nicaragua
Cristovam Buarque: A lição de Ortega, Lula e os erros do passado
Uma jornalista espanhola deu a Lula a chance de perceber o risco de certas posições que ele e o PT assumem, refletindo visão de esquerda do passado, alguns chamam de “exquerda”; e do risco de estas posições atrasadas servirem para eleger Bolsonaro, por rejeição ao PT. Historicamente, seria melhor se o Brasil contasse com posições e nomes progressistas sintonizados com a marcha do século XXI, mas, eleitoralmente, ainda bem que o Brasil tem o PT e Lula para ajudar a barrar a reeleição de Bolsonaro. Por isto, Lula tem a obrigação de perceber que ainda carrega ideias e erros do passado, e deve supera-las para cuidarmos do futuro. Depois do Bolsonaro, não vamos voltar a 2003, mas avançarmos para 2023.
Deve superar qualquer rancor pelo que sofreu no passado recente, da mesma forma que também devem abandonar rancor aqueles que sofreram e foram agredidos pelos gabinetes de ódio do PT.
O Lula precisa reconhecer que autoritarismo não deve ser apoiado, qualquer que seja o partido e o dirigente que o pratica. E que a autodeterminação dos povos só tem sentido quando os povos demonstram livremente suas determinações aos governos. Reconhecer que errou ao comparar as sucessivas reeleições de Merkel com as eleições de Ortega. Uma coisa é a continuidade de um partido no parlamentarismo, mantendo o primeiro-ministro no cargo, sem mandato, sujeito a “impeachment” a qualquer momento. Diferente do presidente que, já no poder, muda a Constituição que o elegeu para um mandato e consegue ampliar para mais um, como fez Fernando Henrique Cardoso. Muito mais grave quando manipula a Constituição para permitir diversas reeleições com fez Chavez, Evo, Maduro, Ortega. Ainda pior, quando prende opositores, mesmo usando a justiça como aconteceu com o próprio Lula.
Se quiser aproveitar a lição provocada pela entrevista sobre Ortega, precisa reconhecer erros do passado. Acerta quando deixa aberta a possibilidade de uma aliança com Alckmin, demonstrando querer superar o erro de tratar como inimigos a politicos social-democratas sérios, preferindo alianças com corruptos por meio da prática do orçamento secreto chamado mensalão. Precisa reconhecer que em função destas alianças, os governos do PT cometeram, permitiram e foram coniventes com corrupção no mais alto grau. Não pode continuar dando a entender que as malas de dinheiro, as devoluções de milhões de dólares e o reconhecimento de propinas são notícias e imagens manipuladas por uma “imprensa golpista”. Pode dizer que o juiz que o condenou foi declarado suspeito e que não há prova incriminando-o pessoalmente, mas abusa da inteligência do povo ao cair no negacionismo de escamotear as evidências de corrupção ao longo de governos do PT.
O Lula tem razão de imaginar que hoje é o único que de fato pode derrotar Bolsonaro, por isto tem a obrigação de “não queimar seu filme”, por equívocos atuais e por não reconhecer erros conhecidos de todos; e deve mostrar com clareza como vai evitar para que eles não se repitam, inclusive impedindo o aparelhamento da máquina do Estado por seu partido e aliados.
Deve assumir o erro da irresponsabilidade fiscal que, depois de cinco anos de rigor exemplar em seu governo, começou quando ele disse que a crise de 2008 nos EUA seria uma “marolinha”. Agravada no momento em que a Presidente Dilma fez as pedaladas, quebrando a confiança na economia, levando à recessão, inflação, desemprego. Lula e o PT precisam abandonar o negacionismo da “exquerda” que considera a irresponsabilidade fiscal como uma prática legítima e eficiente de política econômica para financiar privilégios e ineficiências por meio de inflação, sabendo o sofrimento que isto provoca pela desapropriação do salário dos empregados e a penúria entre os desempregados.
Lula precisa sair da “exquerda” para formar a aliança necessária a nos livrar de Bolsonaro em 2022, e a coalizão necessária para governar até 2026, vencendo a inflação, a fome, o desemprego, a pobreza, as sequelas do Covid, a desconfiança no Exterior em relação ao Brasil, e a falta de esperança dentro do país. Sem querer, Ortega e uma jornalista espanhola deram-lhe uma lição que ele precisa aproveitar.
*Cristovam Buarque foi ministro, governador e senador
Reinaldo Azevedo: Hipocrisia se exalta com fala de Lula sobre Ortega
Talleyrand e La Rochefoucauld refletem, respectivamente, sobre declaração de petista
Reinaldo Azevedo / Folha de S. Paulo
Convido Lula e o PT a uma reflexão com uma frase que já virou um clichê: "Não aprenderam nada nem esqueceram nada". É atribuída ao diplomata francês Talleyrand ao se referir à volta dos Bourbons e sua turma ao poder na França, no período da Restauração.
E um bom debate se faria se os petistas respondessem com outra frase, igualmente espirituosa e verdadeira, na trilha de La Rochefoucauld: "A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude".
Vamos sair do mundo das frases para o dos fatos, que lhes conferem valor universal.
Junto-me àqueles que criticam duramente as afirmações feitas por Lula ao jornal El País sobre o nicaraguense Daniel Ortega. Ainda que repise argumentos, vá lá: Angela Merkel e Felipe González disputaram eleições limpas, seus adversários não estavam na cadeia, e o Poder Judiciário de seus respectivos países não eram formados por bonecos de mamulengo de um ditador.
Assim, não faz sentido associar os seguidos mandatos de Ortega —que fraudou a Constituição em conluio com juízes escolhidos a dedo— à longa permanência no poder daqueles dirigentes.
Ademais, como já se verifica, trata-se de um erro de operação política que nem mesmo faz justiça à atuação de Lula como presidente.
Se quisesse, teria mudado a tempo a Constituição para disputar um terceiro mandato, para o qual teria sido reeleito no primeiro turno. Escolheu outro caminho. Dilma sofreu um processo de impeachment, e o PT deixou o poder pacificamente. Foi fazer a luta política.
Os governos petistas mantiveram relações amistosas com ditaduras, a exemplo dos que os antecederam. Não é assim mundo afora? Como é mesmo, Deng Xiaoping? "Não importa se o gato é preto ou branco, contanto que cace ratos".
O Brasil não tem de escolher o regime dos países com os quais se relaciona, embora, entendo, deva se alinhar, nos fóruns multilaterais, com a defesa da democracia e dos direitos humanos.
Ou venderemos soja, carne e ferro apenas a regimes democráticos, condição para que importemos sua tecnologia? A pergunta é meramente retórica. A que vem a condescendência de Lula com o governo da Nicarágua?
Ecos, entendo, de um mundo que nem existe mais, como já não existia aquele da Restauração: seu modo de ser era a evidência de sua inviabilidade. Agora vamos a La Rochefoucauld.
Eu me indignei, sim, quando Lula afirmou não saber por que os adversários de Ortega estão presos. Quando menos, esperava dele empatia e solidariedade com aqueles que são encarcerados por motivos políticos.
Afinal, no Brasil democrático, ele próprio foi condenado por um juiz parcial e incompetente, por intermédio de uma sentença sem provas. O então magistrado fez questão de deixar claro, em embargos de declaração, que não as tinha.
Reportagens da Vaza Jato e dados da Operação Spoofing apontaram o conluio entre juiz e MPF, numa violação inquestionável do sistema acusatório. Que coisa! As personagens centrais da Lava Jato disputarão o poder em 2022.
Sete meses depois de mandar Lula para a cadeia, Sergio Moro aceitou ser ministro da Justiça de Jair Bolsonaro. Seis dias antes do primeiro turno de 2018, divulgou trechos selecionados da delação picareta —data venia!— de Antonio Palocci. Ao postular a sua candidatura à Presidência, o agora ex-juiz propõe um certo Tribunal Superior Anticorrupção e oferece a Ucrânia como exemplo.
Engana-se quem acha que estou justificando ou minimizando as declarações do líder petista. Para citar Ulysses Guimarães na promulgação da Constituição de 1988 —frase vivificada no excelente documentário "8 Presidentes, 1 Juramento", de Carla Camurati—, tenho "ódio à ditadura; ódio e nojo". A qualquer uma.
Mas lastimo o rigor salta-pocinhas de supostos liberais, que se escandalizam com uma declaração inaceitável sobre o governo da Nicarágua, mas confundem, no Brasil, o devido processo legal com impunidade, condescendendo com um justiceiro que colaborou para a corrosão do processo democrático e que agora se lança como o restaurador da ordem, cavalgando um tribunal de exceção.
Sempre espero que políticos aprendam alguma coisa. E tenho tolerância zero com hipócritas.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldoazevedo/2021/11/hipocrisia-se-exalta-com-fala-de-lula-sobre-ortega-ditador-da-nicaragua.shtml
Clóvis Rossi: Silenciar sobre ditaduras é crime de guerra
Um SOS pela Nicarágua
A Folha publicou nesta sexta-feira (21) anúncio de página inteira que é um verdadeiro manifesto político-institucional. Diz: “A Folha acredita que não existe democracia sem liberdade de imprensa”.
Eu também acredito, mas vou um passo adiante: acho que não podem existir fronteiras para a democracia e para a liberdade de imprensa.
Por isso, faço desta coluna, a última do ano, um apelo: não podemos deixar sem apoio o jornalismo da Nicarágua, o que significa, em consequência, apoiar também a luta pelos direitos humanos, violentamente atacados pela ditadura do casal Daniel Ortega e Rosário Murillo.
Quanto aos direitos humanos, é indispensável ressaltar a atuação do brasileiro Paulo Abrão, secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Ele não tem se omitido, desde que o governo Ortega intensificou, em abril, a escalada repressiva.
A rigor, a CIDH é o único balão de oxigênio que permite respirar aos nicaraguenses.
Agora, a escalada repressiva alcançou outro raro balão de oxigênio, o sítio e revista Confidencial. É, ao lado do tradicional jornal La Prensa, veículo essencial para o exercício de liberdade de imprensa, assim como um ou outro programa jornalístico de televisão.
É bom ter em conta que a perseguição à mídia executada impiedosamente pelo governo de Nicolás Maduro, na Venezuela, ajudou a tornar o regime não só uma execrável ditadura mas também um fracasso de dimensões colossais.
É fundamental, pois, tentar ajudar Confidencial e demais veículos para preservar um espaço de acompanhamento crítico do regime enquanto há ainda tempo para evitar um fechamento incontornável e um fracasso socioeconômico semelhante ao de Caracas.
Confesso francamente que não sei bem o que fazer, nesse sentido. Por isso, copio o apelo enviado por Carlos Chamorro, o diretor de Confidencial, contendo algumas maneiras simples e indolores de ajudá-lo:
“Assinar o canal de Youtube de Confidencial: https://goo.gl/4xcR7W”;
“Seguir Confidencial no Twitter: https://goo.gl/uMjwke
“Dar ‘like’ na fanpage de Facebook de Confidencial: https://goo.gl/VdnRnW
“Dar ‘like’ na fanpage de Esta Semana:: https://goo.gl/tnAnSs” e na de Niú (https://goo.gl/SVjA3L)”. São dois outros informativos perseguidos.
Não é nada dramático, mas é mais do que os jornalistas brasileiros fizemos para tentar ajudar, por exemplo, El Nacional da Venezuela, obrigado a encerrar a edição em papel.
É uma contribuição para que Chamorro possa cumprir a promessa que acompanha o apelo acima reproduzido:
“Não vão conseguir que nos autocensuremos e deixemos de informar, porque temos o compromisso sagrado com um povo que tem sido massacrado e encarcerado, de contar como se substitui uma ditadura sanguinária de forma pacífica e como os nicaraguenses vamos conseguir reconstruir este país em paz, com democracia e eleições livres e com justiça que castigue os crimes da ditadura”.
Que os democratas digam amém. O silêncio é crime de guerra.
*
PS - Férias a partir de amanhã e até meados de janeiro, se houver janeiro em 2019. Feliz Natal e um Ano Novo realmente novo.
El País: Relatório da OEA denuncia “crimes de lesa-humanidade” na Nicarágua
Grupo de especialistas expulso da Nicarágua documentou dezenas de assassinatos e considera que o regime sandinista tem de ser julgado
Apenas algumas horas antes de a equipe da Organização dos Estados Americanos (OEA) apresentar seu relatório sobre a situação na Nicarágua, o Governo de Daniel Ortega lhe deu 24 horas para deixar o país. Depois de seis meses de trabalho, as conclusões não agradaram ao regime, acusado de coordenar diretamente a repressão, e as autoridades impediram sua divulgação em solo nacional. De acordo com o relatório, a polícia sistematicamente abriu fogo contra a população e lançou uma ofensiva que incluiu tortura e agressão sexual nas prisões e que, segundo o informe, deveria ser julgada como "crimes de lesa-humanidade".
“O exercício da violência pelo Estado não consistiu de atos isolados, mas foi levado a cabo de forma organizada e em diferentes momentos e lugares do país (...) não se tratou de eventos explicados pela decisão individual de um ou mais agentes policiais (...), mas de uma política de repressão impulsionada e endossada pela mais alta autoridade do Estado", diz o relatório.
O Grupo Interdisciplinar de Peritos Independentes (GIEI) conseguiu determinar que a maioria das mortes e ferimentos graves é de responsabilidade da Polícia Nacional, cujas tropas agiram diretamente e de forma coordenada com os grupos armados paramilitares.
A publicação do relatório, cuja apresentação estava marcada para esta quinta-feira em Manágua, foi finalmente realizada sexta-feira em Washington e é o resultado de seis meses de trabalho na Nicarágua, em contato direto com as vítimas, testemunhas oculares, famílias afetadas e organizações de direitos humanos, bem como a revisão de milhares de documentos e consultas constantes com especialistas internacionais de diferentes disciplinas.
Peritos, entre os quais Claudia Paz y Paz e Amerigo Incalcaterra, disseram que a irrupção dos protestos em abril não foi o resultado de acontecimentos isolados, mas de anos de práticas que foram reduzindo liberdades, cooptando as instituições públicas e concentrando poder em Daniel Ortega e Rosario Murillo, sua mulher e vice-presidenta. "Isso foi causando, e acumulando, descontentamento social, que se manifestou ao longo dos anos em diferentes expressões sociais que foram violentamente reprimidas pela Polícia Nacional e as unidades de choque", diz.
O relatório descreve até mesmo a "metodologia de agressão" aplicada pelos grupos violentos ligados ao Governo contra manifestantes e a colaboração policial. "A Polícia Nacional intervém controlando a área, impondo cordões de isolamento, desviando o tráfego, usando gás lacrimogêneo, sem dirigir diretamente o ataque, mas deixando que isso aconteça". Os peritos dizem que quando "o método tradicional de repressão" fracassou e as manifestações aumentaram, o Estado iniciou uma fase mais repressiva e violenta, caracterizada pelo uso desproporcionado e indiscriminado de armas de fogo "que se voltaram diretamente contra os manifestantes".
A onda de violência deixou pelo menos 109 mortos, mais de 1.400 feridos e 690 presos, entre 18 de abril e 30 de maio. A grande maioria das mortes ocorridas nesses 42 dias se deveu a disparos de arma de fogo durante investidas policiais e de grupos paramilitares.
A estratégia repressiva não se limitou à polícia e incluiu tortura e agressões sexuais nas prisões, manipulação judicial e até mesmo demissões em hospitais que atendiam jovens feridos. "O sistema de justiça criminal –Ministério Público e Judiciário– atuou como uma peça a mais do esquema de violação. Das 109 mortes violentas, 100 nem sequer foram levadas à Justiça, isto é, estão impunes. Dos nove casos que resultaram em processos, seis correspondem a vítimas que têm alguma relação com o Estado da Nicarágua ou com o partido do Governo. Em relação aos hospitais, o relatório afirma que muitos médicos que trataram os feridos foram demitidos e "até tiveram que deixar o país por medo de represálias".
As investidas nas ruas foram acompanhadas de uma campanha de criminalização das vítimas, que o Governo criou com um inflamado discurso de construção de um inimigo e desclassificação dos manifestantes, “apresentados como jovens manipulados, vândalos, golpistas, terroristas", diz o relatório.
Para o GIEI, as condutas de Daniel Ortega, Rosario Murillo e alguns ministros e chefes de polícia devem ser considerados crimes de lesa-humanidade e nenhum dos acima mencionados deveria receber uma anistia.
Já o Governo sandinista argumentou que a Comissão, o GIEI e o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos são uma "plataforma para a divulgação de informações falsas para promover internacionalmente sanções contra nosso país", disse o ministro das Relações Exteriores, Denis Moncada. O chanceler também acusou o secretário-geral da OEA, Luis Almagro, de participar "da escalada criminal, intervencionista, promovendo atividades terroristas na ordem política, econômica e militar que violam os direitos humanos do povo nicaraguense". As ações de Almagro "demonstram que as ações realizadas pelos órgãos da OEA e da ONU respondem à estratégia de sufocar o povo da Nicarágua", afirmou Moncada.
TRUMP ASSINA AS SANÇÕES CONTRA DANIEL ORTEGA
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, assinou nesta quinta-feira o projeto de lei conhecido como "Nica Act", que estabelece o bloqueio à Nicarágua de empréstimos de instituições financeiras internacionais, além de impor sanções individuais a funcionários do Governo que, segundo Washington, participaram da repressão contra as manifestações que exigem desde abril o fim do regime. A lei estabelece que os empréstimos de instituições como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) estarão condicionados a que o Governo sandinista mostre interesse em organizar eleições livres e transparentes.
Ortega controla o Tribunal Eleitoral e desde 2007 usou esse poder para garantir duas reeleições contínuas. Ortega reconheceu que a nova lei –aprovada por consenso entre democratas e republicanos– afetará a já frágil economia nicaraguense.
Demétrio Magnoli: O PSOL e o PT diante de Ortega
O filósofo Guilherme Boulos, um lulista próximo do PT, tornou-se o candidato presidencial do PSOL. A filósofa Marcia Tiburi deixou o PSOL e tornou-se candidata do PT ao governo do Rio. As portas giratórias da filosofia borram a fronteira entre a extrema-esquerda e a esquerda. Haverá, ainda, alguma diferença de fundo entre os dois partidos? Daniel Ortega indica que sim: enquanto o PT declarava seu apoio à repressão na Nicarágua, o PSOL a condenava. A diferença, porém, não é o que parece — como indica Nicolás Maduro.
A Venezuela aboliu as prerrogativas da maioria parlamentar oposicionista eleita em 2005. O regime chavista cassou os direitos políticos dos líderes da oposição e encarcerou centenas de oposicionistas. Apesar de tudo, em notas oficiais, PT e PSOL ofereceram solidariedade incondicional a Maduro. Por que, tal como o PT, o PSOL perfilase à ditadura venezuelana, mas repudia as violências cometidas pelo governo nicaraguense?
Sociologicamente, o PSOL é diferente do PT. O partido de Lula nasceu do movimento dos trabalhadores do ABC. Já o PSOL, dissidência do PT, organizou-se como condomínio de facções esquerdistas. O PT estabeleceu-se como grande partido parlamentar e lançou extensas redes na direção do alto funcionalismo público e do empresariado. O PSOL, em contraste, segue circunscrito à periferia do sistema político. Não por acaso, seu candidato ao Planalto é um forasteiro, recém-filiado, que acalenta o projeto de criar um novo partido, nos moldes do espanhol Podemos. Entretanto, na esfera do discurso político, PSOL e PT rezam pela mesma Bíblia —ou quase.
No plano internacional, a “pátria ideológica” do PT é a Cuba castrista. Nem sempre foi assim. Na década de 1980, a revista teórica petista qualificou o regime castrista como uma imperdoável ditadura. Tudo mudou em 1990, quando Lula e Fidel Castro criaram juntos o Foro de São Paulo. O Foro, articulação de partidos da esquerda latinoamericana, foi inventado para servir como escudo diplomático do regime dos Castro, que cambaleava sob o golpe da queda do Muro de Berlim. Dali em diante, o PT sujeitou-se ao “controle externo” cubano em todos os temas essenciais para o castrismo.
Há pouco, diante do Foro reunido em Cuba, Dilma Rousseff e Mônica Valente, secretária de Relações Internacionais do PT, caracterizaram as manifestações populares na Nicarágua como parte de “uma contraofensiva neoliberal, imperialista”. Maduro, Ortega, pouco importa o nome: o partido de Lula não faz distinções entre governos alinhados com Cuba. O PT age como um partido comunista das antigas —só que, no lugar de Moscou, seu coração mora em Havana.
A candidata petista Marcia Tiburi cultiva o hábito de denunciar o “exercício de poder sobre o corpo” mas não se comove com os “exercícios de poder” dos regimes de Maduro ou de Ortega contra os “corpos” de manifestantes desarmados. O PSOL, ao contrário, distingue nitidamente um cassetete do outro. “Há muito tempo a gente não via na América Latina um governo com esse nível de repressão”, clamou Israel Dutra, secretário de Relações Internacionais do partido, comparando Ortega ao sírio Bashar al-Assad. É que, para o PSOL, só regimes “revolucionários” têm o privilégio de violar as liberdades públicas.
A Venezuela destruiu sua economia em nome do socialismo. Por isso, segundo o PSOL, o cassetete chavista é virtuoso. Ortega, por outro lado, segue fielmente a cartilha do FMI. Na Nicarágua, a esquerda cindida com o sandinismo participa ativamente da onda de protestos contra o governo. Por isso, segundo o PSOL, o cassetete sandinista é vicioso.
“Mora na filosofia/ Pra que rimar amor e dor”. PT e PSOL são igualmente coerentes, mas orientam-se por bússolas distintas. O PT, partido pragmático, curva-se aos interesses geopolíticos de Cuba. O PSOL, partido ideológico, curva-se a seus próprios delírios revolucionários. No fim, porém, os dois são galhos da mesma árvore filosófica. Para ambos, democracia e direitos humanos não passam de utensílios descartáveis: copinhos plásticos de festas infantis.
Bernardo Mello Franco: As veias abertas da Nicarágua e a miopia do PT
A morte da estudante brasileira despertou o Itamaraty para a escalada autoritária na Nicarágua. Falta saber quando a ficha vai cair para o PT, que continua a fechar os olhos para os desmandos do governo Daniel Ortega.
Em abril, as forças oficiais começaram uma repressão feroz aos protestos contra o presidente. A onda de violência já deixou ao menos 290 mortos. Há quem confunda a carnificina com uma resistência heroica ao imperialismo.
Na semana passada, a secretária de Relações Internacionais do PT, Monica Valente, saiu em defesa do velho companheiro. Em Havana, ela exaltou como “exemplo de luta” a “resistência às tentativas de desestabilização da Nicarágua”.
Não foi por falta de alerta. Desde o início da crise, vozes que festejaram a Revolução Sandinista levantam-se contra a guinada de Ortega. Elas afirmam que o ex-guerrilheiro, um dos líderes do movimento de 1979, é cada vez mais parecido com o ditador que ajudou a derrubar.
O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, conhecido pelas críticas ao neoliberalismo, condenou o presidente por sufocar a oposição para se perpetuar no poder. “Por que é que boa parte da esquerda latino-americana e mundial manteve (e continua a manter) o mesmo silêncio cúmplice?”, questionou.
No Uruguai, o ex-presidente Pepe Mujica pediu a renúncia de Ortega. “Sinto que algo que foi um sonho se desvia, cai na autocracia”, disse. “Aqueles que ontem foram revolucionários perderam o sentido da vida. Há momentos em que é preciso dizer: ‘vou embora’”, cobrou.
Por aqui, o teólogo Leonardo Boff manifestou sua decepção com “um governo que está perseguindo, sequestrando e assassinando seus próprios compatriotas”. “A Nicarágua necessita de diálogo, mas, antes de tudo, necessita de que as forças repressivas parem de matar”, escreveu.
Em vez de se render aos fatos, o PT prefere questionar se os nicaraguenses que estão levando tiros da polícia fazem parte de um “fenômeno espontâneo”.
Não é o único exemplo da miopia do partido. No discurso de Havana, Monica Valente também elogiou a “rotunda vitória” de Nicolás Maduro nas eleições da Venezuela, manchadas por denúncias de fraude e pelo boicote da oposição.
El País: Nicaraguenses saem às ruas contra Ortega
Após a onda de terror desatada pelo presidente, dezenas de milhares exigem sua saída do poder
Por Carlos Salinas, do El País
Aos seus 76 anos, Marta Rivas se plantou desde as 10h da manhã desta quinta-feira, 12, na praça Cristo Rei, em Manágua, para participar da manifestação convocada pela oposicionista Aliança Cívica e apoiada pelas câmaras empresariais para expressar seu repúdio ao presidente Daniel Ortega e exigir o fim de seu mandato, depois de mergulhar a Nicarágua na sua pior crise política desde 1990, com um saldo de 300 mortos até agora. “Estou aqui para que tenhamos justiça, paz e liberdade”, disse Rivas enquanto agitava a bandeira azul e branca da Nicarágua. “Estou aqui para que nunca mais sejamos escravos de nenhum ditador, para que sejamos livres como as pombas.” Ao seu ao redor, reuniam-se centenas de pessoas à espera do início da manifestação, a mais importante desde a Marcha das Mães de 30 de maio, que foi atacada por hostes de Ortega, em confrontos que deixaram dezenas de mortos.
“Já houve muita tortura, muito assassinato, por parte desse casal de desequilibrados”, disse Rivas, uma secretária-executiva aposentada, referindo-se a Ortega e à sua esposa, a vice-presidenta Rosario Murillo. A manifestação ocorreu quando se completam 86 dias da crise, que já ameaça destruir a frágil economia nacional. Um relatório da Fundação Nicaraguense para o Desenvolvimento Econômico e Social (FUNIDES) revelou que desde abril, quando as manifestações contra Ortega começaram, já foram fechados 215 mil postos de trabalho, e os prejuízos superam um bilhão de dólares. Rivas, que seria afetada por uma reforma previdenciária que Ortega tentou impor sem consenso, disse que, apesar das perdas materiais e de vidas, as pessoas deveriam permanecer nas ruas para demonstrar seu rechaço ao regime. “Não se deve ter medo. O que ocorreu em abril foi o motivo para iniciar este movimento. A mensagem é clara: este homem precisa sair. É preciso pressioná-lo, sufocá-lo, com passeatas, paralisações nacionais, deixando de pagar impostos”, disse a mulher, que cobria o rosto com uma viseira porque o sol já ardia com força àquela hora.
Uma onda azul e branca avançou pelas ruas de Manágua em um percurso de vários quilômetros que pretendia desafiar o poder de Ortega, que no domingo causou o pior massacre já vivido neste país em tempos de paz, quando suas hostes atacaram as cidades rebeldes de Diriamba e Jinotepe, a 40 quilômetros de Manágua, deixando pelo menos 21 mortos num só dia. “Como jovem, minha obrigação é estar nas ruas para prestar homenagem a essas 351 pessoas que perderam a vida por causa deste governo criminoso”, disse Emilio Morales, um sociólogo de 29 anos que marchava carregando um cartaz com os dizeres: “Protestar é meu direito, reprimir é seu delito”. Ele disse que Ortega só deixará o poder se os nicaraguenses o pressionarem a partir das ruas, mas também fez um apelo à comunidade internacional para que dedique mais atenção à tragédia deste país centro-americano. “Que a OEA aplique a Carta Democrática”, disse, em referência ao instrumento interamericano que isolaria o Governo de Ortega por considerar que houve uma ruptura da ordem institucional no país. É precisamente essa a acusação do presidente: que quem se manifesta contra o Governo está tentando forjar um golpe de Estado na Nicarágua.
Fontes diplomáticas disseram que o Conselho Permanente da OEA cogita duas resoluções sobre a Nicarágua, uma relacionada à implementação das recomendações feitas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) depois de sua visita ao país, exigindo esclarecimento e punição dos assassinatos registrados desde abril, e outra com propostas para uma saída pacífica da crise, com a antecipação de eleições gerais. As mesmas fontes acrescentaram, porém, que as duas resoluções não contam com os 18 votos necessários para sua aprovação, principalmente porque não foi possível convencer os países do Caribe e do resto da América Central.
A solução, sabem os nicaraguenses, não virá de fora. A pressão social nas ruas da Nicarágua é a via para obter uma saída pacífica para a crise, opinaram analistas consultados em Manágua. Na quinta-feira houve manifestações em outras cidades do país, embora a maior tenha sido a de Manágua. Marta Rivas, apesar do calor e da idade, avançava em meio à passeata. A passos lentos, mas decididos, por uma cidade que pelo menos durante um dia recuperou a liberdade, após semanas de um toque de silêncio informal imposto pelas hostes de Ortega. Marta, como os milhares de nicaraguenses que a cercavam, também gritava as palavras de ordem: “O povo pede: vá embora, carniceiro!”.