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Bolsonaro vai enfrentar 'debandada' de ministros em 2022

Dos 23 titulares de pasta, 11 são apontados como pré-candidatos e devem deixar os cargos em abril, criando 'palanques' para o presidente

Lauriberto Pompeu, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - As eleições de 2022 vão mudar a fisionomia do primeiro escalão do governo de Jair Bolsonaro. Levantamento feito pelo Estadão indica que, até agora, 11 dos 23 ministros pretendem deixar a equipe em abril para disputar as eleições do ano que vem. O prazo é estipulado pela Lei Eleitoral, que obriga ocupantes de cargos públicos a entregar os postos seis meses antes das eleições, se quiserem ser candidatos.

Bolsonaro conta com vários deles para ajudar a montar palanques que deem sustentação à sua campanha pelo segundo mandato, principalmente em São Paulo, maior colégio eleitoral, e em Estados do Nordeste, reduto do PT do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu maior adversário político. “Acredito que um terço dos meus ministros se lance candidato” , disse Bolsonaro à Rede Nordeste de Rádio, no último dia 27, sem mostrar preocupação com a debandada. “Eu já falei com eles. Sabem muito bem que têm chance de vitória, se eu estiver bem.”

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Ministros
Ciro Nogueira (Casa Civil), Marcelo Queiroga (Saúde), Onyx Lorenzoni (Trabalho) e Tarcísio Gomes de Freitas (Infraestrutura): ministros cotados para concorrer nas eleições de 2022. Foto: Dida Sampaio/Estadão, Adriano Machado/Reuters, Alan Santos/PR

Entre os nomes citados pelo próprio presidente para disputar as eleições estão ministros hoje sem partido, como o da Saúde, Marcelo Queiroga, que pode se candidatar ao Senado pela Paraíba, e o da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas. Bolsonaro quer lançar Tarcísio à sucessão do governador João Doria (PSDB), seu arqui-inimigo, em São Paulo, mas ele ainda resiste. “Está fazendo um brilhante trabalho. Se assumir um cargo no Executivo, dará um show”, afirmou o presidente.

A ideia é que Queiroga, Tarcísio e o ministro do Turismo, Gilson Machado Neto – hoje no PSC e com planos de se candidatar ao Senado, por Pernambuco –, migrem para o mesmo partido que Bolsonaro vai escolher para disputar a reeleição. Até agora, a tendência é que o presidente se filie ao Progressistas, partido do novo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, e principal legenda do Centrão, mas o acordo ainda não foi fechado. “Eu sou do Centrão”, disse Bolsonaro no último dia 22, minimizando as críticas à entrada do grupo no governo, ao lembrar que foi filiado por muitos anos ao PP (hoje Progressistas).

Recém-nomeado chefe da Casa Civil, Nogueira quer disputar o governo do Piauí. Aliados avaliam, porém, que ele pode desistir, caso considere que permanecer no governo é “uma missão maior”. Há até quem faça planos para Nogueira ser vice na chapa de Bolsonaro à reeleição.

'Senado ou nada'

O ministro das Comunicações, Fábio Faria, descarta disputar novo mandato de deputado ou tentar o governo do governo do Rio Grande do Norte. “É Senado ou nada”, disse ele ao Estadão. Faria é filiado ao PSD, mas está de malas prontas para o Progressistas. Este também poderá ser o partido do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, apontado por Bolsonaro como “um bom nome” para concorrer ao governo do Rio Grande do Norte. Marinho era do PSDB, mas se desfiliou.

No Distrito Federal, outros dois ministros se movimentam para concorrer. O titular da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, é filiado ao PSL, que quer lançá-lo à sucessão do governador Ibaneis Rocha. A chefe da Secretaria de Governo, Flávia Arruda (PL), atualmente deputada licenciada, pretende disputar uma vaga no Senado.

'Curinga'

Chamado por Bolsonaro de “curinga” na equipe por já ter ocupado três pastas, o novo ministro do Trabalho e Previdência, Onyx Lorenzoni, se movimenta desde 2019 para disputar o governo gaúcho. Isso é perceptível ao olhar agendas de Onyx nas pastas pelas quais passou – Casa Civil, Cidadania e Secretaria-Geral –, sempre lotada de compromissos com prefeitos do Rio Grande do Sul e espaço privilegiado para entrevistas à imprensa local.

A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, já avisou ao comando do DEM que quer concorrer ao Senado por Mato Grosso do Sul. Tudo indica, no entanto, que ela mudará de partido. Trata-se de outro nome que pode ir para o Progressistas.

Na Bahia, onde o presidente do DEM, ACM Neto, vai disputar o governo, o Planalto estimula a candidatura do ministro da Cidadania, João Roma, pelo Republicanos. Afilhado político de Neto, Roma foi chefe de gabinete da Prefeitura de Salvador, de 2013 a 2018, e depois se elegeu deputado. Os dois romperam porque Neto não queria que ele aceitasse o ministério. Roma ainda não decidiu, porém, se enfrentará seu ex-aliado ou se disputará uma vaga para retornar à Câmara dos Deputados. 

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Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-vai-enfrentar-debandada-de-ministros-em-2022,70003804712


Ainda a terceira via

Os democratas têm um patrimônio a preservar: a democracia liberal, na acepção contemporânea

Sérgio Fausto / O Estado de S. Paulo

O surgimento de uma terceira via eleitoral seria muito importante para a democracia brasileira. Não apenas ofereceria uma opção alternativa ao eleitor, mas também romperia uma bipolaridade que empobrece o debate público e carrega de nuvens pesadas o horizonte político brasileiro. As chances de uma terceira via estar no segundo turno são diretamente proporcionais à sua capacidade de deslocar Jair Bolsonaro para fora dele. Já seria um feito extraordinário, pois Lula da Silva não representa uma ameaça à democracia brasileira, ao contrário do atual presidente.

Para chegar lá a terceira via terá de marcar diferenças nítidas em relação ao candidato do PT e deixar claro o seu antagonismo com Bolsonaro e o que ele representa. É absurdo apresentar-se como ponto equidistante dos dois extremos. Repito aqui o que Miriam Leitão disse de forma lapidar: nessa disputa só há um extremista, Bolsonaro. Não é hora de “doisladismos”, mas de traçar a linha divisória entre o campo democrático e o autoritário.

Pode-se criticar o PT e Lula por inúmeras razões, a começar por sua vocação hegemonista, mas é preciso reconhecer que o ex-presidente poderia ter mudado a regra do jogo e sido eleito para um terceiro mandato consecutivo, mas não o fez; que nem seu governo nem o de sua sucessora avançaram sobre a autonomia do Ministério Público; e que Dilma Rousseff não interveio na Polícia Federal para bloquear a Operação Lava Jato. Isso para mencionar apenas alguns fatos relevantes que indicam as credenciais democráticas do PT, em que pese o partido pagar tributo a regimes autoritários ditos de esquerda e demonstrar atração pelos populismos latino-americanos.

Dentro do campo democrático há diferenças importantes. Lula caminhará para o centro político, seguindo sua experiência, sua intuição e seu estilo. Mas carregará na bagagem um conjunto de ideias anacrônicas, a julgar pelo que se lê e ouve em documentos e declarações dele próprio e do seu partido. Na crítica à “entrega do pré-sal às empresas estrangeiras”, sobressai o velho nacional-estatismo, que parece sobreviver mesmo depois da negativa experiência do governo Dilma. No ataque sem qualificação ao teto de gastos, destaca-se o voluntarismo fiscal, como se qualquer regra disciplinadora referente ao gasto, fundamental para assegurar a solvência do Estado e o equilíbrio macroeconômico, fosse uma indevida concessão ao mercado em detrimento do povo. Nas justificativas esfarrapadas para ações de regimes autoritários, vê-se o subsistente anacronismo de uma esquerda que resiste a assumir a democracia como valor universal. Na estigmatização da Operação Lava Jato, como se o PT tivesse sido vítima de uma conspiração, nota-se a inclinação mistificadora característica de líderes, partidos e movimentos com tendências populistas.

Demarcar diferenças com relação a Lula e à coalizão de forças que a ele se juntará não deve levar a terceira via a embarcar no antipetismo furibundo, reacionário e preconceituoso. De hoje até a data do primeiro turno das eleições do próximo ano, a prioridade deve ser o enfrentamento político e eleitoral com Bolsonaro. Nesse período, não haverá dificuldade maior em conciliar a defesa de valores com a tática eleitoral, visto que a terceira via só chegará ao segundo turno se o atual presidente ficar pelo meio do caminho. Na hipótese de o segundo turno se dar entre o candidato da terceira via e Lula, é preciso não perder de vista que, além de derrotar Bolsonaro, importa não repetir os erros que o levaram à Presidência. Um desses erros foi a polarização autodestrutiva que se estabeleceu entre o PSDB e o PT ao longo de mais de 20 anos.

Não repetir esse erro implica reconhecer que a diferença política fundamental está entre democratas e não democratas, entre quem se recusa e quem se dispõe a recorrer à força e à intimidação para vencer, quando não destruir adversários transformados em inimigos políticos. Não petistas e petistas, se democratas, têm um patrimônio comum a preservar: a democracia liberal, na sua acepção contemporânea, que agrega os direitos sociais e ambientais aos civis e políticos e se abre para as mudanças na sociedade em favor da igualdade na diversidade. A Presidência de Bolsonaro e a experiência com o bolsonarismo nos ensinou que a democracia não está assegurada, nem mesmo nos seus elementos mais básicos.

Além de derrotar Bolsonaro, será necessário refazer, para reforçá-lo, o pacto democrático estabelecido em 1988, agora com outros atores políticos e novas forças sociais, à luz das lições aprendidas desde então, em especial a persistência, sob novas vestes e formas, do patrimonialismo e do corporativismo, que capturam o sistema político e o Estado. Tão ou mais importante será ter clareza sobre os desafios das próximas décadas: como preparar o País para, com o uso das novas tecnologias, melhorar a qualidade da sua democracia e do seu desenvolvimento, tornando-o mais “verde” e mais includente?

A terceira via precisa oferecer respostas consistentes a essa questão. Perdendo ou ganhando, é importante que tenha força política para participar da construção do futuro do País.

*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do GACINT-USP


Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,ainda-a-terceira-via,70003803008


O Brasil está em guerra pela democracia. E o Congresso, cadê?

O País está no pior dos mundos, com mais de 560 mil mortos pela covid-19 e enfrentando uma crise institucional; e o Congresso, onde está?

Eliane Catanhede / O Estado de S. Paulo

Primeiro, o Congresso triplicou o fundo eleitoral para escandalosos R$ 5,7 bilhões em plena pandemia de covid-19 e de desemprego. Depois, tratou de reduzir os mecanismos de controle sobre essa dinheirama, propondo um código que tira a Justiça Eleitoral da frente e praticamente deixa a “fiscalização” do fundo e das campanhas por conta dos... partidos.

O País está no pior dos mundos, com mais de 560 mil mortos pela covid-19 e enfrentando uma crise institucional de um presidente da República que ameaça rasgar a Constituição contra o Supremo Tribunal Federal, o Tribunal Superior Eleitoral e os próprios ministros, que resistem bravamente em nome da democracia. E o Congresso, onde está?

STF, TSE, milhares de empresários, intelectuais e líderes religiosos, sociedades de ciência e direitos humanos, entidades profissionais e religiosas, subprocuradores da República e grupos de parlamentares cerram fileiras contra os ataques de Bolsonaro à Constituição e às eleições. A resistência, porém, não encontra o devido eco na “casa do povo”, onde a maioria está mais preocupada com a própria reeleição e com o próprio bolso do que com a democracia.

O Congresso está nas nuvens, cuidando dos próprios interesses, ampliando seus privilégios. Na Câmara, com apoio explícito do presidente Arthur Lira (PP-AL). No Senado, com a atitude excessivamente, digamos, elegante do presidente Rodrigo Pacheco (quase exDEM-MG). É preciso mais. É preciso gritar e articular uma defesa enérgica das instituições, da democracia.

E é urgente, depois que o líder do Centrão Ciro Nogueira abocanhou a “alma do governo” e tem de pagar com a alma do Congresso. Nogueira é unha e carne com Arthur Lira, fiel guardião do cofre onde estão em torno de 130 pedidos de impeachment, e acaba de ignorar a derrota do voto impresso na Comissão Especial. Vai tentar ressuscitar a proposta – atual obsessão de Bolsonaro – no plenário. O regimento permite, mas nunca se viu.

Há, porém, focos de resistência democrática também no Parlamento, ativos e ruidosos. No Senado, a CPI da Covid confirma o quanto o governo, sob o descaso ou a inspiração de Bolsonaro, virou uma casa da mãe Joana aberta a picaretas e picaretagens na pandemia. Na Câmara, a união de 11 partidos pela urna eletrônica e de parlamentares de diferentes orientações ideológicas pró Supremo, democracia e eleições.

Num único dia, Bolsonaro sofreu tripla derrota: o presidente do Supremo, Luiz Fux, rompeu o diálogo com ele; o PIB e a inteligência brasileira finalmente deram as caras pela democracia e as eleições; e, por 23 votos a 11, a Comissão Especial da Câmara rejeitou a volta do famigerado voto impresso. Com 11 partidos contrários, a proposta deve sofrer nova derrota em plenário. Se passar, vai enfrentar uma muralha no Senado, como o presidente Pacheco anuncia.

Nada disso, porém, consegue disfarçar o esforço parlamentar para criar o “distritão” e um Código Eleitoral obscurantista. Pelo “distritão”, só terão chance de vitória para a Câmara as celebridades, os pastores de almas, os muito ricos, os que já têm mandato e... as milícias. E a proposta de Código Eleitoral reduz as cotas da diversidade e o poder de fiscalização e punição da Justiça Eleitoral, com as raposas tomando conta do galinheiro.

Logo, a poderosa resistência que ganha corpo no Brasil deve não apenas mirar nas ameaças contumazes do presidente da República à democracia, mas também nas “boiadas” no Congresso contra a moralidade pública, a lisura das campanhas eleitorais, o meio ambiente. Bolsonaro não dá bola para nada, mas deputados e senadores são suscetíveis à opinião pública e aos setores responsáveis da sociedade. O grito deve ser: sim à democracia, não às “boiadas”!

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,o-brasil-esta-em-guerra-pela-democracia-mas-a-casa-do-povo-cuida-dos-proprios-interesses,70003803847


Urna eletrônica: 'Fraude é denunciar fraude inexistente', afirma analista

Para o argentino Daniel Zovatto, pressão por voto impresso é descabida e é ‘inoportuno e perigoso’ mudar regras a um ano das eleições

Daniel Bramatti, O Estado de S.Paulo

O argentino Daniel Zovatto nunca foi candidato a nada, mas de eleições ele entende, e muito. Diretor para a América Latina do Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral (Idea Internacional), ele conhece a fundo as instituições e autoridades que organizam votações em toda a região. Também monitora, com muita preocupação, o estado de saúde da democracia em todo o mundo.

Para Zovatto, a pressão pela implantação do voto impresso no Brasil é descabida. Ele considera que é “inconveniente, inoportuno e perigoso” mudar as regras das eleições quando falta pouco mais de um ano para os brasileiros irem às urnas.

Daniel Zovatto
Daniel Zovatto, diretor para a América Latina do Idea Internacional, vê 'danos à democracia'. Foto: Lucio Bernardo Jr./Câmara dos Deputados - 21/3/2017

Na entrevista abaixo, na qual manifesta opiniões pessoais, e não da instituição que representa, o doutor em Direito Internacional analisa, entre outros pontos, a estratégia dos políticos que buscam deslegitimar eleições em caso de risco de derrota.

Como analisa o conflito em relação ao sistema de votação no Brasil? 

Tribunal Superior Eleitoral (TSE) traçou uma linha vermelha oportuna e necessária ao abrir uma investigação sobre o presidente Jair Bolsonaro e ao emitir uma nota assinada por todos os ex-presidentes do TSE em defesa da urna eletrônica, que tem sido atacada quase diariamente pelo chefe do Executivo. Bolsonaro, por sua vez, reagiu dizendo que não aceitará intimidação e que continuará a exercer seu direito à liberdade de expressão, a criticar, a escutar e a atender, acima de tudo, à vontade do povo. E, fiel à sua palavra, ele continuou com seus ataques e denúncias. Como resposta, o ministro Luiz Fux, presidente do STF, cancelou uma reunião de chefes de Poderes. Diante do atual clima de tensão, seria desejável abrir um espaço para o diálogo respeitoso entre o Executivo, o STF e o TSE, visando desescalar o conflito, mas sem abandonar a abordagem básica em defesa da independência do TSE, da credibilidade da urna eletrônica e da defesa do sistema democrático. 

O que está por trás da pressão pela adoção do voto impresso?

Na minha opinião, houve uma ameaça muito forte à democracia brasileira quando a realização das próximas eleições foi condicionada à adoção do voto impresso. Diante desta grave ameaça, o TSE agiu corretamente, mostrando que tem poder suficiente para defender o processo eleitoral. Isto representa uma mudança muito importante. Se até a semana passada Bolsonaro agia como se não tivesse nada a perder, após a ofensiva do TSE o presidente é alvo de um risco triplo: pode perder a cadeira presidencial se o TSE encontrar irregularidades na campanha de 2018; pode sofrer impeachment; e pode ser impedido de ser candidato nas eleições de 2022.  

Considera que o TSE deu uma resposta institucional, em nome de todo o Judiciário?

O TSE tem uma composição única na América Latina, pois seu presidente e parte de seus ministros também são do Supremo Tribunal Federal, e por concentrar tanto funções administrativas quanto judiciais. Estas características fazem do TSE uma instituição muito poderosa. Existem outros órgãos eleitorais sendo atacados na América Latina pelo Executivo – o INE no México –, por deputados do partido no poder – o TSE na Bolívia – ou pela oposição que perdeu as eleições – a JNE no Peru –, mas nenhum dos três tem a capacidade de reagir como o TSE brasileiro. Conheço o TSE desde 1990. Desde então, tenho colaborado com vários programas de cooperação técnica e com a maioria de seus presidentes. Tenho grande respeito e admiração por esta instituição, suas autoridades e equipes por seu profissionalismo, independência e transparência; respeito e admiração que é compartilhado por todos os órgãos eleitorais da América Latina. Também tenho grande confiança e admiração pela urna eletrônica brasileira. Tive a honra de acompanhar sua implementação e melhoria graduais desde 1996 até hoje. É um instrumento seguro, transparente e auditável. Nesses 25 anos de existência, nenhuma fraude foi provada. Por todas estas razões, não vejo razão para justificar sua reforma, e muito menos neste momento em que as eleições de outubro de 2022 estão a apenas 14 meses de distância. Fazer a reforma proposta é inconveniente, inoportuno e perigoso.

Quando reformar os processos eleitorais a fim de aperfeiçoá-los?

O sistema presidencial é baseado na divisão de Poderes, que exige respeito pela independência de cada Poder, um sistema de freios e contrapesos, diálogo para resolver de forma respeitosa e responsável as tensões que surgem. Na concepção, implementação e melhoria do sistema eleitoral, em sentido amplo, é aconselhável que cada poder faça a contribuição estabelecida na Constituição e que exista um diálogo frutífero entre eles, baseado no reconhecimento da independência dos Poderes, no respeito recíproco e na responsabilidade que vem com o exercício do cargo.

Como autoridades responsáveis pela organização de eleições devem responder a ataques à urna eletrônica?

Primeiro: expor todos os falsos argumentos que denunciam supostas fraudes. Demonstrar, com provas claras, que a verdadeira fraude é a denúncia de uma fraude inexistente. Realizar investigações e auditorias que demonstrem a robustez do sistema eleitoral, a solidez da urna eletrônica e a independência e profissionalismo das autoridades eleitorais. E, como o TSE vem fazendo, exercer ao máximo as competências e poderes que lhe são conferidos pela Constituição e pelas leis. A recente nota do TSE assinada por todos os antigos e pelo atual presidente do TSE desde a Constituição de 1988 e os discursos dos ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux são uma contribuição muito valiosa neste sentido. Segundo: buscar, no país, o apoio do maior número possível de partidos políticos, acadêmicos, especialistas eleitorais, ex-membros do TSE, associações profissionais, ONGs e jornalistas e, internacionalmente, convidar instituições e órgãos eleitorais de renome internacional para que visitem o Brasil, realizem investigações e, se as conclusões forem positivas, contribuam para proteger o TSE, a urna eletrônica e a condução do processo eleitoral. Terceiro: convidar missões de observação eleitoral de prestígio (ONU, OEA, UE, entre outras) a ir ao Brasil para acompanhar o processo ao longo de suas diferentes etapas e fazer observações e recomendações. 

De um ponto de vista técnico, é possível melhorar a segurança do voto eletrônico. Como esta discussão deve ser conduzida? 

Cada país é soberano ao decidir os mecanismos de votação que deseja utilizar. Globalmente, existem vários mecanismos. Os mais comuns são a cédula única em papel, em várias formas, e o voto eletrônico, em suas várias formas, incluindo o voto pela internet. Há também várias formas de votar: votar somente no dia da eleição; votar pessoalmente; votar antecipadamente pelo correio; levar a urna de votação para a casa do eleitor etc. Alguns países até combinam vários mecanismos e várias formas de votação.

Mas o mais importante é que os mecanismos de votação que cada país escolher devem gerar certeza, segurança, transparência, serem auditáveis e, sobretudo, gozar de muita credibilidade e legitimidade entre os cidadãos. Se o mecanismo de votação em vigor em um país goza de altos níveis de confiança, legitimidade e credibilidade, é aconselhável mantê-lo, sem prejuízo de fazer ajustes periódicos para melhorar seu desempenho e eficácia. Por outro lado, quando o mecanismo sofre de debilidades que poderiam comprometer a confiança e credibilidade do público, é aconselhável realizar um processo de reflexão e revisão, baseado em evidências concretas e demonstráveis, com o objetivo de identificar as possíveis causas do problema e as opções mais adequadas para solucioná-lo.

Como consequência, qualquer proposta de reforma eleitoral, especialmente no caso do mecanismo de votação, deve ser bem fundamentada, e as opções propostas para substituir o mecanismo atual devem demonstrar solidez técnica e viabilidade política. Outros fatores que devem ser cuidadosamente analisados são: demonstrar que o saldo líquido da reforma – benefícios menos efeitos negativos – é positivo; determinar seu custo econômico; basear-se num consenso político o mais amplo possível; e determinar, com o parecer técnico do corpo eleitoral, se há tempo suficiente para sua implementação sem assumir riscos sérios para a conclusão bem sucedida do processo eleitoral. A experiência comparativa sugere que, a fim de reduzir os riscos, mudanças no mecanismo de votação devem ser implementadas gradualmente, ou seja, em etapas sucessivas, como foi o caso com a implementação da urna eletrônica no Brasil.


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 Bençãos após motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
07/08/2021 Motociata na cidade de Florianópolis
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
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(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
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(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
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(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Joinville-SC, 06/08/2021) Cerimônia de Entrega da Ordem da Machadinha.
(Joinville-SC, 06/08/2021) Cerimônia de Entrega da Ordem da Machadinha.
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
(Florianópolis - SC, 07/08/2021) Motociata na cidade de Florianópolis. Foto: Alan Santos/PR
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Donald Trump, como presidente, atacou a legitimidade das eleições nos Estados Unidos. Que influência isso tem sobre os países com tradições menos democráticas, especialmente na América Latina?

Muito forte, infelizmente. Acabamos de ver exemplo disso no Peru, na fase pós-eleitoral do segundo turno das eleições, com as múltiplas alegações de fraude, nunca provadas, feitas por Keiko Fujimori e seu partido Fuerza Popular, e os graves ataques realizados contra as autoridades. Também vimos isso nas recentes eleições no México, de junho e o referendo do último domingo, quando o presidente Lopez Obrador e seu partido Morena acusaram repetidamente o INE de ser o órgão eleitoral mais caro do mundo e de ser um obstáculo à democracia. E nesta semana, na Bolívia, um deputado do partido governista MAS apresentou uma queixa criminal contra quatro magistrados do Tribunal Supremo Eleitoral.

Uma tendência semelhante parece estar ocorrendo no Brasil com os ataques e denúncias de Bolsonaro contra a urna eletrônica e o presidente do TSE, a quem ele chamou de "idiota" e "imbecil" em julho. Deve-se lembrar que Bolsonaro, nas eleições de 2018, já havia ameaçado não reconhecer os resultados se ele não ganhasse.

Qual é o objetivo de quem busca o descrédito dos processos eleitorais?

A estratégia é semelhante na maioria dos países onde este fenômeno ocorre. Com bastante antecedência, com mentiras e falsas alegações, procuram gerar confusão, semear dúvidas sobre a credibilidade do processo eleitoral, a independência das autoridades eleitorais e a segurança do sistema de votação, criando uma realidade paralela que procura deslegitimar completamente o processo eleitoral no caso de uma derrota. Se eu perco, dizem eles, é porque houve fraude. Os danos que causam ao processo eleitoral, às autoridades eleitorais, às instituições e à democracia são enormes, e seus efeitos se estendem além do processo eleitoral. 

Quando alguém analisa se um país está no caminho de se tornar menos democrático, em que se deve prestar mais atenção?

A experiência comparativa, global e regionalmente, identifica quatro luzes amarelas que indicam que estamos enfrentando um perigoso processo de deterioração democrática.  Quando não se aceita as regras democráticas ou se joga permanentemente em seus limites. Quando não se reconhece a oposição como um ator legítimo  –  a oposição é desconsiderada, desqualificada e difamada. Quando se ataca constantemente a imprensa e se impõem restrições ao exercício da liberdade de expressão. E quando se promove o ódio e a violência, física ou verbal, de maneira expressa ou sutil, polarizando a sociedade o máximo possível. Há outros indicadores que normalmente acompanham estes quatro: 1) ataques frontais à divisão de poderes, especialmente às instituições que restringem  propostas autoritárias, seja o Congresso, quando não se tem controle sobre ele, o Judiciário, os órgãos de controle, os tribunais eleitorais etc; 2) redução do espaço de ação da sociedade civil; e 3) aumento dos níveis de polarização ao extremo, com a divisão da sociedade em amigos e inimigos, e uso abusivo das redes sociais para atingir este objetivo.

De acordo com analistas e cientistas políticos, atualmente os autocratas atacam a democracia de forma lenta e gradual, e não tanto de maneira abrupta. Concorda com esse ponto de vista? 

Concordo plenamente. Embora os golpes não tenham desaparecido completamente, como mostram Honduras em 2009 e Mianmar em 2021, a experiência comparativa indica que os principais e mais perigosos ataques à democracia hoje são realizados por atores que chegaram ao poder através de eleições e que, uma vez eleitos, enfraquecem gradual e permanentemente a democracia de dentro do poder. A maioria dos ataques à democracia em nosso tempo não ocorre por golpes de Estado, mas por quem está no poder e em câmera lenta, como é demonstrado em nossa região pelos regimes autoritários da Venezuela e da Nicarágua

Como a democracia deve ser defendida quando seu processo de corrosão é gradual e muitas vezes não perceptível pela maioria da população? 

Uma estratégia ampla tem de ser implementada, tanto a nível interno como a nível regional e global. A democracia está sitiada em muitos países. As tendências autoritárias estão ganhando terreno, como evidenciado por muitos relatórios de prestígio, incluindo a Economist Intelligence Unit, o projeto V-DEM, os relatórios da Freedom House e o relatório da International IDEA sobre o estado global da democracia. Precisamos estudar com mais profundidade este novo tipo de autoritarismo que está atualmente em construção, a fim de confrontá-lo de forma mais rápida e eficaz. Precisamos estar conscientes da fragilidade da democracia e dos riscos crescentes que ela enfrenta, bem como dos processos de retrocesso que estão ocorrendo em muitos países ao redor do mundo. Nenhum país é vacinado contra o vírus autoritário. Também é necessário rever e atualizar os mecanismos para a defesa regional da democracia, incluindo os estabelecidos pela Carta Democrática Interamericana, que completa 20 anos em 11 de setembro e se tornou ultrapassada diante do novo tipo de ameaças que a democracia enfrenta hoje. A Idea Internacional tem feito um duplo apelo: por um lado, para defender a democracia durante este período tão turbulento em nossa região, agravado pelo impacto da pandemia, e, por outro lado, para repensá-la a fim de avançar para uma nova geração de democracia, mais resistente e de melhor qualidade, com a capacidade de responder de forma oportuna e eficaz aos novos desafios do século 21.

Urna eletrônica
Urna eletrônica brasileira. Foto: Antonio Augusto/Ascom/TSE

Qual é o papel da desinformação, e sua ampliação nas redes sociais, na atual crise da democracia? 

Novas tecnologias de informação e comunicação estão aqui para ficar e apresentar novos e difíceis desafios para a política, a integridade das eleições e a qualidade da democracia. As redes sociais e sua relação com as eleições, a política e a democracia têm, como o deus Jano, duas faces, Por um lado, essas ferramentas, quando utilizadas adequadamente, têm um efeito positivo no desenvolvimento de processos eleitorais legítimos, melhoram a qualidade da democracia, garantem o pleno exercício da liberdade de expressão, contribuem para um debate público informado e promovem a participação cidadã.

Mas, por outro lado, quando mal utilizadas, elas representam novas e sérias ameaças. As bolhas de filtragem ideológicas e as câmaras de eco geradas pelas redes sociais podem fomentar o ódio, aumentar perigosamente a polarização e facilitar a ação dos movimentos pós-verdade. Também podem contribuir para a viralização de notícias falsas e de campanhas de desinformação, afetando a condução normal das campanhas eleitorais, minando a confiança no processo e nas instituições eleitorais e manipulando o comportamento eleitoral dos cidadãos.

Como as plataformas e redes sociais devem responder aos ataques à democracia, sem restringir a liberdade de expressão? 

Após o escândalo da Cambridge Analytica, as plataformas adotaram e continuam a adotar uma série de medidas destinadas a combater notícias falsas e desinformação durante os períodos eleitorais, incluindo códigos de conduta para reforçar a transparência e garantir informações confiáveis. Em um número significativo de países, dentro e fora de nossa região, os Legislativos também adotaram novas e melhores regulamentações sobre esta questão para preencher as lacunas legais existentes em muitos países da região.

Por sua vez, numerosos órgãos eleitorais, incluindo o TSE do Brasil, o INE do México e o TE do Panamá, tomaram uma postura proativa diante deste importante fenômeno e implementaram várias medidas e mecanismos, entre eles: desenvolver suas próprias capacidades institucionais e habilidades em assuntos digitais; promover debates on-line; assinar pactos éticos digitais com uma ampla coalizão de atores, como partidos políticos, organizações da sociedade civil e meios de comunicação tradicionais; chegar a acordos de colaboração – formais ou informais – com plataformas digitais; incentivar o uso responsável de redes; implementar mecanismos de verificação de fatos em colaboração com meios de comunicação tradicionais, universidades, grupos de reflexão e organizações da sociedade civil; implementar campanhas de educação digital para os cidadãos e sobre conteúdos educacionais sobre o processo eleitoral; e fomentar a cooperação horizontal entre os órgãos eleitorais e compartilhar boas práticas e lições aprendidas em relação a este fenômeno, tudo com o objetivo de mitigar os excessos e efeitos negativos das redes sociais durante as campanhas eleitorais e, ao mesmo tempo, maximizar seus efeitos positivos, sempre tomando cuidado para que estas medidas não afetem o pleno gozo da liberdade de expressão. Mas a liberdade de expressão não deve e não pode ser mal utilizada ou manipulada para propagar com impunidade notícias falsas ou campanhas de desinformação destinadas a deslegitimar um processo eleitoral ou atacar as instituições ou a própria democracia.

Qual deveria ser a posição de um presidente democrata em relação à oposição? Em que ponto se passa da crítica aceitável para os ataques que procuram deslegitimar a oposição? 

Democracia é sinônimo de pluralismo, diálogo, respeito, tolerância. A oposição deve ser racional e jogar limpo. O Executivo também deve. Ambos devem reconhecer e respeitar um ao outro como jogadores legítimos no jogo democrático. Um presidente democrático deve defender seu programa e suas propostas com firmeza, mas sempre com respeito, reconhecendo a oposição como um jogador-chave no jogo democrático. Deve ser evitado um nível excessivo de polarização que leva a um jogo de soma zero, e a uma desqualificação e difamação da oposição que implica não reconhecê-la como um ator legítimo no jogo democrático. Em alguns casos, tais como Nicarágua e Venezuela, vemos como o Executivo desqualifica ou prende partidos e líderes da oposição. Em outros, como no caso de Bukele em El Salvador, adjetivos difamatórios são usados quando se refere à oposição. Sem uma oposição autêntica, não há democracia

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Fonte: O Estado de S. Paulo

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Em meio à crise, Lira defende separação e harmonia entre Poderes

Manifestação do presidente da Câmara ocorre em meio à escalada de atritos entre Jair Bolsonaro e ministros do STF

O Estado de S. Paulo

O presidente da Câmara dos DeputadosArthur Lira (Progressistas-AL), defendeu neste sábado, 7, a separação entre os Poderes, citando a busca por uma convivência civilizada, harmônica e independente. “É como dançar junto, quem sabe até separado, mas sem pisar no pé de ninguém”, completou. A manifestação ocorre em meio à escalada do atrito entre o presidente da República, Jair Bolsonaro, e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

“Neste fim de semana, sejamos ainda mais inspirados pelos ensinamentos de Aristóteles, Locke e Montesquieu, quando pontificaram sobre o sistema de freios e contrapesos que formam a separação entre os Poderes,” escreveu o deputado em seu perfil no Twitter.

A tensão entre os Poderes Executivo e Judiciário tem aumentado nas últimas semanas, especialmente por reiteradas críticas e ameaças de Bolsonaro às eleições de 2022. O presidente defende a implementação do voto impresso para o pleito e repete acusações falsas de fraudes em votações passadas, sem ter apresentado provas. Em mais de uma ocasião, disse que a eleição seria cancelada caso o sistema não mude.

Suas críticas também têm sido direcionadas a membros do STF, em especial ao ministro Luís Roberto Barroso, que preside o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Na tarde de sexta, 6, Bolsonaro o xingou de “filho da p…” durante encontro com apoiadores em Santa Catarina.

Já na manhã deste sábado, o presidente voltou a repetir as críticas ao sistema eleitoral e a ministros do STF e fez um aceno a parlamentares, um dia após Lira ter anunciado que vai levar a discussão sobre o voto impresso para o plenário. "Não são meia dúzia dentro de uma sala secreta que vai contar e decidir quem ganhou as eleições; não vai ser um ou dois ministros do Supremo. Quem tem legitimidade além do presidente (da República) é o Congresso Nacional”, afirmou.

Barroso rebateu as ofensas. “Eu não paro para bater boca, não me distraio com miudezas. O meu universo vai bem além do cercadinho”, disse na sexta-feira. As críticas à postura do presidente se repetiu por outros membros do STF. O presidente da Corte, Luiz Fux, em discurso de abertura dos trabalhos da Casa após recesso, reagiu aos ataques de Bolsonaro. “Harmonia e independência entre os Poderes não implicam impunidade de atos que exorbitem o necessário respeito às instituições”, disse ele.

Na quinta-feira, 5, Fux cancelou uma reunião que haveria entre os chefes dos três Poderes, dizendo não ser possível tolerar os insultos do presidente da República. “Como tem noticiado a imprensa brasileira nos últimos dias, o presidente da República tem reiterado ofensas e ataques de inverdades a integrantes desta Corte, em especial os ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, sendo certo que quando se atinge um dos integrantes, se atinge a Corte por inteiro”, afirmou o ministro.

A defesa de Arthur Lira deste sábado tenta, então, amenizar o conflito entre as instituições. Em uma segunda publicação, o deputado escreveu: “É como dançar junto, quem sabe até separado, mas sem pisar no pé de ninguém. Assim é um baile bom, assim é a vida, assim deve ser a nossa convivência civilizada e sempre democrática, sempre harmônica, sempre independente.

Voto impresso

O projeto para a implementação do voto impresso sofreu a sua primeira grande derrota na Câmara na última quinta-feira, 5, quando o relatório do deputado Filipe Barros (PSL-PR) foi derrubado por 23 votos contrários e 11 favoráveis em votação de comissão especial da Casa.

Um dia depois, Lira anunciou que levaria a questão para o plenário da Câmara, em uma estratégia para agradar o Planalto. Ele, no entanto, avisou que não aceitaria uma possível ruptura institucional caso a matéria seja rejeitada novamente. “Continuarei pelo caminho da institucionalidade, da harmonia entre os Poderes e da defesa da democracia. O plenário será o juiz dessa disputa, que já foi longe demais”, disse em pronunciamento na noite de sexta.

A proposta que institui o voto impresso no Brasil deve ser votada no plenário da Câmara até a próxima quarta-feira. Para ser aprovado, o texto precisa de pelo menos 308 votos em duas votações, na Câmara e no Senado, número que dirigentes de partidos acham muito difícil de alcançar em razão do cenário de crise institucional.


O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,lira-defende-separacao-e-harmonia-entre-poderes-e-como-dancar-junto-mas-sem-pisar-no-pe,70003803769

*Título do texto original foi alterado para publicação no portal da Fundação Astrojildo Pereira (FAP)


CPI ouve Airton Cascavel, ex-assessor apontado como ‘ministro de fato’ na gestão Pazuello

De acordo com a comissão, empresário teria atuado informalmente no Ministério da Saúde antes de ser nomeado

Cássia Miranda, O Estado de S.Paulo

Com mais de uma hora e meia de atraso, começou há pouco, nesta quinta-feira, 5, na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, o depoimento de Airton Antonio Soligo, conhecido como Ailton Cascavel. Por decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, o depoente está amparado por um habeas corpus, que lhe garante o direito de não responder a perguntas que possam incriminá-lo. Segundo o colegiado, o empresário teria atuado informalmente no Ministério da Saúde como assessor do ex-ministro Eduardo Pazuello. Na definição do requerimento aprovado determinando a convocação de Cascavel, ele teria sido “ministro de fato”.

A amizade entre Ailton Cascavel e o general Pazuello deu ao empresário a oportunidade de participar de agendas públicas e reuniões da pasta com o ex-ministro. Após a imprensa revelar, em 2020, a atuação informal do empresário no ministério, Pazuello nomeou o amigo como assessor especial, cargo ocupado de junho do ano passado a março de 2021.

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Pouco menos de dois meses após deixar o posto no governo federal, Cascavel foi nomeado pelo governador Antonio Denarium (sem partido) — apoiador do presidente Jair Bolsonaro — como secretário estadual de Saúde de Roraima. Ele passou apenas dois meses e 17 dias à frente da pasta.

Segundo o vice-presidente da CPI da Covid, que é autor do requerimento de convocação do depoente, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), gestores estaduais e municipais consideravam que Airton Cascavel era quem resolvia muitas das questões burocráticas e logísticas do Ministério, daí a afirmação de ele seria "ministro de fato": “Durante a gestão Pazuello, da qual o senhor Airton Antonio Soligo teve papel preponderante, o Brasil presenciou o colapso dos sistemas de saúde pelo País”, afirmou Randolfe.





Carreira política

Além da atuação empresarial, Cascavel tem algumas vitórias eleitorais no currículo. Ele já foi prefeito de Mucajaí (1989-1990), no interior de Roraima, e deputado estadual pelo PTB (1991-1995) — tendo, inclusive, presidido a Assembleia Legislativa. Foi ainda vice-governador de Roraima (1995-1998) pelo PTB.

Entre 1999 e 2002, Airton Cascavel foi deputado federal por Roraima, cargo que disputou novamente em 2018, pelo PRB. Na ocasião, ele alcançou 10.490 votos, sem conseguir se eleger.

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Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,cpi-da-covid-ouve-airton-cascavel-ex-assessor-apontado-como-ministro-de-fato-na-gestao-pazuello,70003801038


‘Proibir pesquisa é cercear informação ao eleitor’, afirma diretora do Ipec

Para Márcia Cavallari, levantamentos não são ‘uma influência maligna como se quer passar’; Câmara discute restrição

Adriana Ferraz, O Estado de S.Paulo

Com a experiência de ter presidido por dez anos o Ibope Inteligência e agora à frente do Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec), a estatística Márcia Cavallari vê com preocupação a possibilidade de a Câmara dos Deputados incluir no projeto que revisa a legislação eleitoral o veto à divulgação de levantamentos de intenção de voto na véspera das eleições e a exigência de uma espécie de “taxa de acerto” de empresas do setor. “Entendemos que proibir a publicação de uma pesquisa é cercear informação ao eleitor. Além disso, sem uma divulgação oficial pelos veículos abre-se espaço para circulação de boatos e fake news nas redes sociais e contas de WhatsApp. Se isso realmente acontecer, certamente circularão informações que ninguém saberá de onde saíram”, afirma. Leia os principais trechos da entrevista:

Qual o impacto de se vetar a publicação de pesquisas na véspera das eleições?
Em primeiro lugar, é preciso entender que nenhuma pesquisa tem a intenção de adivinhar o resultado da eleição. A intenção é a de se fazer um diagnóstico. Já sabemos que no Brasil os eleitores definem seu voto mais tarde. Quanto mais próximo se faz uma pesquisa da data da eleição melhor é para o eleitor, que pode ou não usar aquele resultado para sua tomada de decisão sem ser tutelado por ninguém. Entendemos que proibir a publicação de uma pesquisa é cercear informação ao eleitor. Além disso, sem uma divulgação oficial pelos veículos abre-se espaço para circulação de boatos e fake news nas redes sociais e contas de WhatsApp. Se isso realmente acontecer, certamente circularão informações que ninguém saberá de onde saíram.


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A proposta prevê o veto à divulgação de pesquisas com menos de 48 horas da eleição. Um dia de diferença altera de forma significativa o resultado?
Há sim uma diferença justamente porque o eleitor define seu voto na última hora. E, geralmente, os últimos debates entre os candidatos ocorrem na quinta ou sexta-feira antes da eleição. Divulgando a pesquisa no sábado (véspera) já não conseguimos pegar todas as últimas movimentações e discussões geradas pelos debates. Com um dia a menos essa chance é ainda mais reduzida.

Por que a mudança na lei pode ampliar o risco de pesquisas informais e fake news relacionadas a intenção de voto?
Porque não teremos as pesquisas oficiais, regulamentadas, na véspera. E, sem o teor da lei, sem metodologia, sem saber quem foi o contratante, quem pagou pelo levantamento não haverá transparência no processo. As pesquisas oficiais feitas pelos institutos ainda podem ser auditadas se for o caso. O eleitor tem o direito de ter informação oficial e decidir o que fazer com ela.

A resistência dos políticos a pesquisas eleitorais não é nova. Mas o que explica esse comportamento?
Discute-se há muito tempo proibir pesquisas. O Supremo já até considerou inconstitucional uma mudança legal feita em 1997. Naquela época, a intenção era vetar a publicação de levantamentos 15 dias antes das eleições. Acho que o que está por trás desse movimento é a crença equivocada de que as pessoas votam de acordo com as pesquisas. Mas quantas vezes vimos viradas na última hora? Candidatos que crescem na reta final? Se as pesquisas tivessem esse poder acertariam todas as vezes e não é isso que a gente vê. Elas não representam uma influência maligna como se quer passar. São só mais uma fonte de informação a ser usada pelo eleitor.

Há outro ponto polêmico em discussão na Câmara: a previsão de se exigir dos institutos uma espécie de “taxa de acerto”. É possível calcular isso?
Nem sei o que seria isso. Seria acertar quem ganhou nas últimas eleições, quem foi para o segundo turno? Ou mostrar o resultado exato? É uma proposta muito vaga, sem qualquer critério. Não faz nenhum sentido técnico. Por exemplo: teríamos de misturar acertos de eleições municipais, de alcance nacional? A questão é que não se deve falar em acerto. Não é esse o papel dos institutos. Uma pesquisa não tem o papel de acertar. Ela não é feita para isso, não visa prever o futuro, mas traçar um retrato de determinado período. A partir de sua sequência uma tendência pode ser ou não confirmada.

Os institutos pretendem questionar essas sugestões?
A Abep (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas) já está contra-argumentando e preparando uma nota técnica para enviar aos parlamentares e ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

A entidade considerou alguma mudança proposta positiva?
Sim, três mudanças pleiteadas pelos institutos: reduzir o prazo para registro de início das pesquisas de cinco para três dias, vetar que institutos façam pesquisas com recursos próprios e possibilitar a publicação dos resultados no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Os demais temas nem foram colocados para o debate. 


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Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,proibir-pesquisa-e-cercear-informacao-afirma-diretora-do-ipec,70003800694


Reforma do IR é a mais impressionante proposta de desorganização empresarial do Brasil

Novas versões promoveram descontentamento generalizado dos Estados e dos municípios, dos optantes do Simples, das mineradores e da indústria farmacêutica

Everardo Maciel / O Estado de S. Paulo

Em artigo veiculado em 1.º de julho, apontei inconsistências no Projeto de Lei n.º 2.337/2021, especialmente o pífio reajuste da tabela do Imposto de Renda (IR) das pessoas físicas, que assegura, quando muito, dinheiro para comprar 1 kg de pão francês por mês e garfa acintosamente os contribuintes da classe C; e a tributação de dividendos, que traduz um retrocesso evidenciado por uma (espantosamente assumida) elevação de carga tributária das médias, pequenas e microempresas, aumento da complexidade, estímulo à litigiosidade e um convite à sonegação, com a volta da insidiosa distribuição disfarçada de lucros, e ao planejamento tributário abusivo.

A indisposição com a tributação de dividendos tem a mesma origem da estapafúrdia defesa do voto impresso: insciência. Nessa esteira, não tarda alguém propor a volta das declarações de renda em papel. Como dizia Nelson Rodrigues, “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”.

A proposta original congregou uma rara oposição de praticamente todos os contribuintes. As diferentes versões do substitutivo dissiparam algumas reações, especialmente de grandes contribuintes, mas promoveram descontentamento generalizado dos Estados e dos municípios, dos optantes (também eleitores) do lucro presumido e do Simples (5 milhões de contribuintes), das mineradoras e da indústria farmacêutica.

O descontentamento dos Estados e dos municípios decorre da previsão de graves perdas na arrecadação do IR, repercutindo nos respectivos Fundos de Participação, importante fonte de financiamento daqueles entes federativos.

Para tentar aplacar a reação daqueles entes, o substitutivo previu que a redução da alíquota do Imposto de Renda das pessoas jurídicas (IRPJ) ficaria condicionada ao crescimento real da arrecadação do Imposto de Renda total, deduzidas as restituições, no período de 12 meses, contado de outubro do exercício anterior.

Pondera, entretanto, que “o parâmetro estabelecido considere a arrecadação em período anterior à emergência de saúde pública de importância internacional relacionada ao coronavírus (covid-19) e seja neutro em relação aos seus efeitos extraordinários na arrecadação”. Creio que essa norma é forte concorrente ao Prêmio Nobel de (má) redação, além de afrontar a inteligência dos secretários de Fazenda e inviabilizar o planejamento empresarial de curto prazo, porque somente em dezembro, em hipótese otimista, seria possível conhecer a alíquota aplicável no exercício subsequente.

O substitutivo manteve a pretensão de extinguir os juros remuneratórios do capital próprio, instituído pioneiramente no Brasil, após a eliminação da dedutibilidade da correção monetária do patrimônio líquido, com a vantagem de mitigar as desvantagens tributárias do capital de risco vis-à-vis os empréstimos. Essa insensatez foi brilhantemente desconstruída em artigos subscritos pelos professores Eliseu Martins (O Brasil perdendo saudável liderança na tributação empresarial) e Luís Eduardo Schoueri (Sobre a extinção dos juros sobre o capital próprio: jabuticabas crescem na Europa?). Nada tenho a acrescentar.

O substitutivo é, também, uma usina de potenciais litígios, entre os quais: tributação de dividendos não distribuídos e do estoque de fundos de investimentos, em que se pode alegar a vedação constitucional à retroatividade onerosa da norma tributária; tributação dos resultados distribuídos pelos optantes do Simples, procedendo-se à alteração por lei ordinária de dispositivo contido na Lei Complementar n.º 123 e sem considerar a restrição estabelecida na Emenda Constitucional n.º 109 (art. 4.º, parágrafo 2.º, inciso I); apuração do excêntrico “parâmetro” que iria balizar a redução das alíquotas do IRPJ.

Trata-se da mais impressionante proposta de desorganização empresarial do País, ao mesmo tempo que desvia atenção do enfrentamento da inflação e, agravado pela explosão das despesas com precatórios, do risco fiscal. Em outras palavras, irresponsabilidade.

*CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL (1995-2002)


Fonte: O Estado de S. Paulo
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,reforma-do-ir-e-a-mais-impressionante-proposta-de-desorganizacao-empresarial-do-brasil,70003800738


William Waack: Bolsonaro e as nossas agonias

Não há consenso em como lidar com a atração do presidente pelo abismo

Os personagens políticos que conquistaram o poder, não importa o método, e por mais tempo lá ficaram, também não importa como, são os que menos sofreram da doença que acomete Jair Bolsonaro. É o conhecido fenômeno da autossugestão, pela qual a concepção de mundo do doente vira uma crença mística tão enraizada a ponto de que nada o convence de que possa estar errado. 

Esse diagnóstico é amplamente compartilhado hoje em Brasília nas mais variadas esferas dos poderes, incluindo a volátil instância dos caciques políticos do Centrão e passando por quase todos os ministros do STF e tribunais superiores, além de parte relevante do Alto Comando do Exército. As divergências surgem quando se trata de definir como lidar com o bravateiro. 

Bolsonaro não parece levar em conta fatores reais de poder, pois acha que foi imbuído de missão divina e apenas o Todo-Poderoso decide. Talvez essa concepção de mundo ajude a entender o fato de ele não ter conseguido chegar a dois instrumentos clássicos para qualquer golpe: organização política de massa e/ou capacidade de exercer violência armada. E ter perdido (até mesmo entregado) considerável parte do poder de seu cargo para o Legislativo e o Judiciário. 

Assim, para os atores políticos “racionais” nas instâncias acima mencionadas surge como completamente irracional o contínuo esforço de Bolsonaro rumo à ruptura institucional, pois o mundo real da relação das forças de poder indica que disso sairia ele como o principal perdedor. Na verdade, com sua estatura derretendo em todos os sentidos, já é o grande derrotado, mas não é assim que ele se vê. 

Como lidar, então, com esse personagem que parece movido por uma inexorável atração pelo abismo? Entre altos oficiais das Forças Armadas detecta-se o sentimento de que não vão segui-lo na loucura, mas não estão agindo para impedi-lo. Depois de contínuas afrontas, o Judiciário deu passos concretos para contê-lo, mas o tempo consumido por inquéritos no TSE e no STF é muito mais longo do que o tempo da política. E o PGR não acha que cabe a ele virar a República de pernas para o ar. 

Na política, que é a esfera decisiva, dividem-se os caciques do Centrão entre os que ainda acham possível tutelar Bolsonaro, sobretudo depois da mudança na Casa Civil, e os que desistiram dessa ambição que ninguém de fora da família conseguiu realizar. É uma rachadura que por enquanto não se amplia, pois, no cálculo cínico desses agentes, os poderes conquistados pelo Centrão não mudam caso “caia a ficha” e Bolsonaro modere o comportamento. E ficam do mesmo jeito caso o presidente continue desprezando os conselhos que está recebendo e prossiga piorando a briga com o Judiciário. 

No fundo, o que todos estão fazendo é esperar que as coisas se resolvam por si mesmas. Não existe nos círculos de poder econômico e político uma disposição clara – nem coordenação nem liderança nem a “massa crítica” política necessárias – para precipitar qualquer ação de afastamento de Bolsonaro, por mais que aumente a percepção de que ele está causando severos danos ao regime democrático, à população e ao País. 

É o que torna possível a esse personagem político seguir padecendo nessa evidente agonia interior, trazida por conspirações e fantasmas que alimentam impulsos incontroláveis – e que passou a ser a agonia de todos nós, a agonia das lives patéticas, das frases desconexas no cercadinho de bajuladores, dos raciocínios tortuosos em entrevistas, das mentiras descaradas, da omissão diante dos fatos, da ausência de compaixão, solidariedade, interesse público, projeto de futuro. 

A principal agonia talvez seja a de constatar que Bolsonaro não reúne mais condições de realizar qualquer grande transformação, a não ser provocar uma tragédia. A boa notícia é que em história nada é inevitável. 

*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN


Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-e-as-nossas-agonias,70003800678


TCU pede explicações a Braga Netto e Guedes sobre dinheiro do SUS em gastos militares

Relatório enviado à CPI da Covid indicou uso de dinheiro da pandemia para despesas como material de cama, mesa e banho e manutenção de prédios da Defesa

Vinicius Valfré, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – O Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que os ministérios da Defesa e da Economia ofereçam explicações sobre o uso de recursos do Sistema Único de Saúde (SUS), destacados para o combate à pandemia, para gastos corriqueiros de militares.

O despacho de segunda-feira, 2, de autoria do ministro Bruno Dantas, tem o propósito de apurar suspeitas de irregularidades na descentralização de recursos do Ministério da Saúde, em 2020, para execução de ações de saúde pelo Ministério da Defesa.

Os indícios de mau uso da verba vieram à tona em estudo da procuradora Élida Graziane, do Ministério Público de Contas de São Paulo, enviado à CPI da Covid.

Dos recursos extraordinários desembolsados em 2020 pela União para o combate à covid, a Defesa ficou com R$ 435,5 milhões. Do dinheiro que deveria ter ido ao SUS, a Defesa gastou R$ 58 mil com material odontológico, R$ 5,99 milhões com energia elétrica, água e esgoto, gás e serviços domésticos. Também há gastos com R$ 25,5 mil com material de coudelaria ou de uso zootécnico, R$ 1 milhão com uniformes e R$ 225,9 mil com material de cama, mesa e banho e R$ 6,2 milhões com a manutenção e a conservação de bens imóveis.

Outros R$ 100 milhões foram para despesas médico-hospitalares com materiais e serviços em hospitais militares, “sem que se tenha prova de que foram gastos em benefício da população em geral, ao invés de apenas atender aos hospitais militares, os quais se recusaram a ceder leitos para tratamento de pacientes civis com covid-19”.

A procuradora sustenta que usar dinheiro de um crédito extraordinário para cobrir gastos cotidianos seria uma burla ao teto dos gastos. No documento enviado à CPI, Graziane também salienta que, apesar de ter tido uma dotação autorizada de R$ 69,88 bilhões para enfrentamento da pandemia, dos quais R$ 63,74 bilhões foram destinados ao Ministério da Saúde, o SUS efetivamente só contou com R$ 41,75 bilhões “porque o governo federal deixou de executar praticamente o expressivo saldo de R$22 bilhões em relação aos créditos extraordinários abertos no Orçamento de Guerra (Emenda 106/2020) no ano passado.”

“É preciso que a CPI da Pandemia, o MPF (Ministério Público Federal), o TCU (Tribunal de Cotas da União) e o CNS (Conselho Nacional de Saúde) apurem, mais detidamente, a motivação e a finalidade de várias despesas oriundas de recursos do Fundo Nacional de Saúde realizadas por diversos órgãos militares”, afirma a procuradora, no relatório.

No despacho, Bruno Dantas deu 15 dias para que o Ministério da Defesa, chefiado pelo general Braga Netto, e o da Economia, de Paulo Guedes, apresentem uma série de explicações. Eles deverão informar os objetivos pormenorizados da descentralização e as orientações às unidades orçamentárias para a execução dos créditos da Saúde.

Sobre o relatório da procuradora, a Defesa informou ao Estadão, no mês passado, somente que “os assuntos pautados na Comissão Parlamentar de Inquérito da covid-19, no Senado Federal, serão tratados apenas naquele fórum”. Procurada novamente nesta terça, 3, a pasta não se manifestou. A Economia também não respondeu até a publicação desta reportagem.

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Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,tcu-pede-explicacoes-a-braga-netto-e-guedes-sobre-dinheiro-do-sus-usado-em-gastos-militares,70003799462


Bolsonaro aposta em pacote econômico como última trincheira para se reeleger

Governo prepara medidas como reajuste do Bolsa Família e programas de qualificação profissional para tentar frear queda de popularidade e chegar mais competitivo às eleições do próximo ano

Adriana Fernandes / O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - A economia é hoje a principal trincheira e última linha de defesa do presidente Jair Bolsonaro para tentar garantir sua reeleição em 2022. Com apoio do Centrão, o presidente vem montando um cardápio de medidas econômicas para evitar maior perda de popularidade, na esteira das revelações feitas pela CPI da covid-19, e chegar competitivo ao pleito do próximo ano.

Especialistas ouvidos pelo Estadão apontam que a incógnita é saber se o presidente e os políticos aliados do Centrão conseguirão arremeter a tempo o “avião da economia” para que os efeitos da retomada atual, até agora muito desiguais, cheguem até a maior parte da população.

No cardápio de “bondades”, estão a elevação para R$ 300 (ou mesmo um valor acima) do benefício médio do Bolsa Família (que hoje é de R$ 190); o pacotão do emprego com um bônus de R$ 550 para a qualificação de jovens e informais; aumento da faixa de isenção e correção da tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) e desoneração forte do imposto pago pelas empresas; novas medidas de desoneração do diesel; reajuste dos salários dos servidores; e ainda um novo programa de refinanciamento de dívidas tributárias.

Todas essas medidas estarão combinadas com um Orçamento irrigado de emendas parlamentares para aliados, fundo eleitoral mais gordo, folga maior no teto de gastos (regra da Constituição que fixa um limite anual para os gastos) e medidas que vão colocar dinheiro extra no caixa no ano que vem, como leilões de concessões já programados.

Um ponto de inflexão será a divulgação do relatório da CPI da Covid, prorrogada por mais 90 dias e que pode dar combustível a um quadro mais turbulento. “É justamente o momento em que o governo estará negociando a votação do Orçamento e o Bolsa Família”, chama a atenção Rafael Cortez, cientista político e sócio da Tendências Consultoria. Na sua avaliação, a economia deve, ao menos, ajudar a fazer o movimento de estancar a perda de popularidade – “que já é muito relevante”. Para Cortez, olhando para o quadro eleitoral, o governo Bolsonaro ainda é muito competitivo e, em parte, isso tem como explicação a economia.

Os economistas apontam que o ganho do cenário econômico, por si só, ainda não é capaz de reverter o processo de aumento de rejeição e nem o reforço do Bolsa Família seria uma “bala de prata” capaz de levar o presidente ao segundo turno com chances de vitória. Estudos sobre impacto de programas de transferência de renda na eleição mostram que não é trivial limitar a faixa de quem ganha e de quem perde. Além disso, o auxílio emergencial inicial de R$ 600 colocou o sarrafo lá em cima. Com a diminuição do valor para R$ 250, em média, o benefício perdeu o poder de proteção da popularidade que tinha em 2020.

Se a chave do cofre e o comando da agenda do Congresso pelo Centrão favorecem a estratégia econômica pró-eleição, a aceleração da inflação, o desemprego e o risco de racionamento de energia em 2022 jogam contra ela. Não por acaso, o ministro da EconomiaPaulo Guedes, está tentando implementar um programa de emprego robusto, com recursos de fora do Orçamento, vindos do Sistema S, e vem abandonado os pilares da sua política liberal para atender os pedidos de Bolsonaro e do Centrão.

“Uma das variáveis mais importantes para a popularidade é o emprego, e esse ainda vai reagir. Parece que ainda tem muita água para rolar embaixo da ponte, principalmente quando a economia reabrir mesmo e o emprego começar a andar”, avalia Caio Megale, economista-chefe da XP. Segundo ele, o foco no programa de qualificação da mão de obra é fundamental para o governo.

Responsável pelas pesquisas de avaliação de popularidade na XP, Victor Scalet diz que o modelo de aprovação presidencial usado pela companhia, que contém dados desde 1996, indica que a avaliação do presidente deveria subir para cerca de 40 a 45 pontos de aprovação no período eleitoral de 2022. Mas houve uma quebra da correlação que existia antes entre a melhora da pandemia e a avaliação do presidente. “A correlação, que vinha muito forte desde o começo da pandemia, quebrou porque a avaliação negativa dele continua subindo.” A CPI da pandemia acabou “fazendo preço”, no jargão do mercado.

Na corrida eleitoral, outro fator que pode jogar contra ou a favor é que as eleições estão sendo decididas, cada vez mais, perto do dia do pleito. “Vamos percorrer uma eternidade até iniciar a disputa eleitoral de 2022. Um tempo longo como esse dificulta qualquer tipo de previsão a priori”, diz o ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung. Segundo ele, na saída de uma crise da envergadura da pandemia, o quadro é muito mais complexo. “A dita polarização atual pode derreter o processo e melhorias econômicas, se não chegaram à população, não têm impacto na decisão eleitoral.”

5 Perguntas para Silvia Matos,  coordenadora técnica do Boletim Macro do Ibre/FGV

1. Qual será o papel da economia nas eleições?
A economia é importante para a eleição. Mas o espaço de manobra para aumentar a satisfação das pessoas e reduzir o desconforto delas é pequeno. O governo vai tentar atuar nessa direção, mas a gente sabe que existem muitas restrições para fazer isso. O primeiro aspecto é que uma recuperação econômica mais forte é muito inflacionária. Aí, o tiro sai pela culatra. Se tivesse um espaço para crescer sem acelerar a inflação, seria mais tranquilo para qualquer política.

2. Por que esse espaço é muito pequeno?
À medida que a economia abre depois da pandemia, como temos visto em outros países, há uma volta da inflação de serviços, o que é o natural mesmo. Se fosse só simplesmente uma aceleração de serviços, com acomodação de outros preços, poderíamos de alguma forma conviver com uma inflação um pouco mais alta temporariamente. Mas o problema todo é que, no Brasil, temos visto há algum tempo vários fatores que podem colocar a inflação acima de 7% neste ano. Temos a questão da energia, por exemplo, que pode ser um problema para o ano que vem na eleição.

3. Qual seria o maior risco no caso da energia?
Se não chover realmente no período que deveria chover, no final do ano, o risco de racionamento se intensifica ainda mais. Os reservatórios estão em níveis muito baixos. Colocar tarifa lá em cima não é suficiente. O racionamento talvez não seja um risco neste momento, porque se está aumentando tarifas, mas, à medida que a economia volte, é natural que tenha alguma necessidade de aumento (de consumo). Isso virou um gargalo. Imagina se estivéssemos crescendo 9%, que energia teríamos? É um sinal que a economia tem restrições para uma aceleração muito forte do crescimento.

4. Quais outros fatores que podem complicar o cenário econômico para 2022?
Estamos vendo uma volta da inflação de alimentos. Estávamos colhendo uma desaceleração da inflação de alimentos e a crise hídrica está afetando muito o Centro-Sul, que é produtor de alimentos: arroz, feijão, leite... Do ponto de vista da inflação, tem mais pressão por todos os lados, como gás de cozinha, o petróleo continua subindo. É um momento muito inflacionário, e aquele alívio que esperávamos no segundo semestre não virá.

5. Mas a virada econômica vai ajudar o governo? 
A inflação vai ser um grande gargalo e, se a gente quiser acelerar demais, vai virar mais inflação.

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Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-aposta-em-cardapio-na-economia-para-se-cacifar-a-reeleicao,70003797217


Sob Bolsonaro, a corrosão do Estado e das liberdades individuais

Presidente repete líderes autoritários e atenta contra direitos civis operando o Direito, aponta levantamento

Bruno Ribeiro, Daniel Bramatti e Marcelo Godoy

Era 2 de julho de 2018 quando o então candidato à Presidência pelo PSL, Jair Bolsonaro, revelou em entrevista um desejo: se eleito, pretendia ampliar de 11 para 21 o número de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Seria, segundo sua justificativa, uma forma de pôr “juízes isentos lá dentro”. Durante a campanha, o tema adormeceu. Mas, pouco depois da posse, o presidente tentou uma manobra para mexer na composição da Corte. Incluiu-se na reforma da Previdência um artigo que retirava da Constituição a idade-limite de 75 anos para os ministros do Supremo, deixando que ela fosse definida em lei complementar.

A medida foi dissimulada em meio à Proposta de Emenda à Constituição patrocinada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Não haveria justificativa para estar ali, até porque o impacto de 11 aposentadorias é irrisório para o caixa da Previdência. Tratava-se, segundo os críticos, do primeiro ataque à democracia e à independência dos poderes feito pelo governo de Bolsonaro. A retirada da idade-limite da Constituição permitiria ao presidente fixar por lei nova idade-limite, menor do que a atual, aposentando uma leva de ministros da Corte.

Presidente Jair Bolsonaro. Foto: Alan Santos/PR

“É o modelo posto em prática na Venezuela e na Polônia”, diz Luis Manuel Fonseca Pires, juiz e professor de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Ou aposentam ministros ou aumentam o número para garantir o controle da Corte Constitucional. O novo autoritarismo age por meio do Direito para obter legitimidade.” Em 2004, Hugo Chávez elevou o número de ministros da Corte Constitucional da Venezuela de 20 para 32. Na Polônia, o partido Direito e Justiça (PiS) usou a desculpa do combate à corrupção para tentar aposentar à força 27 dos 72 juízes da Corte Suprema.

Levantamento do Estadão sobre a atuação de Bolsonaro em 20 temas mostra que, desde sua posse, o presidente e seus ministros editaram 88 decretos, medidas provisórias, portarias, pareceres ou resoluções ou patrocinaram projetos de lei e alterações legais que incluíam medidas que corroíam o Estado ou atentavam contra as liberdades civis e direitos constitucionais. Ou seja, a cada 11 dias, ao menos uma medida desse tipo foi criada pelo governo. O levantamento leva em conta a avaliação de analistas. Trata-se de um processo de “cupinização” do governo das leis, na expressão do professor emérito da USP e ex-ministro das relações Exteriores Celso Lafer. “Você vai ‘cupinizando’ as regras do Direito”, disse. “No fundo, o que o governo Bolsonaro busca é, fugindo das instituições e das regras do Direito, sempre definir a exceção para obter a servidão voluntária e ‘cupinizar’ as instituições.”

É o modelo posto em prática na Venezuela e na Polônia”
Luis Manuel Fonseca Pires, juiz e professor de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Segundo Pires, o Direito é a forma usada por populistas autoritários para criar exceções com as quais modificam estruturas do Estado, atacam a democracia e negam direitos. Suas decisões são sempre tomadas levando em conta a oposição entre amigos e inimigos.

Lafer e Pires usam a mesma pista para compreender esses governos e suas relações com o Direito: as obras do pensador francês Étienne de La Boétie e do jurista alemão Carl Schmitt. “La Boétie trata da servidão voluntária e, evidentemente, o que os bolsonaristas acabam logrando é a servidão voluntária de seus sequazes”, afirma Lafer. O ex-ministro prossegue: “Para Schmitt não interessa a normalidade; interessa a exceção. O que caracteriza o pensamento dele é poder definir a exceção, a capacidade de poder defini-la. O soberano tem o poder de declarar a exceção. No fundo, o que Bolsonaro quer é ter o poder soberano de declarar a exceção.”


Protestos contra Jair Bolsonaro


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É isso que explicaria ações do governo, como a Medida Provisória 979, de 2020, que autorizava Bolsonaro a nomear reitores provisórios para a universidades federais enquanto durasse a pandemia de covid-19. A intervenção na autonomia das universidades – identificadas pelo governo como centros dominados por inimigos esquerdistas – foi barrada pelo então presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que devolveu a MP sem analisá-la. Era a segunda vez que Bolsonaro tentava, sem sucesso, modificar o processo de escolhas dos reitores.

O mesmo modo de agir – não para a adoção de políticas, mas para atacar inimigos escolhidos pelo governo – teria marcado a ação do governo em outra área: a do Meio Ambiente. Populações indígenas e a atuação de ecologistas e de ONGs ligadas à Amazônia foram escolhidas como alvo pelo governo, a ponto de o Supremo ter obrigado Bolsonaro a estabelecer um plano de combate à covid-19 nas aldeias e ter destituído o presidente do Ibama sob a acusação de ele ser conivente com a exploração ilegal de madeira. Quase metade das normas que corroem a base legal do Estado teve como alvo enfraquecer a defesa do Meio Ambiente.https://datawrapper.dwcdn.net/dU6Ci/10/

Para a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen, governos autoritários têm projeto de destruição de direitos. No Brasil, muitas das medidas contestadas nesta gestão foram adotadas como portaria ou decreto, em razão da resistência do Congresso em mudar as leis, como no caso das legislações ambiental e de armas. Ela destaca ainda o perigo de mudanças na lei eleitoral servirem para restringir a democracia e a representação popular. “O Ministério Público é resiliente e seus integrantes vão cumprir seu dever. Assim como o STF, que entendeu muito bem que deve ser uma barreira à desconstrução da Constituição.”

Índios em Brasília protestam contra mudanças nas regras de demarcação de terras. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Lafer também destaca a resistência no Brasil a medidas do atual governo. “A tradição política do Direito é conter o arbítrio. É o que dizia Rui Barbosa na Oração aos Moços. Ele sempre procurou assegurar o governo das leis e não o dos homens. Cabe ao advogado, nesse sentido, um tipo de magistratura. É isso que muitos juristas, preocupados com a res pública, procuram fazer: exercer essa magistratura.”

Juntamente com o Judiciário, as universidades e a área ambiental, a imprensa é um dos alvos prioritários da ofensiva antidemocrática de Bolsonaro. Levantamento da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), divulgado na semana passada, identificou 87 ataques do presidente à imprensa nos primeiros seis meses deste ano, o que representa um aumento de 74% em relação ao semestre anterior. Foram 49 ataques contra a imprensa em geral, 28 contra veículos específicos e dez contra jornalistas. Se considerado o “sistema Bolsonaro” – grupo que inclui a família e os ministros do presidente –, o número de ataques no semestre chega a 331. No ranking de agressores, Bolsonaro está em primeiro lugar, seguido por três filhos de seus filhos.

Presidente Jair Bolsonaro durante Ato do Movimento Brasil Verde e Amarelo na Esplanada dos Ministérios.
Foto: Clauber Cleber Caetano/PR

Também divulgado na semana passada, o Relatório Global de Expressão, da organização Artigo 19, qualificou o Brasil como uma “democracia em crise”. No relatório, que é relativo a 2020, o País registrou só 52 pontos na escala de liberdade de expressão, que vai de zero a cem, sendo zero a nota de um país sem liberdade de expressão e cem a de total liberdade. Foi a menor pontuação brasileira no indicador desde a primeira medição, em 2010.

O documento enumera 464 situações em que o presidente, ministros ou assessores próximos “atacaram ou deslegitimaram jornalistas e o seu trabalho, nível de agressão pública que não é visto desde o fim da ditadura militar”. A Artigo 19 é uma organização que promove o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação no mundo. Seu nome tem origem no 19.º artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.

Estadão procurou o Palácio do Planalto e a assessoria da Casa Civil para que comentassem o papel do governo na erosão da democracia, mas não houve resposta aos questionamentos da reportagem.


Imagens de Jair Bolsonaro


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Motociata Acelera pra Jesus. Foto: Alan Santos/PR
Motociata Acelera pra Jesus. Foto: Alan Santos/PR
Bolsonaro cumprimenta o general Eduardo Villas Boas, em cerimônia no Planalto. Foto: Alan Santos/PR
Entrega de espadim aos cadetes na Aman. Marcos Corrêa/PR
Entrega de espadim aos cadetes na Aman. Marcos Corrêa/PR
Presidente visita estátua de Padre Cícero em Juazeiro do Norte. Foto: Marcos Côrrea/PR
Cerimônia de entrega de residenciais no Cariri. Foto: Marcos Corrêa/PR
Entrega da "Ordem da Machadinha" em Joinville (SC). Foto: Alan Santos/PR
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Cargos públicos são utilizados para controle

Bolsonaro garante a execução de políticas controversas a partir da nomeação de aliados para funções estratégicas

Bruno Ribeiro, Daniel Bramatti e Marcelo Godoy, O Estado de S. Paulo

Em paralelo às tentativas de mudar a legislação para fortalecer seu controle sobre o Estado, Jair Bolsonaro nomeou para cargos-chave do funcionalismo aliados dispostos a executar suas políticas mais controversas. Ele responde a um inquérito por tentativa de interferência na Polícia Federal.

No Ministério da Saúde, por exemplo, sob o comando do general Eduardo Pazuello, o corpo técnico foi ocupado por nomes como a médica Mayra Pinheiro, a “capitã cloroquina”, e Hélio Angotti Neto, que preparou um “Dia D” para distribuir o remédio em meio à falta de oxigênio nos hospitais. No Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), órgão com décadas de expertise no monitoramento do desmatamento, houve proibição de realização dessa função, transferida para o Ministério da Agricultura. Na Fundação Zumbi dos Palmares, cuja função é promover a cultura negra, após a indicação do jornalista Sérgio Camargo houve anúncio de redução de metade do acervo da instituição, tido como “marxista”.

Eduardo Pazuello, então ministro da Saúde, ao lado de Elcio Franco e Helio Angotti Neto. Foto: MARCELO CAMARGO/AG. BRASIL

Sua proposta de reforma administrativa é alvo de crítica de opositores por, segundo eles, dar chances de perseguição e demissão de servidores de carreira não alinhados aos objetivos do governo atual.

“Se aprovada, permitirá a perseguição política, ainda mais em um governo que não gosta de servidores que possam ter independência funcional”, diz o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ). Ele considera a reforma necessária, mas ressalta: “Duas coisas têm de ser feitas para melhorar o serviço público brasileiro: regulamentar a avaliação de desempenho (dos servidores) e criar mais carreiras transversais. A reforma do Bolsonaro não faz nenhuma das duas coisas. Ela abre brechas para a demissão de servidores por perseguição e permite a indicação política para cargos de natureza técnica”.

Com 32 meses de mandato, Bolsonaro já pôde indicar seis diretores-gerais de agências reguladoras, órgãos com função de balancear interesses de governo, consumidores e setor privado. Os dirigentes têm mandato.https://arte.estadao.com.br/uva/?id=zjwYdy&show_brand=false

Na Agência Nacional do Petróleo (ANP), com a indicação do contra-almirante Rodolfo Saboia, os militares passaram a ter controle do Ministério de Minas e Energia, da presidência e do Conselho de Administração da Petrobras e da ANP. Na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), sob gestão do contra-almirante Antonio Barra Torres, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), fez críticas pela demora na liberação da vacina Coronavac – os técnicos do órgão também impuseram restrições à Covaxin, defendida pelo governo.

“No passado, as agências já foram alvo de interferência política, com prejuízo para toda a sociedade”, afirma o coordenador executivo do Centro de Gestão de Políticas Públicas do Insper, André Luiz Marques. Ele cita ações da ex-presidente Dilma Rousseff para controlar preços de energia. “Nas agências, você precisa de um corpo técnico forte, não pode ter loteamento de cargos. Senão, as relações ficam desiguais, e quem paga por isso geralmente é o consumidor.”

Não há a menor dúvida de que essa reforma, se aprovada, permitirá a perseguição política, ainda mais em um governo que não gosta de servidores que possam ter independência funcional”Alessandro Molon, deputado (PSB-RJ)

O caso da Polícia Federal é o que mais teve repercussão. Em abril de 2020, o ex-ministro da Justiça e da Segurança Pública Sérgio Moro acusou o presidente de interferir no órgão. A PF no Rio investigava o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) após a Operação Furna da Onça apurar corrupção na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) e chegar a Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio (e amigo de Jair), nome central nas apurações de suspeitas de “rachadinhas” em gabinetes da família presidencial. Com Anderson Torres na Justiça, o novo diretor-geral Paulo Maiurino propôs a criação de um setor na PF, vinculado a ele, para investigar políticos que possuem foro especial.




Apoiadores de Bolsonaro durante visita do presidente às Subestações Santana e Santa Rita. Foto: Isac Nóbrega/PR

ENTREVISTA
LUIS MANUEL FONSECA PIRES, JUIZ E PROFESSOR DE DIREITO DA PUC-SP

‘Há o surgimento de uma nova modalidade de regime autoritário’

Estudioso afirma que governo opera sob premissa de ‘amigos e inimigos’ como elemento estruturante

Daniel Bramatti, O Estado de S. Paulo

Estudioso da forma como o Direito é usado pelos governos autoritários de nosso século – à esquerda e à direita – o professor de Direito Administrativo da PUC-SP e juiz Luis Manuel Fonseca Pires defende a tese de que os atos e as políticas do governo Jair Bolsonaro não podem ser reduzidos a uma questão de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade. “Não estamos mais operando no campo do legal ou ilegal. O que se está operando é uma produção de políticas públicas, atos políticos e administrativos que têm sempre a premissa da equação amigo e inimigo como elemento estruturante de suas ações.”

Autor do livro Estados de Exceção, a usurpação da soberania popular, Pires afirma ser necessário atualizar a concepção clássica de estado de exceção, pois, na atualidade, ela é acompanhada da ideia de “volatilidade do inimigo”. Ora ele é uma instituição, ora ele é um grupo.

● Há um denominador comum por trás das medidas legais do governo Bolsonaro?
É preciso entender que o autoritarismo contemporâneo é um processo em construção. Ele não se dá em um dia, em um momento específico. É um processo que se elabora permanentemente. É preciso ter consciência de que isso não é um sinal de fragilidade da ascensão do autoritarismo. É simplesmente que essa é a estratégia do terceiro milênio, ele se elabora dessa forma gradual. É uma construção que opera por fragmentação. O autoritarismo contemporâneo seleciona âmbitos da vida civil e instituições públicas que ele ataca sistematicamente, mas de um modo circular. Ora é preciso atacar o Judiciário, ameaçar o impeachment de algum ministro, depois, deixa-se isso de lado e se vai para um âmbito civil. Por exemplo: a liberdade de imprensa. E é preciso atacar e massacrar essa liberdade. O estado de exceção tradicionalmente se estrutura pela equação amigo e inimigo. No romance (1984) ninguém sabe direito se Emanuel Goldstein existe ou não, se é uma lenda. Mas há uma cultura de ódio contra ele porque o estado totalitário precisava ter um inimigo, porque sem um inimigo ele não sobrevivia. Já o estado de exceção contemporâneo tem a estratégia de mudar os campos de ataque. Ele não pretende ser totalitário. Ele pretende ir minando vários campos. O pressuposto ainda é o mesmo: ele precisa ter o inimigo como estruturante de suas ações. Os atos e as políticas públicas do governo Bolsonaro não podem ser reduzidos a uma questão de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade. Nós não estamos mais operando no campo do legal ou ilegal, porque todos os governos podem praticar medidas legais ou ilegais que devem ser corrigidas. O que se está operando é uma produção de políticas públicas, atos políticos e administrativos que têm sempre a premissa da equação amigo e inimigo como elemento estruturante. Mas com a estratégia da circularidade. Há algo que é preciso atualizar na concepção clássica de estado de exceção, que é mais um motivo para chamarmos de ‘estados de exceção’ na atualidade, que é a ideia da volatilidade dos inimigos.

● Por que o inimigo agora é difuso, ao contrário do que ocorria nos autoritarismo do século 20?
Houve uma larga produção de pensamento crítico à esquerda e à direita após a 2.ª Guerra Mundial sobre os absurdos produzidos pelo estado de exceção clássico, que se identificou com a ideia do totalitarismo, a ideia da produção de um homem novo, do domínio de todos os campos ao mesmo tempo. A partir dos anos 1970, na América Latina, você começa a contar com o uso do Direito de uma forma mais sofisticada, mascarando a produção da exceção. Tanto porque o pensamento crítico não tolerava mais isso quanto pela legitimidade que o Direito dá às situações arbitrárias. Seria muito melhor para a construção da legitimidade o uso da ação judicial. Esse é um modo diferente do novo autoritarismo. Ele tem o cuidado de dissimular suas práticas e precisa contar muito mais com o Direito como aliado. A cúpula nazista não estava preocupada com o Direito. Hoje é o contrário. Após a 2.ª Guerra há um processo de transformação em que há necessidade de se contar com a comunidade jurídica, com os legisladores, a produção de políticas, os atos do Executivo, com o Ministério Público, o Judiciário e as posições-chave nas universidades. Todos os lugares onde de algum modo se produzem atos, decisões e o ensino jurídico. As universidades têm dois motivos para serem atacadas: primeiro pela produção jurídica que podem oferecer e, segundo, por serem um local de pensamento crítico. Regimes autoritários contemporâneos têm os três pilares do pensamento crítico como inimigos: a Educação, a Cultura e a liberdade de imprensa. E operam com circularidade nos ataques aos inimigos. Precisam ter o inimigo do mês ou da semana. Numa semana ele é Leonardo Di Caprio. Na outra, o youtuber Felipe Neto ou o pensamento do Paulo Freire. A volatilidade é a marca da sociedade contemporânea. Mas sem o inimigo não se estrutura o estado de exceção. Nem no passado, nem no presente.

Autor afirma que vivemos momento de ‘estados de exceção. Foto: ARQUIVO PESSOAL

● A produção legal e infralegal do governo seria fundamental então para entender como o governo Bolsonaro opera?
É essencial ter produção jurídica para dar verniz de legitimidade. Essa é a ideia. Para que as medidas autoritárias não se apresentem como tais, elas precisam contar com o Direito para tentar dar uma racionalidade à produção da vontade política arbitrária. O elemento mediador do conflito entre a política e o Direito é a Constituição. Esta estabelece uma relação de valores fundamentais. Por exemplo: a ciência. Se a Constituição é a mediadora das vontades políticas, isso significa que as decisões possíveis dos governos devem estar no âmbito da ciência. Não se pode negar a ciência. Como então produzir políticas públicas negacionistas, acabar com distanciamento e o uso de máscaras na pandemia? Como tomar medidas contra o senso comum estabelecido pela ciência? Essa vontade política é arbitrária porque rompe com o horizonte de possibilidades que a Constituição deu. Em uma pandemia, não é uma alternativa legal você negar a pandemia. Quando a vontade política pretende impor o negacionismo, ela precisa atualmente do Direito, ao contrário do que ocorria no passado ou em regimes autoritários clássicos, como a Coreia do Norte.

● Nessa perspectiva, qual a importância do controle do STF?
É um objetivo que deve estar presente para a construção de um regime autoritário. Hoje, no Brasil, os pontos mais marcantes de resistência à ascensão do autoritarismo são a liberdade de imprensa, os movimentos sociais, o Poder Judiciário. E o Direito passa a ser utilizado como recurso de minar essa resistência. Ele é usado para escolher reitores de universidades que não foram os mais votados. Há ataques constantes à imprensa quando esta tenta identificar suspeitas de corrupção e o uso da Lei de Segurança Nacional para intimidar jornalistas e opositores pacíficos em protestos. O Direito é usado para minar os inimigos – e não a força bruta.

É essencial ter produção jurídica para dar verniz de legitimidade. Essa é a ideia.”
Luis Manuel Fonseca Pires, juiz e professor de Direito

● Como esses governos mobilizam pessoas contra os inimigos?
As vontades políticas arbitrárias são mobilizadas por afetos políticos, por sentimentos. Aquilo que no passado se manifestava por meio de ordem administrativa, de detenção ou de execução, como na Noite dos Longos Punhais (a execução de líderes da S.A., a mando de Hitler, em 1934), hoje se manifesta no Direito. Ele é o repositório desses afetos. Ele tem o papel de converter os afetos políticos – como o ódio – em discursos pretensamente racionais. Como o ódio ao processo de conhecimento se materializa para calar professores e o desenvolvimento do pensamento crítico em sala de aula? Como fazer isso no terceiro milênio? É preciso do Direito para que ele se converta em discurso de pretensa racionalidade com o nome de escola sem partido.

● Mas não se trataria apenas de mera ‘passagem de boiada’?
Todas as vontades arbitrárias, que não se encontram na Constituição, para se manifestarem são estados de exceção. Os regimes autoritários contemporâneos não fecham o Parlamento ou o Judiciário. Eles funcionam com as instituições formalmente presentes. Essa nova estratégia mantém um grau de permanência na vida civil: não é preciso eliminar todos os órgãos de imprensa ou todas as políticas públicas ambientais. Vive-se com ataques, que os vão minando gradualmente, o que dificulta a produção do pensamento crítico. Pessoas que não se deram conta da gravidade da situação têm como horizonte as referências históricas. Elas dizem que este ou aquele não é um regime autoritário porque o Congresso está funcionando. O regime autoritário do passado tinha a meta de fincar a bandeira. Havia dia, mês e ano para celebrar sua instauração. Hoje o autoritarismo é fluido com a constante atualização dos inimigos a serem combatidos. Não vamos ter uma data para celebrar o fim da democracia, pois autoritarismo contemporâneo usa o símbolo da democracia como justificativa de suas medidas de exceção. O objetivo não é fechar universidades, mas capturá-las. O objetivo não é fechar o Supremo ou o Congresso, mas colocá-los ao lado de quem opera os estados de exceção. Bolsonaro não conseguiria fazer tudo isso sozinho. Ele precisa do apoio de outras forças. A volatilidade do inimigo é também traço da volatilidade do soberano nos estados de exceção. Ele não pode se estabelecer às claras; é uma fantasmagoria. O novo autoritarismo não tem uma meta. A meta é o presente. O que está acontecendo é o surgimento de uma nova modalidade de regime autoritário.



EXPEDIENTE

Editor executivo multimídia Fabio Sales / Editora de infografia multimídia Regina Elisabeth Silva / Editores assistentes multimídia Adriano Araujo, Carlos Marin e William Mariotto / Editor de Política Eduardo Kattah / Designer multimídia Vitor Fontes / Reportagem: Bruno Ribeiro, Daniel Bramatti e Marcelo Godoy / Edição de texto: Vitor Marques,  Fernanda Yoneya e Valmar Hupsel Filho


Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://www.estadao.com.br/infograficos/politica,sob-bolsonaro-a-corrosao-do-estado-e-das-liberdades-individuais,1185836