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Eugênio Bucci: O cerco à universidade

No início do mês a Reitoria da Universidade de São Paulo (USP) recebeu uma representação em nome do procurador-geral da República, Augusto Aras. No documento, os advogados de Aras reclamam de textos publicados na imprensa e nas redes sociais por um professor de Direito da USP, Conrado Hübner Mendes, que, na visão deles, ofenderiam o atual chefe do Ministério Público Federal. A peça jurídica dedica quatro de suas 11 páginas a discorrer sobre o curriculum vitae da autoridade que se declara ofendida; em seguida, enumera o que afirma serem acusações inverídicas; e, ao final, requer que o caso seja levado à Comissão de Ética da USP para as providências que julga devidas.

Com efeito, o professor Conrado Hübner Mendes, doutor em Direito e Ciência Política, embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt, pesquisador reconhecido pelos pares em temas como Direito Constitucional, Poder Judiciário e autonomia acadêmica, tem feito críticas duras ao Supremo Tribunal Federal e ao Ministério Público. Suas colunas semanais no jornal Folha de S. Paulo e seus posts no Twitter alcançam leitores em audiências diversas. A democracia garante-lhe a liberdade de expressão. De outra parte, por óbvio, quem se sinta injustamente atacado tem o direito, também democrático, de buscar formas de reparação. Até aí, nada de novo sob o sol – ou nada de novo sob a treva que nos tem sido mais frequente.

Há algo de impróprio, no entanto, na representação feita à USP em nome do procurador-geral, que solicita à cúpula universitária a punição de manifestações públicas de um dos seus docentes. São dois os equívocos.

O primeiro está na tentativa de transformar a universidade pública, que se define como um polo social e material de liberdade, em órgão de vigilância de opinião. Pleitear tal aberração é o mesmo que esperar que o sol esfrie os corpos na Terra. Não há razão nesse pedido. Mais ainda, não há nele a mínima compreensão do que seja a institucionalidade democrática.

O segundo equívoco decorre do primeiro, e o complica ainda mais. Os advogados que assinam a representação parecem não ter assimilado o conceito de autonomia universitária. Eles se dirigem à cúpula da USP mais ou menos como se fossem, no velho jargão dos despachantes de porta de cadeia, o sujeito que vai “dar parte” na delegacia, ou como um estudante de colégio interno que delata os colegas para o inspetor de alunos. Essa postura não cabe na vida universitária de uma sociedade democrática, não é assim que funciona.

Quando se diz que a universidade tem autonomia, o que se quer dizer, se é que ainda não estava claro, é que a universidade não deve obediência a autoridades que lhe sejam externas. Um ministro de Estado, um cardeal, um pai de santo ou um general não podem dar ordens às instâncias universitárias, pois não têm atribuições para pautá-las. Por certo, a universidade tem o dever de prestar contas à sociedade e a todos os órgãos de controle, mas não se subordina a nenhum comando externo, muito menos quando lhe cobram que enquadre o pensamento livre.

Por isso, a representação é equivocada. Seria apenas uma peça inoportuna e desajeitada caso vivêssemos no País uma situação normal. Como estamos naufragados num contexto de atordoante anormalidade, ela nos traz preocupações maiores. Embora possa não ter sido essa a intenção dos advogados, a peça que eles assinam aterrissa na mesa do reitor com sinais de ameaça. Talvez não seja esse o propósito do procurador-geral, mas na quadra da História em que nos encontramos e nos perdemos fica no ar um travo de intimidação. É algo que não está dito, mas pode muito bem estar pressuposto.

Olhemos o entorno. A todo momento a Lei de Segurança Nacional tem sido brandida contra jornalistas, chargistas, artistas e intelectuais. Em março, dois professores da Universidade Federal de Pelotas, Pedro Hallal e Eraldo dos Santos Pinheiro, foram constrangidos a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) por terem criticado o governo federal. Em níveis diversos, proliferam os torniquetes orçamentários contra a educação superior, que prejudicam mais o campo das humanidades, justamente onde mais pipocam ideias críticas e incômodas. As investigações policiais que atingem a administração universitária se paramentam de notas sensacionalistas e espetaculosas, como a primeira fase da Operação Torre de Marfim (o nome escolhido já diz tudo acerca de uma certa sanha antiacadêmica), cuja prepotência trouxe de arrasto a tragédia, com o suicídio do então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, em 2017.

Naquele ano, o cerco em torno de pesquisadores, cientistas e intelectuais ligados à educação superior no Brasil crescia em brutalidade e arrogância, numa trilha de retórica violenta que em 2018 desfraldaria as bandeiras do bolsonarismo. Agora a universidade é bombardeada a todo tempo pelo poder, como se fosse inimiga da Pátria. Nesta hora infeliz, a representação do procurador-geral contra a USP vem piorar o ambiente.

*Jornalista, é professor da ECA-USP

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-cerco-a-universidade,70003720292


William Waack: Ordens e internet

É notório que Jair Bolsonaro governa para e pela internet. Com resultado que está ficando muito nítido pelos trabalhos da CPI da Covid: a existência de uma espécie de dualidade de mando com prejuízos diretos no combate às diversas crises. O pecado original foi o papel importantíssimo das redes sociais na vitória dele em 2018. São ferramentas indispensáveis para ganhar eleições, mas instrumentos precários para governar – e é pensando nelas que Bolsonaro baseia suas ações.

“Postagens na internet não são ordens”, disse seu ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, ao depor na CPI da Covid num esforço bem orientado por advogados para desmentir o óbvio. Sim, no caso do governo Bolsonaro, são ordens (mas em juridiquês não são). O próprio Pazuello postou um célebre vídeo – na internet – ao lado de Bolsonaro, dando conta de que um manda (o presidente) e o outro (o general intendente) obedece.

 

“Mas era coisa de internet”, desculpou-se Pazuello. O efeito é o mesmo: Bolsonaro consagrou essa dualidade de mando dentro do próprio governo. Dedicado como sempre à atividade de animador de redes digitais, suas “ordens” que não são “ordens” servem no mínimo (com muita boa vontade) para criar confusão interna. No caso da pandemia, a CPI foi razoavelmente bem-sucedida também em demonstrar a existência de uma estrutura paralela de assessoramento governamental que, no fundo, é a avaliação de quais conteúdos obtêm melhor resposta nas redes digitais que Bolsonaro pretende atingir.

Ocorre que dualidade de mando paralisa qualquer administração complexa, como é o caso do governo brasileiro. Na prática, Pazuello e seus antecessores se viram divididos entre o que eram as posturas recomendadas pelas áreas técnicas (na questão de uso de medicamentos, por exemplo) e o que o presidente pregava nas suas redes – além da exigência aos ministros de um tipo de lealdade já fartamente comparado ao “Führerprinzip”, a ideia de que o líder tudo sabe e nunca falha.

O que aconteceu no combate à pandemia já era repetição do que afetara anteriormente setores como economia ou política externa (mas não só). Na economia, por exemplo, Bolsonaro promoveu grande alarido, com enormes prejuízos para a Petrobrás, ao dizer que ia interferir na formação de preços de combustíveis. Repetiu a “fórmula” com o Banco do Brasil, deixando os agentes econômicos nos mais diversos níveis preocupados sobre qual seria, afinal, o limite da intervenção estatal. Era o que vinha dizendo o ministro da Economia ou o que o presidente falava para sua turma na internet?

Na política externa essa “dualidade de mando” criou uma situação esquizofrênica para o principal parceiro comercial brasileiro, a China. Valem os ataques que Bolsonaro reitera nas redes ao regime chinês ou as súplicas dirigidas a Pequim por parte de ministros (como a da Agricultura) e governadores (como o de São Paulo) pela manutenção de laços para garantir exportações e suprimento de insumos para vacinas?

Bons observadores que são da cena brasileira (Pequim sabe cuidar de seus interesses), talvez os chineses se orientem pelo comportamento de duas instâncias políticas hábeis até aqui em lidar com Bolsonaro. Uma é o STF, que lhe impôs limites severos e pensa sempre uma jogada política adiante do presidente e que não mais responde às provocações feitas por ele através das redes digitais.

Outra instância política é a do Centrão, que congrega notórios especialistas em sobrevivência política e defesa dos próprios interesses. Os articuladores da base de sustentação de Bolsonaro no Legislativo chegaram ao acordo tácito de deixá-lo falando sozinho. Com eles não existe mais dualidade de mando, pelo menos no que se refere à distribuição de verbas entre parlamentares: tomaram conta disso, e deixaram o que tem de batata quente para ser decidido entre os ministros do Desenvolvimento Regional e o da Economia, por exemplo.

O resto é Bolsonaro falando para a internet.

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ordens-e-internet,70003720588


Rosângela Bittar: O mal já está feito

As consequências vêm sempre depois, costumava avisar o prudente e discreto Marco Maciel para conter ousadias de efeito imprevisível. Hoje, quando se iniciar a sessão plenária da CPI da Covid, a máxima, óbvia, será contrariada. As consequências já aconteceram. São conhecidos, em extensão e profundidade, os desastres produzidos pelo depoente, ex-ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello. Os riscos que representava já se materializaram.

O papel de executor de ordens exercido pelo general foi constatado em registro público. O mandante tem notória identidade. Os resultados da performance do executor e do mandante são expostos em números indiscutíveis: 436 mil mortos, 15 milhões de infectados, uma exposição iminente do País à terceira onda da pandemia. A que se deve acrescentar o falho plano de vacinação, em vigor, e as projeções pouco críveis para o futuro. Além da reincidência agressiva do presidente da República, que insiste no negacionismo irracional.

A consequência menos letal, porém politicamente delicada, também já emergiu: o desgaste à imagem do Exército.

Da mesma maneira que o presidente Jair Bolsonaro se esconde por trás das atuações pirotécnicas dos filhos, dos seguidores fanáticos e dos ministros, Pazuello sempre manteve o Exército como um biombo, recusando-se a passar à reserva exatamente para não perder tal vantagem.

Não faz sentido a questão, explorada entre membros da CPI, sobre o tratamento a ser dispensado a Pazuello. Deve ser chamado de general ou ministro? Melhor evitar provocações adicionais.

Só o fato de ter sido levantada a discussão já demonstra que Pazuello é, de fato, um tremendo general da ativa, e sua fuga das responsabilidades atinge, sim, o Exército. Ou, visto por outro ângulo, Pazuello está resguardado, de um lado, pelo mandante, de outro, pela patente. Superprotegido.

Agora, que deu tudo errado, deixou de ser general?

Mesmo com mandado judicial a determinar seu comportamento e suas informações, Pazuello não vai passar pela CPI da Covid, porém, com uma simples espanada nos ombros da farda.

Supremo Tribunal Federal concedeu-lhe habeas corpus para não responder a perguntas que possam incriminá-lo. Uma cobertura de rara ironia, pois, ao mesmo tempo que pressupõe a prática de crime, o STF reconhece que Pazuello tem e deve ao Congresso informações sobre terceiros.

Não há mais dúvidas sobre o perfil do inacreditável terceiro ministro da Saúde deste governo. Pazuello está carimbado como inconsequente e incompetente. E medroso, pois tentou escapar da CPI. Justamente quando se delineia o uso e abuso do seu habeas corpus como forma de todos os implicados escaparem da investigação. Alegarão, como começou a fazer ontem o ex-chanceler Ernesto Araújo, que tudo se fez para atender ao Ministério da Saúde. Como o ex-ministro Pazuello tem autorização para ficar calado, está resolvido o problema do governo.

Por sua importância na estratégia das defesas, Pazuello continua totalmente assistido e amparado. A decisão de órgão técnico da Saúde contra o receituário do doutor Bolsonaro para o tratamento da covid, por exemplo, só anteontem foi tomada. Pazuello pode justificar-se, dizendo que, no seu tempo, não havia orientação oficial ainda. Outras virão.

Há quem desqualifique os generais que restaram no governo como distraídos, simplórios. Mas ficaram porque refletem a imagem e semelhança do presidente. Bolsonaro não costuma realçar qualidades como critério de escolha. Trabalha com uma só exigência: subserviência, quesito em que Pazuello recebeu grau dez.

O Exército está tentando manter distância, mas não está fácil. Bolsonaro o envolveu não só através do general da ativa no cargo mais polêmico do seu governo, mas também da participação direta dos seus laboratórios na frenética produção da cloroquina. Um dos principais malfeitos sob investigação no inquérito parlamentar.

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,o-mal-ja-esta-feito,70003719351


Andreza Matais: ‘Um manda, outro obedece’ de Pazuello coloca Bolsonaro no banco da CPI da Covid

Se adotar a estratégia do silêncio ou das meias-palavras na CPI da Covid, o general Eduardo Pazuello passará a bola, inevitavelmente, para o presidente Jair Bolsonaro. O gesto do ex-ministro da Saúde de não colaborar com a comissão e não falar pode ser interpretado, sob certo ângulo, também como postura de alguém que rejeita defender o presidente. Nesse caso, o oficial da ativa se comportará em benefício de sua própria sobrevivência e não em prol de um governo.

É uma mensagem que o próprio general e toda a equipe de estrategistas do Planalto não conseguem controlar. Toda vez que deixar uma pergunta sem resposta e selecionar o que pretende rebater, Pazuello demonstrará que não tem nada a falar, pois, como deixou claro, algumas vezes apenas cumpriu ordens. Logo, quem tem de prestar contas aos senadores e ao País é seu ex-chefe no governo e atual chefe militar, o presidente da República.

O governo atuou oficialmente para garantir o silêncio de Pazuello. A pedido da Advocacia-Geral da União, o Supremo concedeu habeas corpus para o general não responder a perguntas que possam levantar provas contra ele. Em suma, Pazuello não sairá preso do Senado.

Se optar mesmo por não falar, o general forçará a lembrança de uma frase decisiva que disse em outubro. Numa “live” ao lado de Bolsonaro, ele foi direto ao ponto: “É simples assim: um manda e o outro obedece”. Era uma reação à atitude do presidente de desautorizá-lo ao mandar cancelar a compra de doses da Coronavac. A frase, que entrou para o anedotário, é o que pode agora salvar o general. Ele tem um álibi: o presidente.

A estratégia do silêncio pode trazer consequências históricas também para a caserna. Por ser um general da ativa, Pazuello pregará nas Forças Armadas a imagem de uma instituição que não tinha resposta, no calor da hora, à denúncia grave de ter colaborado para uma política desastrosa de governo no combate à doença. Até a noite de ontem, o vírus tinha matado 439.379 brasileiros.

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,um-manda-outro-obedece-de-pazuello-coloca-bolsonaro-no-banco-da-cpi-da-covid,70003719358


Eliane Cantanhêde: Tratoraço, ou orçamento secreto, serve para o quê? Comprar votos, como o mensalão

Já compararam o “tratoraço” do governo Jair Bolsonaro aos “anões do Orçamento”, aos “atos secretos” do Senado e ao “mensalão” da era Luiz Inácio Lula da Silva, mas todos eles foram punidos, com maior ou menor rigor, e o que se espera é que não se jogue a poeira para debaixo do tapete e também o tratoraço seja ao menos investigado. Passar em branco é que não dá. A planilha e as evidências obtidas pelo Estadão não deixam alternativa.

No caso do tratoraço, o resumo da ópera é o mesmo dos escândalos anteriores: jeitinhos, emendas disfarçadas, orçamentos sigilosos que são engendrados no submundo político com um objetivo muito claro: comprar votos. Em geral, com participação direta, no mínimo aval do Palácio do Planalto. Por isso, não é surpresa o surgimento do nome do então articulador político do governo, atual chefe da Casa Civil, na operação.

O que realmente surpreende é que ele, Luiz Eduardo Ramos, é um general de quatro estrelas que há pouco passou para a reserva. Como, aliás, o novo ministro da Defesa, Walter Braga Netto, que não perde uma aglomeração política, seja para a campanha eleitoral antecipada de Bolsonaro, seja para a campanha de bolsonaristas contra o Supremo e o regime civil.

Como nos velhos casos, tudo é estranho no tratoraço, a começar do valor secreto – R$3 bilhões –, e das explicações dos agraciados ouvidos pelo Estadão. Segurança nacional? Segurança pessoal e familiar? É reação de quem foi pego com a mão na botija e não tem o que dizer. O que só confirma que algo não estava dentro dos conformes, daí porque precisava ser secreto, escondido de quem paga impostos.

Suas Excelências íntimas do Planalto ou úteis ao governo, têm direito a emendas parlamentares tradicionais, como todos, e mais as secretas, como poucos. A partir dessa “curiosidade”, começam a surgir outras. Exemplo: emendas são para as bases eleitorais, mas os privilegiados podem destiná-las para outros Estados a muitos quilômetros de distância. Quem conhece o jogo desconfia: ou é para favorecer empresas amigas ou efeito bumerangue sem dar na vista: vai para a cidade tal e volta para o autor da emenda extra na forma de um porcentual camarada.

E por que o governador do DF, Ibaneis Rocha, está numa planilha de senadores e destinou verbas para o Piauí, onde tem fazendas de gado? Foi depois disso que ele mudou sua relação com Bolsonaro? Até relaxou subitamente as restrições para conter a pandemia, do jeito que o presidente gosta.

Os “anões do Orçamento” eram uma quadrilha no Congresso para desviar dinheiro público via empreiteiras ou entidades fantasmas e geraram a primeira CPI para investigar os próprios parlamentares, nos anos 1990. Dez políticos foram cassados ou renunciaram para fugir da cassação. Entre eles, o baiano João Alves, que alegou ter ficado milionário ganhando na loteria: 56 vezes num ano.

Os “atos secretos” do Senado, no fim dos anos 2000, eram um festival de cargos e privilégios concedidos às escondidas pela mesa diretora para parentes e apadrinhados de 37 senadores e 25 ex-parlamentares. Após uma sindicância, 663 atos foram cancelados. José Sarney, que presidia a Casa, balançou, mas não caiu.

Já o “mensalão” consistia em pagamentos à base aliada do então presidente Lula, e o Supremo foi implacável, apesar de recheado de ministros indicados pelo PT. Foram 25 condenações, incluindo presidentes e tesoureiros do PT. Os bolsonaristas que hoje atacam o STF esqueceram disso?

A PGR e o TCU estão estudando o tratoraço, mas o pedido de nova CPI não andou. Por que será? Nós, os “idiotas” que defendemos a vida, distanciamento social, máscaras e vacinas, temos o direito de saber.

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,tratoraco-ou-orcamento-secreto-serve-para-o-que-comprar-votos-como-o-mensalao,70003718278


Carlos Pereira: A grama do vizinho é mais verde que a minha

presidencialismo multipartidário requer, como condição sine qua non, o uso discricionário de moedas de troca pelo presidente. Essa não é uma opção moral do governante. É uma necessidade para que o jogo político alcance funcionalidade em um ambiente em que o partido do presidente não desfruta de maioria legislativa. Governos e sociedades que negam esse imperativo pagam custos mais altos de governabilidade.

Regimes parlamentaristas costumam ter partidos fortes, ideológicos e programáticos, capazes de ofertar suporte legislativo estável a um governo em troca da alocação de ministérios e outros espaços de poder a parceiros que façam parte da coalizão de governo.

Já presidencialismos multipartidários, como o brasileiro, não possuem partidos políticos programáticos. Aqui os partidos são ideologicamente amorfos. Os acordos na construção de maiorias legislativas não se dão em torno de princípios, ideologias ou agendas de políticas universais. Se dão em troca de acesso a poderes e recursos orçamentários necessários à implementação de políticas locais com a digital do parlamentar, que são cruciais para a sua sobrevivência eleitoral em um ambiente altamente competitivo.

Esse jogo causa pruridos morais a muitas pessoas no Brasil. Elas querem um sistema político que não possuem. Elas idealizam um sistema político asséptico que não existe. Sempre se lamentam, como se a grama do vizinho fosse mais verde que a sua.

Gerou perplexidade a informação de que o governo Bolsonaro estava fazendo uso de um suposto “orçamento secreto”, travestido da rubrica de “emendas de relator” (Rp 9), em troca de apoio no Congresso. Ao contrário das outras emendas (individuais, de bancada e de comissão), que teriam regras específicas quanto ao número, valores, destino e teria a sua execução obrigatória, as emendas de relator seriam distribuídas de forma sigilosa, conforme a conveniência política do governo e seu destino seria informalmente indicado pelo parlamentar.

A alocação de recurso proveniente de emendas sempre foi distribuída de forma desigual entre parlamentares. Existe ampla evidência na ciência política brasileira que mostra que o parlamentar que se comporta de forma congruente aos interesses do Executivo apresenta maiores chances de ver suas emendas executadas. Desta forma, não existe inovação do governo Bolsonaro em premiar desproporcionalmente aliados. O grande problema dessas emendas Rp 9 é que sua alocação e execução estão fora do alcance da sociedade e de órgãos de controle como o MP, TCU e CGU, dando margem a comportamentos desviantes, como o esquema de compra de tratores supostamente superfaturados, conhecido como “tratoraço da Codevasf”.

Mesmo que o presidencialismo multipartidário não possa prescindir de moedas de troca, isso não significa que elas tenham que ser ilegais ou dar margem a ilegalidades.

A execução impositiva das emendas individuais e coletivas, surgida a partir de erros sucessivos na gerência de coalizões, especialmente nos governos Dilma e Bolsonaro, fez com que o Executivo perdesse liquidez nas trocas políticas. Ficou restrito fundamentalmente a moedas menos flexíveis, como ministérios e cargos na burocracia. Era esperado, portanto, que o mercado político, cedo ou tarde, encontrasse novas moedas que destravassem as relações entre Executivo e Legislativo.

O jogo de Bolsonaro com o Legislativo fica ainda mais difícil porque, além de ter demorado para montar uma coalizão minoritária, o fez em condições de fragilidade. Ele perdeu o que tinha (discricionariedade na execução das emendas) e não quer gastar o que ainda tem, já que tem preferido alocar ministérios a quem não faz parte da coalizão ou quem não tem assento e nem voto no Congresso, como os amigos militares.

*Cientista Político e Professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE), Rio de Janeiro

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,a-grama-do-vizinho-e-mais-verde-que-a-minha,70003717207


Eliane Catanhede: Quem obedece não precisa se incriminar, mas tem de contar tudo sobre quem manda

Quando o general da ativa Eduardo Pazuello sentar como testemunha na CPI da Covid, nesta quarta-feira, quem estará no foco não será ele, mas quem mandava nele no Ministério da Saúde. “Um manda, o outro obedece.” Logo, Pazuello é insignificante, o que importa são as ordens, ações e maquinações do presidente Jair Bolsonaro para manter e piorar a pandemia.

Foi isso que a decisão do ministro Ricardo Lewandowski preservou. Com linguagem simples, mas sofisticada engenharia jurídica, que ele não construiu sozinho, o ministro do STF deu um habeas corpus que diz o seguinte: Pazuello pode ficar mudo quando a questão for sobre ele, mas continua obrigado a falar quando for sobre Bolsonaro.

É o suficiente para a CPI, porque ninguém quer saber de Pazuello e todo mundo quer saber de Bolsonaro. O ex-ministro, homem errado na hora errada, tem o direito de não se incriminar e não produzir provas contra si mesmo, mas tem de responder e contar como, quando e onde aquele “que manda” agiu contra isolamento, máscaras e vacinas e a favor da cloroquina.

Lewandowski deve ter acalentado a ideia de simplesmente negar o habeas corpus da Advocacia-Geral da União (AGU) e determinar que Pazuello falasse tudo, sobre todos, sob risco de prisão. Ele, porém, não seria tão voluntarista após as inúmeras vezes em que o Supremo concedeu o direito ao silêncio a depoentes de CPIs, tanto investigados quanto testemunhas. A solução foi o meio termo, mas até a previsão de prisão é dúbia.

O Planalto comemorou a “vitória” da AGU e o senadores Omar AzizRandolfe Rodrigues e Renan Calheiros cumpriram sua parte, “lamentando” o despacho do STF e repetindo docilmente que “decisão da Justiça se cumpre, goste-se ou não”. Tudo teatro. Na vida real, a cúpula da CPI festejou e o governo reclamou.

Cada dia sua agonia. Pazuello dá sinais de pânico e alegou contato com dois infectados pela covid para desertar, ops!, adiar o depoimento. E não é à toa que o presidente aciona AGU, o ministro Onyx Lorenzoni, mundos e fundos. É para tentar se salvar de Pazuello.

E o Exército? Já foi duro engolir Bolsonaro usando um general intendente da ativa para fazer papel de bobo na Saúde, enquanto o “Gabinete das trevas” decidia no Planalto e o presidente espancava a realidade, a ciência e o bom senso. Mais duro ainda foi assistir às patetadas de Pazuello e às humilhações que o presidente lhe impunha – quanto a vacinas, por exemplo. Imaginem a exposição na CPI!

Justificativa do Ministério da Economia ao Congresso por não ter previsões orçamentárias para o combate à covid em 2021, optando por créditos suplementares: ninguém sabia que viria a segunda onda. Por que não? Porque Bolsonaro trocou médicos e epidemiologistas da Saúde por militares que nem conheciam SUS e curva epidemiológica e, portanto, eram incapazes de alertar o Planalto, o governo e o País para os cenários possíveis. Paulo Guedes e seus economistas foram imprevidentes, mas a obrigação de detectar uma nova onda não era deles, era da Saúde. E Bolsonaro nunca quis um real Ministério da Saúde.

A população captou isso. No Datafolha, a atuação do ministério na pandemia despencou de 76% com Luiz Henrique Mandetta para 28% com Pazuello. E, hoje, 51% reprovam e apenas 21% aprovam ação do presidente na pandemia, o que ajuda a entender por que a sua popularidade derrete.

O depoimento de Pazuello não vai reverter isso, pelo contrário, e Bolsonaro faz duas jogadas de risco: tenta usar os contratos mega-atrasados com a Pfizer para apagar tudo o que fez contra as vacinas e ataca grosseiramente a China para sabotar os insumos da “vacina chinesa do Doria”. Ao retaliar o líder errado, a China prejudica a população brasileira. Alguém aí pode dar um toque no Xi Jinping?

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,quem-obedece-nao-precisa-se-incriminar-mas-tem-de-contar-tudo-sobre-quem-manda,70003716315

 


Nicolau da Rocha Cavalcanti: O autoritarismo de ontem e os males de sempre

Não são apenas as desigualdades sociais e econômicas que insistem em permanecer na trajetória brasileira. Os males institucionais são também teimosos, como mostra Luis Rosenfield em seu livro Revolução Conservadora: Genealogia do Constitucionalismo Autoritário Brasileiro (1930-1945) – Editora da PUCRS, 2021.

A descrição do ambiente público da Primeira República, por exemplo, é aplicável à época atual. “As polêmicas (…) diziam respeito à lisura do processo eleitoral, à inviolabilidade do voto secreto e universal, à independência do Poder Judiciário, à separação de poderes e à organização de partidos políticos de âmbito nacional. Somavam-se a esse cenário a pauta de modernização da gestão pública, o problema da corrupção e a crônica ineficiência governamental.”

Resultado de sua pesquisa de doutorado, o livro de Luis Rosenfield é incômodo. Seu objetivo é precisamente “abordar as ideias que levaram o Brasil à consolidação de um pensamento constitucional autoritário, antiliberal e corporativista que teve seu ápice no Estado Novo”.

O tema envolve muitas sombras e contradições. “A história das doutrinas constitucionais não entra em pausa durante os regimes autoritários. Compreender o constitucionalismo como um simples andar para frente das garantias individuais, das liberdades e de uma suposta evolução dos sistemas políticos democráticos implica endossar uma perspectiva ingênua da História”, diz Luis Rosenfield.

No estudo sobre o modo como a comunidade jurídica pensava os rumos do País, escancaram-se não apenas incoerências teóricas, mas cumplicidades constrangedoras. Por exemplo, “Oliveira Vianna, o grande intelectual do período (varguista), defendia desde a década de 20 a democracia autoritária, eugênica e corporativa”.

O livro é também incômodo – e, na exata medida desse incômodo, necessário nos dias de hoje – ao delinear os antecedentes do pensamento constitucional autoritário. Em sua gênese não estavam “apenas delírios autoritários”. A motivação comum a esses pensadores era oferecer um rumo ao Estado brasileiro capaz de superar “os males da ineficácia, da corrupção e do subdesenvolvimento”.

Eis um ponto que merece especial atenção. O Estado Novo de Vargas cometeu atrocidades e violou garantias e liberdades; e, nessa trajetória de desrespeito a direitos fundamentais, contou com a cumplicidade de muitos juristas. No entanto, isso não foi fruto de mera perversidade autoritária. Os caminhos foram mais sutis e, portanto, mais perigosos.

O pensamento autoritário do Estado Novo nasce – aqui as palavras têm desconcertante atualidade – de um “profundo desapontamento com os rumos da prática constitucional do País”. No final da Primeira República, “disseminam-se obras jurídicas que irão contestar o anacronismo das instituições liberais, a ineficácia da democracia parlamentar e o idealismo da Constituição de 1891”.

No embate entre idealistas constitucionais e realistas autoritários – “oposição utilizada como chave de leitura da Era Vargas”, pontua o autor –, “gradualmente, a defesa do sistema de freios e contrapesos, típico das democracias ocidentais, passou a ser observada como um ideal de outra época, dissociado das necessidades reais do País”.

Aqui se vê outra característica da perigosa sutileza do autoritarismo. Muitas vezes, são reflexões jurídicas, aparentemente inofensivas, que assentam o caminho autoritário. “Os juristas ligados ao regime (…) forneceram novos contornos à interpretação jurídica, demonstrando intensa repulsa ao formalismo jurídico”.

A ofensiva autoritária não se dirigia explicitamente contra as liberdades. Havia mais astúcia no ataque. “Investidas contra o ‘formalismo’ e a ‘ortodoxia jurídica’ foram muito utilizadas pelos pensadores autoritários brasileiros como forma de justificar e legitimar o Estado Novo”, afirma Luis Rosenfield. Uma vez mais, o tema é incomodamente atual. Não faltam, nos dias de hoje, discursos contrapondo liberdades e garantias fundamentais a moralidade pública, a combate à corrupção e até mesmo a desenvolvimento social e econômico.

Nessa trajetória de concessões – tolerando o que é intolerável, com a desculpa das boas causas; no caso do autoritarismo da era Vargas, o pretexto era “encontrar soluções genuinamente brasileiras para os problemas nacionais” – chega-se a situações paradoxais. “A nova separação de poderes do varguismo culminou na eliminação dos partidos políticos, no fechamento do Congresso e no fim do federalismo da Primeira República”, aponta o autor. Como se vê, os resultados do autoritarismo não são nada sutis.

Por isso, jogar luzes sobre as doutrinas jurídicas que deram sustentação ao passado autoritário, como faz o livro de Luis Rosenfield, é muito mais do que mera tarefa acadêmica. É caminho para superar males que insistem em voltar ao cenário brasileiro. Quase um século depois, não pode o País seguir atado às mesmas questões, refém do uso insidioso da percepção de crise (seja moral, social, política ou econômica) para tentativas antiliberais e antidemocráticas.

ADVOGADO, MESTRANDO EM DIREITO PENAL PELA USP

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-autoritarismo-de-ontem-e-os-males-de-sempre,70003715545

 


João Gabriel de Lima: O rio turvo dos crimes de lesa-democracia

Existem pelo menos duas coisas em comum entre a propina paga por empresas de ônibus no caso Celso Daniel, o acerto de R$ 2 milhões entre Joesley Batista e Aécio Neves e as verbas que Jair Bolsonaro usou para comprar parlamentares do Centrão, no caso revelado em furo de reportagem do Estadão.

A primeira é que nos três episódios – que diferem no tipo de enquadramento em categorias jurídicas – representantes escolhidos pelo povo agiram às escondidas. A democracia, por definição, é o império da transparência. Ela se alimenta da confiança entre eleitores e eleitos. Sem isso, se deteriora. Um político que age por baixo do pano comete um crime de lesa-democracia.

Para repassar verbas aos parlamentares dispostos a vender apoio, o governo federal usou a “emenda do relator”. Trata-se de uma figura jurídica que havia sido abolida em 1993, por estar na raiz do escândalo dos “anões do Orçamento”, e que foi recriada no ano passado. Em entrevista ao Estadão, o economista Gil Castello Branco, especialista em contas públicas, explicou por que tal dispositivo é nocivo à democracia. Ele possibilita, segundo Castello Branco, que emendas parlamentares sejam colocadas numa espécie de caixa-preta, dificultando seu acompanhamento e rastreamento.

Democracia não é só cumprir regimentos. Para o filósofo Renato Janine Ribeiro, ela vai muito além. Implica, como se disse acima, transparência obsessiva. É preciso também que as verbas governamentais sejam destinadas a obras que cumpram função pública. Janine foi ministro da Educação, é professor de Ética e autor do livro A Boa Política, lançado pela Companhia das Letras. Ele fala sobre democracia no minipodcast da semana.

A segunda coisa em comum entre os malfeitos petista, tucano e bolsonarista é que, mesmo agindo no escurinho da má política, seus protagonistas deixaram rastros – e foram apanhados.

Parte da propina paga à prefeitura de Santo André foi depositada no extinto Banespa, num caso curioso de corrupção com extrato bancário. Joesley gravou sua conversa com Aécio, e entregou depois o áudio às autoridades. Já os “anões” do “bolsolão”, nome com o qual o episódio se popularizou nas redes sociais, solicitaram o dinheiro por ofício.

Nos textos, pouco se fala sobre a natureza das obras, sua função pública ou justificativas técnicas. Em vez disso, leem-se expressões que revelam a combinação por baixo do pano: “minha cota”, “fui contemplado”, “recursos a mim destinados”.

A série de reportagens, de autoria de Breno Pires, mostrou que alguns parlamentares se negaram a apresentar os ofícios solicitados pela Lei da Transparência. Houve quem alegasse “razões de segurança de Estado”. Como se pretendessem defender o Brasil de uma suposta invasão externa usando um exército Brancaleone de tratores superfaturados.

As reportagens mostraram também que um dos maiores beneficiários das verbas destinadas via Codevasf, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba, foi o Amapá do senador Davi Alcolumbre. O Amapá é famoso pelo rio Oiapoque, um dos marcos do norte geográfico brasileiro. O rio São Francisco, no entanto, não passa por lá.

Exaltado por Cartola e Carlos Cachaça num samba-enredo antológico, o São Francisco cumpre funções essenciais de transporte e fornecimento de energia. Já o rio dos crimes de lesa-democracia, como um esgoto, é sempre subterrâneo. A missão do jornalismo é trazer luz às suas águas turvas.

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,o-rio-turvo-dos-crimes-de-lesa-democracia,70003715728

 


Fernando Gabeira: Anatomia da política de negação

Pode ser que a CPI da pandemia descubra fatos novos, que revolucionem nossa visão do problema. Caso isso não aconteça, e é provável que não aconteça, já é possível, pelo menos, escrever o argumento desse filme, abstraindo os lances e peripécias de um roteiro.

Na base de tudo está a negação da pandemia por Bolsonaro. Esse conceito de negação foi lançado por Freud em 1923. E numa carta de 1937, escrita para um colega, ele cita o rei Boabdil, que ao receber a notícia de que a capital de seu reino, Alhambra, estava sitiada mandou queimar a carta e decapitar o mensageiro.

Bolsonaro não poderia aceitar a pandemia com os problemas econômicos que trazia e, sobretudo, a ameaça de sua reeleição. De certa forma, ele queimou a carta enviada pelos cientistas e decapitou os ministros que insistiam no tema.

Sua tese era de que a economia precisava seguir seu curso. Para fundamentá-la era preciso buscar algo aparentemente científico. A tese da imunização de rebanho foi a tábua de salvação. Todos se contaminariam de um modo ou de outro, pensava Bolsonaro, então que se contaminassem logo para voltarmos à normalidade.

Ele abstraiu o número de mortes implícito nessa escolha. Na verdade, era preciso trazer também a esperança de cura, uma espécie de bala de prata contra a covid-19: a hidroxicloroquina. O remédio era uma resposta simples para um problema complexo. Todos se contaminam, todos se salvam pela hidroxicloroquina

Essa negação, que teve o momento máximo quando classificou a covid como apenas uma “gripezinha”, precisava ir adiante na negação. Se a covid-19 não tinha importância, por que gastar fortunas com vacinas? Numa de suas declarações mais claras sobre o tema, Bolsonaro disse preferir gastar dinheiro com remédio a comprar vacinas.

Mais tarde voltou ao tema, criticando a “vacina chinesa de Doria”, a Coronavac, e terminando por lançar suspeitas também sobre as vacinas que usam a técnica de mensageiro RNA, no caso da Pfizer: se quiser virar jacaré, ou ver mulher de barba ou homem falando fino, tome a vacina.

Ao longo desse tempo, o número de mortos aumentava e Bolsonaro mantinha sua frieza: não sou coveiro. Era algo previsível em sua tática.

Daí o desencontro entre seu comportamento e o que esperava a imprensa. Por que evitar aglomerações, se todos vão mesmo se contaminar? Por que usar essas opressivas máscaras? Se vamos chegar a uma situação de normalidade, é melhor todos se contaminarem rapidamente.

Olhando em torno, no universo particular de seu Palácio do Planalto, a teoria da contaminação de rebanho ia muito bem: 460 funcionários se contaminaram até abril.

A história pode ser contada assim, até mesmo no embate entre Bolsonaro e governadores. Ele quer a volta de todos ao trabalho e está disposto a fazer tudo para conquistar “essa liberdade”.

São duas concepções em jogo. Uma quer que as pessoas se vacinem, não se aglomerem, usem máscaras e lavem as mãos. A de Bolsonaro é a volta ao trabalho, o fluxo pleno da economia.

Quando for concluído o relatório da CPI, é possível fazer como se fez nos Estados Unidos: convidar um grupo de sanitaristas para examinar uma por uma essas decisões, ou mesmo hesitações. Aqui, como lá, também seria possível os especialistas calcularem o número de mortes que poderiam ter sido evitadas com as escolhas corretas.

Portanto, um minucioso trabalho de coleta de dados da CPI e um relatório que articule esses dados ainda serão insuficientes. Será necessário quantificar as suas consequências.

Nesse momento, Bolsonaro pelo menos terá uma defesa. Não têm razão aqueles que o acusam por todas as mortes pela covid-19 no Brasil. Ele teria de responder apenas por uma parte delas.

Quando a CPI encerrar seu trabalho, o número total de mortos no Brasil, segundo uma previsão da Universidade de Washington, será de 600 mil pessoas. Quantas podem ser atribuídas a uma escolha política de rasgar a carta e decapitar o mensageiro?

Ainda faltam detalhes à história. Até que ponto a vacinação no Brasil seguirá em ritmo lento? Até que ponto os atrasos na remessa de IFAs não são uma represália chinesa às declarações de Bolsonaro?

A Coronavac está no braço de 80% dos vacinados no Brasil. Bem ou mal, dependemos dela para uma vacinação em massa, até o momento. Da Índia dificilmente virá alguma coisa, pois a crise lá é profunda e o próprio Instituto Serum está sob forte pressão. A Pfizer fechou um negócio de 1,5 bilhão de doses com a Europa. Vai estar sobrecarregada.

Nesse contexto, provocar um rompimento com a China é apenas o lance final da estratégia de imunização de rebanho, que, na verdade, poderia ser chamada de extermínio de rebanho.

Isso coloca a CPI diante de outra tarefa, mais imediata do que compilar os dados e determinar responsabilidades. É preciso um núcleo de emergência, a busca de algumas medidas que possam salvar vidas enquanto o trabalho transcorre. E isso se vai dar no campo das vacinas, vencida, como parece ter sido, a batalha da hidroxicloroquina.

JORNALISTA

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,anatomia-da-politica-de-negacao,70003714359


Carlos Melo: A mentira e a linha de um tempo de absurdos

Precipitadamente, esperava-se que o depoimento de Fabio Wajngarten trouxesse revelações bombásticas e viesse a entregar ex-colegas de governo. Afinal, o ex-secretário viveu os bastidores da presidência de Jair Bolsonaro, foi integrante do núcleo dirigente e, sobretudo, por meio da Revista Veja havia dirigido artilharia pesada contra o Ministério da Saúde.

No entanto, sendo evasivo, Wajngarten buscou se caracterizar como um burocrata distante do centro do poder. Defendeu-se e optou pela fidelidade ao presidente e à sua alma mater, o bolsonarismo. E era mesmo essa a perspectiva mais realista a respeito do depoimento.

Contudo, ele não combinou com a maioria da CPI. Determinados em revelar erros do governo e do presidente da República, os membros não governistas da comissão resolveram apertar o ex-secretário. E assim explicitaram inúmeras contradições em suas declarações. Sobretudo, em relação ao que disse à revista Veja.

Saiu dali a primeira protagonista do dia: as acusações de falso testemunho — Wajngarten mentiu à CPI ou à Veja? A revista liberou o áudio da entrevista e uma acareação entre o ex-secretário e seus repórteres foi posta sobre a mesa. Ficou ali patente o erro estratégico de Wajngarten, o que poderia ter-lhe levado da CPI diretamente à prisão. Não chegou a tanto, mas ficou o recado aos próximos depoentes.

A segunda personagem do depoimento emergiu com a exposição da Carta da Pfizer dirigida aos principais membros do governo. Emitida em setembro de 2020, ela alertava para a urgência da negociação em torno da compra de vacinas. Como se o assunto fosse irrelevante, após dois meses parecia ignorada — medidas efetivas se deram apenas quatro meses mortais mais tarde. Inadvertidamente, Wajngarten explicitou “a linha do tempo de absurdos” que giram em torno da pandemia no Brasil.

A mentira e o desmazelo gritaram alto na CPI. Despreparada, a tropa governista não conseguiu deter a linha do tempo. Nem a história, de onde todos os absurdos transbordam.

*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/blogs/carlos-melo/a-mentira-e-a-linha-de-um-tempo-de-absurdos/


José Serra: Orçamento sem bom censo

O Orçamento público aprovado no final de abril, com atraso e inconsistências técnicas, compromete o desempenho das políticas públicas no País e cancela, na prática, os recursos para a realização do Censo 2021. Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden defende seu ambicioso plano de Estado para os próximos dez anos; já no Brasil, os formuladores de políticas governamentais promovem desorganização das contas públicas e desmantelamento de programas de governo indispensáveis ao desenvolvimento do País.

Soma-se a esse inadmissível desacerto na condução da política econômica a inepta tese de que o Orçamento público deve ser decidido pelos parlamentares. Como se o papel do Executivo fosse somente largar na porta do Congresso Nacional o principal instrumento de planejamento e gestão do País. Não é admissível que um governo se exima de governar.

Nossa Constituição federal confere ao Poder Executivo competência privativa para elaborar o Orçamento, em função de metas e prioridades estabelecidas pelo presidente da República. Quando o governo abre mão dessa prerrogativa durante o processo de elaboração do Orçamento, o Parlamento ocupa esse espaço e, por inércia, tende a avançar na alocação unilateral dos recursos públicos, por meio de emendas orçamentárias.

Nota-se que o governo federal se descompromete das próprias metas e prioridades ao evitar interações com o Poder Legislativo na fase de discussão do Orçamento. Por sua vez, os parlamentares têm interesses próprios relacionados às suas bases eleitorais e locais. Num sistema político-partidário fragmentado, como se verifica no Brasil, a estratégia do governo, em última análise, compromete a qualidade do gasto e alimenta o viés deficitário do Orçamento.

Nesse contexto, o Congresso praticamente excluiu do Orçamento de 2021 a previsão de recursos para a realização do censo. O relator-geral do Orçamento adotou uma estratégia conhecida na Esplanada como “inversão de prioridades”: corta-se uma despesa essencial para financiar outros gastos de prioridade duvidosa, sabendo que, no fim das contas, haverá forte pressão para recompor a verba cortada.

Sabe-se que o censo, no Brasil, deve ser realizado a cada dez anos, nos termos do primeiro artigo da Lei 8.184, de 1991. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, ao ser provocado, decidiu corretamente ao determinar que o governo tome as providências para realizá-lo neste ano. A Corte julga agora um recurso da Advocacia-Geral da União contra essa determinação, mas, ao que tudo indica, os ministros devem manter a decisão anterior.

O Censo 2021 deve ter prioridade e medidas devem ser tomadas para superar questões sanitárias. Na ponta do lápis, o custo é irrisório comparado aos benefícios: gasta-se pouco para lançar mão de dados que ajudam os gestores públicos a fazer uma alocação melhor e mais eficiente dos recursos públicos. Trata-se de uma ampla pesquisa que cobre os domicílios brasileiros, com um retrato detalhado da população – desde quantidade e características das famílias até o tipo de moradia em que vivem, levando em conta acesso a coleta de lixo, energia elétrica e transporte público, por exemplo.

Cabe também observar que o Brasil vem sofrendo transformações substanciais na última década. São mudanças nos fluxos migratórios e na pirâmide etária do País, por exemplo, que só podem ser medidas com maior precisão com o censo. E são indicadores fundamentais para tomada de decisões e formulação de políticas públicas.

Em países avançados, o censo é considerado uma ferramenta essencial para o desenvolvimento. Recentemente tive a oportunidade de acompanhar a manifestação de um ministro canadense explicando a importância das pesquisas censitárias, especialmente para o planejamento dos negócios no setor privado e das políticas públicas mais importantes para as comunidades. Devemos seguir esse caminho, pondo o censo como instrumento prioritário da administração pública.

Quando ministro do Planejamento, tive a oportunidade de coordenar a elaboração do primeiro plano plurianual do governo Fernando Henrique Cardoso. A maioria das reuniões era realizada no ministério, mas não foram poucas as vezes em que fui pessoalmente ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), braço direito na elaboração do plano.

Eram presença marcante e constante dessas reuniões técnicos da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Este, hoje tão desrespeitado e desprestigiado, foi o responsável por fornecer as estatísticas sobre o acesso da população brasileira aos serviços básicos, níveis educacionais e outros indicadores que nortearam a definição das políticas públicas a serem implementadas no Brasil à época.

É uma pena observar manobras no Orçamento federal que comprometem a realização do Censo 2021. O governo precisa recuperar seu protagonismo no processo de elaboração do Orçamento, sinalizando para o Congresso o compromisso com o planejamento das políticas públicas. Caso contrário, o Orçamento continuará sem bom censo.

*Senador (PSDB-SP)

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,orcamento-sem-bom-censo,70003713088