ficar um orçamento paralelo.
● Mas a necessidade de vacinas era previsível desde sempre. Se encaixa em crédito extraordinário para despesas imprevisíveis e urgentes?
Como não é uma despesa imprevisível, o ideal seria contemplar no Orçamento. Para resolver, o governo deveria abrir espaço orçamentário este ano, seja pelo lado da receita, seja pelo da despesa.
● Como sair do impasse que é vivido há meses?
No grosso das despesas obrigatórias tem pouco espaço para cortar. Teria os subsídios creditícios, que têm previsão de R$ 14 bilhões em 2021. Mas aí também tem programas tradicionalmente importantes, no agronegócio, por exemplo. Não tem saída fácil. A primeira coisa que o governo precisa fazer é calcular quais são as despesas extras. Nós, da IFI, fizemos uma simulação e calculamos que, se o auxílio de R$ 300 for estendido por quatro meses para um contingente de 25 milhões, o gasto seria de R$ 15,3 bilhões. Seria um pecado mortal compensar com aumento de arrecadação? Não seria. Precisa é comunicar direito.
● O Congresso precisaria aprovar uma PEC?
Eu fico um pouco pessimista porque é um assunto um pouco complexo para ser resolvido em poucos dias. A saída é claramente o governo dar uma interpretação para o acionamento dos gatilhos ou avançar na PEC emergencial (proposta em que estão previstas as medidas de contenção de gastos). Isso construiria uma ponte para ganhar tempo para discutir a questão do indexador do teto. O governo deveria dar uma solução, ainda que fosse temporária, para que, ao longo do próximo ano, pudesse discutir a mudança do indexador do teto (hoje, o teto é corrigido pela inflação inflação acumulada em 12 meses até junho do ano anterior ao da vigência). Isso seria um caminho. Pelo visto, o governo não vai fazer isso.
● Nesse caso, o que pode acontecer?
O projeto de Orçamento está completamente descolado da realidade. Vai chegar janeiro e será preciso necessariamente fazer o auxílio. Vai ser uma espécie de gestão de risco. Quando chegar 31 de dezembro e não tiver mais auxílio para janeiro, decide-se fazer mais um mês. Qual a saída? Crédito extraordinário e, aí, precisa combinar com os russos. Precisa ver como o TCU vai encarar essa realização de crédito extraordinário, sendo que há alguns meses já se sabe que possivelmente esse gasto seria necessário e o governo vai argumentar que não, que estava esperando ter mais certeza sobre essa necessidade.
● A discussão de regras orçamentárias não está se sobrepondo à realidade do País?
Perdemos a capacidade de planejamento. É urgente ter um plano fiscal.
● O que é um plano fiscal na sua avaliação?
Não importa se é receita ou despesa. É preciso recuperar os resultados primários. É uma questão de expectativas. Precisa mostrar um plano de aumento de receita e corte de gastos. Por isso, a meta de resultado primário das contas públicas passa a ter uma importância muito grande. Esse plano deveria comportar uma conta de cálculo da sustentabilidade da dívida, que é o que mais importa, anunciando as medidas do lado das receitas e despesas, que num conjunto possa produzir um superávit (quando as receitas superam as receitas). É fácil? Não é, mas, sem abandonar esse teto, modernizando, caminhar para um teto 2.0 e combinar isso com medida do lado das receitas.
● O que é um teto 2.0?
Olhar para as regras fiscais, como o FMI manda fazer, e observar que uma regra que não tem válvula de escape e regras que não permitem certa flexibilidade em períodos de exceção não são as melhores. Precisamos sofisticar. O teto não é um Fla-Flu. A regra foi positiva e teve o seu valor, mas, para que não seja abandonada, terá de ser adaptada. Apenas corrigir pela inflação não vai funcionar. Essa modernização poderia envolver a questão do indexador. Existem outras propostas como a do Fabio Giambiagi e do Guilherme Tinoco (economistas) de discutir a questão dos investimentos (para criar uma espécie de "subteto" para os investimentos). Não cabe à IFI dar recomendação. Mas, quando calculamos os números, fica muito claro que está impossível cumprir o teto por muito mais tempo. Talvez o governo consiga cortar a despesa discricionária por mais tempo. Eu lembro que em 2019 o contingenciamento gerou reação importante de algumas áreas, como bolsas do CNPq, e começa a pegar no calcanhar de setores que são importantes. Não dá para imaginar que, nesse contexto pandêmico, o Brasil não possa desviar um milímetro do que foi pensado em 2016.
● O que deveria ser feito?
Criar uma transição. Estou chamando de ponte. Comprar tempo, alterar as regras, temporariamente, para que a gente possa discutir um aprimoramento do teto.
● Uma pinguela?
Eu li recentemente um artigo do Gustavo Loyola (ex-presidente do BC) que disse que já está meio precificado que o teto não será cumprido no ano que vem. Resta saber o que vai ser o contorno que vão fazer na regra.
● É preciso esse contorno?
Entra a questão da economia política. Não podemos dar um cavalo de pau. De repente, o teto, que era uma âncora, agora vai ser jogado fora. Não. Tem de ter cuidado. O momento é delicado. É possível ser feito um regime temporário, mantendo o teto e abrindo espaço para os gastos que vão ser necessários. A palavra chave é transparência.
“O governo terá de dizer se vai colocar dinheiro na vacina ou deixar tudo na mão dos Estados, como também o auxílio.”Felipe Salto
● O FMI fala da retirada gradual dos estímulos.
Sim. Não é razoável fazer R$ 600 bilhões (a estimativa de gastos para o combate à pandemia neste ano) e no ano seguinte, zero. Até porque vai ter muita gente à margem do mercado de trabalho. Alguma ajuda terá de ser feita.
● Como fica o dinheiro para o pagamento das vacinas?
O governo terá de dizer se vai colocar dinheiro na vacina ou deixar tudo na mão dos Estados, como também o auxílio. Como financiar essa ajuda? Falta essa diretriz. Estamos a ver navios. Não tem uma proposta. Estamos em dezembro. Não adianta mandar propostas complexas e falar que a bola está com o Congresso. Tem de sentar, negociar. Política é isso.
● A disputa da eleição para a presidência das duas Casas parou as votações das propostas.
● Por que a votação das diretrizes do Orçamento não avança?
Não acho que seja por causa da disputa da mesa (eleições para a presidência). É porque o TCU fez um questionamento claríssimo a respeito da meta flutuante (o governo não fixou uma meta para o rombo nas contas públicas em 2021, mas uma "meta flexível", que seria um resultado das despesas, limitadas pelo teto, e das receitas, que podem variar conforme a intensidade da recuperação da economia). Não existe meta flutuante.
● A meta fiscal pode ser flexível como foi proposto pelo governo?
A LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) é claríssima. Meta tem de ser calculada e fixada como um compromisso a ser perseguido, a partir do esforço combinado do lado da receita e da despesa. Não pode “flutuar”, como foi proposto em abril. Era fava contada que o TCU questionaria. E está correto. Ou tem meta ou não tem.
● Já está em curso uma transição de política econômica?
Não vejo isso. O governo, na verdade, está perdido. O Paulo Guedes é um economista que tem formação, que deve ser respeitado. Mas o que vemos, por exemplo, quando é questionado de reforma, ele volta a falar de CPMF (o ministro defende um novo tributo sobre todas as transações que é comprado ao antigo imposto sobre o cheque), desoneração (redução dos encargos que as empresas pagam sobre o salários dos funcionários), coisas fora da pauta. Esse é o plano? Como vai ser feito? O Congresso já aceitou? Do lado dos gastos, ele falou em unificar os programas sociais, e até agora nada.
● Como a IFI enxerga o resultado do PIB do terceiro trimestre?
O PIB indica uma recuperação, mas ela é inferior à apontada pelo índice de atividade do Banco Central. Houve certa frustração, se observarmos a média das expectativas de mercado. Destaca-se que, na margem, a indústria avança acima de 14% e serviços crescem acima de 6%. Mas, em relação ao mesmo trimestre do ano anterior, a recessão é ainda expressiva. Na verdade, o PIB só voltará ao nível pré-crise em 2022. Além dos riscos da segunda onda da covid e da incerteza sobre esse tema, há confusão e pouca transparência nas ações de compra de vacinas e combate em geral. O Brasil perdeu tração no motor do crescimento. Para recuperar, só com aumento da produtividade, o que está ligado ao bom investimento em educação e em infraestrutura. Está ligado, ainda, à maior inserção das empresas brasileiras nas cadeias globais de valor.
*FELIPE SALTO
DIRETOR-EXECUTIVO DA IFI NO BRASIL
Economista pela FGV/EESP e mestre em Administração Pública e Governo pela FGV/EAESP, Felipe Salto foi consultor econômico da Tendências e assessor legislativo no Senado. Em 2016, organizou o livro “Finanças públicas: da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade” com Mansueto Almeida - publicação que ganhou o prêmio Jabuti no ano seguinte. Ainda em 2016, foi indicado para exercer mandato fixo de seis anos como o 1º diretor-executivo da então recém-criada Instituição Fiscal Independente (IFI). Em 2020, publicou o livro “Contas públicas no Brasil” (Saraiva, 2020), com Josué Pellegrini. É colaborador da seção Espaço Aberto, do Estadão.
Fernando Henrique Cardoso: Agonia e esperanças
Por uma fatalidade os dias vindouros serão de máximo perigo. Confiemos, agindo
Quase ao chegar ao fim do ano em curso, as agonias aumentaram. Na economia o País se arrasta numa recessão há já algum tempo, que foi agravada pela pandemia causada pelo novo coronavírus. Tudo, naturalmente, aumentado pela desconfiança no governo federal: faltam a ele as qualidades necessárias não só para agir com rapidez, mas mesmo para agir. Não vou relembrar, por ocioso, mas a “gripezinha” virou morte para milhares de pessoas. O descaso chegou a tanto que na área da Saúde os ministros se sucedem e os erros não cessam: falta muita coisa, mas chama a atenção a imprevisibilidade, o desconhecimento é substituído por palpites em grande quantidade.
No auge da pandemia, quando liderança, informação verídica e respeito à ciência salvam vidas, o governo federal persiste no negacionismo, na politização e no desprezo ao conhecimento. Isso, que já seria grave em tempos normais, chega às raias do absurdo diante da ameaça que pesa sobre o nosso país.
Agora mesmo, como se não houvesse urgência, há gente na sociedade pondo em dúvida a eficácia das vacinas em geral. Isso num país como o nosso, de amplíssima tradição na matéria. Os dias tristes das revoltas “contra as vacinas”, no caso a da varíola e a da febre amarela, que marcaram um tento de Oswaldo Cruz, podem até virar o feitiço contra o feiticeiro. A revolta agora é contra a demora das vacinas, quando, na verdade, nunca se viu esforço tão rápido para encontrar alguma que contenha a ação negativa do referido vírus.
Mas existe também a descrença nelas. É certo que, por enquanto, da parte de um grupo que se deixa levar pelo que deduz serem as promessas de vacinas com falta de cautela das autoridades.
Ainda bem que a mídia, em geral, procura mostrar o contrário e ressaltar que, enquanto a vacina não chegar, cada um de nós é responsável por atuar: que fiquemos em casa é o refrão.
Refrão correto. Mas o que fazer quando não se tem casa confortável, ou quando as pessoas vivem amontoadas tanto em sua casa como com os vizinhos, como se vê em muitas favelas, casas de cômodos e nos cortiços, que abrigam boa parte da população brasileira? É para essas pessoas, a maioria da população, que o governo precisa olhar em primeiro lugar. E são essas as vítimas preferenciais do novo coronavírus (sobretudo os mais velhos, para os quais o “bichinho” parece ser impiedoso).
Sabemos que no início os mais atingidos eram os que viajavam, que não fazem parte da maioria pobre. Pouco a pouco, porém, a epidemia foi se alastrando e alcança, é verdade que sem exclusividade, os que menos têm posses e são abrigados pelo Serviço Único de Saúde (bendito SUS!).
Daí a enorme responsabilidade dos governos. No plano estadual, alguns se têm saído bem. Não se poderia dizer o mesmo, com simplicidade, sobre o governo federal, pelo menos quando são ouvidas as palavras proferidas por seu maior representante, o presidente. Compreendo que ele não queira ver tudo pelo vitral do pessimismo, mas que veja com algum realismo as coisas sob seu comando, pois elas têm efeito sobre muita gente. É o que se espera de qualquer governo razoável.
Há esperanças, a despeito de tudo. Elas se concentram no fato de que a população é, no geral, receptiva às palavras sensatas (as eleições municipais recém-havidas mostram isso). Por isso mesmo, quanto mais houver reforço na palavra dos que entendem – os médicos e cientistas –, melhor. O que choca é ouvir notas dissonantes vindas de quem deveria ser politicamente responsável.
Entendo as aflições e urgências, afinal completarei 90 anos em alguns meses. Há pressa. Mas que fazer? Não há medicamento específico para o vírus e a vacina (qualquer delas) ainda não está disponível, embora esteja cada vez mais próxima. Por isso mesmo é preciso, pelo menos, que as autoridades não aumentem a algazarra dos que pouco sabem e que, ao falar, meçam o peso de suas palavras. Não é compreensível que países com menos recursos estejam mais perto de ter acesso a uma vacina do que nós.
Sei que para muitos (até mesmo empresas, não só pessoas) é impossível parar. Mas mesmo neste caso que sejam seguidas as prevenções que vêm dos que mais sabem da saúde pública. E que os governos, se não puderem ou quiserem ajudar, não atrapalhem.
Ultrapassaremos estes dias agônicos, sou confiante. Sei que quanto mais depressa chegarem as vacinas, melhor. E enquanto isso que cada um cumpra o seu dever, como disse famoso almirante em momento no qual a guerra era dificultosa para os brasileiros. O momento é duro; confiemos, agindo. E se nada de construtivo pudermos fazer ou dizer, que não atrapalhemos os que sabem e os que estão dando o melhor de si para manterem vivos a si próprios e quem eles tratam.
Estamos a 20 dias do Natal, momento de alegria, fraternidade e renovação. Por uma fatalidade, os dias vindouros serão de máximo perigo. O que se passa nos Estados Unidos já nos deveria bastar como alerta. Uma pandemia fora de controle, com uma previsão assustadora de pico para janeiro de 2021.
*Sociólogo, foi presidente da República
Luciano Huck & Anne Applebaum: 'Forças democráticas precisam se juntar e criar uma contranarrativa à política do ódio'
Para estudiosa em autoritarismo premiada com o Pulitzer, pós-pandemia exige refundar partidos e explicar como as instituições importam para a vida real das pessoas
Texto: Luciano Huck, especial para o Estado de S. Paulo
Anne Applebaum observou de perto, reportou e analisou o colapso dos regimes totalitários comunistas do Leste europeu na virada dos anos 1980/1990. E tem observado de perto, reportado e analisado com argúcia a recente ascensão de governos de extrema-direita na Europa, especialmente na Polônia, onde passou a viver. A historiadora, que foi editora da revista The Economist e colunista do Washington Post, é uma referência em estudos sobre o autoritarismo contemporâneo no Ocidente.
Por dois motivos, eu fui atrás de Applebaum, que hoje dirige um projeto de pesquisa sobre propaganda e desinformação na Universidade Johns Hopkins (Washington DC). Primeiro, porque ela lançou um dos livros mais cirúrgicos de 2020: O Crepúsculo da Democracia, em que ela traça o perfil de personagens europeus e norte-americanos que desembarcaram do projeto humanista lançado no fim da Guerra Fria e que aderiram à nova geração de ideologias iliberais. Segundo, porque parecem voltar a soprar no Ocidente as brisas de uma correção democrática. A vitória estrondosa de Joe Biden sobre Donald Trump, o maior símbolo do que eu chamo de tecnopopulismo, não é trivial e precisa ser entendida – até para ser emulada.
Essa norte-americana de 56 anos, ganhadora do prestigioso Prêmio Pulitzer, foi uma das primeiras a alertar para a transformação de conservadores que diziam acreditar na democracia liberal, no livre mercado e nos pesos e contrapesos do Estado de direito em um monstro indomável que se alimenta do nacionalismo econômico, da tentativa constante de controle sobre a mídia, a polícia e o Judiciário, do isolacionismo, da negação à ciência, dos ataques às minorias e do exercício constante do ódio.
Para Applebaum, não cabe chorar o leite derramado, mas se empenhar em identificar tais forças e rapidamente criar um movimento capaz de brecá-las. Movimento esse que, segundo ela, deveria nascer da refundação dos partidos e, sobretudo, da busca de sensos comuns. É sobre esse irresistível chamado para um reagrupamento político e para a instalação de uma contranarrativa a fim de deter os extremos antidemocráticos que converso a seguir com essa corajosa mulher.
Applebaum se junta, hoje, a outras figuras da vanguarda do pensamento nesta série de entrevistas do Estadão. Notáveis como a economista Esther Duflo (Nobel de 2019), o filósofo Yuval Harari, o guru digital Nandan Nilekani, entre outros, todos eles iluminadores do mundo pós-pandemia, capazes de nos fazer refletir – e, por que não, agir.
VEJA A SÉRIE COMPLETA 'UMA CONVERSA COM LUCIANO HUCK' :
- Yuval Harari
- Michael Sandel
- Nandan Nilekani
- Esther Duflo
- Thomas Friedman
- Peter Diamandis
- Scott Galloway
- Thomas Piketty
- Rutger Bregman
- Fareed Zakaria
- Anne Applebaum
Luciano Huck: Você era aclamada como uma respeitada intelectual conservadora, de inclinação liberal, mas passou a ser vista como “persona non grata” por boa parte da direita na Europa e nos EUA. O que aconteceu?
Anne Applebaum: O movimento conservador se dividiu em dois nos últimos 10, 15 anos. Ainda existe uma centro-direita, a depender do país. Mas uma parte da direita se tornou muito mais radical. E, ao se radicalizar e se tornar dependente de novas formas de comunicação, ela me perdeu. E perdeu muitas outras pessoas também, embora tenha ganho novos seguidores. Na maioria dos países ocidentais, a direita, tal qual a esquerda, sempre foi uma espécie de coalizão, com diferentes correntes dentro dela. O que aconteceu na última década é que a ala radical tomou conta dessa coalizão. E isso ocorreu de várias formas em muitos países.
Luciano Huck: Está cada vez mais difícil pensar sobre direita e esquerda nesse quadro de radicalização extrema. Mesmo que tenhamos 50 ideias alinhadas, uma única ideia dissonante vira pretexto para pedir cancelamento. Lendo sua obra, você já flertou com diferentes vertentes de pensamento. Como você enxerga essa questão hoje em dia?
Anne Applebaum: Os dois lados operam de formas diferentes, usando táticas diferentes, mas ambos buscam cancelar, desmerecer e descartar seus oponentes. Veja a forma como Donald Trump se livrou de tantos republicanos moderados, de qualquer pessoa que fosse mais centrista e que não concordasse com ele. Ele os atacava no Twitter, para depois seus seguidores os atacarem no Twitter. De certa forma, é a versão direitista iliberal do que tem sido feito pela esquerda no meio acadêmico. Ambos os lados políticos se tornaram mais radicais, parcialmente pelo fato de que agora as pessoas estão performando umas para as outras nas mídias sociais. As discussões que antes aconteciam em quartos pequenos agora acontecem na frente de todos. Isso fez com que se tornassem caricaturas ou cartuns.
“A grande ameaça às democracias é o tecnopopulismo, cujos líderes atuam para corroer o Estado por dentro, como cupins, tão logo chegam ao poder”Luciano Huck
Luciano Huck: A grande ameaça às democracias, a meu ver, não se dará por meio de tanques de guerra e de soldados. Estamos vivendo o perigo dos golpes “botox”. Governos eleitos democraticamente, em sua maioria com uma narrativa populista, usando as falhas disfuncionais das redes sociais para amplificar suas mensagens e corroer o Estado por dentro, como cupins. Tome o caso da Polônia. Em 2010, era um dos países mais promissores da União Europeia – uma ilha de inovação, educação e empreendedorismo. Hoje, dez anos depois, temos um governo xenófobo, antidemocrático, antissemita, ultraconservador, extremista. Qual o aprendizado para o Brasil não seguir a mesma perversa trilha?
Anne Applebaum: Bom, o primeiro passo é identificá-los e não elegê-los. Porque, assim que eles ganham a eleição, eles começam a mudar as instituições. O partido que governa a Polônia nem sempre foi radical e extremista. Durante muito tempo, ele pareceu um partido conservador normal, com base ampla e ambições “mainstream”. Foi desse modo que ele ganhou a primeira eleição, em 2015, aliás. O problema foi que, assim que ele tomou o poder, ele começou, como você disse, a alterar o sistema. Ele assumiu o controle da televisão estatal, que era neutra e um tanto tediosa, e a transformou em uma plataforma de campanhas de difamação contra seus oponentes, de forma bastante unilateral e tendenciosa. Ele dominou o tribunal constitucional e mudou sua natureza, para começar a influenciar como a Justiça funciona. E está tentando levar isso ainda mais longe, depois da reeleição.
Para o Brasil, seja a extrema-esquerda ou a extrema-direita, eu diria para que não os deixem dominar a mídia. E, sobretudo, que não os deixem alterar o sistema judicial. Mas o fundamental é tentar convencer as pessoas o quanto antes de que essas coisas que parecem um tanto abstratas importam. Juízes em suas togas, em algum lugar distante, em um tribunal… o que isso tem a ver comigo? Isso pareceu muito remoto para as pessoas na Polônia. Só mais recentemente, quando esse tribunal ilegítimo começou a tomar decisões controversas, como mudar a lei do aborto, é que muitos jovens perceberam que “opa, isso me afeta”. Logo, convencer pessoas rapidamente de que todo tipo de mudança institucional as impacta é muito importante. Na Polônia, a oposição falhou em fazê-lo.
Luciano Huck: O salto qualitativo da Polônia comunista para a Polônia livre e democrática foi gigante, potente a olhos vistos. Agora o país vive um retrocesso também gigante. Difícil de entender. No Brasil, a sociedade é muito desigual, principalmente a desigualdade de oportunidades, que, somada à corrupção endêmica e à falta de um projeto de país, justifica o descontentamento da maioria da população em relação à política e aos políticos. Isso torna o terreno fértil para o nascimento de narrativas antiestablishment, tecnopopulistas. As narrativas populistas vão sempre no caminho mais fácil: “Tem muito crime? Então, vamos armar a população”. O que justificou o surgimento e a eleição de extremistas na Polônia?
Anne Applebaum: Na Polônia, não temos uma sociedade muito desigual. E temos também uma sociedade em que todo mundo, todo mundo mesmo, dos pobres à classe média, às classes mais ricas, está melhor hoje do que há 20 anos. No entanto, os poloneses não estão melhores do que os europeus ocidentais, como os alemães. A raiva aqui é uma raiva com a desigualdade comparativa frente aos países vizinhos. Muitos poloneses passaram a questionar o fato de continuar “atrás” na Europa mesmo após 20 anos de capitalismo e democracia. Essa é uma coisa. Em segundo lugar, e isso é muito diferente do Brasil, é que temos um problema de emigração, não de imigração. Após a queda do comunismo, em 1989, e após a entrada da Polônia na União Europeia, em 2005, muitas oportunidades de trabalho se abriram em outros países. Muitos poloneses foram embora para trabalhar na Inglaterra, na Suécia, na Alemanha. A percepção para muitas pessoas, particularmente para as parcelas mais pobres do país, é a de que nossos filhos estão desaparecendo e o interior do país foi se esvaziando. Em muitos casos, tradições foram perdidas. Isso deu a sensação de que algo essencial sobre o país se perdeu. Isso costuma ocorrer em países durante o processo de modernização. Quando as coisas mudam muito rapidamente, algumas formas de viver de 10, 20 ou 30 anos deixam de existir. Aquela infância de que as pessoas se lembram já se foi. O jeito que elas cresceram já não é o mesmo jeito que seus filhos estão crescendo.
Então, o sentimento de inferioridade comparado ao Ocidente e essa sensação de que os filhos estão sumindo e as coisas estão ficando irreconhecíveis levaram as pessoas na direção de uma política nacionalista, raivosa e emocional. Como a política se moveu de discussões e debates no mundo real para o mundo online, a qualidade e a natureza do debate político mudaram e simplesmente favorecem pessoas raivosas, emocionais e que conseguem falar em frases curtas. E isso aconteceu em todo lugar. O tipo de campanha política conduzida nas redes sociais na Polônia é o mesmo do que foi feito no Brasil e é o mesmo tipo de campanha que Donald Trump conduziu nos EUA. A política mudou de algo que acontece na vida real para algo que acontece na internet – e isso é uma grande oportunidade para, como você disse, tecnopopulistas.
Luciano Huck: Seja a União Europeia, que hoje exige da Polônia e da Hungria que garantam o estado democrático de direito para ter acesso a recursos emergenciais pós-pandemia. Sejam as grandes potências mundiais engajadas na construção de uma economia mais limpa, que hoje pressionam o Brasil por um compromisso de fato com a preservação ambiental. Como você avalia essa atuação internacional de defesa da democracia, esse exercício global de pesos e contrapesos?
Anne Applebaum: Eu acho que algumas pressões são úteis, mas outras, não. A União Europeia teve muitos problemas em entender como reagir à Polônia e à Hungria, porque ela não foi estabelecida para punir seus próprios membros. Um dos grandes erros que o mundo liberal cometeu, sejam partidos políticos, jornalistas e, em alguns casos, chefes de Estado, como Angela Merkel e outros líderes da Europa, foi o de não pensar mais a fundo sobre como criar uma contranarrativa. Essa nova extrema-direita, tecnopopulista como você citou, trabalha junta, conectada, e compartilha táticas, consultorias, ideias de propaganda. Aqui na Polônia temos quatro partidos de oposição que não se unem em torno de uma mensagem comum. Mesmo o Partido Democrata nos EUA tem duas ou três diferentes facções, com dificuldade de se unir. Criar uma mensagem única em torno dessas grandes ameaças à democracia e encontrar formas de trabalhar juntos, além das fronteiras, para ajudar uns aos outros, é algo que ainda não foi feito. As forças democráticas ainda encaram a política como algo doméstico, nacional, feito apenas dentro das fronteiras. Mas a extrema-direita não pensa assim: ela atua internacionalmente, o que é estranho e paradoxal, já que é nacionalista. Até os trolls online da direita fazem as mesmas coisas em diferentes países. O centro, a centro-direita, a centro-esquerda, os liberais, os movimentos verdes, eles não entenderam que precisam trabalhar juntos, contra-atacar juntos
Luciano Huck: A eleição de Joe Biden, nos EUA, tem qual efeito nessas democracias iliberais e populistas que se multiplicaram mundo afora?
Anne Applebaum: Ela é relevante, mesmo que apenas simbolicamente. O simples fato de termos Trump como líder dos EUA era uma inspiração para a extrema-direita em todo o mundo. Seria mais importante se, como parte de sua política externa, Biden começasse a juntar líderes de democracias ao redor do mundo para ajudar a criar uma nova narrativa para promover a democracia e os valores liberais. Seria mais do que um projeto de mídia ou de diplomacia. É profundo. O que as nossas democracias podem fazer juntas? Podemos reformar a internet juntos? Podemos constranger as plataformas de internet juntos? Podemos juntos parar a lavagem de dinheiro internacional e o dinheiro sujo que distorcem toda a nossa democracia? Dizer que somos todos uma democracia não é o bastante. Precisamos de novos grandes projetos que mudem a forma como a política e a sociedade funcionam e com os quais as pessoas se identifiquem. Biden terá de confrontar a maior crise econômica na história americana recente, a maior crise de saúde pública da história americana recente, terríveis e maculadas relações ao redor do mundo, graças à desastrosa administração de Donald Trump. Ou seja, terá um problema atrás do outro. Mas parece que está surgindo o entendimento em Washington de que acabou a ideia de que os EUA, sozinhos, podem liderar o mundo democrático. Os EUA precisam trabalhar juntos com aliados e parceiros, talvez até com grupos de oposição, no Brasil, na Rússia ou em outros lugares, para atingir os objetivos que pretende.
“Temos uma relação exageradamente passional com os políticos. Deveríamos estimular a capacidade de análise de ideias e projetos, como clientes-cidadãos”Luciano Huck
Luciano Huck: Enxergo alguns desses governos tecnopopulistas, mesmo sendo de extrema-direita, voltando os olhos para Vladimir Putin. Não me assustaria o atual governo brasileiro migrar de uma narrativa de subserviência a Trump para Putin.
Anne Applebaum: É possível. Certamente é o que vai acontecer na Hungria e em alguns outros países na Europa Oriental. Não na Polônia, que continua a ter medo de Putin. Mas, sim, é possível.
Luciano Huck: A pandemia trouxe para o centro do debate temas muito importantes que não tinham o devido protagonismo. Combate às desigualdades, racismo, antirracismo, feminicídios, igualdade de gênero. Aliás, as melhores gestões da crise sanitária e econômica da covid-19 foram lideradas por mulheres, casos de Angela Merkel e Jacinda Ardern. Como você, como uma mulher de voz potente e ouvida ao redor do planeta, enxerga essa questão?
Anne Applebaum: Na minha visão, você deveria fazer a pergunta ao contrário. A pergunta deveria ser “Os países que estão preparados para eleger mulheres a posições de poder se saíram melhor na pandemia?”. Em outras palavras, não acho que foi o fato de as líderes serem mulheres, mas o fato de que esses países estavam maduros para ter mulheres em cargos de liderança. O que ficou claro na pandemia é que os países que se saíram melhor foram aqueles com maiores índices de confiança no poder público e na ciência. Olhando apenas para democracias: Nova Zelândia, Alemanha, Coreia do Sul, Taiwan, em todos esses casos havia uma questão de crença, de fé na burocracia pública, nos serviços e servidores públicos.
Luciano Huck: Estar no debate público exige um grande estoque pessoal de felicidade. É preciso ter muita energia para gastar e não se deixar derrubar. Você está nessa arena há um bom tempo, se envolvendo em temas espinhosos. Como é isso para você?
Anne Applebaum: Essa é uma pergunta interessante, porque é algo que mudou muito. Se você é político, jornalista ou alguém com esse tipo de atuação, sempre foi normal encontrar pessoas que discordam de você, algumas delas desagradáveis. Mas até uns dez anos atrás você não era o foco da raiva, do ódio dessas pessoas. Hoje, se você está na vida pública, em qualquer posição, se você for uma celebridade, um popstar, um atleta, tendo ou não a ver com política, você terá de se acostumar com a existência de campanhas negativas nas redes sociais, desse lado feio da natureza humana, que vem à tona especialmente quando as pessoas conseguem ser anônimas. Você precisa aprender a lidar com isso. A minha forma é simplesmente ignorar os ataques, mas é muito difícil as pessoas aprenderem isso. Você deve ter o mesmo problema, não? Espero que algum dia encontremos uma maneira de regular as plataformas sociais, não censurá-las, mas de encontrar alguma forma, algum algoritmo, que favoreça o discurso construtivo e um melhor diálogo. Esse é o meu grande desejo para a próxima década. Muita gente decente gostaria e poderia estar na vida pública, na política, e não o faz por medo dessa onda de lixo, dessas campanhas de difamação, mentiras e ódio. E me preocupa que a qualidade da vida pública sofra por causa disso, especialmente em democracias.
“A política permite reagrupamentos, e devemos tirar proveito disso. Pense não somente em quem são seus aliados, mas também em quem poderá ser seu aliado.”Anne Applebaum
Luciano Huck: Ultimamente, as pessoas têm criado relação exageradamente passionais com os partidos e os políticos. Em vez de uma relação de noivado, deveríamos construir uma relação de clientes-cidadãos, com uma melhor capacidade de análise de ideias e projetos. Como se estivéssemos contratando um serviço, e não fazendo um pedido de casamento. Como você enxerga a formação de novas lideranças e o futuro da política partidária?
Anne Applebaum: Concordo com você. Estamos desesperadamente necessitados de um novo modelo de partido político. A social-democracia na Europa nasceu de sindicatos e grêmios, de pessoas reais se encontrando no trabalho. A democracia cristã, que compõe os principais partidos de direita e centro-direita na Europa, surgiu de movimentos baseados na igreja, não na religião, mas em grupos religiosos, pessoas reais que se conheciam em clubes da juventude católica e fóruns assim. Hoje, não está mais clara a conexão dos partidos com as pessoas. Eles perderam sua raiz e seu propósito. E, nesse sentido, não surpreende que as pessoas estejam começando novos movimentos políticos na internet. As pessoas agora experimentam a política de forma online e procuram pessoas online com quem possuam coisas em comum. Há um partido político na Europa que nasceu de um fórum de discussão na internet, o Movimento 5 Estrelas, da Itália. Infelizmente, nunca teve políticas muito claras e atraiu pessoas aleatórias e líderes iliberais. Mas é uma experiência interessante: uma forma de juntar pessoas em torno de um determinado conjunto de problemas, discutir esses temas online e criar um movimento político significativo. Suspeito que vamos ver mais casos desse tipo. Se você conseguir fazer com que as pessoas se motivem a trabalhar em suas comunidades, focando em problemas reais em vez de problemas de guerra cultural, que só fazem as pessoas sentirem raiva, isso pode fazer com que novas pessoas entrem na política. Ainda precisamos de partidos, do contrário nossos sistemas parlamentares não funcionam muito bem. Mas concordo com você de que os partidos modernos, como eles existem hoje, não refletem mais uma visão coerente de mundo.
Luciano Huck: Além de perder a capacidade de liderar qualquer agenda global, durante a pandemia o Brasil tornou-se um país a ser evitado. Nosso fracasso no combate à doença, impulsionado pelo negativismo do governo, que também atropelou nossa cultura, nosso patrimônio histórico, somado à destruição da Amazônia e a uma não política de defesa da floresta, o que afasta investidores relevantes, nos isolou do mundo e nos colocou nas piores condições possíveis para superar a profunda crise econômica. Como você avalia a situação do Brasil?
Anne Applebaum: Eu não sou uma expert sobre o Brasil, embora já tenha estado aí e adoraria voltar. Mas a lição para o Brasil é a mesma para tantos outros países. É ridícula a ideia de que o Brasil conseguirá prosperar, se desenvolver e melhorar a vida de seus cidadãos ao se descolar do resto do mundo. Nenhum de nós consegue viver sozinho. A pandemia nos ensinou que estamos todos conectados. A começar pela rapidez do contágio, causada pelo fluxo global de viagens. Do mesmo modo, as vacinas e os remédios para a doença são soluções globais, serão distribuídas graças a instituições internacionais. São farmacêuticas americanas trabalhando junto a empresas alemãs; uma das principais empresas alemãs é liderada por um casal turco-alemão, que é imigrante; a testagem dessas novas vacinas e tratamentos foi realizada ao redor de todo o mundo, África do Sul, Brasil, EUA, Grã-Bretanha... Todos nós estamos absolutamente integrados no mundo, querendo ou não. Assim, se o Brasil deseja prosperar e os brasileiros querem que o seu país seja mais feliz e mais habitável, eles precisam estar integrados ao resto do mundo e precisam se perguntar se possuem um governo que os sirva nesse sentido. A Amazônia é o seu grande tesouro internacional. É o que vocês possuem que os distingue. Cuidar dela e investir nela, preservando-a para futuras gerações, é uma das maiores coisas que o Brasil pode fazer para se tornar uma grande nação. Imaginar que queimá-la vai contribuir de alguma forma para o bem-estar dos brasileiros é estranho e errado.
“Muita gente decente gostaria e poderia estar na vida pública, na política, e não o faz por medo dessa onda de lixo, dessas campanhas de difamação, mentiras e ódio.”Anne Applebaum
Luciano Huck: No seu livro, você lembra uma passagem interessante da “sua turma de 1999”, usando uma festa de réveillon na sua casa como pano de fundo. Aquele grupo hoje em dia nem se cumprimenta em razão de divergências políticas e visões distintas sobre a democracia. Se você fizesse uma festa hoje na sua casa, qual seria o assunto? E como você imagina esse grupo daqui a 20 anos?
Anne Applebaum: A política promove reagrupamentos. Pessoas que antigamente eu considerava esquerdistas demais para conversar hoje são meus amigos. Pessoas que eram meus amigos agora estão em algum outro lugar. Esses reagrupamentos políticos acontecem periodicamente. Não há nada de estranho nisso. Na verdade, deveríamos tirar proveito disso. Acho que a lição da minha festa de 1999 é “tenha certeza que você terá sempre a capacidade de fazer novos amigos”. Ou, colocando de outra forma, “pense sempre em quem são os seus aliados, mas também em quem poderá ser seu aliado”. Se o projeto é proteger a Amazônia, por exemplo, ou transformar a economia brasileira, observe ao redor para entender quais grupos sociais, quais pessoas, quais partidos políticos poderão ser os seus aliados, mesmo que você ainda não os conheça. Encontre novos aliados, faça novas coalizões. As velhas coalizões podem não ser mais as corretas.
Luciano Huck: Muito obrigado.
Adriana Fernandes: Vitória de Pirro
Ao deixar muitos restos a pagar, ministérios gastadores podem virar caloteiros
Por completo descaso e até com apoio do governo Bolsonaro, os parlamentares vão deixar a votação do Orçamento de 2021 para o ano que vem. Não é a primeira vez nem será a última que isso acontece.
Tem até quem diga que essa foi a melhor decisão para governo e parlamentares ganharem tempo, apararem arestas provocadas pelas eleições do comando da Câmara e Senado e chegarem, ao final, a um consenso sobre medidas que viabilizem a retomada, o ajuste das contas e o enfrentamento daquele que deverá ser o maior problema da economia em 2021: o aumento do desemprego.
A procrastinação está sendo comemorada.
Acontece que, no vácuo da ausência da votação, o Orçamento de 2021 já começa a ganhar forma antes mesmo de qualquer decisão dos parlamentares e certamente antes da virada do ano em 31 de dezembro, que marca também o fim do auxílio emergencial.
O quadro não é nada animador, porque a demarcação de território dentro do Orçamento por vias alternativas traz mais incerteza e tem consequências ainda difíceis de avaliar, enquanto a economia real sente os efeitos da pandemia.
Duas decisões importantes foram tomadas pelo Tribunal de Contas da União em julgamento nessa semana. Na prática, elas antecipam o Orçamento de 2021 ao permitir que um volume maior de gastos de 2020 “transborde” para o ano que vem.
O tamanho potencial desse vazamento de despesas é ainda uma incógnita, com governo, TCU e analistas do mercado ainda debruçados cada um à sua maneira para fazer as contas.
Mas a melhor tradução do que aconteceu é dizer que essas despesas vão “comer” o Orçamento de 2021 e deixar ainda mais confusa a sua gestão.
Na primeira decisão, o TCU decidiu que despesas ordinárias, sujeitas ao limite do teto de gastos e sem relação com o orçamento de guerra de enfrentamento à pandemia, ganham mais tempo e podem ser executadas até 31 de dezembro de 2021. Algumas delas nem sequer existem de fato ou passaram pelo primeiro estágio do processo orçamentário.
Na segunda decisão, créditos extraordinários fora do teto, abertos em 2020 para viabilizar despesas emergenciais de combate à covid-19 no período da calamidade, também poderão ser estendidos até 31 de dezembro de 2021.
É sobre esse segundo grupo de despesas que ronda no momento a atenção de todo mundo. Se novos créditos extraordinários forem apresentados ainda em 2020, é por aí que se poderá buscar mais recursos para a prorrogação do auxílio emergencial no ano que vem, com a “sobra” desses créditos. Esses gastos ficariam fora do teto. Qualquer novo crédito, porém, dependeria da assinatura de uma Medida Provisória pelo presidente Jair Bolsonaro, que até agora disse que não o fará.
Até a decisão do TCU, o governo estava prestes a editar uma portaria para controlar o empenho do estoque de créditos extraordinários já aprovados nessa reta final do ano. Agora, estuda um decreto para diminuir o vazamento das despesas em 2021.
O fato é que a decisão do TCU pode representar uma vitória de Pirro para os ministérios gastadores.
Isso porque a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) determina que os recursos financeiros de cada ministério, em cada ano, têm que ser iguais aos créditos orçamentários, para que não haja risco de descumprimento da meta de primário. Na prática, só pode desembolsar efetivamente o mesmo valor já previsto no Orçamento.
Então, se o ministério levar de 2020 para 2021 muitos restos a pagar (RAPs), como são chamadas no jargão econômico as despesas transferidas de um ano para outro, a quitação dessas despesas vai consumir grande parte dos recursos disponibilizados. Ou seja, sobra menos dinheiro para pagar as despesas correntes do ano. A escolha precisará ser feita.
O que vai acontecer?
Vai chegar o segundo semestre de 2021 e o dinheiro terá acabado. E não adianta tentar tirar de outros ministérios, porque como o orçamento de despesas está pequeno para todos, ninguém vai liberar o limite financeiro para outro ministério e deixar de pagar as suas despesas.
Logo, os ministérios que enfiarem o pé na jaca e registrarem RAPs fora da regra vão começar a atrasar os seus pagamentos, passando de ministérios gastadores para ministérios caloteiros.
Quanto mais eles exagerarem nos RAPs, mais tempo levarão para voltar a pagar em dia as suas despesas.
A outra consequência poderá ser uma situação de pressão adicional em favor da quebra do teto, já que mais ministérios poderão entoar a narrativa de que ficaram sem dinheiro por causa do limite de despesas, e não porque exageraram nas promessas de gastos.
Bem parecido com aquela jiboia que come um bezerro e fica dias tentando digerir.