o estado de s paulo
José Serra: A dimensão federativa da crise
A solução da crise passa por um federalismo de cooperação, como vem apontando Joe Biden
A economia brasileira está lidando com desequilíbrios das contas públicas simultâneos com uma pandemia imprevisível. Há forte pressão da sociedade por aumento de gastos na área social, ao mesmo tempo que os orçamentos das três esferas de governo – União, Estados e municípios – não apresentam capacidade fiscal para dar conta dessa necessidade de apoio estatal. Neste cenário incerto, uma certeza pode ser considerada apartidária: a crise fiscal tem dimensão federativa.
Sabe-se que o Brasil é uma República Federativa formada pela união indissolúvel dos Estados, municípios e do Distrito Federal. É o que está escrito no primeiro artigo da nossa Constituição. Mais ainda, nossa República se apresenta como uma organização político-administrativa que compreende três esferas de governo autônomas, nos termos do artigo 3.º da nossa Lei Maior.
Pode-se debater o tema, mas não se pode negar que nosso federalismo começa com duas palavras: união e ampla autonomia. Na maioria dos sistemas federativos os governos locais são “extensões” dos Estados federados, ao passo que no Brasil os municípios não estão subordinados a nenhuma outra esfera da Federação. É o acordo que se estabeleceu na Constituição, como condição de cláusula pétrea.
Bem, essa noção de que precisamos manter a integridade do nosso federalismo fiscal, um dos pilares da nossa Constituição, é fundamental no contexto da crise atual. Tenhamos claro que o País só vai sair desta crise e conseguir deslanchar, reduzir as desigualdades e promover o bem de todos – os objetivos da República previstos no mesmo artigo 3.º – se tornar viável um plano de curto e médio prazos, politicamente acertado com a participação das lideranças das três esferas de governo e da sociedade.
Ainda assim, o desafio é maior: essa concertação política deve envolver os três Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário. Ou alguém ainda duvida de que medidas e ações precipitadas, ou autoritárias, de algum modo desequilibradas em matéria federativa, serão provavelmente revertidas pelo Congresso Nacional e/ou pelo Supremo Tribunal Federal (STF)? Aqui cabe lembrar nosso histórico de decisões tomadas por esses dois Poderes, alterando ou moldando iniciativas do Poder Executivo federal.
Nota-se nesse contexto próprio que importar o federalismo de colisão patrocinado pelo presidente americano, Donald Trump – União versus Estados –, é uma estratégia perigosa. Basta perceber que, se os Estados e municípios brasileiros não forem capazes de financiar suas despesas, o Brasil simplesmente para de prover bens e serviços públicos para a sociedade. Isso porque somos uma das Federações mais descentralizadas do planeta, em que quase a metade do gasto público total está alocado nos orçamentos dos governos estaduais e municipais.
Vejamos alguns números sobre o nosso federalismo fiscal a fim de evidenciar a perspectiva federativa da nossa crise fiscal em tempos de pandemia.
Os gastos com salários no setor público, sem considerar proventos de aposentadorias, representaram cerca de 13,3% do produto interno bruto (PIB) em 2019, sendo 9,1% referente a Estados e municípios. Isto é, para cada R$ 100 que são gastos com salários no setor público brasileiro, basicamente R$ 70 se referem a servidores estaduais e municipais. Em relação à contratação de bens e serviços, o Estado brasileiro gasta cerca de 5,3% do PIB, sendo que os Estados e os municípios respondem por 85%. E com relação às despesas com consumo de capital fixo? Mais de dois terços são realizados pelas administrações públicas estaduais e municipais.
Foi nessa conjuntura do sistema federal brasileiro que o Congresso Nacional aprovou o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus. Assim que a pandemia invadiu o País – paralisando a atividade econômica e colapsando o sistema público de saúde –, a arrecadação de tributos despencou. Ao mesmo tempo, houve significativo aumento das despesas com ações governamentais adicionais para o enfrentamento da proliferação do vírus nas cidades brasileiras.
A espinha dorsal do pacote de ajuda consistiu em dois tipos de socorro financeiro: um auxílio financeiro de R$ 60,1 bilhões e a suspensão das dívidas dos entes da Federação com a União e os bancos públicos, totalizando uma folga no caixa dos Estados e municípios de R$ 47,5 bilhões. Algumas questões ainda estão sendo discutidas no Congresso, como a retomada gradual dos pagamentos das dívidas com a União, levando em consideração que os efeitos negativos da redução da atividade econômica e as ações de combate à pandemia ainda persistirão, pelo menos, no médio prazo.
É importante ter claro que as medidas a serem tomadas daqui para a frente devem assumir a dimensão federativa da crise. O governo federal precisa assumir a liderança das negociações sobre as necessárias reformas na área econômica, sem perder de vista a responsabilidade fiscal e as características do nosso sistema federativo. Bom é dizer que a solução passa por um federalismo de cooperação, como, aliás, vem apontando o novo presidente dos EUA, Joe Biden, no contexto norte-americano.
*Senador (PSDB-SP)
William Waack: A guerra foi perdida
A própria falta de liderança explica os reveses de Jair Bolsonaro
Jair Bolsonaro perdeu a “guerra” da vacina contra a covid-19. Se não capitular por decisão própria, e há sinais de que isto já está acontecendo, o STF imporá o óbvio: governadores e prefeitos dispõem de instrumentos legais suficientes para seguir adiante com planos de vacinação, não importa o que diga o general cumpridor de ordens no Ministério da Saúde. A onda que o leva à derrota é irresistível, e Bolsonaro só não foi capaz de enxergar a dimensão dela por conta do fenômeno da “mentalidade do bunker” – a que acomete dirigentes que só ouvem puxa-sacos ou vivem mergulhados numa atmosfera peculiar desvinculada da realidade além das quatro paredes palacianas. É gritantemente óbvio que milhões de pessoas querem se agarrar a qualquer esperança na luta para sobreviver ao vírus.
Era também gritantemente óbvio o impacto do noticiário e das imagens de países como o Reino Unido vacinando em massa sua população, além da reação de esperança e euforia dos mercados com a chegada de vacinas de eficácia (ao que indicam os dados) superior à expectativa inicial. Esses fatores criaram um “momento” na política avassalador: aquele que cobra e premia ações rápidas e decisivas, a superação imediata de qualquer tipo de barreira burocrática ou regulatória.
Ao politizar de forma tosca e contraproducente desde o início todas as medidas em relação à pandemia, é Bolsonaro o principal responsável pelo ambiente no qual governadores como João Doria (mas não só) enxergaram no desafio ao governo federal uma oportunidade de ganhar algum tipo de perfil. Ele mesmo desmoralizou sucessivos ministros da Saúde, incluindo o atual – um general cuja inadequação ao cargo e a vontade de agradar um chefe errático o condenam a um desempenho patético quando se dirige ao público para se desdizer em sequência.
Governadores e prefeitos estão empenhados em conseguir como seja os meios para vacinar “suas” populações e, mesmo aqueles que mantêm uma aparência de “coordenação” e “confiança” em relação ao governo federal, afirmam em público que possuem um plano de contingência para o caso de não se materializar um plano centralmente coordenado para imunizar milhões de brasileiros. Em outras palavras, não confiam, e vão correr para a primeira vacina que aparecer. Exatamente o que cobra a população.
A derrota na “guerra” da vacina é, no final das contas, resultado da incapacidade de Bolsonaro de efetivamente liderar em qualquer questão relevante, em qualquer campo. Sua política externa prejudicial aos interesses nacionais está sendo desmontada por vários setores privados. Na nevrálgica questão das políticas ambientais, conseguiu criar uma inédita coligação doméstica e externa contra ele, integrada por instituições e empresas de peso dentro e fora do Brasil, além de reforçar a rivalidade com o vice presidente que cuida da Amazônia.
Sua “articulação” política resultou na entrega ao amorfo grupo do centrão das principais agendas, além da chave dos cofres públicos. Seus líderes parlamentares – alguns deles são quadros parlamentares experientes e focados – manifestam abertamente a frustração pelo fato do presidente não ter sido capaz de dar o impulso político (leia-se empenho) para seguir adiante com corte de subvenções, reforma tributária, efetivo corte de despesas (como folha do funcionalismo) nas contas públicas, desburocratização, privatizações.
Não houve liderança efetiva sequer para a criação de um programa de renda básica que permita prosseguir de alguma maneira a ajuda emergencial – fator de conforto para a popularidade para o presidente mas que apenas mascara os problemas graves estruturais de uma economia há muito estagnada. Bolsonaro costuma cultivar versões fantasiosas dando conta de “conluios” que o impediriam efetivamente de governar. Mas quem renunciou a liderar foi ele mesmo.
Vera Magalhães: Acossado pela vacina
Bolsonaro enfrenta pressão pelo boicote que promoveu à imunização
As imagens das primeiras pessoas, na maioria idosos sorridentes e esperançosos, sendo vacinadas no Reino Unido emocionaram quem assistiu televisão neste início de semana, e a chegada do tão esperado imunizante trouxe a cobrança que seria inevitável: e nós, e o Brasil?
Nós somos governados por Jair Bolsonaro, e esta é a razão pela qual o País está hoje lá atrás na corrida global pela vacinação contra o novo coronavírus.
O presidente negacionista está sentindo agora o resultado de seu negacionismo desde o início da pandemia: Bolsonaro é hoje um líder acossado pelos cidadãos, ávidos pela vacina, e pelos políticos, que também sentem a cobrança da população de seus Estados. E ela vai crescer e ganhar as ruas.
A imprensa sempre alertou que não adiantava o presidente se comportar como um antivax irresponsável e liberar sua tropa inconsequente, capitaneada por deputados como Bia Kicis, para vomitar sandices nas redes sociais, como aquela segundo a qual vacinas podem alterar o DNA das pessoas. Quando as vacinas começassem a ser ministradas mundo afora a omissão do governo federal ficaria patente.
Mas o que colocou fogo no pavio da pressão sobre Bolsonaro e seu ministro da Saúde, o titubeante e suarento general Eduardo Pazuello, foi o movimento, também político, do governador de São Paulo, João Doria Jr., de fixar uma data para o início da imunização no Estado com a Coronavac (que ainda não apresentou os estudos de fase 3, que comprovam a eficácia, e até agora não tem aprovação nem da Anvisa nem de agências internacionais).
Diante da data de 25 de janeiro, governadores de todos os Estados foram a Brasília cobrar do ministro um plano que não deixe as demais unidades da federação de fora.
Com sua franqueza crua, o prefeito Alexandre Kalil (PSD), reeleito em primeiro turno em Belo Horizonte, vaticinou em entrevista recente ao Roda Viva que Bolsonaro não teria como negar o acesso dos brasileiros à vacina quando ela chegasse, qualquer que fosse ela, mesmo a “chinesa” Coronavac: “Isso é crime! É impeachment!”.
É o medo do impeachment e de uma queda ainda maior na popularidade que justifica a corrida desengonçada do presidente, de Pazuello e do entorno dantesco por mostrar iniciativa na busca por uma vacina — até agora vale qualquer uma, menos a do Butantan.
Bolsonaro e os filhos, que incentivavam a criminosa pregação antivacina, agora defendem a imunização em suas redes sociais. Sumiram cloroquina, invermectina e outros embustes que eles e até o dublê de ministro da Ciência e astronauta tentaram enfiar goela abaixo de incautos. E com os quais torraram bilhões de dinheiro público em estudos inócuos e compras injustificáveis. Todo esse show de horrores não tem até aqui nenhuma responsabilização judicial.
Mas agora o cerco se fecha. O STF e o Congresso devem adotar medidas nos próximos dias aumentando a pressão sobre o Ministério da Saúde e a Anvisa. Governadores farão fila no Supremo cobrando o dispositivo da “Lei Covid-19” (13.979) para que vacinas sejam validadas pela Anvisa imediatamente, se já tiverem aprovação de uma de quatro grandes agências internacionais.
O prazo de fevereiro para a aprovação das vacinas que o “especialista em logística” (sic) Pazuello deu será encurtado por ele e por Bolsonaro em novas declarações atabalhoadas.
Vacina é uma conquista da civilização. A jornada da Ciência para criar e aprovar em tempo recorde imunizantes com diferentes tecnologias para o novo coronavírus é mais um capítulo emocionante dessa epopeia.
Que no caminho entre o nós e a vacina esteja um governante que tem profundo descaso pela vida é mais um dos infortúnios que o Brasil tem de enfrentar por ter, em 2018, votado majoritariamente em alguém inepto para presidi-lo.
Rosângela Bittar: Os prazos e o desespero
O trágico enredo da pandemia parece ter chegado ao limite com a indefinição sobre a vacina
Começando pelo fim: os prazos costumam definir a tolerância que a sociedade concede aos governos e líderes. Ao se esgotarem, alteram o humor das mais passivas e indiferentes criaturas. Então, o desespero, que parecia contido, transborda, como um aviso aos governantes. Sinalizou-se, no caso da negligência homicida com a imunização contra o coronavírus, que algo precisa ser feito. É imperativa uma intervenção no ritmo da insensatez do presidente Jair Bolsonaro.
Não se propõe impeachment, esclareça-se. Até os eleitores frustrados o desprezam. Mas os poderes Legislativo e Judiciário, os Estados e municípios, as instituições de Estado, os movimentos sociais, dispõem de meios e métodos menos agudos e mais eficientes.
Ontem, em Brasília, empreendeu-se uma dessas batalhas. Em reunião com o ministro da Saúde, os governadores pretenderam mover o governo Bolsonaro em alguma direção. Apesar do mundo civilizado estar celebrando o início da imunização no Reino Unido, pediam o básico do óbvio. O tenso encontro produziu as promessas de sempre, mas apressou o anúncio de intenções negociadas de véspera.
No primeiro encontro, há um mês, Eduardo Pazuello anunciou que iria adquirir a vacina do Instituto Butantã, desenvolvida com o laboratório chinês Sinovac. No dia seguinte recuou, sob vara, com advertência pública do presidente. Ontem, fez nova promessa, de compra da vacina da Pfizer, que o sistema não tem nem condições de armazenar a 70 graus negativos. Mas desta não deve recuar. A vacina é americana e o protocolo de intenções para adquiri-la foi assinado ontem mesmo.
Já esperado, a reunião produziu mais um lance na disputa política de Bolsonaro com João Doria. Ao condenar planos estaduais de vacinação, como o de São Paulo, que contrapôs ao plano nacional, inexistente, o ministro não deu transparência ao que fará com a vacina do Butantã.
A série histórica de afirmações e recuos de Pazuello e Bolsonaro não animam expectativas positivas.
No caos que se delineia, os governadores devem esperar um desfecho carregando pedras, pois têm novo obstáculo imediato, o descaso culposo da Anvisa. O órgão regulador assumiu o critério político para a questão sanitária. E produziu uma pérola de bula administrativa: “Para a solicitação do uso emergencial é esperado que sejam apresentados minimamente os dados descritos do guia sobre os requisitos mínimos para submissão de solicitação de autorização temporária…” Ainda tirou da sacola um prazo novo: depois de receber a papelada final, vai precisar de 60 dias para ruminá-la.
A loucura federal deixou sem sentido a escalada de fortes adjetivos com que cidadãos e críticos se referem ao governo Bolsonaro. Demência. Fascismo. Obscurantismo. Ignorância. Ao se completarem, amanhã, nove meses de devastação e isolamento social, o trágico enredo da pandemia parece ter chegado ao limite.
O governo, com seus tanques movidos a ódio, insulta a população, acuada, tentando exercer discretamente seu direito à sobrevivência. E a ataca, de um lado, com a bandeira do Ministério da Saúde, o campeão da morte. De outro, com a bandeira do Ministério da Educação, o vice-campeão. Repartição que se atribui a tarefa de manter sob tensão e risco 53 milhões de estudantes, 2,6 milhões de professores e outros tantos milhões de servidores das escolas. E suas famílias.
Em nove meses de pandemia, o terceiro ministro da Saúde do governo Bolsonaro foi incapaz de negociar para o País uma única dose de vacina. O quarto ministro da Educação foi incapaz de organizar a reabertura de uma única escola. Bolsonaro segue na sua fixação: a campanha eleitoral de 2022. É de reeleição que trata ao se empenhar no domínio do Poder Legislativo. É de reeleição que se ocupa ao providenciar reforma ministerial para ampliar o cofre do Centrão. Sem ilusões: não estaria a vacina sendo usada também na barganha dos interesses eleitorais?
O Estado de S. Paulo: Disputa pela Câmara já divide grupo ligado a Maia
Após STF barrar reeleição, siglas discutem nomes de candidatos, e Planalto entra na sucessão no Congresso; líderes querem evitar que um partido controle as duas Casas
Camila Turtelli, Daniel Weterman e Jussara Soares, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Uma disputa interna ameaça desidratar o bloco de aliados do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para a eleição da cúpula do Congresso, em fevereiro de 2021. Desde domingo, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu barrar a possibilidade de recondução de Maia ao comando da Câmara e de Davi Alcolumbre (DEM-AP) à presidência do Senado, as negociações entre os partidos se intensificaram e o Palácio do Planalto entrou no jogo com mais “tinta na caneta”. Agora, o vice-presidente da Câmara Marcos Pereira (Republicanos-SP), ameaça sair do grupo de Maia e lançar candidatura avulsa, abrindo um racha no bloco.
Pereira está insatisfeito com o que considera predileção de Maia por outros pré-candidatos à sucessão na Câmara, como os deputados Baleia Rossi (MDB-SP) e Aguinaldo Ribeiro (Progressistas-PB). “Não aceito entrar em jogo jogado”, disse ele ao Estadão/Broadcast. Bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, Pereira preside o Republicanos e está sendo cortejado pelo deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), rival de Maia e pré-candidato à presidência da Câmara. Chefe do Centrão, Lira conta com o apoio do Palácio do Planalto.
LEIA TAMBÉM
Saiba quem são os cotados para substituir Maia e Alcolumbre no Congresso
A reportagem apurou que na negociação para que Pereira apoie Lira entrou até mesmo a oferta de um ministério. O vice-presidente da Câmara foi ministro da Indústria e Comércio Exterior no governo de Michel Temer, mas negou que tenha sido convidado novamente para ocupar uma cadeira na Esplanada. “Não procede”, disse. Na semana passada, um dos quadros evangélicos do Republicanos no Maranhão ganhou a presidência da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).
A ideia de Maia é lançar um candidato com apoio de um bloco formado por DEM, MDB, PSDB, Cidadania, além do Republicanos, PSL, PROS e partidos de oposição. Se todas essas legendas estivessem unidas, o bloco do presidente da Câmara reuniria aproximadamente 300 dos 513 deputados para enfrentar Lira e o Centrão. O problema é que, além de divergências entre os que já acompanham Maia há algum tempo, a esquerda também está dividida.
Com cerca de 130 votos, siglas como PT, PDT, PSB, PSOL e PCdoB são hoje consideradas como “fiel da balança” na eleição da Câmara. O PT e o PSB estão rachados e alegam que precisam saber quem será o candidato de Maia. Negociam, ainda, cargos em comissões e na Mesa Diretora, além de emendas ao Orçamento.
Antes do racha, o grupo de Maia havia acertado que a escolha do candidato do bloco à presidência da Câmara seria feita até o dia 15. Além de Pereira, que ameaça sair do grupo, estão nessa lista os deputados Baleia Rossi (MDB-SP), Elmar Nascimento (DEM-BA), Aguinaldo Ribeiro (Progressistas-AL) e Luciano Bivar (PSL-PE). Ribeiro é do mesmo partido de Lira e sua eventual entrada no páreo poderia provocar outra crise política.
Maia não quis se manifestar sobre as defecções no grupo. Seus interlocutores, porém, disseram que já fazem as planilhas com previsão de quantos votos o bloco terá sem contar com a participação de Pereira.
Mesmo partido
Como se não bastassem as disputas internas, há também mais um impasse: líderes de partidos da Câmara e do Senado tentam evitar que os comandos das duas Casas fiquem mais uma vez nas mãos de um mesmo partido. Atualmente, o DEM tem a presidência da Câmara e do Senado.
A ideia, agora, é construir uma “solução casada”. Isso significa que, para o MDB conseguir o apoio de outras legendas a um candidato à sucessão de Alcolumbre no Senado, o deputado Baleia Rossi, que comanda o partido e é um dos cotados para presidir a Câmara, deve abrir mão da disputa.
Fora do jogo por determinação do Supremo, Alcolumbre é apontado como forte cabo eleitoral. O presidente do Senado dava como favas contadas que a Corte avalizaria sua entrada na eleição, embora a Constituição proíba a recondução na mesma legislatura. A solução jurídica estava acertada entre a maioria dos magistrados, mas a pressão da opinião pública pesou para a mudança.
Com 13 integrantes, o MDB vai reivindicar a presidência do Senado por ser a maior bancada. Os líderes do governo no Congresso, Eduardo Gomes (TO), e no Senado, Fernando Bezerra Coelho (PE), são citados para a vaga por auxiliares do presidente Jair Bolsonaro. O líder da bancada do MDB, Eduardo Braga (AM), também é pré-candidato a presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Simone Tebet (MS), se apresentou para a disputa interna no partido.
Líder do DEM no Senado, Rodrigo Pacheco (MG) entrou na “lista” de Alcolumbre. Pacheco pretende se apresentar com um perfil independente. “Vamos encontrar um caminho que seja bom para o Senado e para o País”, afirmou. Na tarde de ontem, ele foi recebido por Bolsonaro para uma audiência no Planalto. Oficialmente, o encontro foi para tratar do nível da represa de Furnas, em Minas.
Segunda bancada no Senado, com 12 integrantes, o PSD também se movimenta para lançar candidatura no Senado. O líder da bancada, Otto Alencar (BA), e os senadores Antonio Anastasia (MG) e Nelsinho Trad (MS) são apontados como possíveis nomes. No PSDB, Tasso Jereissati (CE) é visto como “terceira via”, mas ainda não entrou no páreo. Correm por fora, na outra ponta, os senadores Major Olímpio (PSL-SP) e Álvaro Dias (Podemos-PR), que fazem oposição a Alcolumbre.
Pedro Fernando Nery: Piores elites do mundo
Brasil aparece atrás de México, Rússia, Índia e até de países como Casaquistão
O Brasil teria a 6.ª pior elite entre 32 países. Em ranking de qualidade das elites mundiais – liderado por Cingapura, Suíça e Alemanha –, o Brasil aparece atrás do México, da Rússia, da Índia e até de países como Casaquistão, Arábia Saudita e Botswana (embora na frente da Argentina). O Índice de Qualidade das Elites foi veiculado em relatório recente dos economistas Tomas Casas e Guido Cozzi (Fundação para a Criação de Valor). O que ele explica sobre o nosso País e como se relaciona com a agenda de reformas?
Os autores definem elites como grupos pequenos e coordenados, capazes de acumular riqueza, e que seriam uma “inevitabilidade empírica” – presentes em todas as sociedades. Um índice alto significaria que a elite do país cria mais valor do que captura, contribuindo para o crescimento econômico e o desenvolvimento humano. Já nos países com índices baixos as elites teriam desenhado instituições mais “extrativas”. Grosso modo, a questão é se, na acumulação de sua riqueza, a respectiva elite beneficia a sociedade ou dela se beneficia.
O relatório bebe em conceitos dos economistas Daron Acemoglu (MIT) e James Robinson (Chicago), do best-seller Por que as Nações Fracassam, mas em particular do livro mais recente da dupla, The Narrow Corridor (ainda sem tradução). Acemoglu e Robinson explicam o desenvolvimento dos países pela qualidade de suas instituições (regras informais ou formais, como leis, que regem o funcionamento da sociedade). Resumidamente, essas instituições podem ser inclusivas ou extrativas. No último caso, a riqueza do país é extraída pela sua elite – que por sua vez concentra seus esforços e recursos não em ser produtiva, mas em conquistar favores e privilégios. Essa postura que visa à renda improdutiva é expressa no termo rent-seeking, traduzido como caça às rendas ou rentismo.
A partir daí, Casas e Cozzi dividem as elites em três tipos principais: rentistas (extraem valor e detêm muito poder), competitivas (geram valor, mas não detêm muito poder) e iluministas (geram valor, a despeito de deterem muito poder). O estudo basicamente identifica apenas elites rentistas e competitivas.
A elite brasileira é do grupo das rentistas. Nossas piores classificações no indicador são na categoria que avalia como o Estado retira renda; na categoria de rentismo da produção; e na categoria de rentismo do trabalho.
A primeira compreende uma avaliação da regressividade e distorções do sistema tributário. A tributação dos lucros e a parcela da renda retida pelos 10% mais ricos são alguns dos itens. Aqui, é possível fazer ligação clara com a reforma tributária e instrumentos como a isenção no IR para lucros e dividendos, bem como outros mecanismos que permitem que os mais ricos paguem menos impostos que os mais pobres.
A segunda categoria que vamos especialmente mal diz respeito à exposição dos grandes à competição. Nessa categoria de rentismo dos produtores são avaliadas questões que podem levar à formação de monopólios ou oligopólios – aptos a extrair renda das famílias com produtos mais caros ou de pior qualidade. Inclui a proteção tarifária contra produtos estrangeiros, regulações que criam barreiras à entrada de novas empresas no mercado e a facilidade de fazer negócios. A agenda mais óbvia aqui é a da abertura comercial, mas também a de desburocratização.
Uma terceira categoria em que estamos perto da lanterna, a de rentismo do trabalho, contempla a forma como instituições do mercado de trabalho preterem os jovens. Demandaria pauta de abertura do mercado de trabalho, para tornar mais fácil empregar grupos excluídos. Seriam exemplos mudanças como a reforma trabalhista e a carteira de trabalho verde e amarelo – não à toa, duramente combatidas pelos representantes dos incluídos.
A agenda por instituições mais inclusivas, em prejuízo das atuais elites dominantes, não é exclusiva de nenhum ponto no espectro ideológico. Por exemplo, a esquerda é mais combativa pelo fim dos privilégios no sistema tributário, mas é historicamente contra a exposição à competição de empresas estrangeiras ou mulheres e jovens – respectivamente no mercado de bens e no mercado de trabalho. Há uma grande concertação nacional a ser feita nos próximos anos se quisermos subir da última divisão das elites mundiais.
*Doutor em economia
Marco Aurélio Nogueira: O Supremo, o Congresso, a vacina
A politização da vacinação é criminosa, porque afeta a saúde da população e compromete o futuro
Passada uma semana do encerramento das eleições municipais, quando ainda se faz o balanço dos recados das urnas, a agenda política ficou concentrada na possibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. A questão, devidamente “judicializada”, foi resolvido pelos ministros togados do STF, que por 6 votos a 5 mantiveram a cláusula constitucional e afastaram de si o cálice do casuísmo.
Abriu-se então, a todo vapor, as negociações congressuais para definir quem substituirá Rodrigo Maria e Davi Alcolumbre.
Este foi o cenário que flutuou na superfície, importante mas não tão decisivo. Por sobre ele, afirmou-se questão mais grave, de claro caráter estratégico e enorme dramaticidade, dado que afeta diretamente a saúde da população e terminará por envolver tanto o Supremo quanto o Congresso, além dos governos estaduais e de seu relacionamento institucional com Brasília.
A vacina e a vacinação contra o COVID-19 saiu das sombras da politização para ganhar extrema visibilidade, expondo, à luz do dia, o despreparo nacional para enfrentar a pandemia. Ao passo que muitos países desenvolvidos e em desenvolvimento cuidaram de comprar doses das vacinas já aprovadas (Pfizer e Moderna), o Brasil ficou a ver navios, pendurado na cegueira do Ministério da Saúde e de seu ministro, que pouco faz além de obedecer ao presidente. O risco, agora, é que entremos em 2021 sem vacinas em tempo hábil para o conjunto da população. Há notícias, também, de que faltam insumos para a vacinação, como seringas, freezer e algodão. Ou seja, o básico.
Não há logística que possa resolver isso no curto prazo. O tempo perdido será um tempo de mais vidas perdidas. O cenário que se anuncia é da adoção plena da descentralização (federativa?): cada estado da União resolve o problema do seu jeito e conforme suas possibilidades, ou apelando para os russos da Sputnik, ou adquirindo algumas doses da produção da Coronavac em produção no Instituto Butantã, ou mesmo buscando quem a tenha para vender no mercado internacional.
O governador de São Paulo, João Doria, está atento a tudo isso. Ao mesmo tempo em que negocia politicamente o recurso de valor que detém, procura fazer o que se espera e batalha para começar a vacinação em 25 de janeiro, caso tudo seja aprovado pela ANVISA – o órgão regulador que entrou de gaiato no navio e se deixou capturar pelos conflitos políticos.
O desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19 é uma batalha tecnocientífica. O circuito organizado por cientistas de vários países conseguiu a proeza de produzir alguns imunizantes que estão a indicar alto grau de eficácia e segurança. Grandes farmacêuticas disputam entre si para ver quem venderá mais e melhor seus produtos, mas todas trabalham com critério e foco na saúde pública. Seguem parâmetros médicos rigorosos, como sempre ocorreu com toda tentativa de imunização. Dada a agressividade da pandemia, a pesquisa se acelerou extraordinariamente e tudo indica que no início do próximo ano haja boa oferta de vacinas confiáveis e eficientes.
O problema é que o mundo está contaminado por negacionistas, pessoas que recusam a ciência e desconfiam da medicina. No Brasil, o próprio governo federal se mostra hostil à imunização, seja porque rejeita a gravidade da doença, seja porque a associa a planos “imperialistas” da China, seja porque não aceita que a primazia pela “vacina nacional” seja de João Doria. Manipula a dimensão sanitária do problema, gerando com isso reações em cadeia de governadores estaduais e da opinião pública.
A politização das vacinas foi posta na mesa. Vergonhosamente. Ela é criminosa, porque afeta a saúde da população e dificulta ainda mais a imunização. Uma de suas faces mais trágicas diz respeito a definir se a vacinação será ou não “obrigatória”. Os negacionistas alegam que ninguém pode ser obrigado a tomar um remédio e não consideram que, numa pandemia, cada indivíduo se converte em um vetor de transmissão viral: a imunização de um beneficia a todos. As besteiras que vem sendo espalhadas nas redes – que vão da convicção de que as vacinas são ineficazes à afirmação de que agem para modificar a estrutura genética e o DNA das pessoas – fazem corar de vergonha qualquer bom estudante do ensino médio e qualquer cidadão de bom senso.
Com tamanha falta de coordenação, duas coisas poderão acontecer. Uma é a desmoralização do presidente da República. Outra, o relaxamento ainda maior da população quando souber da disponibilidade da vacina e achar que depois dela nenhum outro cuidado sanitário precisará ser tomado.
A disputa para saber qual vacina será mais eficaz – se a “chinesa” patrocinada pelo governador de São Paulo, se a que está sendo endossada pelo Ministério da Saúde e pelos organismos federais, se alguma outra que será comprada a toque de caixa – é mesquinha e patética. Ela expressa a falta que fazem um bom planejamento, o respeito aos especialistas, a valorização do SUS, a capacidade política de articulação e comunicação do governo federal.
Não temos nada disso no País. O despreparo governamental é acachapante, desastroso. O resultado é que a população não sabe para onde caminhar e a quem seguir, se haverá ou não vacinas disponíveis, se elas serão efetivamente distribuídas e disponibilizadas, se as informações em circulação são ou não confiáveis.
Menos mal que São Paulo parece disposto a seguir em frente, convencido da eficácia e da segurança da vacina “chinesa”.
Pesquisadores do mundo todo, incluídos os brasileiros, têm insistido na ideia de que não há vacinas “nacionais”, mas vacinas que funcionam. Quanto mais variantes delas existirem, melhor.
É uma mensagem importante, que, no entanto, não chega à população brasileira com a velocidade e o rigor que seriam necessários.
Vera Magalhães: Supremo expõe culpa de Maia
A culpa por Bolsonaro ter ligeira vantagem na disputa pela Câmara não é de outro senão de Rodrigo Maia.
É falacioso e perigoso o argumento segundo o qual a decisão da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, ao ler a Constituição (não há que se falar de interpretação quando um dispositivo é tão literal quanto a sentença “Ivo viu a uva”) de proibir a reeleição da dupla Davi Alcolumbre (DEM-AP) e Rodrigo Maia (DEM-RJ) ajudou Jair Bolsonaro. Diferentemente da eleição municipal, na qual resolveu colocar todas as suas digitais, até aqui o presidente joga parado na disputa pelo Congresso, que tem muito mais implicações para ele do que a anterior. O presidente não interferiu ali (nem tem interlocutores com abertura para isso neste momento).
A decisão de Gilmar Mendes de retorcer o princípio da reeleição era um arranjo que tinha Rodrigo Maia como beneficiário e um certo arranjo pensado de maneira torta para equilibrar as forças políticas para 2022. Ele contava para isso com uma aliança ocasional com ministros pelos quais tem profundo desprezo, mas que esperava que votassem pelo antibolsonarismo, como Edson Fachin, Roberto Barroso e Luiz Fux. A culpa por Bolsonaro ter ligeira vantagem na disputa pela Câmara não é de outro senão de Rodrigo Maia, que hesitou em organizar o grupo que está ao redor de si desde a queda de Eduardo Cunha e, ao sinalizar que iria para o tapetão, jogou o Centrão no colo do presidente, lá atrás, e desorganizou a própria sucessão, deixando de ser o protagonista dela.
Ao dar corda para vários postulantes à sua cadeira enquanto havia outro, Arthur Lira (PP-AL), colocado há anos e já com o apoio do Planalto, o deputado do DEM sempre deixou implícito que estava embarcado no plano do correligionário Alcolumbre, ainda que em público dissesse o contrário. Agora larga atrás para montar uma estratégia que mantenha o bloco em torno de si coeso e destaque entre os vários précandidatos alguém capaz de vencer a dupla Bolsonaro-lira.
É impossível? Não é. A economia patina, o governo não tem agenda na Câmara e a hesitação num assunto sensível à base dos deputados, que é a substituição do auxílio emergencial, joga contra o governo. Além disso, Lira é um candidato cheio de rolo, que não conta com a simpatia da opinião pública e que tem a imprensa, o Ministério Público e o STF nos calcanhares. Se souber, como já soube no passado, catalisar essas deficiências e organizar o jogo, Maia tem chance de eleger um sucessor. Precisará, ainda, fazer com que os partidos que se opõem a Bolsonaro – e aí têm de entrar PT e PSDB, além de parcelas do que se convencionou chamar de Centrão – entendam que dar a ele o comando da Câmara agora é facilitar sobremaneira seu caminho para 2022.
Precisa metabolizar a derrota vexatória que passou neste fim de semana, e à qual se submeteu porque foi excessivamente vaidoso e não soube sair de cena e construir um sucessor, e partir para a ação o mais rápido possível, porque só resta um mês e pouco para colocar uma nova estratégia em prática.
Carlos Melo: Decisão do STF - O país no encontro marcado consigo mesmo
Instituições não podem depender de uma única pessoa
É verdade que Rodrigo Maia teve importante atuação nesses quase dois anos de governo Bolsonaro. Mais que seu colega de Senado Federal, Davi Alcolumbre, o presidente da Câmara se contrapôs à penca de desatinos e desventuras em série vindos do presidente da República e de seus ministros. Em muitos momentos, Maia personificou o “sistema de freios e contrapesos”.
Também são conhecidas as intenções de Jair Bolsonaro: retirar Maia de seu caminho e eleger presidente da Câmara um aliado que lhe sirva a ele no objetivo único da reeleição. E assim deixar “tudo dominado”, aparelhando o Legislativo como busca fazer com outros órgãos de Estado.
Tudo isso é verdadeiro e verdadeiramente perigoso. Mas nada justificaria “casuísmos do bem”. Instituições não podem depender de uma única pessoa ou dos interesses imediatos de um grupo. É evidente que Maia, mais até que Alcolumbre, poderá fazer falta à dinâmica democrática no Congresso. Mas também é preciso reconhecer que o País precisa seguir em frente, sem incorrer no erro de pretender combater o messianismo recorrendo a outro tipo de messianismo, com sinal trocado.
Logo, não se deve chorar a impossibilidade de reeleição no Congresso, decidida pela interpretação constitucional da maioria dos ministros do Supremo. A decisão do STF embaralha o jogo e torna a eleição legislativa tão mais dramática quanto mais importante para o futuro. Mas, também pode ser aproveitada como um importante momento de superação e construção política. A sucessão de Alcolumbre, que antes não parecia ser problema, se colocará no cálculo mais amplo das negociações dos grandes partidos, nas duas Casas.
Articular é preciso, e o chamado centro-liberal tem agora seu sua hora mais séria com a oposição: faltará a ambos, oposição e centro, grandeza para compreender o momento?
Pode ser o encontro marcado do país consigo mesmo.
*Cientista Político, professor do Insper
Eliane Catanhêde: Seringas vazias?
Risco de aparelhamento de Saúde e Anvisa é o Brasil e você, brasileiro, ficarem sem vacina
Depois de duas semanas de férias, a coluna volta com uma dúvida: os generais Mourão, Fernando, Heleno, Braga Netto, Ramos e Pujol vão permitir que o presidente Jair Bolsonaro aparelhe a Anvisa e deixe o Brasil ser pego de calças curtas e seringas vazias? E que você, brasileiro, não seja vacinado?
Mesmo bolsonaristas renitentes, que negam a realidade e se recusam a ver o que está acontecendo, começam a se preocupar. Bolsonaro chegaria a tanto? Como ele ultrapassa todos os limites, o tempo todo, a resposta é preocupante: sim, e ele já se mostrou capaz de priorizar suas guerrinhas políticas em detrimento da vacina.
Uma coisa é dar de ombros para parceiros internacionais, Amazônia, Cultura, Meio Ambiente, Educação e até mesmo, por incrível que pareça, Saúde. Isso tudo pode parecer “abstrato” e “distante”, acionando o “não tenho nada a ver com isso”. Mas quando se trata de vacinas, é algo objetivo, direto, nem bolsonarista resiste.
É como se Bolsonaro tivesse um prazer mórbido de confrontar, chocar, sempre testando limites. Como tudo na vida tem limite, ele precisa desesperadamente manter o apoio do Centrão e tirar do deputado Rodrigo Maia (DEM) o controle da Câmara e, particularmente, das dezenas de pedidos de abertura de impeachment. De tanto esticar a corda, um dia ela arrebenta. E a vacina contra a covid-19 pode ser o “turning point”.
Até por isso as instituições precisam estar devidamente sólidas, confiáveis, e foi um erro imperdoável do Supremo aventurar-se pelo terreno pantanoso da reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. Que Davi Alcolumbre se prestasse a esse papel, tudo bem, está do tamanho dele. Mas Rodrigo Maia lavar as mãos? E ministros do Supremo taparem os olhos (e o nariz) para jogar no lixo o texto constitucional?
O Supremo tem sido fundamental na defesa da democracia e contra golpistas de Executivo, Legislativo, empresariado, blogosfera. Foi graças à firmeza pessoal e jurídica de um Celso de Mello, um Alexandre de Moraes, que essa gente se recolheu. Ninguém mais vê manifestações contra Congresso e STF, muito menos o presidente atiçando a turba com o Quartel General do Exército ao fundo ou sobrevoando essas aglomerações com o ministro da Defesa, de helicóptero.
Logo, os 11 ministros do Supremo têm que se preservar, de manter a credibilidade da instituição garantidora, por excelência, do Estado Democrático de Direito. Não podem repetir Bolsonaro e priorizar seus próprios achismos e fingir que a Constituição (secundada pelos regimentos internos) não diz o que diz: que é vedada a reeleição para as presidências do Congresso na mesma Legislatura. É grosseiro, não faz jus à inteligência, à responsabilidade e ao compromisso do nosso Supremo com o nosso País.
Sim, Rodrigo Maia cumpre um papel importante, em alguns momentos decisivo, ao botar o pé na porta e estabelecer limites às insanidades e arroubos do presidente, mas não é recorrendo a expedientes também golpistas para lhe dar um novo mandato ilegal que Judiciário e Legislativo terão legitimidade para manter a democracia e o equilíbrio institucional.
O Brasil precisa de Supremo e Congresso fortes, para exigir democracia e defender princípios, avanços, leis e, agora, o acesso da população às vacinas, com planejamento e campanha impecáveis de imunização. Mas, se as instituições aderem a jeitinhos mequetrefes, acabam se embolando com Bolsonaro. Não sobra nada. Ainda mais se as Forças Armadas fecharem bocas, olhos e ouvidos e se tornarem coniventes com ameaças à independência da Anvisa e à segurança dos milhões de brasileiros. Calma, gente! Há que manter a compostura.
Carlos Pereira, Amanda Medeiros e Frederico Bertholini: Traídos pelo ódio
Pesquisa mostra que eleitores podem apoiar uma medida contrária a suas preferências desde que ela gere benefícios políticos ao governo
Você admitiria apoiar uma política contrária às suas preferências apenas porque ela gera benefícios eleitorais para o governo que você apoia? Por outro lado, você abriria mão da política em que acredita se ela viesse a gerar benefícios eleitorais para o governo a que você se opõe?
Ideologicamente, é esperado que eleitores que se auto classificam de esquerda defendam políticas que diminuam a desigualdade e aumentem a inclusão social, tais como Bolsa Família ou auxílio emergencial. Por outro lado, eleitores que se consideram de direita tendem a preferir políticas que enfatizam competição e meritocracia e, portanto, tenderiam a se opor a políticas de proteção e inclusão social.
No presente artigo, baseado na terceira rodada da pesquisa de opinião que investiga os impactos políticos da pandemia desenvolvida em parceria com a FGV e o Estadão (realizada entre os dias 21/10 e 10/11, aplicada com 4569 brasileiros), mostramos que algumas das políticas implementadas pelo governo Bolsonaro com o objetivo de mitigar as consequências negativas da pandemia da covid-19 geraram efeitos paradoxais entre os eleitores brasileiros.
Ganhos eleitorais
Com a previsão do pagamento da última parcela do auxílio emergencial programado para dezembro de 2020, o governo federal conjecturou a criação de um novo programa de transferência de renda que funcionaria como uma espécie de substituto ao auxílio emergencial. Este novo programa, nomeado de Renda Cidadã, unificaria outros programas sociais como o Bolsa Família.
Os institutos de pesquisa identificaram que o auxílio emergencial gerou um potencial novo “mercado eleitoral” até então inexplorado por Bolsonaro, que começou a ser surpreendentemente bem avaliado por eleitores de baixa renda, reduzida escolaridade e residente do norte e nordeste do Brasil.
Diante desta performance inesperada, conduzimos um experimento com o objetivo de investigar se a aprovação do Renda Cidadã seria afetada pelos potenciais ganhos eleitorais do presidente com este programa.
Para isso, distribuímos aleatoriamente entre os respondentes dois textos distintos sobre o Renda Cidadã. O primeiro, de caráter mais neutro, mencionava critérios técnicos para a criação do programa e continha uma foto genérica de pessoas enfileiradas para saques do auxílio emergencial na Caixa Econômica Federal. Os que receberam essa informação genérica faziam parte do grupo controle do experimento.
A segunda mensagem enfatizava os possíveis ganhos eleitorais de Bolsonaro com o Renda Cidadã. Continha uma foto do presidente em evento público no Nordeste, montado a cavalo e vestindo chapéu de couro, reproduzindo uma frase de autoria do próprio Bolsonaro dizendo que o Renda Cidadã iria “varrer o PT do Nordeste”. Os respondentes que receberam esse texto fizeram parte do grupo tratamento.
Dividimos a nossa amostra em dois grupos: 1) apoiadores de Bolsonaro (aqueles que o avaliam o governo como bom ou ótimo). Esse grupo é formado basicamente por eleitores que se autodesignam de direita ou centro-direita; 2) opositores de Bolsonaro (aqueles que o avaliam o governo como ruim ou péssimo). Esse segundo grupo é predominantemente formado por eleitores de esquerda e centro-esquerda, mas também por eleitores de outras matizes ideológicas que se frustraram com Bolsonaro.
Como pode ser observado na Figura 1, os apoiadores do presidente, que ideologicamente seriam contrários a políticas de transferência de renda, mostram suporte ao programa Renda Cidadã. Entretanto, reagem de forma muito mais positiva quando submetidos ao tratamento. Em outras palavras, passam a avaliar melhor o programa ao perceberem que tal política gera potenciais ganhos eleitorais para o seu líder.
Por outro lado, respondentes que reprovam o desempenho do governo Bolsonaro, sejam eles de direita ou de esquerda, se opuseram ao Renda Cidadã quando recebem o tratamento; ou seja, quando recebem o texto com menção à frase do Presidente e percebem os riscos de Bolsonaro se beneficiar eleitoralmente do programa. Vale salientar que o efeito negativo dos potenciais ganhos eleitorais do presidente na avaliação negativa da política de transferência de renda é mais forte entre aqueles eleitores de esquerda, que a principio seriam favoráveis a políticas de proteção social.
Medo da Morte
Um dos aspectos mais relevantes que as rodadas anteriores da pesquisa capturou foi a importância da proximidade de pessoas contaminadas pela covid-19 com graus variados de gravidade (ninguém, leve, grave e morte). Verificamos que quanto maior a proximidade da morte, maior o apoio ao isolamento social e maior a rejeição a Bolsonaro.
O experimento que realizamos nessa terceira rodada nos permitiu analisar até que ponto o “medo da morte” interfere na avaliação do programa de transferência Renda Cidadã. Como pode ser verificado na Figura 2, os respondentes mais próximos de pessoas que desenvolveram covid-19 com gravidade e que vieram a falecer reagiram mais negativamente ao programa de transferência de renda quando receberam o tratamento informacional polarizado que sugere que Bolsonaro pode auferir benefícios eleitorais com o programa. Ou seja, quanto maior o medo da morte, maior a rejeição ao que pode fortalecer Bolsonaro.
Reeleição em 2022
O experimento que realizamos na segunda rodada nos permitiu diferenciar dois grupos de eleitores (identitários e pragmáticos) que votaram em Bolsonaro em 2018. Foi possível identificar que os eleitores com vínculos identitários com Bolsonaro invariavelmente pretendem votar no presidente em 2022. Entretanto, a grande maioria dos pragmáticos se frustrou com Bolsonaro e só considera votar outra uma vez nele se for para evitar a vitória do PT ou de outro candidato de esquerda.
Como era de se esperar, a Figura 3 mostra que os eleitores identitários pró-Bolsonaro passaram a apoiar ainda mais políticas de transferência de renda quando perceberam que o presidente poderia se beneficiar eleitoralmente desta política. Por outro lado, os eleitores que não votariam em Bolsonaro em nenhuma circunstância em 2022 (anti-Bolsonaro) reduziram significativamente o seu apoio a políticas de transferência de renda quando receberam o tratamento.
Resultado mais surpreendente fica por parte dos eleitores anti-esquerda, predominantemente formados por eleitores pragmáticos de Bolsonaro, que foram indiferentes aos potenciais ganhos eleitorais do Presidente proporcionados pelo programa Renda Cidadã. Ou seja, enquanto os grupos polares (anti e pro-Bolsonaro) traem suas respectivas preferências ideológicas em troca da maximização de seus vínculos identitários/afetivos, os eleitores pragmáticos anti-esquerda se mantiveram consistentes as suas preferências não tendo sido substancialmente afetados pela manipulação experimental. Isso acontece porque esse grupo anti-esquerda é formado de pessoas que reprovam e aprovam Bolsonaro, e, portanto, os efeitos opostos se cancelam.
Conclusão
Estudos de psicologia social sugerem que a polarização política se expressa a partir de conexões afetivas e identitárias. O valor de pertencer a um grupo aumenta à medida que os conflitos intergrupais se tornam mais salientes, podendo levar membros do grupo a traírem suas próprias preferências políticas diante da possibilidade de fortalecimento eleitoral do seu grupo e de fragilização do grupo rival. Anti e pró-Boldonaro cada vez mais não gostam uns dos outros e chegam mesmo a se odiar. Mas esse efeito só é observado para os membros dos grupos polares. Quem, entretanto, não nutre vínculos identitários com os polos, está mais livre para seguir com suas escolhas de forma consistente com suas preferências políticas.
* Carlos Pereira, Professor Titular, FGV EBAPE, Rio de Janeiro;
Amanda Medeiros, Professora, FGV EBAPE, Rio de Janeiro;
Frederico Bertholini, Professor Adjunto, Dep. Ciência Política UNB
Vera Magalhães: Eventual vitória de Bolsonaro é culpa de Maia, não do STF
É falacioso e perigoso o argumento segundo o qual a decisão da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, ao ler a Constituição (não há que se falar de interpretação quando um dispositivo é tão literal quanto a sentença “Ivo viu a uva”) de proibir a reeleição da dupla Davi Alcolumbre (DEM-AP) e Rodrigo Maia (DEM-RJ) ajudou Jair Bolsonaro.
Diferentemente da eleição municipal, na qual resolveu colocar todas as suas digitais, até aqui o presidente joga parado na disputa pelo Congresso, que tem muito mais implicações para ele do que a anterior. Sem saber se movimentar no STF, Corte que tem vários assuntos delicados para si pendurados, o presidente não interferiu ali (nem tem interlocutores com abertura para isso neste momento).
A decisão de Gilmar Mendes de retorcer o princípio da reeleição era um arranjo que tinha Rodrigo Maia como beneficiário e um certo arranjo pensado de maneira torta para equilibrar as forças políticas para 2022. Ele contava para isso com uma aliança ocasional com ministros pelos quais tem profundo desprezo, mas que esperava que votassem pelo antibolsonarismo, como Edson Fachin, Roberto Barroso e Luiz Fux. Fazer beicinho e se dizer traído por aqueles que sempre jogou na fogueira chega a ser engraçado.
A culpa por Bolsonaro ter ligeira vantagem na disputa pela Câmara não é de outro senão de Rodrigo Maia, que hesitou em organizar o grupo que está ao redor de si desde a queda de Eduardo Cunha e, ao sinalizar que iria para o tapetão, jogou o Centrão no colo do presidente, lá atrás, e desorganizou a própria sucessão, deixando de ser o protagonista dela.
Ao dar corda para vários postulantes à sua cadeira enquanto havia outro, Arthur Lira (PP-AL), colocado há anos e já com o apoio do Planalto, o deputado do DEM sempre deixou implícito que estava embarcado no plano do correligionário Alcolumbre, ainda que em público dissesse o contrário. Agora larga atrás para montar uma estratégia que mantenha o bloco em torno de si coeso e destaque entre os vários pré-candidatos alguém capaz de vencer a dupla Bolsonaro-Lira.
É impossível? Não é. A economia patina, o governo não tem agenda na Câmara e a hesitação num assunto sensível à base dos deputados, que é a substituição do auxílio emergencial, joga contra o governo. Além disso, Lira é um candidato cheio de rolo, que não conta com a simpatia da opinião pública e que tem a imprensa, o Ministério Público e o STF nos calcanhares.
Se souber, como já soube no passado, catalisar essas deficiências e organizar o jogo, Maia tem chance de eleger um sucessor. Precisará, ainda, fazer com que os partidos que se opõem a Bolsonaro – e aí têm de entrar PT e PSDB, além de parcelas do que se convencionou chamar de Centrão – entendam que dar a ele o comando da Câmara agora é facilitar sobremaneira seu caminho para 2022.
Precisa metabolizar a derrota vexatória que passou neste fim de semana, e à qual se submeteu porque foi excessivamente vaidoso e não soube sair de cena e construir um sucessor, e partir para a ação o mais rápido possível, porque só resta um mês e pouco para colocar uma nova estratégia em prática.