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Nas entrelinhas: O pacto de Bolsonaro com os violentos
Luiz Carlos Azedo | Correio Braziliense
Enquanto o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) negocia os ministérios que ainda estão vagos com os aliados de centro que o apoiaram no segundo turno — um jogo de xadrez cuja rainha é a senadora Simone Tebet, que concorreu à Presidência da República pelo MDB — aumenta a tensão entre os atores encarregados da segurança de sua posse, principalmente depois de uma bomba ter sido desativada em um caminhão tanque de querosene de aviação, nas proximidades do Aeroporto Internacional de Brasília.
No começo, imaginou-se que era apenas uma provocação, mas o avançar das investigações mostra que estava realmente sendo preparado um atentado terrorista. George Washington de Oliveira Sousa, um empresário de 54 anos, responsável por instalar o “artefato explosivo”, apoiador de Bolsonaro, confessou sua intenção de atentado, na expectativa de que o ato provocasse o caos e uma intervenção militar antes da posse de Lula.
No apartamento que o extremista alugou no Sudoeste, no Distrito Federal, os policiais encontraram um fuzil, espingardas, revólveres, munição e outros artefatos explosivos. A Polícia Civil afirma saber que o homem teve ajuda e atua para identificar e prender os outros envolvidos. George Washington era frequentador de audiências públicas no Congresso e participava do acampamento de bolsonaristas defronte ao Quartel Geral (QG) do Exército, que continua sendo o principal ponto de concentração dos radicais de extrema direita que não aceitam a vitória do candidato petista.
Um outro artefato foi encontrado domingo, no Gama, região administrativa do Distrito Federal, pesando 40kg. Ainda não se sabe quem colocou a bomba no local e se o explosivo, desativado por policiais do Grupo de Operações da Polícia Civil, tem relação com o artefato colocado do empresário no eixo de um caminhão-tanque, abastecido com 63 mil litros de querosene de aviação (28 mil no primeiro compartimento, e 35 mil no segundo), no sábado passado.
Milícia política
Ontem, o blogueiro bolsonarista Oswaldo Eustáquio foi preso, a pedido da Polícia Federal, com aval da Procuradoria-Geral da República (PGR), por ordem do ministro Alexandre de Moraes, responsável pelo inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal (STF). A prisão não tem nada a ver diretamente com o fracassado atentado terrorista, a ordem já havia sido dada por Moraes durante a semana. Eustáquio não tem cumprido as medidas cautelares impostas após a revogação de sua prisão. O blogueiro foi preso em junho de 2020, a pedido do Ministério Público Federal (MPF), também por envolvimento com atos antidemocráticos que pediam o fechamento do Congresso e do STF. Em prisão domiciliar, o blogueiro já foi proibido de usar redes sociais e manter contato com outros investigados por fatos recentes, como o ataque ao prédio da Polícia Federal e a uma Delegacia de Polícia Civil no setor hoteleiro Norte.
O presidente Jair Bolsonaro não fez nenhum comentário sobre ambos os casos e continua alimentando a esperança dos radicais de que ainda vai dar um golpe de Estado. Os seus partidários mais fanáticos continuam à porta dos quartéis, sem que nada seja feito pelas autoridades locais nem pelo Exército. O atual chefe do Executivo tem um pacto com os violentos. Primeiro, com as milícias do Rio de Janeiro, cujo modelo de atuação naturalizou e traduziu para a política. Aproveitando-se dos interesses corporativos de categoriais profissionais embrutecidas pelos riscos da própria atividade, além de atiradores e indivíduos que cultuam a violência por temperamento ou ideologia, o presidente da República formou uma milícia política, armada até os dentes, que começa a dar sinais de que pode recorrer à luta armada e ao terrorismo para tentar fazer valer seus propósitos golpistas.
A democracia é uma conquista civil da qual não se pode abrir mão precisamente porque, onde ela foi instaurada, substituiu a violenta luta pela conquista do poder por uma disputa partidária com base na livre discussão de ideias. Condenar as eleições, esse ato fundamental do sistema democrático, em nome da guerra ideológica, significa atingir a essência não do Estado, mas da única forma de convivência possível na liberdade e por meio da liberdade que até agora conseguimos realizar, na longa história de prepotência e violência da nossa sociedade. O povo resolveu a disputa pelo voto, em eleições pacíficas e ordeiras, mas um grupo de radicais de extrema-direita ainda acredita que os militares, liderados por Bolsonaro, darão um golpe. De certa forma, até que a posse se realize, a existência dos acampamentos alimenta essa esperança.
Agenda externa de Lula mira retomada de protagonismo e diálogo nivelado com potências
Alex Mirkhan*, Brasil de Fato
Com as primeiras viagens internacionais já definidas, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já iniciou sua missão de reconstruir a imagem internacional do Brasil, profundamente arranhada durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Na opinião de especialistas, embora acumule prestígio e amizades estrangeiras após dois mandatos bem sucedidos na agenda externa, o presidente eleito precisará se equilibrar sobre um novo tabuleiro geopolítico.
A cerimônia de posse presidencial, em 1o de janeiro, terá a presença de pelo menos 17 chefes de Estado, um número recorde e simbólico. Mas é durante viagens ao exterior que Lula costuma atrair holofotes e alianças estratégicas, como fez em novembro. Já eleito presidente, participou da 27ª conferência do clima da Organização das Nações Unidas (ONU), a COP 27, no Egito, e visitou o presidente português Marcelo Rebelo de Sousa.
A primeira viagem após eleito será à vizinha Argentina, onde o petista se encontrará com o aliado Alberto Fernández, após presenciar a reunião da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). Ainda no primeiro trimestre, os destinos confirmados são as duas maiores potências mundiais, Estados Unidos e China. Compromissos considerados indispensáveis.
“O Brasil tem relações comerciais mais fortes com a China, relações históricas com os EUA, que se consolidaram ao longo do século XX, e com a Argentina, o nosso parceiro mais próximo. São relações estruturais, a mudança de governo não muda muito isso. A diferença será a qualidade dessas relações com esses três em especial”, projeta Vinícius Müller, professor de história econômica na ESEG (Escola Superior de Engenharia e Gestão).
Para James Onnig, professor do Laboratório de Pesquisas em Relações Internacionais da Faculdade de Campinas (Facamp), os primeiros compromissos do próximo presidente indicam sua intenção de reativar fóruns regionais, como a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e a própria Celac. “É praticamente a volta do Brasil à cena. Essa reunião de Lula dia 24 de janeiro em Buenos Aires é a nova entrada do Brasil ao jogo internacional. Como se disséssemos ‘voltamos à mesa’”, comenta.
“Reputação leva anos para construir, mas é fácil de perder”
Mais do que surfar no carisma internacional de que desfruta Lula, que já foi chamado de “o cara” pelo então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, há um plano de longa duração. Sob as batutas de de Vieira e Maria Laura da Rocha — que será a primeira mulher a ocupar o cargo de secretária-geral do Itamaraty — o objetivo é retomar a tradição secular da política externa brasileira e cultivada por diplomatas egressos do Instituto Rio Branco.
Uma agenda pautada na defesa da igualdade jurídica entre as nações, perspectiva inaugurada por Rui Barbosa em seu discurso na segunda Conferência de Haia, em 1907. É o que aponta Antônio Jorge Ramalho da Rocha, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), que acredita na continuidade da desconfiança do mundo perante ao Brasil.
“A minha impressão é que não se pode criar expectativa demais, porque a agenda interna vai ser muito difícil também. O presidente não terá a mesma disponibilidade nem energia para se dedicar aos assuntos internacionais que teve nos seus primeiros mandatos”, pondera Rocha.
:: "Nosso isolamento é consequência das escolhas políticas do governo", diz pesquisador::
Na sua avaliação, o Brasil abriu mão do seu papel no ambiente internacional de forma arbitrária pelo governo Bolsonaro. Além do esvaziamento da diplomacia e da agenda externa, o atual presidente que ainda não reconheceu a derrota eleitoral também destilou ofensas pessoais contra a esposa do presidente francês Emmanuel Macron, contra a ex-presidenta do Chile, Michelle Bachelet, além de enviar sinais trocados na esfera ambiental, especialmente no que tange a preservação da Amazônia.
“Ninguém se esquece do discurso do chanceler (Ernesto) Araújo em que ele negou uma série de prioridades da política externa brasileira, mas nunca foi capaz de dizer o que queria colocar no lugar. Desde então, a atual gestão do chanceler Carlos França aparenta tentar apenas conter danos e imprimir alguma fachada de normalidade a uma política externa que já foi muito respeitada no mundo”, acrescenta. Só restariam a Bolsonaro fazer alianças com poucos expoentes da extrema-direita mundial, como Hungria, Polônia e os Estados Unidos, enquanto Donald Trump ocupava a presidência.
Para Onnig, seria lógico Lula buscar o apoio de outros países em desenvolvimento, como os sul-americanos, a partir do Mercosul, somados ao de Rússia, Índia, China e África do Sul, que compõem o BRICS. Assim, faria parte de um movimento, talvez com papel de protagonista, que poderia aos poucos reequilibrar a conjuntura geopolítica, reduzindo o poder exercido pelos países membros do Conselho de Segurança da ONU—- Estados Unidos, Rússia, França, Reino Unido e China.
Rocha, por sua vez, identifica um novo momento histórico, que estaria ocorrendo desde meados da década passada. “Estamos vendo esse processo chamado de desglobalização, em que há uma diminuição da intensidade das trocas das economias e sociedades. Há uma ausência de uma governança adequada. Então o Brasil teria aí uma grande oportunidade e tem competência diplomática para fazer, historicamente. É isso que se espera de um país como o Brasil, como ele fez na OMC (Organização Mundial do Comércio)”, identifica Rocha.
Mesmo assim, na avaliação de Müller, seria temerário retomar a política de investimentos em países estratégicos ou considerados amigos, especialmente na América Latina e na África. O historiador alerta que esse tipo de política externa “com contornos imperialistas” poderia estimular a oposição à medida que o Brasil enviasse recursos via BNDES para países com “proximidade ideológica” ou que “não sejam muito zelosos com os preceitos democráticos”.
Brasil poderá intermediar conflitos e selar acordos
A nova relação com os Estados Unidos que já começou a ser costurada com Joe Biden. No último dia 5, o conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan, se reuniu com Lula no hotel em que está hospedado em Brasília. Dentre os temas de maior destaque, está a possível aproximação norte-americana com a Venezuela de Nicolás Maduro, ancorada na necessidade do comércio de petróleo.
Lula terá a oportunidade de intermediar essa reaproximação e ajudar a enterrar de vez o reconhecimento que fora dado a Juan Guaidó como presidente interino do país latino. Também é de interesse em comum do futuro governo brasileiro e de Biden fortalecer as instituições que regem suas democracias e, principalmente, liderar uma agenda ambiental e preocupada com o aquecimento global.
“Eu acho que o Lula vai chegar em Washington com a seguinte bandeira: nós vamos ter que trazer a COP-30 para o Brasil. Se nós queremos realmente discutir as questões ambientais, nós vamos estar no topo dessa discussão, não só pela biodiversidade, mas pela capacidade que temos de oferecer ao mundo soluções minimamente condizentes com a biodiversidade”, conjectura Onnig, mencionando o etanol brasileiro como exemplo, além de outras parcerias na transição energética que se avizinha.
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No entanto, há de se considerar um panorama mais amplo, incluindo as preferências e caminhos traçados pela China. Para Müller, o gigante asiático tende a ser refratário a esse tipo de discurso sob o argumento de “não fazer sentido pagar a conta da poluição gerada pelo Ocidente”, tornando-se um possível foco de tensão.
Mesmo assim, o historiador considera que Lula tem “tudo na mão” para formular um plano que insira o Brasil em um debate de alto nível. “Para isso, ele vai ter que se entender internamente com o agronegócio na questão ambiental, e externamente escapar dessas questões que podem afastar da China e da posição protecionista europeia, que é o fundamento da dificuldade no acordo Mercosul-União Europeia”, aponta.
O Brasil também pode sofrer pressões para abandonar sua neutralidade no longevo conflito entre Rússia e Ucrânia, especialmente por parte dos países membros da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Onnig discorre sobre a complexidade do tema e a solução que prevista a curto prazo.
“De um lado existem forças perigosas dentro da Ucrânia, e de outro há contestações muito sérias ao governo Putin. Porém, sabemos que a Rússia é nossa parceira dentro do BRICS e isso gera uma saia justa. Portanto, o Itamaraty deve manter sua neutralidade propositiva. Nós não vamos interferir na situação que está acontecendo, mas que devemos buscar a paz imediata. O Brasil deve buscar essa solução”, afirma Onnig.
Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.
Diplomação de Lula presidente: TSE ignora atos contra eleição e antecipa cerimônia
Mariana Schreiber*, BBC News Brasil
Nesta segunda-feira (12/12), o petista e o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB), serão diplomados às 14 horas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A diplomação é a cerimônia em que a Justiça Eleitoral atesta que os candidatos foram efetivamente eleitos pelo povo e, por isso, estão aptos para assumirem seus cargos. A posse de Lula e Alckmin ocorrerá no dia 1º de janeiro de 2023.
O evento contará com reforço de segurança no entorno do TSE. Segundo o governo do Distrito Federal haverá aumento do efetivo da Polícia Militar na região e bloqueios nas vias de acesso à Corte.
Desde a vitória de Lula, apoiadores de Bolsonaro têm se aglomerado em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília, em atos golpistas que pedem a atuação das Forças Armadas contra a posse do presidente eleito. O local fica a menos de nove quilômetros do TSE.
O prazo final para a diplomação é sempre 19 de dezembro. Mas, a pedido da equipe de Lula, o TSE marcou a cerimônia para uma semana antes. O motivo de acelerar essa etapa seria justamente tentar arrefecer os movimentos de contestação da eleição, que não apresentaram qualquer evidência concreta que justifique o questionamento do resultado.
A realização da diplomação antes do prazo final, porém, não é novidade. Bolsonaro, por exemplo, foi diplomado no dia 10 de dezembro de 2018, para que pudesse passar por uma cirurgia no dia seguinte. Na ocasião, o presidente eleito ainda enfrentava complicações de saúde devido à facada que levou durante a campanha eleitoral.
Lula, por sua vez, foi diplomado sempre no dia 14 de dezembro nas duas primeiras eleições presidenciais que venceu, em 2002 e 2006.
Já as duas diplomações da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) ocorreram em 17 de dezembro de 2010 e 18 de dezembro de 2014.
Para o advogado especializado em legislação eleitoral Alberto Rollo, a antecipação da diplomação pode ter efeito "psicológico", por determinar o fim do processo eleitoral, mas do ponto de vista jurídico não há diferença em realizar o evento uma semana antes da data limite.
Ele explica que a diplomação não é uma mera formalidade e sim uma exigência legal para a realização da posse em 1º de janeiro. Governadores, senadores e deputados federais, estaduais e distritais também passam pela cerimônia, mas recebem o diploma dos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) dos seus Estados e do Distrito Federal. O prazo, nesses casos, também é 19 de dezembro.
A procuradora Silvana Batini, professora de direito eleitoral da FGV-Rio, tem avaliação semelhante. "No plano político, eu acho que (a diplomação de Lula) tem sim um sinal de avançar nas etapas, que é o que habilita para a posse de forma definitiva. Então, acho que o efeito (da antecipação) é político e não jurídico", afirmou.
Na sexta-feira (9/12), Lula começou a apresentar seus futuros ministros. Foram anunciados os titulares da Fazenda (Fernando Haddad, PT), da Defesa (José Múcio], PTB), da Justiça (Flávio Dino, PSB), da Casa Civil (Rui Costa, PT) e das Relações Exteriores (o diplomata Mauro Vieira).
Já Bolsonaro, que tem feito raras declarações desde a derrota para o petista, falou na sexta-feira (9/12) com apoiadores no Palácio do Alvorada. Na ocasião, exaltou sua posição de chefe das Forças Armadas e continuou sem reconhecer a vitória do presidente eleito.
"Tenho certeza que entre as minhas funções garantidas na Constituição é ser o chefe supremo das Forças Armadas. As Forças Armadas são essenciais em qualquer país do mundo. Sempre disse ao longo desses quatro anos que as Forças Armadas são o último obstáculo para o socialismo", afirmou o presidente.
"Quem decide o meu futuro, por onde eu vou, são vocês. Quem decide para onde vão as Forças Armadas, são vocês. Quem decide para onde vai a Câmara e o Senado, são vocês também", destacou ainda.
Prazos para contestação da eleição
A diplomação também marca a reta final dos prazos para contestação do resultado da eleição. Com a cerimônia, se encerra o período para apresentar uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije), que busca apurar condutas que possam ter afetado a igualdade na disputa entre candidatos, como o abuso do poder econômico ou de autoridade e o uso indevido dos meios de comunicação social durante a campanha eleitoral.
Por outro lado, após a diplomação, há um prazo curto, de quinze dias, para que adversários ou o Ministério Público Eleitoral apresentarem uma Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (Aime). Essa ação pode levar à futura cassação do mandato caso se prove que a chapa eleita cometeu abuso de poder econômico, corrupção ou fraude durante a eleição.
Ambas as ações, porém, podem levar meses ou anos para serem julgadas e não impedem a posse do candidato eleito ao serem apresentadas.
Se o PL, partido de Bolsonaro, quiser levar adiante os questionamentos sobre a lisura da eleição, ainda poderia, em tese, apresentar uma Aime. No entanto, Silvana Batini lembra que o TSE reagiu duramente às primeiras tentativas da sigla de levantar suspeitas sem provas sobre o pleito. Isso, na sua avaliação, pode dissuadir mais iniciativas nesse sentido.
A professora se refere ao requerimento feito pelo PL em novembro para que a Corte verificasse suposta falha que impediria a rastreabilidade dos modelos antigos de urnas eletrônicas usadas no segundo turno. Devido a esse suposto problema, o partido queria que fossem anulados 59% dos votos.
O presidente do TSE, Alexandre de Moraes, respondeu ao pedido dando 24 horas para que o PL incluísse no seu questionamento também a votação do primeiro turno, já que as urnas usadas eram as mesmas. No entanto, o partido, que elegeu governadores, senadores e 99 deputados federais no primeiro turno, manteve o questionamento apenas do resultado do segundo turno.
Depois disso, Moraes multou o PL em R$ 22,9 milhões e determinou abertura de investigação contra o presidente da sigla, Valdemar da Costa Neto. A justificativa do ministro foi que teria havido litigância de má-fé no requerimento, ou seja, a Justiça teria sido acionada de forma irresponsável pelo partido. O presidente do TSE ressaltou, ainda, em sua decisão, que os argumentos do PL eram "absolutamente falsos, pois é totalmente possível a rastreabilidade das urnas eletrônicas de modelos antigos".
Reforço da segurança
É a primeira vez que o TSE realiza a cerimônia de diplomação em meio a temores de atos violentos por parte de grupos que não aceitam o resultado das urnas.
Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, o policiamento será reforçado em toda região pela Polícia Militar.
"Unidades especializadas da corporação, como as tropas de choque, cavalaria, operações aéreas, policiamento com cães e operações especiais, estarão no local para apoio, caso seja necessário. Além desse reforço, o local contará com segurança própria (do TSE), feita pela Polícia Judicial", informou a agência oficial de notícias do governo distrital.
"O Departamento de Trânsito do DF (Detran) atuará no controle e organização do fluxo nas proximidades do tribunal. As vias nas imediações do TSE serão fechadas e protegidas por gradis. A reabertura para trânsito de veículos será feita após o término do evento e avaliação das autoridades de segurança pública", informou ainda a agência.
A secretaria anunciou também que será montada ao lado do TSE a Cidade da Segurança, uma estrutura que servirá de apoio aos agentes de segurança que atuaram na região.
Ameaças
No início do mês, Alexandre de Moraes determinou a prisão do empresário Milton Baldin, após ele incitar que pessoas com porte legal de arma — os colecionadores, atiradores esportivos e caçadores (CACs) — fossem a Brasília para resistir à diplomação de Lula.
O chamado golpista de Baldin ocorreu em frente ao Quartel-Geral do Exército, em Brasília, onde apoiadores de Bolsonaro têm se reunido para pedir que os militares impeçam a posse do presidente eleito. Atos semelhantes têm se repetido em dezenas de cidades do país, em frente a quartéis ou outras áreas militares.
"E queria também pedir aos CACs, os atiradores, que têm armas legais, hoje nós somos, inclusive eu, 900 mil atiradores, venham aqui mostrar presença", disse Baldin, segundo vídeo que registrou sua fala.
"Se nós perdermos esta batalha, o que vocês acham que vai acontecer dia 19? Vão entregar as armas? Aí o que eles vão falar? Perdeu, mané. E como nós vamos nos defender? Defender a nossa propriedade e a nossa família?", diz ainda na gravação, em referência ao prazo final para a cerimônia de diplomação, dia 19 de dezembro.
Não há qualquer evidência de que os militares apoiariam uma tentativa violenta de impedir a posse de Lula. Por outro lado, as Forças Armadas têm dado declarações ambíguas, legitimando o questionamento das urnas.
Em uma nota conjunta divulgada em novembro, por exemplo, os comandos de Exército, Marinha e Aeronáutica afirmaram o seguinte: "Como forma essencial para o restabelecimento e a manutenção da paz social, cabe às autoridades da República, instituídas pelo Povo, o exercício do poder que "Dele" emana, a imediata atenção a todas as demandas legais e legítimas da população, bem como a estrita observância das atribuições e dos limites de suas competências, nos termos da Constituição Federal e da legislação".
Críticos da atuação das Forças Armadas avaliam que há uma interferência indevida dos militares em questões políticas e que as declarações que legitimam os atos antidemocráticos teriam objetivo de manter os manifestantes mobilizados como forma de pressão sobre o futuro governo.
Texto publicado originalmente no portal BBC News Brasil.
Revista online | O que a luta LGBT pode cobrar do novo governo?
Eliseu de Oliveira Neto*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022)
Para responder a essa pergunta, precisamos relembrar a história da luta LGBT. Nunca tivemos um governo que realmente tivesse isso como prioridade. Fernando Henrique Cardoso foi o primeiro presidente a segurar a bandeira do arco-íris, mas isso porque um militante colocou-a na mão dele durante um ato. É inegável que a quebra de patentes que José Serra fez no combate ao HIV foi uma das melhores políticas para a população, mas também se dirige aos héteros.
Luiz Inácio Lula da Silva fez eventos, conselho lgbt (por decreto), criou o plano de combate à homofobia, mas nada que eu veja como significativo. Ao menos dialogava com a sociedade civil organizada, tinha atenção com as organizações não-governamentais (ONGs), mas poderia e deveria ter lutado pelo casamento homoafetivo, pela criminalização da lgbtfobia e muitas outras pautas, ainda mais com a força que tinha no Congresso e popularidade, mas sua base evangélica e católica segurava os avanços.
Dilma Rousseff foi decepcionante, teve Marco Feliciano na comissão de Direitos Humanos, o governo se colocou contra a criminalização e ainda fez manobras para derrubar o PLC122. Retirou material escolar para ajudar professores a lidar com a homofobia e teve a infeliz ideia de ir à TV, dizendo que não faria “propaganda de opção sexual”, como se alguém pudesse escolher sua orientação.
O governo de Michel Temer não tinha essa pauta como prioridade, mas, como sua base já era conservadora, foi muito menos cobrado, e pudemos avançar em alguns pontos, como o pacto pelos direitos humanos na educação, o programa de combate à lgbtfobia e a criação da diretoria LGBT no Ministério de Direitos Humanos (que foi restaurado em seu governo).
As grandes conquistas foram feitas pelo movimento social. Passamos de um país que nem nos considerava família (cidadãos) para um dos países com mais direitos lgbts do mundo, mas tudo via Judiciário.
Depois, veio o grande desastre: uma ideia de que queríamos privilégios, e os reais privilegiados (homens, ricos, brancos ,cisgêneros) elegeram alguém que fez sua carreira atacando a comunidade. O presidente Jair Bolsonaro destruiu tudo que conseguiu, fechou a diretoria de Direitos Humanos do Ministério da Educação (MEC), atacou o turismo LGBT, que é altamente rentável no Brasil, e tornou praticamente nulo o conselho nacional LGBT.
Teremos muita luta pela frente, um congresso ultraconservador e uma série de mentiras que foram distribuídas para a nação, como a tolice de ideologia de gênero, mamadeira de piroca. Os fundamentalistas sabem exatamente que a escola é o grande campo dessa destruição. Projetos como homeschooling são justamente para evitar a diversidade nas escolas, ensinar criacionismo, transmitir lgbtfobia.
Na educação, precisamos que as escolas sejam um lugar acolhedor, sem violência e sem discriminação, aplicando a lei 13185/2014, que prevê uma equipe multidisciplinar em cada escola para atender aos casos de violência e discriminação.
Somente em 2017, foram apresentados em 35 municípios do Brasil, por 47 vereadores de 10 partidos, projetos que visem proibir e coibir explicitamente qualquer ação ou termo educacional que evoque a discussão sobre gênero e/ou sexualidade nas escolas municipais, estaduais e privadas, inclusive em municípios que já tinham projeto de leis em combate ao bullying nas escolas. Isso demostra uma contradição ideológica em relação ao entendimento sobre o real objetivo de combater a violência no âmbito escolar, que já vinha ocorrendo com intuito de combater o preconceito e a discriminação em relação a gênero, sexualidade e raça.
O bullying pode ser considerado uma ação de violência física ou psicológica, intencional e repetitiva, que ocorra sem motivação evidente, praticada por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas. Esta ação muitas vezes ocasiona às suas vítimas doenças psicológicas e físicas, como depressão aguda, suicídio, abandono escolar, mutilações corporais leves ou graves, coerção, esquizoidismo, baixa alto-estima, acidentes por mortes, assassinatos entre outras causas. Em sua maioria, as violências estão direcionadas às pessoas que demonstram ter algum tipo de referencial de diferença expressa nos aspectos físico, intelectual, cognitivo, de raça/etnia, sexual e/ou de gênero, os quais não estão aparentemente dentro das normas estabelecidas como normativas na sociedade ou na cultura vigente.
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A relação de poder pode ser evidenciada por meio de uma cultura em que prevalece a masculinidade, a branquitude e a cisgeneridade heterossexual como quesitos de superioridades entre os humanos, colocando-os no ápice da pirâmide social como preponente às benesses da vida cotidiana. Portanto, as mulheres, os homens femininos, as masculinas mulheres, deficientes físicos e/ou intelectuais, os negros e as negras, as(os) homossexuais, as(os) bissexuais e/ou os transgêneros são associados como pessoas de menor valor social.
Por isso, nos projetos que envolvem trabalhos de combate ao bullying, devem estar incluídas, com maior atenção, ações contra as violências e violações de direitos que envolvem as relações de gênero, sexualidade, raça/etnia, classe, expressão e identidade de gênero de crianças e adolescentes em âmbito escolar, por estarem inseridas em uma sociedade que prioriza a cultura de direitos pela garantia da diversidade humana. É preciso garantir a solidariedade, a cidadania, o respeito e a dignidade humana em relação à multiculturalidade existencial, que compõe as diferenças sociais.
Em 2010, a Unesco promoveu uma grande campanha “Quebre o silêncio” com objetivo de evidenciar o mutismo que envolvia as questões sobre o bullying homofóbico e suas consequências na humanidade. É evidente que isto deve ser a prioridade máxima do novo governo.
Bolsonaro destruiu o programa de HIV/Aids, retirou orçamento, cortou medicação. As escolas não falam do tema. O resultado pode ser visto na pesquisa divulgada recentemente pelo Ministério da Saúde que aponta para fatos ainda mais tristes: o número de casos de HIV em jovens de 15 a 24 anos apresentou maior aumento. Em dez anos, a taxa mais que dobrou nesta faixa etária.
É urgente retomar e ampliar o programa de HIV, garantir orçamento, medicação e atendimento pelo SUS (que já foi modelo mundial). Além disso, é necessário retomar o debate nas escolas. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional preconiza que se educa para a vida. Os pais não são donos dos seus filhos, são responsáveis por eles, junto ao estado e à sociedade (artigo 245 da Constituição Federal). Assuntos como Infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), sexualidade, profilaxia pré-exposição (prep) e profilaxia pós-exposição (pep) devem ser debatidos dentro das escolas. É um caso de saúde pública.
Precisamos de um “cumpra-se” para as leis que conquistamos, treinar delegados, orientar magistrados e cartórios, além de inserir o assunto na formação dos professores. Leis têm que ser assimiladas para, de fato, funcionarem.
O primeiro secretário de educação de Bolsonaro pediu demissão porque o governo proibiu filmes sobre a pauta. A cultura tem um papel tremendo para combater os preconceitos e transformar pensamentos. É fundamental um grande esforço para reconstruir o Ministério da Cultura (Minc), desaparelhar a Agência Nacional de Cinema (Ancine) e apoiar projetos que versem sobre o tema.
Outros temas atingem a população, a baixa empregabilidade, deixando-os totalmente vulneráveis. O governo precisa oferecer capacitação gratuita e inserção de pessoas transgêneras (transexuais, travestis, não binários) no mercado de trabalho da tecnologia, buscando ser uma ponte entre pessoas trans e empresas.
No recorte mais vulnerável das pessoas trans, percebemos que muitas estão em situação de vulnerabilidade porque não tinham conseguido terminar os estudos, e a prostituição acaba se tornando um mecanismo de geração de renda justamente pela baixa escolaridade. Estimativas apontam que 96% das trans que se prostituem dizem que a prostituição é a única forma de sustento.
Pesquisa realizada pelo partido Cidadania23, em parceria com a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), realizada com mais de mil profissionais LGBT e heterossexuais no país, revela que metade dos que se declararam gays assumiram sua orientação sexual no ambiente de trabalho. Desse mesmo total, cerca de 35% alegaram terem sofrido algum tipo de discriminação sexual. Outros 25% decidiram não assumir a orientação sexual. Deste total, 32% optaram por não revelar sua orientação por receios de represálias.
Outro dado preocupante revela que 33% dos heterossexuais pesquisados afirmam ter presenciado algum tipo de discriminação com algum profissional LGBT no ambiente de trabalho. Deste total, 17% revelaram que o episódio teria ocorrido nos últimos seis meses anteriores à entrevista.
Outro estudo utilizado no artigo aponta que 82% dos entrevistados LGBT destacam a existência de um longo caminho para que as empresas os acolham melhor. Por outro lado, apenas 38% dos heterossexuais afirmam que colegas LGBTs se sentem devidamente acolhidos no trabalho.
Ao serem questionados sobre o atual governo, 64% dos entrevistados LGBT afirmaram que a atual gestão não se preocupa com a diversidade no Brasil. Além disso, para 67%, a promoção de igualdade entre gêneros é uma responsabilidade governamental. Em relação à homofobia, 76% dos pesquisados afirmaram que o Brasil é uma país homofóbico.
Dados do Instituto Ethos apontam que mulheres são pouco mais de 10% em posições de conselho – excluindo as herdeiras, o número é ainda menor. Pessoas negras, que é como 54% dos brasileiros se reconhecem (IBGE), não chegam a 5% dos cargos diretivos. Pessoas com deficiência ainda são contratadas sob uma perspectiva meramente legalista, de cumprimento da Lei de Cotas. Em relação a pessoas trans, quantas delas você já viu liderando grandes equipes?
Dos respondentes LGBT, apenas 13% afirmaram ocupar ou ter ocupado, anteriormente, um cargo de diretoria ou C-level. Outros 15% ocupavam ou ocupam cargos de coordenação e gestão, enquanto a grande parte (54%) representa cargos de entrada, isto é, analistas, assistentes ou estagiários.
Confira, a seguir, galeria:
Direito ao emprego é dignidade, sustento, e gera saúde mental. O próximo governo pode lutar por incentivos nas empresas e investir em campanhas publicitárias contra a discriminação, além de lutar contra essa disparidade
Pesquisas mostram que LGBTs são 8% dos moradores de rua. São graves a exclusão familiar e o desamparo. É fundamental criar abrigos preparados para esta população, pois, muitas vezes, idosos LGBTs têm que voltar para o armário, já que há muito preconceito em asilos e abrigos.
Voltando para a saúde, precisamos de médicos capacitados, que usem o nome social e tenham sensibilidade. Imagine uma mulher lésbica sendo examinada por um homem?
Temos muita luta pela frente e um total retrocesso para enfrentar. Precisamos cobrar do próximo governo um compromisso real e não sermos mais usados como moeda de barganha.
Sobre o autor
*Eliseu de Oliveira Neto é psicólogo, psicanalista, educador, membro da executiva do Cidadania, coordenador nacional do Diversidade23 e integrante da Aliança Nacional LGBTI.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de novembro/2022 (49ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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PL atende Bolsonaro e tenta reverter resultado eleitoral
Made for minds*
O PL, partido de Jair Bolsonaro, protocolou nesta terça-feira (22/11) uma petição no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em que pede a anulação dos votos registrados em 279 mil urnas usadas no segundo turno da eleição, no qual o presidente foi derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva.
A iniciativa é a mais recente tentativa de Bolsonaro para lançar dúvidas sobre o sistema de votação e buscar, de alguma forma, questionar o resultado do pleito, no qual ele se tornou o primeiro presidente brasileiro a perder uma disputa à reeleição.
A ação argumenta que essas 279 mil urnas fabricadas antes de 2020 têm um mesmo número de série registrado no log, um arquivo gerados por cada equipamento, e apresentavam "desconformidades irreparáveis de mau funcionamento", o que impediria a sua correta fiscalização, uma alegação rejeitada pelo TSE e por especialistas.
Marcos Simplício, professor de Engenharia da Computação da Escola Politécnica da USP e vice-coordenador do convênio USP-TSE que analisa a segurança do sistema de votação, afirmou ao jornal O Estado de S. Paulo que, além do número de série, há pelo menos outros três conjuntos de dados identificadores de uma urna: o código de identificação, os dados de zona, local, município e seção, e o código de identificação de carga da urna.
"É como se você tivesse três documentos: o RG, o CPF e um registro no INSS, mas você não tivesse esse INSS em mãos. Isso não compromete a sua identificação porque eu consigo dizer quem você é a partir do seu RG e do seu CPF", disse ele ao jornal.
As urnas questionadas pelo PL representam 59% dos equipamentos usados nestas eleições. Se os votos depositados nelas no segundo turno fossem anulados, Bolsonaro ficaria com 51,05% dos votos válidos, segundo o pedido, e seria reeleito.
A ação não pede que os votos registrados no primeiro turno nas mesmas urnas sejam anulados. Os equipamentos questionados pelo PL também já foram usados em pleitos anteriores.
O PL cita em seu pedido uma auditoria feita pelo Instituto Voto Legal (IVL), contratado pelo partido, que aponta que as urnas fabricadas antes de 2020 apontam um número idêntico nos arquivos gerados por elas com o registro dos votos.
O Ministério da Defesa, instrumentalizado por Bolsonaro ao longo do ano para também lançar dúvidas sobre as urnas eletrônicas, entregou no início de novembro seu relatório sobre a fiscalização do processo eleitoral e não indicou nenhum indício de fraude.
O TSE e observadores eleitorais internacionais reconheceram a lisura do processo eleitoral, e o governo Bolsonaro já deu início à transição para a equipe do presidente eleito Lula.
Apoiadores radicais de Bolsonaro, no entanto, seguem mobilizados em frente a quartéis militares e em algumas rodovias na esperança de reverter o resultado das eleições.
Nesta semana, também veio à tona um áudio do ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Augusto Nardes, no qual ele relata a conhecidos do agronegócio que "está acontecendo um movimento muito forte nas casernas" brasileiras, com "desenlace" que seria, segundo ele, imprevisível.
Moraes questiona PL sobre votos no 1º turno
Após o recebimento da petição, o presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, ressaltou que as urnas eletrônicas mencionadas foram usadas no primeiro turno das eleições, e deu 24 horas para que o PL inclua também o pedido para que a anulação atinja ambos os turnos da eleição, sob pena de indeferimento da ação.
Ao fazer isso, Moraes coloca o PL em uma saia justa, pois foi o partido que elegeu neste ano a maior bancada de deputados federais da próxima legislatura da Câmara, além de oito senadores.
Segundo apuração do jornal O Globo, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, relatou ao ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, que confia nas urnas eletrônicas, mas vinha sofrendo pressão do presidente e do setor bolsonarista da sigla a encaminhar a representação ao TSE.
Texto publicado originalmente em Made for minds.
Revista online | A leniência por trás das manifestações de bolsonaristas radicais
Cleomar Almeida*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022)
Em frente ao Quartel-Geral do Exército em Brasília, as manifestações bolsonaristas mudaram de caráter. Não são mais como antes, com famílias, mulheres, crianças e idosos com a bandeira do Brasil. Em sua maior parte, são formadas por homens violentos e armados, a maioria encapuzados, instigando métodos terroristas por não aceitarem a derrota do presidente Jair Bolsonaro (PL) nas urnas. Acampamentos antidemocráticos são patrocinados por multiplicidade de agentes.
A reportagem da Política Democrática online esteve no local, sem se identificar. Por todos os lados do acampamento, os apoiadores de Bolsonaro estimulam uns aos outros a fazerem ataques, aumentando o clima de tensão. “Se Bolsonaro sair da presidência, vai ter tiros, rojões e explosão aqui em Brasília”, disse um homem, encostado em sua motocicleta de luxo. Tudo se repete sob o silêncio absoluto do presidente.
No acampamento, os bolsonaristas radicais fazem orações, repetem gestos semelhantes aos de seita, planejam arruaça e dizem que não vão embora. Mergulham em alucinação. “Estamos recebendo comunicado de Ustra dizendo que não podemos sair daqui”, afirmou outro homem em um grupo. Exaltado por Bolsonaro e seus seguidores, o coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra foi o primeiro torturador condenado, em 2008, pela Justiça brasileira.
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Na aglomeração dos bolsonaristas, eles também lembram atos antidemocráticos registrados no Brasil, compartilhados ao mesmo tempo pelas redes sociais, com apenas um clique no celular. No último dia 7 de novembro, manifestantes espalhados pelo país reagiram a ações de desbloqueio da polícia, jogaram pedras e cadeiras e lançaram rojões nas viaturas. Tiros também foram disparados.
Entre os crimes investigados, estão tentativas de homicídio contra agentes da polícia e a resistência ao cumprimento da decisão judicial que ordenava o desbloqueio da BR-163, em Novo Progresso (PA). Atentados também foram registrados à base da concessionária Rota do Oeste, perto da cidade de Lucas do Rio Verde (MT). “A polícia está atacando os patriotas”, disse um simpatizante.
Em Brasília, tudo é lembrado com exaltação em frente ao QG do Exército. E não somente isso. Com cartazes pedindo intervenção militar, que é inconstitucional, os bolsonaristas ameaçam “acabar com tudo, a qualquer custo”, alegando que houve fraude nas eleições. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), porém, já provou que as eleições foram realizadas sem qualquer irregularidade, e o resultado das urnas foi reconhecido por líderes internacionais.
“Temos algo mais importante que a própria vida, que é a nossa liberdade”, afirmou outro apoiador de Bolsonaro, repetindo uma frase frequentemente dita pelo líder da extrema direita. “Fomos roubados, não vamos aceitar isso jamais. É lutar ou morrer, não há outra saída”, gritou um homem, no meio do grupo bolsonarista.
A iminência de explosão de ataques ganha força diante do silêncio do presidente. Ele ainda não agiu para pacificar os ânimos e ir para uma transição democrática de poder. Por isso, juristas dizem que a escalada da delinquência bolsonarista aumenta o desafio de se enquadrar a violência da extrema direita, que atenta contra a democracia e representa risco para a institucionalidade brasileira, em caso de impunidade.
Doutor em Direito e Ciência Política e professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Conrado Hübner Mendes, disse que os acampamentos são financiados. “Há militares, policiais, o próprio presidente da República e seu entorno e grupos que se mobilizam. [Os acampamentos] são financiados. Portanto, há também empresários”, disse.
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou ao Banco Central o bloqueio das contas bancárias de 43 empresários e empresas suspeitos de financiarem atos antidemocráticos realizados na última semana. A decisão foi proferida no último dia 12.
O ministro chamou de inautêntico e coordenado o deslocamento de mais de 100 caminhões para Brasília, em frente ao QG do Exército. A Polícia Rodoviária Federal (PRF) informou que empresários oferecem refeições, banheiros e barracas aos manifestantes. Além disso, segundo a PRF, o potencial danoso das manifestações ilícitas aumenta, considerando o financiamento que o bolsonarismo recebe por parte de empresários investigados.
De acordo com Mendes, há total leniência do governo e do Exército em relação aos acampados em frente aos quartéis. “O Estado de Direito está diante de um desafio histórico de dar algumas respostas, ainda que não perfeitas e completas, a um programa político e governamental estruturado em torno da violação à lei. Violação como método de governo. Apostaram que um volume imenso de ilegalidades não seria possível controlar”, afirmou.
Para a responsabilização dos culpados, as investigações devem separar quem tem prerrogativa de foro, que é o direito de determinados ocupantes de cargos e funções públicas de serem julgados por juízos ou tribunais específicos por causa do que exercem.
Bolsonaro, por exemplo, poderá ser investigado por associação criminosa, incitação ao crime e crime de favorecimento pessoal, que é o ato de ocultar pessoas para não serem processadas. Isto porque a pessoa que favorece outra para impedir que seja investigada é partícipe também. Diversos manifestantes foram recebidos no Palácio da Alvorada para não serem vistos pela polícia.
Veja, a seguir, galeria:
Com as manifestações espalhadas pelo país, o presidente e outras autoridades aliadas tentam equilibrar dois pratos, segundo o professor da USP. “De um lado, precisam alimentar uma turma ensandecida a praticar crimes efetivamente, a violar a lei. De outro, precisam se proteger individualmente porque sabem que podem se dar mal e sofrer um conjunto de investigações. De um lado, dizem falas apaziguadoras, acenam para pacificação, pedem para liberar estradas. De outro, apelam para palavras abstratas e distorcidas”, acentua.
De acordo com o jornalista Bernardo Mello Franco, colunista do Globo e da CBN, “o golpismo que hoje está em porta de quartel, defendendo golpe militar, intervenção, não vai desaparecer da noite para o dia”. “Vai continuar presente na sociedade. Esse cenário é completamente diferente de 20 anos atrás. Lula não deve enfrentar apenas adversários, vai passar a enfrentar inimigos. E esses inimigos já mostraram que sabem jogar inclusive fora das regras do jogo para tentar atrapalhar a vida de quem está do outro lado”, disse em podcast.
A leniência com atos antidemocráticos aprofunda o risco de essas práticas serem normalizadas no Brasil. Nos Estados Unidos, o ex-presidente Donald Trump ainda não pagou qualquer preço pela invasão do Capitólio, em janeiro de 2021, mas o departamento de Justiça americano prendeu cerca de 900 pessoas em quase todos os estados. Mais de 300 pessoas foram julgadas, e quase 200 pessoas, condenadas à prisão. Alguma coisa já está acontecendo por lá.
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Oito meses de guerra: Rússia faz alerta de "bomba suja" em uma estratégia sem horizonte
Serguei Monin*, Brasil de Fato
A recente investida russa é marcada por uma mobilização, anexação de novos territórios e fortes bombardeios por toda a Ucrânia. Kiev, por outro lado, mantém a sua contraofensiva e coloca em xeque o controle de Moscou sobre Kherson, umas das regiões anexadas pela Rússia. Enquanto isso, tímidos acenos para a possibilidade de negociações de paz mantêm o impasse na crise entre Rússia e Ucrânia.
Esta semana começou com graves acusações por parte da Rússia de que a Ucrânia estaria concluindo a produção de uma arma radiológica chamada de "bomba suja", que combina material radioativo com explosivos convencionais. Na segunda-feira (24), o Ministério da Defesa russo acusou Kiev de planejar usar o armamento no intuito de organizar uma provocação para acusar a Rússia de usar armas de destruição em massa e lançar uma campanha antirussa no mundo.
No mesmo dia, o ministro da Defesa russo, Serguei Shoigu, realizou conversações com altos oficiais militares da Grã -Bretanha e dos EUA para alertar a comunidade internacional sobre a suposta ameaça ucraniana.
“Como resultado da provocação de ‘bomba suja’, a Ucrânia espera intimidar a população local, aumentar o fluxo de refugiados pela Europa e expor a Federação Russa como terrorista nuclear”, afirmou o chefe das tropas de proteção radiológica, química e biológica das Forças Armadas Russas, tenente-general Igor Kirillov.
Em resposta, os EUA, a Grã-Bretanha e a França emitiram uma declaração conjunta, classificando a declaração do Ministério da Defesa russo como uma "insinuação". A Ucrânia negou a produção de uma "bomba suja" e convocou inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica ao país para realizar monitoramento.
A narrativa russa sobre a suposta ameaça radioativa da Ucrânia é o mais recente desdobramento da atual fase da operação militar da Rússia no país vizinho, que completou oito meses na última segunda-feira (24). As movimentações de Moscou e a reação da comunidade internacional refletem o cenário de impasse que a guerra chegou atualmente.
Em uma primeira etapa da anunciada “operação especial militar” na Ucrânia, em 24 de fevereiro, a Rússia realizou uma tentativa de blietzkrieg, realizando massivos bombardeios no território ucraniano, inclusive nos arredores da capital Kiev. Com amplo apoio internacional e manutenção da resistência mobilizada das forças ucranianas, não foi alcançada a capitulação do governo ucraniano e o Kremlin modulou os seus objetivos, anunciando um recuo das tropas e concentrando as ações militares em Donbass, a região das repúblicas separatistas pró-Rússia.
Nos primeiros meses da guerra, o analista-sênior do International Crisis Group para a Rússia, Oleg Ignatov, em entrevista ao Brasil de Fato, defendeu a tese de que o Kremlin não estava se preparando para uma guerra total, considerando que as tropas executariam uma operação militar rápida. De acordo com ele, o objetivo inicial era realizar uma “operação de intimidação" para forçar uma mudança de regime na Ucrânia.
Assim, entre março e agosto, a ofensiva das tropas russas no sul e sudeste da Ucrânia foi relativamente bem-sucedida com o foco na tomada de controle de regiões como Donetsk, Lugansk, Kherson, Zaporozhye e Kharkov.
Uma terceira etapa que altera a dinâmica do conflito se inicia no fim de agosto e início de setembro com o anúncio da contraofensiva ucraniana. Em outubro, as forças de Kiev realizaram importantes retomadas de territórios ocupados pela Rússia, principalmente na região de Kharkov.
O contraataque ucraniano levou a uma nova inflexão russa em setembro, marcada pelo anúncio da mobilização de 300 mil novos reservistas para a guerra, a anexação de territórios ocupados na Ucrânia, novos bombardeios massivos em todo o território ucraniano, além das ameaças de uso de armas nucleares. Além disso, o presidente russo, Vladimir Putin, anunciou uma lei marcial nos territórios anexados das autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, e nas regiões ocupadas de Kherson e Zaporozhye, na última quarta-feira (19)
Em entrevista ao Brasil de Fato, a cientista política e do Centro de Estudos Russos e do Leste Europeu da Universidade de Helsinque, Margarita Zavadskaya, observa que toda a trajetória da estratégia russa na Ucrânia até aqui aconteceu sem um planejamento adequado.
“Pressupunha-se uma guerra rápida em 24 de fevereiro, e rapidamente ficou claro, nada ia acontecer de acordo com o plano inicial. Então agora, não é uma opinião somente minha, mas também a de muitos colegas que acompanham a situação, a impressão é de que não existe um plano. Não existe uma estratégia, e existem muitas decisões inconsistentes, como declarar um estado de guerra, mas não anunciar que existe uma guerra”, argumenta.
De acordo com a analista, “todas as decisões são tomadas de acordo com a circunstância e isso é uma notícia bem ruim”, porque “é difícil compreender o que quer o lado russo”. “E se nós não entendemos o que a Rússia quer, então é muito difícil realizar com ela quaisquer negociações”, acrescentou.
Enquanto isso, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, declarou nesta terça-feira (25) que a Rússia está pronta para o diálogo com todos os países, incluindo os EUA e o Papa Francisco, a fim de chegar a um acordo na Ucrânia.
“Estamos prontos para discutir tudo isso com os americanos, com os franceses e com o pontífice. Repito mais uma vez: a Rússia está aberta a todos os contatos. Mas devemos partir do fato de que a Ucrânia codificou [por lei] a não continuação das negociações”, disse Dmitry Peskov.
Em 30 de setembro, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky assinou um decreto declarando "a impossibilidade de negociações com o presidente russo Vladimir Putin".
Para a cientista política Margarita Zavadskaya, a possibilidade de haver negociações ou não será determinada pelos desdobramentos no campo de batalha.
Segundo a pesquisadora, entre muitos analistas há uma espécie de "wishful thinking", no qual todos querem que isso tudo termine o mais rápido possível, mas infelizmente a situação atual nos mostra que “pode ser um conflito desagradavelmente prolongado que não se resolverá no decorrer de um mês".
“Como a Ucrânia não pretende iniciar negociações […] e nós não entendemos exatamente o que quer a Rússia, então, no mau sentido, nós temos essa situação de impasse”, completa a cientista política.
Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.
Gianluca Fiocco: Uma virada na Itália? O Governo Draghi e o que pode seguir
A Itália tem um novo governo, presidido por Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu, uma figura de indiscutível prestígio internacional. Seu nome começou a circular enquanto se consumava a crise do segundo governo Conte, aberta pela decisão de Matteo Renzi de retirar seu movimento (Italia Viva) do Executivo por conta de desentendimentos surgidos em diversos assuntos. Em geral, Renzi lamentou a falta de uma estratégia forte e clara para superar a crise sanitária, social e econômica.
Giuseppe Conte compareceu ao Parlamento para defender o governo e manteve o voto de confiança, mas nos dias seguintes não conseguiu criar uma nova maioria estável. Nesse momento, o chefe de Estado jogou um papel decisivo e após verificar que as forças políticas no Parlamento não conseguiam dar vida a um novo acordo de governo, deu a tarefa a Draghi. Esta solução foi favorecida pelo facto de que quase ninguém queria eleições antecipadas em razão da difícil situação provocada pela Covid19. Percebia-se também a crescente demanda por unidade nacional e colaboração entre os vários partidos.
Draghi deu vida a um governo que é “técnico” e, ao mesmo tempo, “político”. Técnico porque ministérios importantes foram atribuídos a pessoas escolhidas por sua experiência no setor e se reportam diretamente ao Primeiro-Ministro; político porque alguns ministérios foram distribuídos entre diversas forças políticas, de direita e de esquerda, chamadas não só para apoiar o trabalho dos técnicos, mas também para dar uma contribuição direta à ação governamental, a partilhar escolhas e programas com forte peso e responsabilidade.
Draghi conseguiu o apoio de uma grande maioria no Parlamento. Apenas o partido de direita liderado por Giorgia Meloni (Fratelli d’Italia) permaneceu na oposição, mas garantiu que terá uma postura construtiva e, de vez em quando, estará disposto a examinar sem preconceitos as medidas enviadas à Câmara. Algumas pesquisas recentes indicam que esse posicionamento talvez possa recompensar o partido nas próximas eleições.
Com a chegada de Draghi ao Palazzo Chigi, a atual legislatura conhece o terceiro tipo de acordo político: depois de um governo Lega-5Estrelas e um governo de Partido Democrático-5Estrelas, agora os três partidos estão juntos no poder (também acompanhados por Forza Italia, partido de Silvio Berlusconi que mantém uma relação de amizade com Draghi). Todas as três forças estão pagando o preço de terem feito a opção de apoiar o novo governo e enfrentam tensões internas expressivas.
Para o PD foi uma decisão obrigatória dado o caráter pró-europeu do partido e sua luta para fazer da Itália uma protagonista da recuperação concebida em chave europeia. Deste ponto de vista, a figura de Draghi oferece a melhor garantia possível. O PD sofre uma certa perda de viço: no último ano e meio tentou com seus dirigentes realçar a imagem partidária de competência, boa governança e coesão social, obtendo alguns feedbacks positivos. O ministro da Economia, Roberto Gualtieri, cujas ideias influenciaram a ação governamental em pontos cruciais, assumiu um protagonismo particular.
A crise, no entanto, foi caracterizada por um deslocamento do eixo político para a direita e o PD não é mais o centro de equilíbrio como antes. Não conseguiu nem mesmo dar uma marca particular ao novo programa de governo: a proposta mais original e progressista, a de introduzir um Ministério para a transição ecológica (aceita por Draghi) foi apresentada pelo Movimento 5 Estrelas. Entretanto, este último também conheceu uma disputa interna muito forte da sua ala mais radical e “antissistema”. A essa altura, duas almas dificilmente compatíveis parecem se confrontar: uma “governista”, que se atribui um papel de controle e defesa de conquistas como a “renda cidadã”; e outra, ao contrário, que reivindica a plataforma original do movimento, em forte polêmica com as instituições europeias e marcada por uma condenação generalizada das demais forças políticas. A transformação do 5 Estrelas é indiscutível: nascidos como uma força que não queria se contaminar com as outras e pedia a refundação de todo o sistema, mas no caminho fez acordos primeiro com a direita, depois com a esquerda, e agora com ambos ao mesmo tempo. Muitos se perguntam o que será do movimento em sua capacidade de encarnar e representar uma Itália dividida entre a nostalgia do passado e perspectivas de renovação.
Quanto à Liga, sua adesão foi apresentada como um ponto de inflexão pró-europeista, mas na realidade já estava claro há algum tempo que o “soberanismo” de Matteo Salvini era diferente e muito mais moderado do que o dos “falcões” que se impuseram na Europa Oriental. Em todo o caso, existe efetivamente um certo dualismo entre a componente salviniana e a chamada “Liga dos administradores” (prefeitos, governadores, dirigentes municipais e regionais), esta última ávida por fazer o melhor uso dos recursos europeus do “Fundo de Recuperação” (Recovery Fund) e ter um papel nas decisões de como usá-los.
Esta é precisamente a questão crucial que enfrenta o novo governo: a Itália é um dos principais beneficiários desta extraordinária iniciativa europeia, criada para combater a crise gerada pela pandemia. O governo anterior tinha elaborado um plano nacional de utilização dos fundos europeus (também com projetos importantes), mas não lhe deu “alma”, uma caracterização em torno de objetivos-chave capazes de suscitar apoios e mobilização ativa.
Trata-se agora de saber se esses recursos irão servir somente para mitigar emergências ou também para dar a Itália um novo rumo de longo prazo, reformando seu modelo econômico e social para torná-lo mais adequado ao mundo globalizado em que vivemos. O país necessita de uma filosofia unificadora que oriente as ações governamentais, apoiada em ideias precisas sobre o futuro. Se o governo Draghi, como parece estar determinado a fazer, se mover nessa direção, poderá deixar uma marca que ficará além desta legislatura. Em outros momentos difíceis de sua jornada, o povo italiano mostrou uma capacidade de superação e uma vitalidade surpreendente. Esperemos que tais qualidades se confirmem uma vez mais.
Gianluca Fiocco é professor e pesquisador da Universidade Roma2, “Tor Vergata” (tradução Alberto Aggio).
Vera Magalhães: Depois de amanhã
Daqui a dois dias, Brasil inicia um novo ciclo político em sua História
Não será apenas uma troca de presidentes o que ocorrerá em Brasília depois de amanhã. Daqui a dois dias, o Brasil iniciará um novo ciclo em sua História. Se encerra período iniciado na eleição de 1994, em que partidos de centro-esquerda e com uma pauta social-democrata se alternaram no poder. PT e PSDB, com o MDB (ex-PMDB) atuando como o pêndulo a oscilar entre os dois polos, descem a rampa com Michel Temer.
Quem sobe é um presidente eleito por ser antissistema, antipolítica, antipartidos, mas que, a partir de depois de amanhã, terá de encontrar uma forma de governar de acordo com as regras do sistema, segundo as balizas da política e em alguma concertação com os partidos.
A forma como se dará a transmutação do Jair Bolsonaro convertido em mito num presidente mais ou menos disposto à composição e à conciliação para governar será uma das chaves para se entender o período que se inicia depois de amanhã.
Os desafios que se apresentam para esse novo ciclo histórico são gigantescos. O Brasil de 2019 tem uma economia que se recupera lenta e debilmente há dois anos do desastre de Dilma Rousseff, instituições que foram testadas ao limite e estão, por isso, bastante fatigadas, e uma política que virou um balaio de gatos em razão da reação indignada do eleitorado à corrupção revelada pela Lava Jato.
Bolsonaro é o produto dessa reação, o que faz com que a fé que desperta seja do mesmo tamanho da descrença no chamado establishment – aí incluída a imprensa – e dela se alimente, instigando-a.
A tentação de governar esticando essa corda da indignação existe no entorno do futuro presidente, e pode ser justamente sua perdição. Parece haver no coração do bolsonarismo, essa força heterogênea e ainda em formação, a crença na ideia pueril de que o esquema de comunicação direta, ancorado nas redes sociais, será suficiente para prolongar a expectativa positiva dessa população cética indefinidamente. Não será.
Desde sempre, e também nesse 2019 de ruptura, é a economia a chave do sucesso ou do fracasso de qualquer governante num País com tantas desigualdades e tantas urgências quanto o Brasil.
Ou Bolsonaro entende que terá de usar a largada de seu governo para ministrar os remédios amargos e aprovar, de uma vez por todas, a tão falada reforma da Previdência, ou não terá tanque de roupa suja que chegue para manter sua aura mítica.
Isso porque, sem esse sinal, a economia seguirá travada, os investimentos permanecerão tímidos, as contas públicas continuarão desandando, Estados e municípios viverão em romaria a Brasília com o pires na mão e o voto de confiança à sua promessa liberal se esgarçará rápido.
O alcance de uma política calcada só na demonização do PT e na contraposição pobre e falsa entre esquerda e direita pode ter apelo para uma massa de fanatizados do Twitter, que repetem termos como marxismo cultural ou globalismo sem nunca terem lido uma obra marxista ou estudado globalização realmente, mas não para o eleitor médio, o brasileiro real, que é diverso, complexo e não convertido a seitas como o petismo e o bolsonarismo.
Se enganarão Bolsonaro e seus exércitos se imaginarem que a massa de quem o elegeu bebe dessa água. Há ali muita gente que apenas tapou o nariz e votou em quem lhe parecia menos pior diante do risco de volta do PT. Esse público, bem como a grande massa que não votou em Bolsonaro, quer emprego, não vai aceitar direitos a menos, não comprará fácil alinhamentos meramente ideológicos que contrariem os interesses do País e não apoiará nenhuma aventura antidemocrática.
Sergio Fausto: Que caminho tomará o próximo governo?
Se no ajuste fiscal o risco é o gradualismo, na segurança pública a ameaça é o açodamento
Se o Brasil quiser ter chance de um lugar ao sol para si e sua gente num ambiente nacional e internacional de desafios cada vez mais complexos e governança cada vez mais difícil, terá de avançar nos próximos quatro anos no enfrentamento de três questões cruciais.
Primeira, um conjunto de reformas que ajuste não apenas as contas públicas, mas também o modo de atuação e organização do Estado, para que o setor público seja financeiramente sustentável e capaz de oferecer serviços de melhor qualidade com maior eficiência. Segunda, a redução dos níveis alarmantes de violência vividos pelo País (mais de 500 mil mortos entre 2006 e 2016, segundo o Atlas da Violência, edição 2018), período em que o número de homicídios se elevou em quase 15%, na esteira do controle crescente do crime organizado sobre territórios, atividades econômicas e populações. Terceira, o restabelecimento de um mínimo de confiança nas instituições da democracia representativa, em particular os partidos e o Legislativo. A propósito, o protagonismo político assumido pelas Forças Armadas pode ser positivo nas circunstâncias atuais, mas não o é no médio e longo prazos, nem para o País nem para elas próprias.
As questões acima estão interligadas. Se a União e os governos estaduais, estes em situação ainda mais dramática, naufragarem sob o peso de despesas com pessoal ativo e inativo e dívidas impagáveis, a batalha contra a violência e o crime organizado estará perdida e a presença do narcotráfico se alastrará, contaminando de modo fatal as próprias instituições do Estado. Nesse ambiente, é difícil imaginar qualquer recuperação da credibilidade das instituições da democracia representativa, pois será crescente o risco à integridade física de quem se dispuser a participar de peito aberto e mãos limpas da vida política. A saudável renovação dos quadros políticos do País depende, entre outros fatores, de que o poder de intimidação e corrupção do crime organizado se reduza ao longo dos próximos anos. Não podemos trocar a “velha política” por coisa pior ainda.
Se não enveredar pela guerra ideológica e pela desconstrução dos muitos avanços que fizemos nos últimos 30 anos em matéria de direitos civis, políticos e sociais, será possível ao Brasil progredir no enfrentamento dessas três questões cruciais no próximo período de quatro anos.
Isso depende do predomínio de uma direita racional no governo e de uma oposição que seja firme na defesa dos avanços dos últimos 30 anos, ao mesmo tempo que comprometida com a correção de problemas acumulados ou não resolvidos ao longo desse período. A sobreposição de baixo crescimento, crise fiscal e deterioração das condições de segurança representa uma ameaça existencial ao Estado, à sociabilidade civilizada e à democracia.
A reforma da Previdência é dramaticamente urgente. Não sabemos se será aprovada uma reforma que mude a perspectiva de evolução das contas públicas, torne crível a manutenção do teto de despesas e, assim, dê sustentação ao ajuste fiscal estrutural, que depende ainda de medidas complementares. Sabemos, porém, que os benefícios de aprovar uma boa reforma da Previdência são enormes.
Se tomar o rumo certo na bifurcação em que se encontra, o País estará em via de completar a normalização macroeconômica iniciada há mais de 20 anos com o Plano Real, da qual nos desviamos a partir de meados da década passada e que hoje temos condições de retomar graças ao esforço da equipe econômica do governo Temer. Com a inflação e o juro básico nos seus níveis mais baixos em muitas décadas, o regime de metas de inflação e câmbio flutuante plenamente recuperado, uma boa reforma da Previdência é passo decisivo para consolidar condições macroeconômicas (no âmbito doméstico, o único que está ao nosso alcance) em favor do crescimento sustentável.
Dado esse passo, maiores avanços também poderão ocorrer na agenda microeconômica. As privatizações e concessões se veriam livres das pressões para cobrir necessidades de financiamento corrente e poderiam voltar-se para os objetivos de longo prazo de aumentar a eficiência e a produtividade da economia. Além disso, reduzida a incerteza sobre a evolução da despesa pública, o caminho estaria pavimentado para a(s) reforma(s) mais ambiciosa(s) do sistema tributário.
Se no ajuste fiscal o risco é o gradualismo, na segurança pública a ameaça é o açodamento. Debelar a ameaça existencial que o crime organizado hoje coloca ao Estado Democrático tomará anos, exigirá coordenação entre Forças Armadas, Polícia Federal e polícias estaduais, entre os três Poderes, entre o Estado e a sociedade civil, entre o Brasil e outros países. Países que articularam uma estratégia de longo prazo, sem confundir combate ao crime organizado com repressão indiscriminada ao consumo de drogas, como a Colômbia, colheram resultados depois de vários anos. Países que partiram para a militarização impensada da segurança pública, como o México, produziram um banho de sangue sem recuo do crime organizado.
Avanços significativos na reforma fiscal e no combate ao crime organizado exigirão do novo governo superar dois déficits iniciais importantes: capacidade de articulação política e interlocução com a sociedade. Em ambos os casos, os métodos empregados com sucesso na campanha eleitoral de Bolsonaro não são os melhores para que seu governo obtenha êxito. Estigmatizar os partidos e os políticos, por mais enfraquecidos que estejam, não levará a bons resultados no Congresso. Persistir na guerra ideológica contra os “vermelhos” e a imprensa tornará inviável o mínimo consenso necessário para o combate eficaz ao crime organizado e à redução da violência na sociedade brasileira. Ameaçar com “facadas” sistemas há muito consolidados não contribuirá para aprimorá-los
A poucos dias de sua posse, ainda não é claro o caminho que seguirá o novo governo.
*Sérgio Fausto é superintendente executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, Sergio Fausto é membro do Gacint-USP
Ricardo Noblat: Bolsonaro em dívida com Temer
Para não começar do zero
Por tê-la usado como principal bandeira de sua campanha à presidência da República, seria de imaginar que o presidente eleito Jair Bolsonaro dispusesse de ideias bem concebidas para enfrentar a violência que matou quase 63 mil brasileiros em 2016, quando o país pela primeira vez na história superou o patamar de 30 homicídios por cada 100 mil habitantes. Ou Bolsonaro ou pelo menos quem ele escalasse para cuidar da segurança pública no seu governo.
Não parece ter sido o caso. Não foi o caso. A princípio, Bolsonaro e o ex-juiz Sérgio Moro, futuro ministro da Justiça e da Segurança Pública, se limitarão a adotar o pacote de segurança pública lançado, ontem, pelo presidente Michel Temer. Foi o que admitiu o general Guilherme Teóphilo de Oliveira, braço direito de Moro: “É. Não podemos pegar agora e querer começar tudo do zero, não. A gente tem que aproveitar isso aí”. Do zero? E nada havia sido pensado?
“Agora é tentar dar continuidade e fazer os aperfeiçoamentos que nós achemos necessários”, explicou o general. O “Plano Nacional de Segurança Pública”, legado por Temer a Bolsonaro e Moro, é o quinto a ser lançado desde 2000 quando Fernando Henrique Cardoso ainda presidia o país. O desafio de Bolsonaro é tirar do papel mais do que o pouco que dele saiu até aqui. O combate à violência e a retomada do crescimento econômico definirão a sorte do próximo governo.
Lição a pais de garotos
Sem privilégios
A caminho do Brasil para assistir à posse do presidente eleito Jair Bolsonaro, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, traz com ele a mulher, Sara, e também Yair, seu filho de 23 anos, estudante da Universidade Habraica de Jerusalém.
Antes de embarcar, Benjamin divulgou uma nota onde afirma que todas as despesas do filho durante a viagem, inclusive a passagem, serão pagas pela família. As despesas de Sara correrão por conta do tesouro de Israel como manda a lei.
Filho de chefe de Estado, por lá, mas não só em Israel, não pode dar-se ao luxo de viajar a custa do contribuinte. De resto, o clã Netanyahu já enfrenta uma série de problemas para ter que arranjar mais um.
Sara responde a processo por uso indevido de fundos do Estado para pagar por refeições. Benjamim, por ter embolsado cerca de 1,018 milhão de reais em presentes de luxo que recebeu, mas não declarou.
Cristovam Buarque: Impeachment incompleto
O impeachment demonstra fracasso das forças de esquerda, que ficaram ultrapassadas nas ideias e propostas, perderam vigor transformador para reformar as estruturas sociais e se contaminaram com a corrupção na política; mas ficará incompleto, se limitado à substituição da presidente por seu vice-presidente. Precisamos fazer o impeachment do modelo que ficou arcaico: não percebeu as mudanças que ocorrem no mundo.
O impeachment só se justificará plenamente se servir para levar as forças progressistas na direção de sua atualização em relação às novas realidades e aos novos sonhos no mundo. A nova esquerda deve partir do reconhecimento de que o impeachment decorre do fracasso da esquerda velha, que deveria ter feito uma autocrítica, o que a arrogância e o acomodamento no poder não permitiram.
Deve perceber que a sociedade justa depende de uma economia eficiente; isto exige respeitar os limites fiscais e entender que a propriedade privada dos meios de produção e o mercado dinamizam a economia, criando os recursos a serem aplicados na sociedade. Entender que não há muita margem para influir no funcionamento da economia com base em vontade ideológica; que o espaço da esquerda está na definição do uso de recursos da economia eficiente para servir ao social; também que o populismo leva a desastres sociais.
Deve assumir e explicitar seu compromisso com a democracia, as liberdades individuais e de imprensa; deve entender que o capital está no domínio do conhecimento; substituir a proposta de estatizar os meios de produção pelo compromisso de universalizar o capital conhecimento, colocando os filhos dos trabalhadores em escola com a mesma qualidade dos filhos dos patrões; entender que não é mais o crescimento econômico e a distribuição de seu produto e renda que fazem o mundo melhor, mas a elevação do bem-estar social, em equilíbrio ecológico.
Para isto, a esquerda deve olhar para o futuro, e não para o passado; pelo para-brisa, não pelo retrovisor da história; assumindo a liderança das reformas necessárias: previdência, para garantir a futura aposentadoria dos jovens de hoje; trabalhista, considerando também os direitos dos desempregados; tributária, taxando os ricos e colocando os recursos a serviço dos interesses públicos; do Estado, para servir com eficiência ao público, e não ao próprio Estado ou aos grupos corporativos que se apropriam da máquina estatal; a reforma política, para fazer a sociedade participativa, as funções políticas regidas pela ética, tanto no comportamento dos políticos, como nas prioridades da política.
O governo substituto pode não fazer as reformas que os 13 anos de governo de esquerda não fizeram, mas poderá permitir a estabilidade e o diálogo necessários para a travessia em que uma nova esquerda vá se formando; o que seria difícil com o mesmo modelo arcaico no poder, impedindo o avanço conceitual e contaminando a moral das esquerdas e comprometendo ainda mais o funcionamento de uma economia eficiente. (Blog do Noblat – O Globo – 03/09/2016)
Fonte: pps.org.br