negros
‘Racismo é prejuízo para toda a sociedade, não só para os negros’, diz Zulu Araújo
Em artigo na revista da FAP de dezembro, militante do movimento negro explica caminho para enfrentar racismo estrutural no Brasil
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
“No Brasil, não só existe racismo, como ele é estrutural, condiciona e normatiza praticamente todas as relações no país, de caráter interpessoal, econômico, social, político, cultural e religioso”. O alerta é do diretor-geral da Fundação Pedro Calmon, vinculada à Secretária da Cultura da Bahia, Zulu Araújo, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro. “O racismo é um prejuízo para toda a sociedade, não só para os negros”, diz, em outro trecho.
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Todos os conteúdos da publicação mensal, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Em seu artigo, ele lembra a barbaridade do assassinato de João Alberto Silveira Freitas, espancado e morto por seguranças em uma loja do Carrefour na zona norte de Porto Alegre, em 19 de novembro. A Polícia Civil do Rio Grande do Sul indiciou seis pessoas pelo crime.
“A barbaridade da qual foi vítima o cidadão João Alberto Silveira Freitas, no estacionamento do supermercado Carrefour em Porto Alegre, que resultou na sua morte, foi um catalizador sem precedentes da indignação que paira no Brasil, de há muito, no tocante a violência racial e o racismo, contra a comunidade negra brasileira”, lamenta o autor, que é ex-presidente da Fundação Palmares e militante do Movimento Negro. “Naquelas cenas brutais que o Brasil inteiro presenciou, estava simbolizado, em estado bruto, aquilo que os intelectuais chamam de racismo estrutural”, afirma.
Na avaliação de Araújo, que também é arquiteto, gestor cultural e mestre em Cultura e Sociedade, o Brasil não terá sucesso na promoção da igualdade racial nem a plenitude democrática, se não reconhecer a existência do racismo e, por consequência, não gerar políticas públicas que tanto combatam o racismo como promovam a igualdade.
De acordo com o autor, ainda bem que parcela significativa da sociedade brasileira tem não só se manifestado de forma indignada ante o atual quadro de desigualdades no país, mas também começa a se mobilizar para sua superação. “E, neste sentido, o movimento negro brasileiro precisa liderar este processo e estabelecer uma agenda política que, além da mobilização da comunidade negra, crie mecanismos de incorporação e participação dos não negros nessa luta”, assevera.
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Cristiano Romero: Todos sabemos por que o Brasil não dá certo
Trata-se de questão ética: como ser feliz num país racista
Muitos brasileiros fazem a seguinte pergunta diante do espelho: "Por que o Brasil não dá certo?". Geralmente, quem faz a indagação não tem muito do que reclamar. Sua vida é melhor aqui, mais fácil, mais farta, com maior acesso ao que o país oferece de melhor a seus cidadãos, do que seria se ele vivesse em outra economia de renda média ou mesmo numa nação rica, ainda que sendo proporcionalmente detentor de renda equivalente. A péssima distribuição de renda explica parte dessa história.
Evidentemente, aqui, todos, pobres e ricos, reclamam da extrema violência que ceifa anualmente a vida de cerca de 60 mil pessoas - em 2018 (último dado disponível), foram 57.956, mas, como há algo de podre no reino das estatísticas dos Estados, visto que nos anos recentes houve aumento exponencial de mortes violentas sem causa determinada, o número de mortos está subestimado.
O contingente de pessoas que sai de casa num determinado dia para morrer parece uma espécie de maldição estatística, uma vez que, com poucas variações, se repete ano a ano. Maldição? Praga? Predestinação diabólica de um povo condenado à miséria e ao sofrimento? Não creia nisso. Não há nada intangível nas estatísticas da violência no país chamado Brasil.
Os dados oficiais da violência mostram que 75,7% dos brasileiros assassinados há dois anos eram negros - entre as mulheres, o percentual é 68%, informa o Atlas da Violência 2020, elaborado pelo Ipea com base nas ocorrências registradas pelas secretarias estaduais de segurança pública em 2018. Mais da metade (29.064) eram jovens com idade entre 15 a 29 anos.
Em 2018, uma mulher foi assassinada neste país a cada duas horas, somando 4.519 vítimas. Olhemos mais de perto os números e num período maior de tempo, para tentar achar uma pista que aponte alguma tendência desta terrível mazela nacional: entre 2008 e 2018, enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7%, a taxa de mulheres negras assassinadas aumentou 12,4%.
O resumo da violência neste imenso território é o seguinte: os homicídios vitimizam, principalmente, homens (91,8% dos casos), jovens (53,5%), negros (75,7% dos casos), pessoas de baixa escolaridade (74,3% dos homens vitimados possuem apenas sete anos de estudo) e solteiros (80,4% do total de homens assassinados). O principal instrumento de agressão é a arma de fogo, usada em 77,1% dos casos de morte de homens e em 53,7%, no caso de mulheres.
Convenhamos: os números são de uma racionalidade espantosa, é desnecessário desenhar: a sociedade brasileira assiste, indiferente, a um verdadeiro genocídio de jovens, em sua maioria absoluta, negros e pobres, o que também se aplica às mulheres negras. Será que é difícil saber qual é a verdadeira monstruosidade que explica esta vilania que nos caracteriza como sociedade e que, em vez de diminuir, só tem aumentado?
Como o tema não é novo neste espaço, um leitor escreveu para dizer que, nesta guerra civil interminável, morrem mais negros porque estes são a maioria entre os pobres. Trata-se da tese de que quase 42 mil negros foram assassinados neste canto do mundo em 2018 não porque eram negros, mas porque eram pobres. Trata-se de uma falsa questão.
Na música "Haiti", Caetano Velloso e Gilberto Gil escrevem o seguinte, a respeito do massacre do Carandiru, ocorrido no dia 2 de outubro de 1992, quando 111 presidiários foram mortos e 37 ficaram feridos após ação da polícia - como não se tratava de um presídio, a maioria dos mortos ainda não havia sido julgada ou tido a sua sentença definida pela Justiça:
" (...) Cento e onze presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos, quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos (...)"
O poema afiado como navalha de barbeiro nos lembra que, nestes tristes trópicos, é tão ruim ser negro que, se você é pobre, muito pobre, é "quase preto".
Senhores, 56% das pessoas que habitam a quarta maior extensão de terra contínua do planeta se declararam pardos ou negros no último censo demográfico conduzido pelo IBGE. A maioria de nós, portanto, é negra. Nosso problema, acima de qualquer outro, é o racismo secular, estrutural, vicejado pela minoria branca, remediada, rica e mais educada, contra a maioria.
O Brasil não dá certo por essa razão. Como poderia suceder? A escravidão nos acompanha desde a chegada dos europeus. Quando a abolimos por meio de uma lei, quase 400 anos depois, não a abolimos de fato porque o mundo quase acabou - os barões do café exigiram compensação financeira do Estado pela perda de "propriedade", "demitiram" os negros, derrubaram a monarquia, implantaram uma República condominial (sem povo e com rodízio no comando entre dois dos três Estados mais ricos), forçaram o governo a importar mão de obra do Japão e de nações europeias para substituir a mão de obra escrava, impediram os negros de ter acesso a escolas...
Por que ainda há entre nós quem seja contrário a políticas de reparação à população negra, posta em desvantagem por séculos na história deste país? Nossa sociedade não é racista, ela é o próprio racismo. Este faz parte da paisagem nacional tanto quanto o samba, o futebol (onde, aliás, manifestações racistas são crescentes), o carnaval, mas, enquanto esses símbolos são projetados como parte de nossa identidade cultural, a discriminação aos negros é negada de forma vergonhosa e institucional.
Não é mais possível (nunca foi) olhar a realidade política, econômica, social, cultural, sem as lentes que corrijam a pior das miopias: a de que o racismo é apenas mais um problema a ser enfrentado, uma obrigação cidadã, uma determinação constitucional. Nada disso. Não é mais possível admirar nada neste país de 210 milhões de habitantes sem pensar, a cada segundo, que vivemos numa sociedade profundamente escravagista, onde a maioria é discriminada pela minoria. Trata-se de uma questão ética: como viver, como aceitar viver numa sociedade assim?
RPD || Zulu Araújo: Entre daltônicos, pessoas de cor e o racismo
Jovens representam 77% dos 33 mil negros mortos anualmente no Brasil. Cobranças de medidas efetivas para dar um basta na tragédia que é o racismo estrutural brasileiro ganham força em todo o país
A barbaridade da qual foi vítima o cidadão João Alberto Silveira Freitas, no estacionamento do supermercado Carrefour em Porto Alegre, que resultou na sua morte, foi um catalisador sem precedentes da indignação que paira no Brasil, de há muito, no tocante à violência racial e ao racismo contra a comunidade negra brasileira. Naquelas cenas brutais que o Brasil inteiro presenciou, estava simbolizado, em estado bruto, aquilo que os intelectuais chamam de Racismo Estrutural.
As denúncias sobre o recrudescimento do racismo no país vêm de longe e têm funcionado quase como um mantra no movimento negro brasileiro, embora boa parte da sociedade faça ouvidos de mercador para essa tragédia. Até mesmo importantes setores do Executivo, Legislativo e Judiciário que deveriam combater essas mazelas terminam estimulando-as por omissão. Mas os fatos estão ficando tão escandalosos que não dá mais para esconder, nem deixar de se indignar.
Até porque as causas do racismo e da discriminação no país não são episódicas, mas históricas. Ignorar os efeitos nefastos que mais de 350 anos de escravidão produziu não é uma opção política, é uma estupidez. Estupidez essa que não só possibilita a exclusão de milhões de pessoas do exercício da sua cidadania plena, bem como tem ceifado a vida de outros milhares.
Não surpreende mais ninguém que a juventude negra brasileira tem sido o alvo preferencial dos aparatos de segurança pública e privada, assim como de gangues e milícias que proliferam país afora. Os números do Atlas da Violência falam por si só: essa juventude representa 77% dos jovens assassinados no país, algo em torno de 33 mil jovens mortos anualmente. Até mesmo organismos internacionais, como Unesco, Anistia Internacional e Unicef têm-se mobilizado por meios de campanhas, alertando o governo brasileiro para a gravidade da situação.
Autoridades, instituições públicas e privadas e até mesmo a imprensa, quase sempre complacente com estes episódios, se indignaram e estão cobrando medidas efetivas para que possamos dar um basta nessa tragédia que é o racismo estrutural brasileiro. O fato soou como um alerta, ou melhor, como um recado de que o ocorrido nos Estados Unidos com o afrodescendente americano George Floyd não era exclusividade de lá, como muitos por aqui tentam insinuar, e que por isto mesmo a sociedade brasileira precisava reagir.
Mas, apesar de toda a comoção, as declarações de duas principais autoridades públicas do país foram decepcionantes. Uma afirmou que era daltônico e, portanto, não se manifestaria sobre o assunto; e a outra desconheceu a existência do racismo em nosso país, fazendo uso de uma expressão racista: “no Brasil, o que existe são pessoas de cor em situação de desigualdade”.
Lamentavelmente, essas declarações terminam por funcionar quase como um passaporte para impunidade, tanto no que diz respeito à violência praticada no país, desde sempre, como para a reparação histórica, tão importante para nosso povo. E, em grande medida, são autoexplicativas para a gravidade do problema racial no Brasil.
Afinal, um país que viveu um dos mais longos períodos escravistas da história da humanidade e que tem a maioria de sua população de origem africana vivendo em condições sub-humanas – submetidas a toda sorte de violência, nos mais baixos extratos sociais em quaisquer itens que são pesquisados, como educação, saúde, moradia, emprego e renda – não pode ter essa realidade desconhecida.
Em verdade, no Brasil, não só existe racismo, como ele é estrutural, condiciona, e normatiza praticamente todas as relações no país, sejam elas de caráter interpessoal, econômica, social, política, cultural ou religiosa. E não obteremos sucesso na promoção da igualdade racial, nem a plenitude democrática, se não reconhecermos a existência do racismo e, daí, não gerarmos políticas públicas que tanto o combatam como promovam a igualdade.
Ainda bem que parcela significativa da sociedade brasileira tem não só se manifestado de forma indignada ante o atual quadro de desigualdades no país, mas também começa a se mobilizar para sua superação. E, neste sentido, o movimento negro brasileiro precisa liderar este processo e estabelecer uma agenda política que, além da mobilização da comunidade negra, crie mecanismos de incorporação e participação dos não negros nessa luta, visto que o racismo constitui um prejuízo para toda a sociedade e não só para os negros.
Toca a zabumba que a terra é nossa!
(*) Zulu Araújo é Arquiteto, Gestor Cultural, Mestre em Cultura e Sociedade, Ex-Presidente da Fundação Palmares, Diretor Geral da Fundação Pedro Calmon/Secult/Ba. e militante do Movimento Negro Brasileiro.
Folha de S. Paulo: Negros são minoria no serviço público federal e ocupam apenas 15% de cargos mais altos
Salários de servidores brancos são mais elevados e disparidade é ainda maior no topo da hierarquia do funcionalismo
Bernardo Caram, Folha de S. Paulo
Observada no setor privado, a sub-representação de negros também marca a estrutura da administração pública. Dados do governo mostram que, embora sejam aproximadamente 55% da população, negros ocupam 35,6% dos postos no serviço público federal.
A disparidade fica ainda mais visível quando é feito o recorte por hierarquia de cargos e nível de escolaridade. Pretos e pardos ocupam apenas 15% das cadeiras mais altas.
O governo federal não deixa disponível para consulta pública estatísticas de pessoal com recorte por cor e raça. O dado detalhado mais recente, referente a 2018, foi compilado pela Enap (Escola Nacional de Administração Pública), vinculada ao Ministério da Economia.
No entanto, informações preliminares da pasta, que ainda não foram disponibilizadas ao público, indicam que o cenário pouco mudou de 2018 até agora.
Em outubro de 2020, entre os que fizeram a declaração, a parcela de servidores negros na administração federal ficou em 36,8%.
Mestre em desenvolvimento econômico e participante do Programa das Pessoas de Ascendência Africana do Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos, Clara Marinho Pereira, 36, faz parte dessa minoria.
Servidora federal desde 2013, com passagem pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, ela foi aprovada em novo concurso, em 2017, para assumir vaga de analista de Planejamento e Orçamento do Ministério da Economia.
"Nos lugares onde trabalho, eu sou a única ou uma das poucas pessoas negras. Isso é muito frequente. No meu departamento, por exemplo, eu sou a única mulher negra", disse.
"É uma realidade gritante, a despeito de nossos representantes máximos dizerem que não existe racismo no Brasil", afirmou.
Em seu último concurso, Pereira foi aprovada por meio da política de cotas. Em 2014, entrou em vigor no país a lei que reserva para negros 20% das vagas oferecidas em concursos públicos.
"As cotas são importantes, mas não suficientes. Elas foram aprovadas em 2014, mas justamente naquele ano começou a desaceleração econômica e o ritmo de contratações no serviço público diminuiu. É uma pena que as ações afirmativas no serviço público não tenham chegado antes", disse.
Segundo o levantamento da Enap, a disparidade salarial entre brancos e negros no serviço público caiu lentamente ao longo dos anos, mas ainda persiste.
Em 2018, dado mais recente, brancos e amarelos ganharam em média 14% a mais do que negros e indígenas.
Os números consideram os servidores que declararam sua raça ou cor. Do total de funcionários públicos, 11,9% não prestaram essa informação naquele ano.
Evoluir na formação escolar e acadêmica também gera mais benefícios para brancos no serviço público.
Entre os servidores com pós-graduação, mestrado ou doutorado, 42% dos brancos têm salário superior a R$ 12 mil. Com a mesma formação, apenas 28% dos negros têm remunerações superior a esse patamar.
Além da diferença salarial, quanto maior o nível de formação dos servidores, menor o número de negros que ocupam esses cargos.
Do total de funcionários públicos que estudaram até o ensino fundamental, normalmente ocupando cargos de nível mais baixo, 60,9% são negros e 31,2%, brancos. A partir do ensino médio a proporção se inverte, com tendência de ampliação da desvantagem para negros.
Pretos e partos são 50,5% dos servidores com ensino médio. Entre os que fizeram ensino superior, eles representam 31% do total. No grupo dos pós-graduados no serviço público, os negros são 29,7%.
Mesmo nos cargos comissionados de livre nomeação, o padrão da sub-representação também aparece.
Nas cadeiras de DAS (direção e assessoramento superior), que podem ser ocupadas por servidores ou pessoas de fora da administração, 29,6% dos funcionários são negros. Para os cargos DAS-6, o nível mais alto, a participação cai para 15%.
No recorte por órgão, o Ministério de Relações Exteriores tem a menor proporção de negros em seus quadros. Entre diplomatas, por exemplo, 5,9% se declaram pretos ou pardos.
"A diversidade no serviço público é condição para o melhor atendimento à sociedade. Não basta apenas aumentar a presença dos negros na base da pirâmide dos servidores. É preciso garantir que os mecanismos do racismo estrutural não limitem a progressão dos negros nas carreiras e a presença em cargos de decisão", disse Joyce Trindade, analista de diversidades do instituto República.org, que organiza a campanha "Onde estão os negros no serviço público?".
Dados reunidos pelo instituto República.org mostram que esse retrato não é exclusivo da administração federal. No município de São Paulo, os negros são 37% da população, mas ocupam 28,6% dos postos na prefeitura.
Em alguns órgãos, a presença de negros é ainda menor. Eles são 7,8% dos servidores na Procuradoria-Geral do município, por exemplo. Nas chefias de gabinete da prefeitura, estão em 10% dos postos.
De acordo com o instituto, São Paulo é a única capital do país a divulgar ativamente estatísticas de cor e raça de seus servidores.
Sobre os dados federais, o Ministério da Economia disse que está trabalhando para disponibilizar o recorte por cor e raça no painel estatístico de pessoal, sistema que apresenta um raio X do serviço público federal. A pasta não informou qual a previsão de data para o lançamento.
Trindade afirmou que a realidade racial no serviço público não é diferente da iniciativa privada. No entanto, ela disse acreditar que cabe ao Estado o papel de dar exemplo para um sistema do qual também é fiscalizador.
"Para cobrar o setor privado, o Estado e os poderes públicos devem ser espelhos daquilo que desejam para a sociedade", afirmou.
Cristovam Buarque: “Eu não sou brasileiro?”
''Educação é um direito de cada brasileiro e, também, o vetor para o progresso de todos os brasileiros. 'Eu não sou brasileiro?' é um grito tão importante moralmente quanto 'vidas negras importam' e tão relevante politicamente quanto 'independência ou morte', 'viva a República', 'queremos democracia'"
Ao assistir pela televisão um homem negro sendo espancado até à morte, imaginei-o gritando: “eu não sou brasileiro?”. Foi o grito de um negro perguntando “eu não sou um ser humano?” que despertou o movimento contra a escravidão, na Inglaterra, no século XIX. Se ele era um ser humano, como puderam arrancá-lo de sua família e de sua vila na África, forçando-o a caminhar por centenas de quilômetros, jogando-o em um navio fétido, por meses no mar, através do Atlântico, vendendo-o como animal e obrigando-o ao trabalho forçado por toda sua vida, assim como a seus filhos e netos? Milhões de pessoas negras viveram e morreram nessas condições, sob a aceitação dos brancos.
Aquela pergunta ajudou a despertar os ingleses para a indecência da escravidão, a incentivar a luta abolicionista e a provocar a emancipação dos escravos em 1834, em todas as colônias inglesas. No Brasil, a pergunta não foi ouvida. Esperamos ainda meio século, para sermos o último país do Ocidente a abolir a legalidade da escravidão. A Lei Áurea proibiu, em 1888, a venda e a compra de pessoas, impedindo que negros fossem propriedade de brancos.
Mas quando, em 2020, olhamos as estatísticas de assassinatos, pobreza, violência, renda, desemprego, moradia, saúde, educação, um brasileiro negro tem razão em perguntar: “eu não sou brasileiro?”. Igualmente se justifica a pergunta de milhões de crianças pobres, brancas ou negras: “se sou brasileira, como podem me negar escola com a mesma qualidade da escola de outras crianças brasileiras?”.
A escravidão se faz sob a forma do cativeiro ou negando-se educação; a primeira escraviza o corpo, a outra o intelecto. De qualquer forma é escravidão, porque o ser humano tem corpo e mente: a liberdade exige o fim da escravidão do corpo e o acesso da mente à educação.
A Lei Áurea proibiu a comercialização de vidas negras, mas manteve as algemas do analfabetismo e da baixa educação que ainda aprisionam, devido à falta de conhecimento e consequente desemprego, forçando trabalhos em condições desumanas com salários insuficientes, impedindo a liberdade plena para todos os pobres, cuja imensa maioria é descendente dos escravos. Impede também o Brasil de se beneficiar do trabalho com alta produtividade graças à educação da mão de obra. Por isso, cada adulto pode se perguntar: “se eu também sou brasileiro, por que me negaram uma educação de qualidade no passado, e no presente fazem o mesmo com meus filhos? Por que 132 anos depois da Abolição, Escolas-Casa-Grande para uns e Escola-Senzala para nós?”
“Eu não sou brasileiro?” pode ser perguntado por cada um dos 12 milhões que não sabem ler o lema na bandeira do Brasil e por dezenas de milhões que sabem ler palavras, mas não conseguem entender plenamente um livro com a história do país; e pelos milhões sem coleta de esgoto em suas casas, sem comida para seus filhos.
Ao ver a fartura nos bairros ricos, o pobre brasileiro tem razão em perguntar “eu não sou brasileiro?”, tanto quanto os negros da África do Sul se perguntavam “eu não sou sul-africano?”, ou os judeus, durante o holocausto, indagavam “eu não sou ser humano?”. Na ótica da escravidão, do apartheid e do nazismo, nem todos eram considerados seres humanos. Na hipocrisia da nossa democracia, dizemos que todos os brasileiros têm o mesmo direito, mas as crianças que ficam em Escolas-Senzalas, que aprisionam o futuro delas, têm direito à pergunta de todos os que sofrem holocaustos – na escravidão, no apartheid, no nazismo, ou no holocausto educacional que incinera cérebros no Brasil, dizendo que são cérebros de brasileiros.
Essas perguntas se justificam do ponto de vista moral, por alguns, mas também do ponto de vista patriótico, por todos nós. Porque negar escola de qualidade é deixar milhões de cérebros para trás, sem desenvolver o potencial de cada um deles; é imoral, como última trincheira da escravidão, e é uma estupidez por ser um muro contra o progresso nacional.
Educação é um direito de cada brasileiro e também o vetor para o progresso de todos os brasileiros. “Eu não sou brasileiro?” é um grito tão importante moralmente quanto “vidas negras importam”, e tão relevante politicamente quanto “independência ou morte”, “viva a República”, “queremos democracia”. Ela pode despertar a consciência, tanto do ponto de vista moral do direito de cada criança, quanto do ponto de vista político do interesse nacional, do conjunto de todos os brasileiros.
Pena que ainda não descobrimos a força dessa pergunta, feita por um escravo na Inglaterra, 200 anos atrás.
*Cristovam Buarque professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Cristiano Romero: A guerra civil brasileira
Mais de 600 mil negros foram assassinados desde 2000 no Brasil
Uma das mais lamentáveis e equivocadas tentativas de explicar o fracasso do Brasil é a ideia de que o país não deu certo porque não enfrentou guerras. Trata-se de mistificação concebida a partir da história de países como os Estados Unidos, que, além das batalhas travadas com outras nações para conquistar o território que tem hoje, amargou sangrenta guerra civil entre 1861 e 1865, quando se estima que mais de 600 mil pessoas morreram.
Entre 1979, quando a série começou a ser apurada, e 2018, último dado disponível, 1.583.026 brasileiros foram assassinados, segundo o “Atlas da Violência”, elaborado pelo Ipea. A violência não para de crescer. O número de homicídios tem mudado de patamar a cada dez anos - em 1979, 11.217 pessoas foram assassinadas; em 1990, 32.015; no ano 2000, 45.433; em 2010, 53.016; em 2018, 57.956 perderam suas vidas em decorrência do arbítrio de outrem (e ainda há quem defenda a adoção da pena de morte nestes tristes trópicos).
Alguém notará que o ritmo de crescimento de homicídios está diminuindo. Em 2017, 65.602 cidadãos foram mortos de maneira violenta, a maioria, por arma de fogo (71% dos casos). Portanto, houve queda de 11,7% no número de assassinatos no ano seguinte. O problema, mostra o “Atlas da Violência 2020”, é que não se pode mais confiar cegamente no “termômetro” usado para contabilizar as mortes.
O Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, é a única fonte de dados com abrangência nacional, consistência e confiabilidade metodológica sobre a evolução da violência letal desde 1979. Ocorre que o SIM é alimentado por informações repassadas pelos Estados, e a qualidade desses dados tem caído de forma assombrosa.
“Entre 2017 e 2018, o número de MVCI (mortes violentas com causa indeterminada) aumentou 25,6%. A perda de qualidade das informações em alguns estados chega a ser escandalosa, como no caso de São Paulo, que, em 2018, registrou 4.265 MVCI, das quais, 549 pessoas vitimadas por armas de fogo, 168 por instrumentos cortantes e 1.428 por objetos contundentes. Nesse estado, a taxa de MVCI foi de 9,4 por 100 mil habitantes, superior à taxa de homicídios, que foi de 8,2”, diz o último “Atlas da Violência 2020”.
No total, 12.310 brasileiros foram assassinados em 2018, mas as autoridades não sabem quem os matou nem o porquê. Estes são os cidadãos invisíveis cuja existência só interessou a quem lhes tirou a vida. São dispensados nas ruas como se faz com o lixo de casa. Na maioria dos casos, são enterrados como indigentes, sem identidade ou o conhecimento da família. Fazem número na estatística MVCI.
Pesquisa feita em 2013 por Daniel Cerqueira, coordenador do Atlas da Violência, estima que 73,9% das mortes violentas causa indeterminada são, na verdade, homicídios ocultos. Conclusão: o número de assassinatos cometidos neste gigantesco território pode ser até 20% superior ao número informado.
Definitivamente, no Brasil viver não é preciso. De 2008 a 2018, 628.595 brasileiros foram mortos de forma violenta. Do total, 437.976 eram negros (70%), a maioria, jovem e pobre. Enquanto o número de negros vitimados pela violência vem escalando - em 2018, eles foram 75,7% dos casos de homicídio -, o de não negros está cedendo. Entre 2008 e 2018, houve alta de 11,5% no número de negros vítimas de assassinato e declínio, no caso dos não negros, de 15,4%.
Mais uma estatística aterradora: desde o ano 2000, 660.252 negros foram assassinados no Brasil. Não calcule a média anual do período porque, como o número casos está em franca expansão, o percentual encontrado não refletirá a realidade indisfarçável: vivemos num país onde a maioria da população é negra (56%, segundo o IBGE), mas onde também predomina o racismo estrutural, que, como os números mostram, tem aumentado de forma veloz.
Apenas em 2018, os negros (soma de pretos e pardos, conforme classificação do IBGE) representaram 75,7% das vítimas de homicídios - taxa de assassinatos por 100 mil habitantes de 37,8. Comparativamente, entre os não-negros (soma de brancos, amarelos e indígenas), a taxa foi de 13,9, o que significa que para cada indivíduo não-negro morto em 2018, 2,7 negros foram assassinados.
Da mesma forma, as mulheres negras representaram 68% do total das mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 5,2, quase o dobro quando comparada à das mulheres não-negras (ver gráfico).
“Este cenário de aprofundamento das desigualdades raciais nos indicadores sociais da violência fica mais evidente quando constatamos que a redução de 12% da taxa de homicídios ocorrida entre 2017 e 2018 se concentrou mais entre a população não negra do que na população negra. Entre não negros a diminuição da taxa de homicídios foi igual a 13,2%, enquanto entre negros foi de 12,2%, isto é, 7,6% menor”, informa o Atlas da Violência.
O Brasil está promovendo há décadas um verdadeiro genocídio, um crime contra a humanidade. A guerra civil americana foi deflagrada porque os produtores rurais do Sul não aceitavam o fim da escravidão dosa negros. No Brasil, a escravidão chegou bem antes e se tornou a principal característica de nossa sociedade. Aqui, a guerra civil nunca acabou.
Míriam Leitão: O racismo persistente
Quando o assunto é racismo, o Brasil sempre volta à quadra um. É preciso recomeçar de conceitos que já deveriam estar absorvidos. No debate das cotas, parecia ter havido avanço no entendimento desse problema complexo e fundador do país. Se o Brasil não vencer a discriminação que pesa sobre pretos e pardos, se não houver política de inclusão, se as empresas não abrirem suas portas, é o país que fracassará. Jamais foi um problema de um grupo de brasileiros, é de toda a nação brasileira.
O debate do fim dos anos 90 e começo dos anos 2000 sobre a inclusão de estudantes pretos e pobres foi intenso e terminou com a confirmação pelo STF de que cotas raciais nas universidades federais eram constitucionais. Eu, neste espaço, defendi a adoção das cotas. Houve uma avalanche de argumentos contrários. Seria a derrota da meritocracia, seria melhor investir na educação básica, iria “criar” o racismo reverso, geraria conflitos entre os estudantes, iria nivelar por baixo a qualidade acadêmica. Nada disso.
É evidente que é preciso melhorar a educação brasileira, ninguém defende o contrário. As cotas permitiram ao país dar um passo numa longa caminhada para encontrar a si mesmo. Somos um país profundamente preto, do ponto de vista cultural e étnico. O racismo fere a natureza do país. Que julgamento de mérito pode ser feito entre um jovem de classe média que frequentou bons colégios, pré-vestibulares e cursos de inglês, e um jovem da periferia que fez seu caminho para a escola se desviando das balas? Serão julgados pela mesma régua? O jovem pobre e negro que sobreviveu para chegar na porta da universidade tem resiliência, hoje uma das habilidades mais valiosas na visão dos educadores. A convivência de diferentes entre si fez bem a todos. As universidades puderam dar aos alunos uma ampliação da visão das várias realidades do país e entregar ao mercado de trabalho jovens qualificados e com experiências diversas.
Na impactante entrevista que concedeu a Ronaldo Lemos, no evento Cidadão Global, do “Valor” e Santander, a atriz Viola Davis explicou o drama que leva tantos a morrer sem que possam realizar suas possibilidades. “Se não há oportunidade, você é invisível. Vou dizer de novo, se não há oportunidade, ou acesso a oportunidades, você é invisível. Não importa o quanto você trabalha, o quanto você é talentoso, você é invisível se não houver um veículo para literalmente demonstrar o seu talento, sua inteligência e o seu potencial.”
O que o Brasil tem que discutir sinceramente é como construiu uma sociedade com essa hegemonia de brancos em posições de poder, em todas as áreas, tendo mais da metade da população de não brancos. Com quantas desculpas esfarrapadas mantemos o muro que nos divide, nos apequena e mata tantos talentos antes que eles possam desabrochar?
Nessa vasta distopia que nos atrasa neste momento, em que os valores do respeito à diversidade são ofendidos até por quem ocupa o órgão do governo criado para promovê-los, há pelo menos uma boa notícia. Algumas empresas começam a avançar. Entenderam que um jovem discriminado não se sente nem autorizado a aparecer numa seleção de pessoas para posições de liderança de uma empresa. Há um código não escrito marcando as fronteiras que ele ou ela não deveriam atravessar. Este é um país fundado na mão de obra escravizada, indígena e africana. Superar esse passado é tarefa de todos.
Quando o Magazine Luiza tomou a decisão de abrir uma seleção exclusiva para negros provocou uma reação em que as velhas teses reapareceram. E o debate foi retomado como se não tivesse acontecido há quase duas décadas.
O Brasil muda muito devagar. A banqueira Cristina Junqueira, do Nubank, repetiu os argumentos de sempre. “Não consigo contratar executivos negros.” E ofendeu como sempre. “Não pode nivelar por baixo.” Depois ela pediu desculpas. Tomara que reflita sobre esse episódio. Em outra frase infeliz que revela preconceito classista, o banqueiro Guilherme Benchimol, da XP, disse em maio que o Brasil estava bem. “O pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média, a classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo.” Cristina e Guilherme são o que há de novo no mundo do capital. E ainda não entenderam o Brasil.
Eros Roberto Grau: Igualdade ou desigualdade?
Programa do Magazine Luiza é iluminado por Platão e Aristóteles, Lewandowski e Barroso
O Magazine Luiza recentemente implementou um programa de contratação de jovens que estejam cursando ensino superior e se autodeclarem negros ou pardos. Daí foram desdobrados inúmeros debates. Por conta disso emiti um parecer no qual afirmo sua correção jurídica. Não obstante, tal tem sido a repercussão dessa sua iniciativa que me permito agora escrever a propósito de sua correção em termos sociais.
O artigo 5.º da nossa Constituição estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza e garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à igualdade. Note-se bem que o preceito contém uma afirmação – a igualdade perante a lei – e uma garantia. Uma conhecida lição de Kelsen é primorosa: a chamada “igualdade” perante a lei não significa outra coisa que não seja a aplicação correta da lei, qualquer que seja o conteúdo que esta lei possa ter, mesmo que não prescreva um tratamento igualitário, desigual.
A concreção da regra da igualdade reclama a prévia determinação de quais sejam os iguais e quais os desiguais, até porque – e isso é repetido desde Platão e Aristóteles – a igualdade consiste em dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais. Vale dizer: a Constituição e as leis devem distinguir pessoas e situações distintas entre si a fim de conferir distintos tratamentos normativos a pessoas e situações que não sejam iguais.
Mais, permito-me lembrar dois acórdãos exemplares. Um lavrado na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 – relator o ministro Ricardo Lewandowski – outro na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41 – relator o ministro Luís Roberto Barroso.
Leem-se na ementa do primeiro deles os seguintes trechos: “I – Não contraria – ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5.º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares; II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade”.
Na ementa da ADC 41, o seguinte: “1. É constitucional a Lei n.º 12.990/2014, que reserva a pessoas negras 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta, por três fundamentos. Em primeiro lugar, a desequiparação promovida pela política de ação afirmativa em questão está em consonância com o princípio da isonomia. Ela se funda na necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por meio da distribuição mais equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecimento da população afrodescendente”.
As lições de Ricardo Lewandowski e Luís Roberto Barroso confirmam que não se interpreta o Direito em tiras, aos pedaços, que não se interpretam textos de Direito isoladamente, mas sim o Direito, no seu todo.
Repito: todos são iguais perante a lei, mas a igualdade consiste em dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais. Em voto proferido no julgamento do Mandado de Segurança (MS) 26.690, quando exerci a magistratura no Supremo Tribunal Federal (STF), afirmei que “sabemos, desde Platão e Aristóteles, que a igualdade consiste exatamente em tratar de modo desigual os desiguais”.
Ainda que seja assim, uma ação civil pública movida pela Defensoria Pública da União, subscrita por Jovino Bento Junior, nos deixa perplexos. A Defensoria Pública da União é incumbida, nos termos do disposto no artigo 4.º, inciso XI, da Lei Complementar 80/94, de exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos de grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado, e entre os grupos que merecem proteção especial do Estado está a população negra. O que essa ação pretende, penetrando o absurdo, é que seja dado tratamento igual aos desiguais.
A lição de Carlos Maximiliano é primorosa, cá se aplicando qual uma luva. “DEVE O DIREITO SER INTERPRETADO INTELIGENTEMENTE: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis” (maiúsculas no original).
O programa de contratação implementado pelo Magazine Luiza é iluminado pelos meus velhos amigos Platão e Aristóteles e pelos de agora, lá do Supremo, Ricardo Lewandowski e Luís Roberto Barroso.
*Advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, foi ministro do STF
Hélio Schwartsman: O que justifica as cotas?
Elas seguem na lógica de que podemos definir o destino de alguém com base em suas características fenotípicas
Há dois caminhos principais para justificar as cotas raciais. Pelo primeiro, elas seriam uma forma de reparar injustiças históricas. É preciso ser estatística e historiograficamente cego para não ver que existe racismo estrutural no Brasil e que a escravidão tem muito a ver com isso. Uma compensação aos descendentes de escravos na forma de cotas seria, então, uma forma de fazer justiça.
Não gosto muito dessa justificativa. O argumento central contra ela é que há um considerável descompasso entre o universo de prejudicados pela injustiça original e o de beneficiados pela política reparatória. As cotas, afinal, favorecem só um número pequeno dos descendentes de escravos, em geral os com mais instrução e que menos precisariam de impulso. Os negros mais necessitados, aqueles que não completam o ensino fundamental, lotam as cadeias e vão parar precocemente nos cemitérios, nada ganham com elas.
No polo oposto, o branco preterido no vestibular não é necessariamente um descendente de traficantes de escravos. Para a ideia de reparação fazer sentido, temos de apelar à noção de culpa coletiva, que é bem problemática.
O outro caminho me parece melhor. Por ele, as cotas não se justificam pelo passado, mas pelo futuro. Há um bom corpo de pesquisas mostrando que, quando diferentes pessoas, com diferentes backgrounds e perspectivas, se põem a trabalhar sobre os mesmos problemas, as soluções encontradas tendem a ser melhores. O bacana aqui é que a racionalidade das cotas também salta do indivíduo para a sociedade, e a culpa coletiva dá lugar à responsabilidade social.
Considero essa justificativa aceitável, mas devo confessar que não sou um grande fã de cotas raciais. Por mais que douremos a pílula, elas seguem na lógica de que podemos definir o destino de uma pessoa com base em suas características fenotípicas, que é justamente o que torna o racismo um problema moral.
Compre na Amazon: Livro Presença Negra no Brasil destaca importância de afrodescendentes para o país
De autoria de Ivan Alves Filho, obra apresenta análise histórica e registra busca de autoafirmação e inclusão social
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
O Brasil é um dos países mais expressivos da comunidade internacional e “o segundo país negro do mundo, com dezenas de milhões de afrodescendentes”. A declaração é resultado de uma profunda análise realizada pelo historiador Ivan Alves Filho e integra a apresentação do livro Presença Negra no Brasil: do século XVI ao início do século XXI. À venda no site da Amazon, a mais recente obra do autor carioca é coeditada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira) e Verbena Editora.
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Presença Negra no Brasil alinha, ao longo de 200 páginas e em seis partes (cada uma delas referente a um século, especificamente) os fatos historiográficos relacionados à contribuição negra ao Brasil. A ordem cronológica, de acordo com as editoras, tem caráter didático para o leitor.
Em um trecho inicial do livro, Ivan Alves Filho diz que a cronologia do negro no Brasil representa um instrumento útil para o conhecimento e a transformação do país, em particular de sua população afrodescendente. “Certamente, prestará um importante auxílio aos estudantes, professores e pesquisadores da realidade brasileira, aos responsáveis pelas empresas públicas e privadas e aos comunicadores sociais e ativistas sociais e culturais”, escreve.
O autor lembra que, no século XVI, o tráfico de negros se impunha cada vez mais. “As questões relativas a rebeliões negras começavam a vir à baila. Se, em 1570, o cronista português Pero Magalhães de Gandavo afirmava que os escravos negros, contrariamente aos índios, não se arriscavam a se rebelar ‘por não terem para onde ir’, o que se verificaria, em seguida, é que tal situação não se sustentaria por muito tempo”, observa ele.
Escravismo no Brasil
Ivan Alves Filho acrescenta que o século XVII foi o da consolidação do escravismo no Brasil. Já o século XVIII se inicia, segundo ele, com uma notícia surpreendente, ou seja, em 1704, cerca de cinquenta africanos tentam fugir da Bahia e retornar à África. “Trata-se, provavelmente, de uma das primeiras tentativas, nesse sentido, partindo da Colônia. Era uma reação à escravidão. Mas as autoridades coloniais continuavam com seu comportamento obscurantista”, acentua o autor.
Mais adiante no livro, Ivan Alves Filho observa que o século XIX foi “o século revolucionário por excelência no Brasil”. De acordo com ele, o período se iniciou com a chegada da família real ao país, em 1808, e se encerrou com a abolição da escravatura, em 1888. “E entre estas duas grandes datas, deu-se a independência política do país, em 1822. Um século e tanto”, assevera o autor.
E 1888 é exatamente o ano escolhido por Ivan Alves Filho para detalhar, a partir de então, ano a ano, separadamente, os principais fatos relacionados ao negro no Brasil até 2018. Na prática, funciona como um valioso manual sobre o assunto.
Do ano 2018, por exemplo, ele destaca o assassinato da vereadora negra Marielle Franco (PSol-RJ). “O Brasil todo ficou estarrecido com o assassinato da vereadora Marielle Franco, defensora dos direitos humanos e da população das favelas do Rio de Janeiro”, lembra, para continuar: “O crime que vitimou a representante do Partido do Socialismo e da Liberdade (PSol) ocorreu na noite de 14 de março, no Centro do Rio, e soou como um desafio à intervenção federal no Estado. Socióloga, política, negra, Marielle se transformou em um símbolo das lutas cidadãs no país”.
Com prefácio do advogado Nei Lopes, que também é autor de contos, peças teatrais e romances, o livro destaca que “os descendentes dos antigos escravos buscaram autoafirmação e inclusão social por meio de suas práticas culturais”.
Ainda de acordo com Lopes, que é compositor popular e autor de dicionários e obras históricas, o livro Presença Negra no Brasil é “decisivamente mais um golpe certeiro na derrubada da odiosa parede que recalca e reduz a importância da presença afro originada na construção da hoje solapada civilização brasileira”.
Sobre Ivan Alves Filho
Nascido no Rio de Janeiro, em 1952, é diplomado pela Universidade Paris VIII e pós-graduado pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. É autor de livros como Brasil, 500 anos em documentos, Memorial dos Palmares, História dos estados brasileiros, Giocondo Dias – Uma vida na clandestinidade e Velho Chico Mineiro.
Exerceu o jornalismo desde a primeira metade dos anos 1970 e colaborou em cerca de 20 publicações brasileiras. Editou algumas delas, entre as quais suplementos culturais de jornais e publicações como Guia do Terceiro Mundo (posteriormente Guia do Mundo, lançado em português, espanhol e inglês).
Em diferentes momentos, atuou como pesquisador associado de órgãos como o Centro de Memória da Associação Brasileira de Imprensa, o Centro de Memória Social Brasileira, o Núcleo de Pesquisas sobre o Índio Brasileiro, o Comitê Português do projeto Unesco “A Rota do Escravo” e o Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos”. Foi professor de história e economia política e ministra conferências histórias no Brasil e no exterior.
Como documentarista, produziu vários filmes no quadro da série Brasileiros e Militantes, da Fundação Astrojildo Pereira. Além disso, dirigiu e apresentou programas sobre cultura brasileira em emissoras de rádio e foi editor do jornal eletrônico Vertente Cultural.
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Míriam Leitão: A diversidade nas empresas
Jovem executiva negra conta a sua história, explica como as empresas devem ter diversidade e estimula outros jovens a sonhar alto
A jovem gaúcha de Pelotas Lisiane Lemos entrou na sala do executivo da Microsoft, em São Paulo, no meio do processo de seleção. Ela acalentava há tempos o sonho de trabalhar numa multinacional, e na área de vendas, apesar de ter feito Direito. Aos 23 anos, tinha acabado de chegar de Moçambique onde fora em busca de suas origens. No Rio Grande do Sul, que recebeu várias ondas migratórias, os brancos sabem de onde vieram seus antepassados, mas os negros ouvem uma história triste sobre Pelotas ter sido “o inferno dos escravos”. Ao olhar para quem a entrevistaria, ela sentiu um alívio.
— Eu fui entrevistada por um executivo negro, e aquilo foi uma grande virada na minha vida. Eu vi que queria estar naquele lugar. O fato de ele estar sentado na minha frente... Talvez quem nos assista não tenha noção da importância da representatividade. Simplesmente ter um executivo negro na frente me mostrava: eu posso — contou.
Lisiane acabou assumindo um cargo de chefia na Microsoft e hoje, aos 30 anos, é gerente de novos negócios da Google. Nesse meio tempo recebeu duas consagrações internacionais. Em 2017 foi apontada pela revista “Forbes” como uma das pessoas de menos de 30 anos mais influentes do Brasil e em 2018 a ONU a escolheu como uma das pessoas negras mais influentes do mundo, na área de negócios, com menos de 40 anos.
Eu a entrevistei na Globonews sobre diversidade no mundo corporativo. Ela é um caso de sucesso, mas raro.
— O topo é muito solitário. Você chegar onde ninguém chegou estatisticamente. O Instituto Ethos em 2016 mostrou numa pesquisa que nas 500 maiores empresas do Brasil apenas 4,6% dos cargos de liderança são ocupados por pessoas negras. E quando o recorte é mulheres negras é 0,5%. Então é meio que um lugar impossível — disse Lisiane.
As políticas de ações afirmativas ajudaram no esforço de redução do fosso social no Brasil, mas é muito grande a distância, são séculos de construção da desigualdade. Hoje há muitas empresas preocupadas em ter mais diversidade no seu quadro de funcionários, mas nem sabem por onde começar. Lisiane acha que no mundo corporativo funcionam as conexões. Por isso ajudou a fundar a Rede de Profissionais Negros, e depois foi para o Mulheres do Brasil, da empresária Luiza Trajano, para ajudar a montar o pilar da igualdade racial. Ela acha que as empresas deveriam fazer o “recrutamento ativo” e pensar também na carreira das pessoas negras:
— É importante pensar num programa de estágio? Sim. Mas nesse caso é mais fácil. Mas quem é que está no topo? Quem você lembra em algum conselho de uma grande empresa que seja negro? Ou uma mulher negra?
Lisiane recomenda que as empresas comecem a ter diversidade nas suas peças de publicidade, para que as pessoas negras se vejam:
— O segundo ponto é ser intencional, ter métodos e políticas de ação afirmativa nos programas de contratação. Depois, é ter um serviço de mentoria. Eu sou de uma família de professores, como saber como me vestir e me preparar para uma reunião de executivos estrangeiros, por exemplo? Há muito conhecimento a ser compartilhado.
Lisiane fala com objetividade sobre os códigos do mundo corporativo. Como gerente de novos negócios da Google ela tem trabalhado com marketing digital. Diz que nessa área trabalha com tudo que mais gosta, de uso de dados à inteligência artificial. Pode ajudar tanto o pequeno empreendedor quanto a grande empresa.
Ao falar da questão racial, ela se empolga. Na infância, sofreu preconceito. Mais tarde, entendeu que era herdeira de uma história difícil. Os escravizados de outras regiões eram enviados para Pelotas como punição: na charqueada, enfrentavam o frio, o castigo e o sal. Em exame de DNA descobriu que é 40% de povo originário de Angola. Quer passar um tempo lá este ano.
Aos jovens negros que sonham em entrar no mundo corporativo e fazer carreira ela deixou um recado emocionado:
— O grande recado é ‘você pode’. Por mais que a sociedade diga que não é o seu lugar, que as estatísticas estejam contra, você é protagonista da sua história e existem pessoas que podem ser seus aliados. Vai ser difícil, o racismo existe, e você muitas vezes vai pensar em desistir, mas vai valer a pena e você vai abrir portas para outras pessoas chegarem onde elas nunca imaginaram.
‘Tinha escravos nos Palmares’, diz Antonio Risério à revista Política Democrática online
Em entrevista concedida à publicação da FAP, antropólogo diz saber de história de mulheres da classe dirigente
Cleomar Almeida, da Ascom/FAP
“A história brasileira é muito mal conhecida no Brasil. Às vezes, as pessoas se surpreendem quando você fala que tinha escravos nos Palmares e se surpreendem quando você fala que os Tupinambás eram escravistas”. A afirmação é do antropólogo, poeta, ensaísta e historiador brasileiro Antonio Risério, em entrevista exclusiva concedida à 13ª edição da revista Política Democrática online. Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, de graça, no site da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que produz e edita a publicação.
» Acesse aqui a 13ª edição da revista Política Democrática online
A FAP é vinculada ao partido político Cidadania, que tem fortalecido a sua identidade como esquerda democrática. Na entrevista, concedida à revista Política Democrática online, Risério diz que conhece uma história de mulheres da classe dirigente, o que, segundo ele, é completamente diferente das histórias das mulheres da classe dominada. A entrevista foi concedida ao diretor da fundação e consultor político Caetano Araújo com colaboração de Ivan Alves Filho.
“Porque as mulheres da classe dominada têm primazia, dominando, inclusive, o pequeno comércio no Brasil, nas vendas, porque eram mulheres da vida e da rua, ao passo que as sinhás e sinhazinhas ficavam enclausuradas em sobrados na casa grande”, afirma ele à revista Política Democrática online. “A gente tem de pegar cada ponto disso e discutir com conhecimento. Conhecimento acima de tudo, não adianta ficar só ideologizando; ideologizando a gente não vai para lugar nenhum”, acrescenta.
O historiador compara, ainda, que, as histórias dos Estados Unidos e da França, por exemplo, são muito bem conhecidas pelas suas respectivas populações, ao contrário do que ele diz ocorrer no Brasil. “Uma frase de que eu gosto muito que Freud estudava do Leonardo da Vinci: você não pode amar nem odiar nada se primeiro você não souber o que aquilo é, o que aquilo foi, como aconteceu e o que aquilo significa”, pondera, em outro trecho da entrevista publicada pela revista da Fundação Astrojildo Pereira.
De acordo com Antonio Risério, entre os principais líderes do movimento abolicionista, havia três eram negros: André Rebouças, José do Patrocínio e Luiz Gama. “Deram-se as mãos e acabaram com a escravidão”, afirma ele, na entrevista publicada na revista Política Democrática online.
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