negacionismo

Elio Gaspari: Fritada de morcego no menu

Ganha uma fritada de morcego do mercado chinês de Wuhan quem for capaz de mencionar uma só fala de Jair Bolsonaro que tenha contribuído para o bem-estar da saúde nacional desde o começo da pandemia do coronavírus.

Mesmo quando ele fez um arremedo de conserto, dizendo que, “se algum de nós extrapolou ou até exagerou, foi no afã de buscar solução”, estava iludindo a boa-fé do público. Um dia antes ele havia dito que “não vou tomar a vacina e ponto final”.

“gripezinha” e a cloroquina tornaram-se símbolos do amargo folclore do capitão. A eles juntam-se outros, como o estímulo ao desmatamento, as “rachadinhas” de Fabrício Queiroz e o orgulho de seu chanceler ser um “pária” no cenário internacional. Nunca na História do Brasil o trem parou e o maquinista queria andar para trás. Ele parava, mas se discutia quando voltaria a andar para a frente.

Há em Bolsonaro uma perigosa mistura de ignorância pessoal com autoritarismo político. Ele pode ter acreditado na gripezinha ou mesmo nos efeitos milagrosos da cloroquina. Chamou a possibilidade de segunda onda de “conversinha”, e na quinta-feira (17) voltou-se ao registro de mil mortes por dia. Talvez tenha apenas apostado, mas nesse caso estaria apenas exercitando a ignorância de outra maneira. O perigo mora na mistura com o mandonismo.

Bolsonaro irradiou esse comportamento pela sua administração, produzindo apenas uma bagunça arrogante. Por exemplo: em outubro o general-ministro Eduardo Pazuello disse que “a vacina do Butantan será a vacina do Brasil”. No dia seguinte, Bolsonaro acordou cedo e respondeu no Facebook que a vacina “NÃO SERÁ COMPRADA”. Como se viu, será comprada e oferecida, pois o capitão ficou preso num cadeado do governador João Doria.

O general Pazuello disse a parlamentares: “Não falem mais em isolamento social”. Pensou que falava a uma plateia de tenentes. Ele perguntou “para que essa ansiedade, essa angústia?” e depois explicou que sua frase foi tirada do contexto, desculpando-se. É o caso de se perguntar qual medicação está tomando desde que teve alta da Covid.

Já um diplomata de carreira designado para embaixada junto à Organização das Nações Unidas em Genebra recusou-se a responder a uma pergunta da senadora Kátia Abreu dizendo que não estava “mandatado” para isso. Tomou um contravapor do senador Major Olimpio e perdeu o cargo. Foi rejeitado por 37 votos contra 9. (Afora o mau português, podia ter respondido de outra forma, mesmo sem dizer nada.)

Trabalhando com um chanceler que se orgulha de ser “pária”, o embaixador levou a excentricidade para o lugar errado. A pandemia expôs a bagunça diante de uma dificuldade que daqui a pouco terá matado 200 mil pessoas. Os brasileiros ligam as televisões e veem cenas de imunização nos Estados Unidos, França, Inglaterra e Arábia Saudita. Como lembrou Fernando Gabeira, só em Pindorama a vacinação virou tema de debate.

EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo é um idiota, nunca tomou vacina nem vai tomar. Por isso também acha que o Supremo Tribunal Federal tomou “uma medida inócua”.

O que o cretino não entendeu foi outra frase de Bolsonaro: "Quando se fala em vacinação e saúde, tem que ter uma hierarquia".

Eremildo torce para que o presidente explique como funcionará essa hierarquia e se dispõe a ir de casa em casa levando cloroquina para quem ficar de fora.

Eu apalpo, você fica nervosa

O deputado Fernando Cury (Cidadania) apalpou sua colega Isa Penna (PSOL) ao vivo e a cores diante da Mesa Diretora da Assembleia Legislativa de São Paulo. (Ela estava de costas.)

Depois do episódio, o presidente da Casa, Cauê Macris, disse que não poderia liberar as imagens. Pressionado pela deputada com um discurso e pelas lideranças partidárias, mudou de ideia.

Casado, Cury foi à tribuna, reiterou um pedido de desculpas e disse que jamais tomou intimidades indevidas com mulher alguma. O doutor tem o benefício da dúvida e empenhou sua palavra.

A porca torce o rabo quando se vê que, no dia seguinte, Cury foi à tribuna e, explicando-se, disse que depois de ter sido apalpada, sua colega “estava nervosa”, “ficou brava” e diante de uma nova tentativa de pedido de desculpas, “ela começou a gritar, a me xingar”. ​

Certo mesmo é que Fernando Cury se defende recriminando a conduta de uma mulher, nervosa, brava, xinguenta e gritona. Está tudo na rede: o vídeo da apalpada, o discurso da deputada e a explicação de Cury.

Forster e Biden

Os trechos conhecidos dos telegramas mandados pelo embaixador brasileiro em Washington, Nestor Forster, depois da vitória de Joe Biden ilustram a bagunça que o orgulhoso pária Ernesto Araújo impôs à Casa do Barão.

Forster foi aplicado ao mostrar que Donald Trump pretendia contestar a vitória de Biden. Nesse sentido, fez seu serviço. Em nenhum momento o embaixador sugeriu que Bolsonaro cumprimentasse o vencedor. Poderia ter feito, mas também não sugeriu o contrário.

Os Estados Unidos não são uma ilha perdida, para que o cumprimento ao eleito dependa de sugestão do embaixador. Quem levou 38 dias para reconhecer a vitória de Biden foi Jair Bolsonaro. Forster foi para a linha de tiro pelas convicções bolsonaristas que o levaram ao cargo.

O PREÇO DA XENOFOBIA

A Alemanha bloqueou a entrada da Turquia na Comunidade Europeia por diversos motivos, entre os quais o discreto racismo de uma parte de sua população contra imigrantes.

Há décadas a Alemanha não fazia uma boa figura no mundo da tecnologia como a que conseguiu agora com a vacina desenvolvida pelo seu laboratório BioNtech, para a Pfizer americana. Sediado em Mainz, foi criado por um casal de turcos. Ele, nascido em Iskenderun, ela, filha de uma médico que emigrou.

PROMOÇÕES MILITARES

A bagunça bolsonariana funciona até quando o capitão volta atrás. Três dias depois de ter acabado com as promoções por antiguidade de oficiais aos postos de coronel ou capitão de mar e guerra, ele revogou o ato. O decreto revogado não era um jabuti.

A ideia do fim da promoção por antiguidade nessa patente ampara-se em bons argumentos e foi proposta por autoridades militares que entendem do assunto.

A piada tem um século, mas, quando um oficial disse ao major Joseph Veller, da missão militar francesa, que um colega aprenderia com a experiência, ele respondeu: “O burro do duque de Saxe assistiu a mais de cem batalhas e continuou sendo um burro”.

CONTEM OUTRA

Há algo no ar além do vírus. Quatrocentos empresários tinham marcado para a quinta-feira um almoço em homenagem ao presidente Jair Bolsonaro e seu antecessor, Michel Temer.

No domingo o ágape foi cancelado, diante do aumento do número de casos de Covid. Contem outra. Dias antes do cancelamento, quando os convites circulavam, pela média móvel semanal estavam morrendo 544 pessoas.

BOLSONAVAC

governador João Doria continua sob os efeitos de sua Bolsonavac. Em uma semana, limitou-se a dar uma breve resposta às provocações de Bolsonaro. Preferiu presenciar o desembarque de vacinas.


Ricardo Noblat: Bolsonaro volta a atacar a imprensa e humilha seu filho Eduardo

“Você teve um voto. O resto foi meu”

Ao assumir a presidência da República em janeiro de 2019, a prioridade número um de Jair Bolsonaro era reeleger-se dali a quatro anos. Quanto ao resto, empurraria com a barriga.

Depois, à medida que seus três filhos zeros começaram a ser alvos de denúncias por corrupção, a reeleição passou a ser a prioridade número dois. Se não salvar os filhos, não se salvará.

É preciso, pois, desacreditar os autores das denúncias, especialmente a imprensa, que as divulga e pressiona os demais poderes a investigá-las a fundo.

A mais recente denúncia bateu diretamente à porta do gabinete presidencial no terceiro andar do Palácio do Planalto, e isso explica a escalada recente dos ataques de Bolsonaro à imprensa.

Ele reuniu-se com advogados do seu filho Flávio, acusado de embolsar dinheiro público à época em que era deputado estadual no Rio, com o propósito de ajudá-los no que fosse possível.

Estavam presentes o ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, e seu subordinado, o delegado Alexandre Ramagem, chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Dois relatórios, mais tarde, enviados por Ramagem aos advogados, são a prova de que a Abin deu o caminho das pedras para que eles fossem bem-sucedidos em sua tarefa.

A descoberta de que isso aconteceu, pode configurar crime de responsabilidade praticado por Bolsonaro e, no limite, até custar-lhe o mandato, deixou o presidente da República apoplético.

Sua entrevista, ontem, ao canal do filho Eduardo no Youtube não contém nada de novo, mas é uma demonstração de como ele está fortemente incomodado com o episódio.

“Me chama de corrupto, vamos lá”, desafiou Bolsonaro referindo-se à imprensa. “Me chama de corrupto, porra. Não tem mais grana mole para vocês. Acabou a treta. O fim de vocês está próximo”.

“Imprensa canalha, não vale nada”, insistiu. “Não leiam jornais. É tudo um lixo. Vão para a internet. […] Ai do ministro se eu souber que [no seu local de trabalho] tem jornais”.

Como seria impossível ocupar mais de uma hora de entrevista somente falando mal da imprensa, Bolsonaro revisitou seu estoque de temas preferidos. Ao fazê-lo, repetiu as velharias de sempre.

Sobre a facada que levou em Juiz de Fora: o caso foi mal apurado porque Sérgio Moro era o ministro da Justiça. Líderes políticos da esquerda queriam matá-lo, e ainda querem.

Sobre o voto eletrônico: não confia nele e, por seus cálculos, mais de 70% dos brasileiros também não. Perguntou: “Em que país do mundo esse sistema foi adotado?”

Sobre tortura no período da ditadura militar de 64: “[Os que reclamam] não eram presos políticos, eram terroristas. E eram tratados [nos porões do regime] com toda a dignidade”.

Sobre as eleições municipais: “A imprensa falou que eu perdi. Quantos prefeitos eu tinha? Zero. Então vou dar uma de Dilma aqui: Eu não ganhei nem perdi”.

E sobre a pandemia: “Ela está chegando ao fim. A pressa da vacina não se justifica. Vão inocular algo em você. O seu sistema imunológico pode reagir ainda de forma imprevista”.

Por último, em meio a risadas, humilhou o filho ao trocar de posição com ele. Travou-se então o seguinte diálogo:

– Vamos ver se você está ficando inteligente. Você teve quantos votos nas últimas eleições? – perguntou Bolsonaro.

– Eu fui eleito [deputado federal por São Paulo] com 1.843.735 votos em 2018 – informou Eduardo.

– Não aprendeu nada. Você teve um voto. O resto foi meu.

Enquanto o pai gargalhava, o filho apenas retrucou:

– Você não acha que foi o meu trabalho?

Bolsonaro não respondeu.


Cristovam Buarque: IDH - A culpa é nossa

Ignorar a responsabilidade dos governos anteriores é uma forma de negacionismo

O atual Presidente da República é o menos dotado de inteligência, capacidade gerencial, empatia social, espírito de tolerância e gosto pelo diálogo entre todos os que foram eleitos ao longo dos 130 anos de República; isto não justifica jogar sobre ele a responsabilidade pela queda da classificação do Brasil na escala do IDH. Ignorar a responsabilidade dos governos anteriores é uma forma de negacionismo, mentira que impede conhecer a realidade e aprender com os erros.

O IDH de cada país foi definido por dados de 2019, mas resultantes de anos e até décadas de descasos anteriores. A culpa, portanto, é dos governos precedentes ao longo de toda a República, especialmente nos 33 anos da nova democracia, dos quais 26 por governos progressistas, 13 dos quais de esquerda. A piora na renda per capita entre o IDH anterior e o atual não ocorreu por causa de 2019, mas devido a recessão iniciada em 2014. Os efeitos do período Bolsonaro serão vistos no futuro, e tudo indica que teremos quedas ainda maiores. Mas esta queda foi culpa nossa, não dele. Até porque nosso IDH melhorou ligeiramente, outros cinco países melhoraram mais e nos superaram.

Nisto está nossa falta: melhoramos ficando para trás, sobretudo em educação. Depois de quase 50 anos de medidas paliativas, avançamos piorando ao ampliar três brechas: avançamos, mas os outros países avançaram mais; a educação dos pobres melhorou, mas a dos ricos mais; estudamos mais, entretanto, o que ensinamos aumentou menos do que o que o mundo moderno exige.

Tudo indica que os países vizinhos, inclusive mais pobres, erradicarão o analfabetismo de adultos antes do Brasil. Os que se preocupam com a educação investem em escolas privadas para resolver o problema de seus filhos, não do país. Não têm educação de qualidade como propósito nacional, apenas para seus filhos, ignoram a educação de todos que é utilizada para calcular o IDH. Não vemos a necessidade de executarmos uma estratégia nacional consistente a longo prazo, para termos educação de qualidade para todos, sem o que o IDH não sobe em relação aos outros países.

A resistência à essa estratégia decorre, em primeiro lugar, de que não e gostarmos de longo prazo, preferimos as ilusões dos pequenos passos – Fundef, Fundeb I e II, Piso Salarial do Professor, Merenda, Livro Didático, PNE-I e II, IDEB, ENEM. Tudo certo e tudo insuficiente. Em segundo lugar, porque educação com a máxima qualidade pelos padrões internacionais não é um sonho brasileiro, ainda menos a crença de que a escola deve ter a mesma qualidade independente da renda e do endereço da família. Preferimos nos comparar pelo padrão FIFA do que pelo padrão PISA ou IDH. Nestas condições, dificilmente vamos ter uma estratégia de longo prazo para o governo federal adotar a educação de base nas cidades pobres. o apego municipalista prefere sacrificar as crianças das cidades pobres a entregar as escolas municipais ao governo federal.

Por isto, daqui a dois anos teremos novas surpresas tristes com o PISA e com o IDH e jogaremos a culpa no governo do momento, esquecendo os erros de todos nós no passado e relegando a tragédia no futuro.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador


Luiz Sérgio Henriques: O que legaremos para 2021

2020 é um daqueles anos cujos fantasmas vão querer nos assediar sem descanso

Como se fossem poucos os desafios ultimamente lançados às democracias, com as novas e audaciosas estratégias de corrosão da legitimidade das suas instituições, o ano que ora se encerra nos trouxe, na forma de uma pandemia, recados que costumamos imprudentemente esquecer nas horas ditas normais. O processo civilizatório avança constantemente, mas aos saltos. Vivemos mais e melhor, mas há intolerável desigualdade no gozo desse tempo adicional de vida. E tudo isso sem falar que o relativo “recuo das barreiras naturais” possibilitado por aquele avanço não se faz sem riscos permanentes. Somos seres precários, cujos impulsos de conquista convém temperar para manter a harmonia com o mundo natural e não alimentar a ilusão de domínio absoluto sobre ele.

O vírus que saltou a barreira entre espécies num remoto mercado teve o condão de nos lembrar que a máquina do mundo não funciona em moto contínuo e nem sempre estamos preparados para responder do modo mais racional ao inesperado, pelo menos não num primeiro momento. E muitos não responderão racionalmente em momento algum.

Não faltou quem, no início do grande drama, apostasse na ideia de um “vírus inventado” para propiciar o fortalecimento dos mecanismos societais encarregados de vigiar e punir. Uma ideia que, apregoada em setores progressistas, encontraria terreno já intensamente lavrado pelo moderno negacionismo científico de marca ultraconservadora. Não por acaso os negacionistas propriamente ditos passaram a repetir à exaustão a fábula do vírus desenhado em laboratório chinês, assim como, antes, haviam se atrevido a afirmações destrambelhadas, como a de que vacinas infantis são perigosas a ponto de levarem ao autismo.

Tal absurdo, aliás, propalado há alguns anos por Donald Trump em pessoa, leva-nos ao ponto em que se cruzam, hoje, os ataques simultâneos à ciência e à democracia. É bem verdade que tais ataques não são monopólio da extrema direita contemporânea, basta mencionar que, em episódio grotesco há quase cem anos, a “epistemologia” marxista-leninista reinante na antiga URSS dividia as ciências em “burguesas” ou “proletárias”, de acordo com os desígnios do ditador ou prepostos seus na ciência oficial. Trofim Lysenko, por exemplo, teve seu nome para sempre associado à manipulação política da genética e ao fracasso da agricultura soviética, um fracasso que moldaria profundamente toda aquela sociedade e os impasses que jamais superou.

O fato é que hoje as ameaças mais evidentes carregam um sinal oposto. Os problemas nascem, ironicamente, de uma mutação genética no campo conservador. Saiu de cena, ao menos em boa medida e em muitos contextos nacionais, o conservadorismo voltado para a preservação das instituições e para hipóteses de mudanças lentas e controladas na estrutura social. Em seu lugar, ameaçadoramente autoritário, surge o conservadorismo com pretensões revolucionárias, se é que vale a expressão paradoxal. Um conservadorismo em busca da uniformidade (étnica, religiosa, cultural) que teria sido perdida na vida moderna, intrinsecamente cosmopolita, e deveria ser reencontrada num passado imaginário e inventado dos pés à cabeça.

Na sua versão clássica, o pensamento conservador é índice das complexidades do mundo real. O tipo de abordagem que em geral propõe permite o debate produtivo com as mais diversas tradições, incluídos o marxismo e o socialismo “evolucionários”, para os quais a revolução há muito deixou de ser uma irrupção violenta ou um fetiche ideológico a que todo o resto deve estar subordinado. Também dessa ponta do espectro se propõem mudanças “moleculares”, certamente em direções novas e diferentes, e tais mudanças, sendo pela própria natureza objeto de disputa ou de negociação, envolvem a participação consciente dos cidadãos e decidem-se no terreno da política como mútua persuasão.

O conservadorismo revolucionário, porém, é inerentemente subversivo. As instituições e as interações sociais devem ser dobradas em sentido autoritário e, se preciso, dilapidadas. Há um pesado elemento ideológico nele envolvido, a saber, a difusão massiva de meias-verdades ou mentiras consumadas. Um elemento, portanto, com amplas implicações “cognitivas”, a disseminar a irracionalidade. Inaugurando a noite em que todos os gatos são pardos, a irrazão é que permite a construção de um consenso passivo em torno de práticas e políticas fortemente regressivas. Não há nenhuma inocência na estratégia que promove a “pós-verdade” nem se trata propriamente de diversionismo para encobrir assuntos mais sérios.

Esse conjunto de problemas, de dimensões mundiais, também nos afeta em cheio e será um legado tremendo para o ano próximo. Nesse sentido, 2020 é mais um daqueles anos cujos fantasmas vão querer nos assediar sem descanso. Só que agora nosso país, muitas vezes desanimadoramente lento em curar suas feridas, não tem tempo a perder. Homens e mulheres de bem, só com as armas da política, terão de encontrar rapidamente outro caminho mais razoável.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Eugênio Bucci: Seu desaforista!

O novo Odorico leva o povo para o altar do sacrifício. Que morram muitos mais. E daí?

Em 1973 não havia liberdade de expressão no Brasil. A ditadura militar torturava dissidentes, exterminava guerrilheiros no Araguaia e tolhia a imprensa. Nas redações dos jornais, censores cortavam reportagens inteiras poucas horas antes de os cadernos começarem a ser impressos nas rotativas. Preencher os vazios abertos pela tesoura da repressão política era um tormento. Este jornal, O Estado de S. Paulo, encontrou uma solução heterodoxa: no lugar do material censurado, passou a publicar trechos de Os Lusíadas, de Luís de Camões. Entre 2 de agosto de 1973 e 3 de janeiro de 1975, foram 655 inserções do épico lusitano nas páginas do Estado, conforme levantamento feito pelo jornalista José Maria Mayrink.

Pois no mesmo ano 1973, em meio a tantas trevas, entrou no ar uma criação primorosa do dramaturgo brasileiro Dias Gomes: O Bem-Amado. Sob a vigência da mordaça absoluta, O Bem-Amado estreou com a força de uma apoteose libertária e satírica. Era um contrassenso: como podia haver espaço na televisão para tamanha exuberância criativa, e tão crítica, sob uma tirania tão estupidamente violenta?

Dias Gomes era um autor de esquerda, com ligações históricas com o Partido Comunista, e dono de um talento assombroso. O protagonista que ele inventou para O Bem-Amado, Odorico Paraguaçu (interpretado pelo ator Paulo Gracindo), comandava com mão de ferro, sem nenhum constrangimento de ordem moral, a prefeitura da fictícia Sucupira. Odorico era um canalha corrupto e truculento que, sob o gênio de Dias Gomes, ganhava ares despudoradamente cômicos. Nisso residia seu carisma. Falastrão semianalfabeto, posava de orador erudito à custa de expressões incultas, mas empoladas, que proclamava em tons triunfais. Gostava de xingar os adversários de “desaforistas” e quando queria humilhar os subordinados dizia que eram “desapetrechados de inteligência”.

Se diante dos noticiários de TV a sociedade prestava silêncio obsequioso aos ditadores que se sucediam, diante da novela podia rir deles sem medo da cana. Graças a Odorico Paraguaçu, o país vilipendiado caçoava do arbítrio, da demagogia e da estultice. Foi um sucesso instantâneo e impune. Os homens da ditadura, que se viam como agentes “modernizantes” e “urbanos”, não percebiam que o prefeito de Sucupira, de feitio rural, regionalista, antiquado e ridículo, era o retrato escarrado deles mesmos. A ditadura era burra, tão burra que batia palmas para a televisão que a fazia de palhaça. Contrassenso total.

Odorico se impôs de tal maneira que nunca mais saiu de cartaz. A Rádio CBN andou usando diálogos da antiga novela para ilustrar a desconversa de políticos da vida real acusados de corrupção. Agora, nos dias que correm – embora corram sem sair do lugar –, recortes de cenas impagáveis viajam nas redes sociais para delícia dos públicos mais diversos,

As semelhanças com o presente são efetivamente cômicas, mas também estarrecem. Numa das cenas que hoje circulam nas redes, Odorico aparece conversando com seu assessor direto, o igualmente antológico Dirceu Borboleta, interpretado por Emiliano Queiroz. O assunto é uma epidemia que ameaça Sucupira. O prefeito armou uma tramoia para impedir que o dr. Leão (Jardel Filho), seu desafeto político, distribua a vacina. Dirceu não se conforma. Sabendo que Odorico vai interceptar o carregamento das vacinas do dr. Leão, interpela o chefe para expressar sua discordância exasperante.

Com a voz medrosa, em titubeios que vão e vêm, Borboleta empreende enorme esforço para externar seu protesto. Ele, sempre submisso, está quase fora de controle. Aquilo não pode ser. Dirceu se exalta. Como deixar sem proteção o povo de Sucupira?

O prefeito reage, impaciente: “E daí, seu Dirceu?”. Esse “e daí?” soa chocante. O espectador descobre que a pergunta retórica vem de entranhas imemoriais da política nacional. O “e daí?”, como expressão de desprezo pela vida, não é de hoje.

Dirceu não se cala. Tomado de furor cívico, aumenta a voz: haverá um “assassinato em massa, um genocídio”. Passa a mão direita sobre a manga da camisa no antebraço esquerdo, como se acometido de comichões, dizendo que isso lhe dá “até arrepio”.

Então Odorico se põe em brios patrióticos, ralha com o assessor e começa a explicar seu plano. Diz que não vai impedir a vacinação, mas apenas desviar o carregamento para o posto de saúde que planeja inaugurar na cidade. Aí, sim, entregará a salvação sanitária a todos e todas. O herói será ele, Odorico, e não o dr. Leão, esse tal “que está do outro lado, do lado da oposição”. Dirceu vai se resignando, vai se rendendo, compreende o plano e fica aliviado. De um jeito ou de outro, a vacina virá e, para ele, está bom assim.

É fato que hoje, na Sucupira Central, há um Odorico pior, assumidamente genocida, que quer exterminar a vacina da oposição sem ter nada para oferecer no lugar. O novo Odorico seguirá levando o próprio povo para o altar do sacrifício ritual. Que morram mais, muitos mais. “E daí?”.

Dias Gomes talvez tenha sido um humorista profético. Ou um charadista. Em que chave cômica se explica a tragédia brasileira?

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Merval Pereira: Negacionismo numa hora dessas?

Quando todo o mundo se prepara para uma campanha massiva de vacinação contra a Covid-19, o presidente Bolsonaro continua a fazer campanha contra a vacina.

Como quem fazia um comentário banal, deu uma declaração absurda: “Se as vacinas tiverem efeito colateral, não podem me culpar”. Uma atitude irresponsável, porque coloca dúvida e medo no cidadão comum. Ele trabalha contra a vacinação, não apenas contra a vacinação obrigatória. Um negacionismo a toda prova.

Lançar dúvida sobre a eficácia das vacinas, que estão sendo produzidas pelos principais laboratórios farmacêuticos do mundo e sob supervisão internacional, é quase um crime em uma pandemia mundial. O pior é que o ministro da Saúde, General Pazuello, supostamente à frente do ministério por ser um especialista em logística, acha que o tratamento preventivo é a grande solução.

Os verdadeiros médicos estão irritadíssimos, porque as pessoas vão começar a se automedicar, tomar remédios preventivos, sem nenhum resultado, porque ainda não existe remédio que resolva. Porque acredita nessas baboseiras, e não acredita na vacina, o governo atrasa a logística da vacinação, a negociação das vacinas.

A vacina da Pfizer, que é reconhecidamente mais complicada de logística de armazenamento, pois exige uma refrigeração de -70 graus, foi praticamente descartada pelo governo, mas vários países da América Latina, como Costa Rica, México, Chile, Equador, Panamá estão montando a logística especial para recebê-la.

Aqui no Brasil, a Bahia anunciou que já está comprando refrigeradores especiais para armazenar as vacinas da Pfizer e da Moderna, dos Estados Unidos. Sem falar nos países europeus que começarão a vacinação ainda em janeiro.

O grande problema é que o governo parece não querer fazer uma política nacional de vacinação contra Covid-19, provavelmente acha que vacinação não é a solução, assim como Bolsonaro continua com a ideia de que usar máscara é uma bobagem - “o último tabu que vai cair”-, e que o distanciamento social não previne nada.Como insiste em dizer nosso “especialista” Bolsonaro, todo mundo vai pegar a Covid-19 e vai acontecer a tal da imunidade do rebanho para resolver a questão.

O ponto não é esse, é quanta gente vai morrer mais enquanto a imunização natural não se completa? Já estamos novamente com números de contaminados e de mortes em escala crescente, e a segunda onda parece uma realidade cada vez mais próxima no país. Enquanto isso, Pazuello, seguindo o pensamento de Bolsonaro, fala em onda de suicídios, de depressão, “mortes advindas do desastre econômico e social”.

Mas Bolsonaro está dando uma orientação burra ao seu governo, até mesmo do ponto de vista de quem, como ele e Pazuello, dá mais importância à recuperação econômica do que ao combate à Covid-19. A vacinação imediata sendo mais eficaz, a economia será retomada mais rapidamente, mas ele não consegue entender isso. E faltam até mesmo as seringas para a vacinação em massa. As empresas produtoras dizem que o último contato com o governo foi em setembro, e nada evoluiu de lá para cá.

Tudo indica que vamos ter problema sério a partir de janeiro. O governador de São Paulo, João Doria, anunciou ontem que a Coronavac, de origem chinesa que está sendo produzida pelo Instituto Butantã a partir de matéria prima do laboratório Sinovac, vai estar disponível para vacinação já em janeiro, e espera que a ANVISA libere logo. Também em janeiro, a Fiocruz já vai produzir 30 milhões de doses da vacina da empresa AstraZeneca em colaboração com a Universidade de Oxford, mas o governo só quer começar a distribuição a partir de março.

Tem gente que diz que uma boa aposta é entre abril e maio, porque a estrutura para a distribuição tem que ser montada. Já devia estar pronta, pois temos o know-how de vacinação nacional contra gripes e outras doenças, mas não está. Nosso especialista em logística ainda não sabe como organizar uma vacinação em massa.


Elio Gaspari: Há racismo e também demofobia

Desigualdade não explica assassinato de Beto Freitas em Porto Alegre

Só na semana que vem será possível medir o impacto eleitoral do assassinato de João Alberto Silveira Freitas pela milícia formalizada da rede francesa Carrefour em Porto Alegre. No dia 9 de novembro de 1988 uma tropa do Exército matou três operários que ocupavam a usina de Volta Redonda. Seis dias depois, para surpresa geral, a petista Luiza Erundina foi eleita para a Prefeitura de São Paulo.

Como disse o vice-presidente, Hamilton Mourão, João Alberto, o Beto, era uma “pessoa de cor”. Seu assassinato aconteceu no mesmo dia em que o Carrefour anunciava na França sua disposição de boicotar os produtos brasileiros vindos de áreas desmatadas do cerrado. Beleza, em Paris milita-se na defesa das árvores enquanto em Porto Alegre mata-se gente.

Esse tipo de comportamento é velho e disseminado. Em 2001 a milícia formalizada da rede Carrefour prendeu duas mulheres no Rio de Janeiro e entregou-as à milícia informal de traficantes de Cidade de Deus. Foram espancadas, mas os bandidos não cumpriram a ameaça de queimá-las vivas. Quando o caso foi denunciado, o embaixador francês era o professor Alain Rouquié, um conhecido intelectual parisiense. Ele foi ao governador Anthony Garotinho e reclamou do noticiário que prejudicava a imagem internacional do Carrefour.

Pelos critérios americanos do século 19 e sul-africanos do 20, Mourão é uma “pessoa de cor”. A escrava de Thomas Jefferson com quem ele se acasalava era mais branca que o general.

Segundo o vice-presidente e muita gente boa, no Brasil não existe racismo, existe desigualdade. O que pretende ser uma explicação é um agravo. Desigualdade não explica esse tipo de assassinato. Eles são produto da demofobia, onde o racismo tem um papel funcional, pois a cor identifica as pessoas sem direitos. Se Mourão tivesse razão, a coisa funcionaria assim: se você é pobre, ferra-se, se ainda por cima é negro, dana-se. Pelo menos um dos três mortos de Volta Redonda era branco.

Brincando com computadores

O presidente do Conselho Nacional de Justiça, ministro Luiz Fux, anunciou que “nós precisamos nos aprimorar em aspectos tecnológicos, principalmente porque estamos lançando, pelo CNJ, o Juízo 100% Digital.”

Atrás desse nome bonito está a ideia de colocar todos os processos do país numa rede de computadores. Coisa de sonho. Como ensina a cartilha do CNJ: “Os magistrados poderão dar vista às partes para que digam se concordam com a tramitação de ação já distribuída de acordo com o rito do ‘Juízo 100% Digital”.

Entre a ficção de Brasília e a realidade de Pindorama, o projeto perfilhado por Fux equivale a uma cerimônia na qual o prefeito de Macapá anuncia um novo sistema de iluminação pública para a cidade.

O sistema foi exaltado durante a primeira reunião do Comitê de Segurança Cibernética do Poder Judiciário, criado do dia 11 de novembro. A porta havia sido arrombada uma semana antes, quando a rede do Superior Tribunal de Justiça foi invadida e a corte ficou vários dias fora do ar. Quatro dias depois o computador do Tribunal Superior Eleitoral engasgou, atrasando por algumas horas o resultado da eleição de domingo.

O problema seria despiciendo se não tivesse sido precedido por promessas megalomaníacas de pontualidade que chamavam o equipamento de “supercomputador”. Investigado, o acidente revelou-se consequência de um atraso na entrega de máquinas que deveriam ter chegado em março e só vieram em agosto.

Um Judiciário 100% digital é boa ideia, mas precisa de muita transparência e pouca pressa. Essa panela está no fogão do CNJ desde o ano passado e começou a andar depressa em julho, no meio da pandemia.

A iniciativa depende da utilização de um programa de integração das varas, criando um padrão que deverá ser seguido por todos os tribunais. Não se conhece o detalhamento da demanda. É coisa grande e tramita no sistema de reuniões virtuais dos ministros. Felizmente, a ministra Maria Thereza Assis Moura, corregedora nacional de Justiça, pediu que assunto fosse discutido numa reunião presencial. Ela deve se realizar na terça-feira (24).

O escurinho de Brasília já produziu um edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação que pretendia torrar R$ 3 bilhões comprando computadores, laptops e notebooks para os alunos da rede pública. A Advocacia-Geral da União mostrou que a licitação estava viciada e que os 255 alunos de uma escola mineira receberiam 30.030 laptops. Até hoje não se sabe quem botou esse jabuti na árvore.

O “Juízo 100% Digital” precisará de software. Sem ameaçar a segurança da rede, o CNJ tem meios para divulgar as exigências técnicas para equipá-lo. Além disso, está embutida na ideia um discutível encanto pelo trabalho remoto.

Fux tem toda razão quando diz que “precisamos nos aprimorar em aspectos tecnológicos”. Quem já comprou um computador ou já contratou um serviço sabe que a melhor maneira para fazer isso é estudar direito as propostas, para cantar vitória depois. Em Brasília cultiva-se outro modelo: havendo um problema, lança-se um novo projeto.

Até tu, OAB?

A Ordem dos Advogados do Brasil se mete em tudo. Agora a Operação Biltre da Polícia Federal bateu em doutores que mexiam com processos do Tribunal de Ética e Disciplina da sua seccional paulista. Segundo as denúncias, a tarifa era de R$ 250 mil.

Diante dos mandados de busca e apreensão a seccional informou que “em razão da investigação a que tivemos notícia nesta data foi determinada a imediata apuração interna sendo que a OAB e o seu Tribunal de Ética e Disciplina estão cooperando com as autoridades competentes”.

Ótimo, mas o uso da expressão “está cooperando” tornou-se uma girafa desde quando foi usada pela Odebrecht.

No caso da Odebrecht, como se viu, o problema estava no fato de que a colaboração só começou quando chegaram os homens da Federal.

Para o bem de todos, a OAB de Raymundo Faoro não deixará essa história sair a preço de custo.

MADAME NATASHA

Natasha não perde uma fala de Bolsonaro e acredita que ele merece uma sugestão astroidiomática. A senhora acredita que deve pensar duas vezes antes de usar diminutivos.

Na metade de março, quando a Covid havia matado menos de dez pessoas, ele falou em “gripezinha” e “resfriadinho”. Na sexta-feira, 13, quando já haviam morrido mais de 160 mil pessoas, ele disse que “agora tem essa conversinha de segunda onda”. Na véspera a pandemia teve um pico, com 908 mortes.

Natasha é supersticiosa e suspeita que os diminutivos do capitão chamam desgraças.


Eliane Cantanhêde: Nosso Floyd, nosso Trump

Por mais absurdo, Camargo faz sentido num governo negacionista e 'daltônico'

O presidente Jair Bolsonaro e o vice Hamilton Mourão têm posições divergentes numa série de questões, inclusive na política externa e na importância das vacinas contra a covid-19, mas em algo eles estão perfeitamente em sintonia: ambos dizem abertamente que não há racismo no Brasil. Nesse caso, o negacionismo não é exclusividade do presidente.

Ao se dizer “daltônico”, Bolsonaro admite que não consegue ver a realidade, os fatos e estatísticas, mostrando, por exemplo, que 75% das mortes violentas no país que governa são de pretos e pardos. Para disfarçar, tira pilhas de fotos com o deputado Hélio Negrão. E Mourão, que já chocou ao falar em “malandragem dos africanos”, voltou à carga. Quando? No dia da Consciência Negra, quando João Alberto foi assassinado brutalmente, como George Floyd nos EUA, por… ser negro.

“Digo com toda a tranquilidade: não existe racismo no Brasil”, declarou Mourão, que chama negros de “pessoas de cor” e, depois de morar nos Estados Unidos, garante que “racismo tem é lá”, aqui “a sociedade é misturada”. Como não é ignorante, muito pelo contrário, deveria olhar os dados oficiais sobre desigualdade, escolas, prisões, violência policial, mercado de trabalho. O racismo é real, massacrante.

A ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, criticou duramente a morte de João Alberto, o Beto, mas sem usar a palavra “racismo” e sem sequer dizer que ele era negro – aliás, como omitiu a própria ocorrência policial. E o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, um negro doentio que nega o racismo, diz que a escravidão foi boa e acusa os movimentos negros de “escória maldita”, fez ainda pior. Em vez de repúdio ao massacre do Beto por dois seguranças brancos – o que não mereceu um gesto ou manifestação dele –, Camargo pregou o fim do Dia da Consciência Negra, porque “não existe racismo estrutural no País”. Partindo de brancos já é inadmissível; de um negro, é imoral. E um negro que preside o órgão responsável pelo rico acervo da história dos afrodescendentes no Brasil.

Por mais absurdo que Camargo seja, porém, ele faz todo sentido num governo que nomeia um cidadão que jamais pisara na Amazônia para o Meio Ambiente, um embaixador júnior de textos e discursos sem nexo para o Itamaraty, uma mulher que é contra os avanços civilizatórios para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.

E na Educação? Um estrangeiro que se atrapalhava com o português, um desqualificado que ameaçava prender os ministros do Supremo, um fraudador de currículos e agora um pastor para quem os gays são fruto de “famílias desajustadas”. Sem falar, claro, de um general intendente para o Ministério da Saúde em plena pandemia e de um secretário de Cultura que usava eventos oficiais para divulgar textos e símbolos nazistas. Camargo, portanto, está em casa.

Uma única palavra resume tudo isso: negacionismo. Porém, ministros e secretários não passam de meros papagaios e executores de políticas que aterrorizam o mundo e o novo presidente dos EUA, Joe Biden, mas vêm “de cima”. Embriagado pela ideologia e por uma desconcertante ignorância sobre tudo, o presidente nega racismo, pandemia, queimadas, ciência, estatística e, principalmente, bom senso e bons modos.

Não, Bolsonaro não é culpado pelo assassinato do Beto, mas ele precisa admitir que o racismo existe, é imoral e criminoso e que o Dia da Consciência Negra é um grito de alerta, de socorro e de Justiça. Mulher branca, eu jamais seria trucidada por dois brutamontes covardes num supermercado. Beto foi por ser um homem negro e pobre, como tantos filhos, pais, irmãos e maridos trucidados neste País todos os dias, toda hora. É racismo, sim! Vidas negras importam!


Ricardo Noblat: Exortação à brava gente brasileira

Longe vá temor servil

Racismo não existe. Tampouco desmatamento da Amazônia e, nesse caso, embaixadores de países europeus puderam conferir ao vivo. Pantanal em chamas? Que é isso? Começou a chover por lá. Quanto à pandemia, não passou de exagero da Organização Mundial de Saúde. Foi uma gripezinha. Só os mais fracos, que mais dia, menos dia, morreriam, de fato morreram.

E antes de dar por findo o rol de fake news criadas pelos verdadeiros inimigos do Brasil – sim, os extremistas de esquerda -, acrescente-se que ditadura militar, por aqui, nunca houve. Nem assassinatos de inimigos de um regime que, no limite, pode ser chamado de autoritário. Necessariamente forte na época em que o comunismo ameaçava a civilização ocidental e cristã.

Resta desmentir o apagão que deixou às escuras 13 dos 16 municípios do Amapá esquecido durante 14 anos pelos governos do PT e de Michel Temer. Exagero chamar de apagão o que ocorreu por lá. Um raio queimou duas subestações de energia. Quem pode prever um raio e o local onde ele vai cair? De imediato, o governo federal tomou as providências cabíveis.

Diga-se que o governo federal nada teria a ver com isso. A responsabilidade é do governo local. Mas o presidente da República não ficaria de braços cruzados enquanto uma fatia dos brasileiros enfrentasse dificuldades mesmo que temporárias. Em breve, a luz voltará a iluminar o Amapá. E as vozes isoladas que, ontem, hostilizaram o presidente se calarão arrependidas.

O país está em ordem. Reina a paz. E dará em nada a tentativa em curso de importar o vírus da segregação social para se jogar irmãos contra irmãos só porque dois policiais mal treinados mataram sem querer uma pessoa de cor. Somos todos daltônicos, e assim deveremos ser. As cores que enxergamos são o verde e o amarelo. Nossa bandeira jamais será vermelha. Deus acima de tudo!


Bernardo Mello Franco: O negacionismo no poder

A Amazônia não está em chamas. O aquecimento global é uma ficção. O Brasil nunca teve ditadura. A Covid é só uma gripezinha. Não há mais corrupção no governo.

Na sexta-feira, o vice-presidente Hamilton Mourão deu uma nova contribuição à galeria de mentiras oficiais. “No Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar”, afirmou o general.

O negacionismo é um dos pilares do bolsonarismo. O capitão e seus aliados travam uma guerra permanente contra a verdade. Não se trata de discordar do politicamente correto. A ordem da extrema direita é desacreditar os fatos, a ciência e as instituições que fiscalizam o poder: imprensa, universidades, organizações não governamentais.

Mourão negou a existência do racismo no Dia da Consciência Negra, criado para lembrar o que figuras como ele tentam esconder. Neste ano, a data foi banhada de sangue. Na véspera do feriado, dois seguranças brancos espancaram um homem negro até a morte numa filial do Carrefour em Porto Alegre.

A negação do racismo é coerente com o histórico de declarações do general. Em agosto de 2018, ele culpou a miscigenação por uma suposta aversão dos brasileiros ao trabalho.

“Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. Eu sou indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem, nada contra, mas a malandragem é oriunda do africano”, afirmou, numa palestra em Caxias do Sul.

Dois meses depois, Mourão fez uma piada racista ao elogiar a aparência do neto. “Meu neto é um cara bonito, viu ali? Branqueamento da raça”, disse, em Brasília.

O crime do Carrefour escancara o que hoje é chamado de racismo estrutural. João Alberto Silveira Freitas pode não ter sido morto por ser negro, mas provavelmente estaria vivo se fosse branco. Brasileiros pretos e pardos sabem o que é entrar numa loja e serem tratados como suspeitos em potencial. Estão mais expostos a revistas, humilhações e espancamentos.

A rotina de discriminação se reflete nas estatísticas da violência. Negros têm 2,7 vezes mais chances de serem assassinados, informa o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Representam 56% da população e 74% das vítimas de homicídio doloso no país. Oito entre dez brasileiros mortos pela polícia são pretos ou pardos. João Alberto foi espancado até a morte por um PM e um segurança particular.

O racismo sempre esteve entre nós, mas agora se instalou no gabinete presidencial. Bolsonaro já responsabilizou os negros pela escravidão, chamou a política de cotas de “coitadismo” e equiparou quilombolas a animais que têm o peso medido em arrobas. A Procuradoria-Geral da República o denunciou por crime de racismo, mas o Supremo arquivou o caso às vésperas da eleição de 2018.

Cada ofensa que permanece impune vira um novo incentivo à violência. No poder, o capitão entregou a Fundação Palmares a um provocador profissional, cuja única tarefa é atacar ativistas negros. O general Mourão não está na Vice-Presidência por acaso. Apesar das divergências eventuais, ele é um legítimo representante da turma.


Vladimir Safatle: não falar

Diante de 100.000 mortos, ocupar os espaços públicos para falar à classe média como suportar a pandemia é só outra forma de puxar o gatilho

A ideia inicial era escrever outro artigo. Depois de meses envolto em questões sobre pandemia e escalada autoritária, a ideia era falar de algo outro., qualquer coisa de outro. Mas é possível que em situações parecidas o dito de Adorno “Não é possível fazer poesia após Auschwitz” ganhe certa atualidade e se imponha em sua força. Um dito arquiconhecido, é verdade, mas que talvez queira dizer algo muito preciso e por vezes esquecido. Claro que não significava que a poesia era agora coisa do passado. A poesia não tem passado, nem presente e muito menos futuro. Só que Adorno procurava dizer que, para escrevê-la a partir de então, haveria de se sentir o impossível de uma língua que não quer mais voltar ao normal, que não quer voltar às formas de lírica depois que descobrimos não exatamente a morte industrial, mas a indiferença à morte industrial como funcionamento social normal.

Cada palavra, para ter algum conteúdo de verdade, deveria saber como ressoar esse “não é possível”, deveria deixar claro sua vontade de explodir uma gramática que parecia profundamente cúmplice da violência do que não se pode tolerar. Sorrir, dizer “cuide de si”, tocar um acorde perfeito, falar “eu te amo” era apenas outra forma de puxar o gatilho mais uma vez. Diante de 100.000 mortos, ocupar os espaços públicos para falar à classe média como suportar a pandemia é só outra forma de puxar o gatilho. 

Por isto, o dito de Adorno talvez devesse ser lido conjuntamente com outra frase, esta vinda de Vladimir Maiakovsky: “Dai-nos uma arte revolucionário que livre a república dessa escória”.  Essa escória que a República se tornou, essa mistura de ritmo de matadouro com lives sobre os desafios da paternidade e ensinamentos sobre “como viver sozinho e permanecer feliz”, que ela se arruíne para sempre. Mas ela só começará a ruir quando nos confrontarmos a uma língua que não queira mais falar como até agora se falou, que se recuse a pactos em todos seus níveis. Que não terá mais o tom dos conselhos psicológicos que damos a deprimidos ou a pessoas que esperam de terceiros alguma descrição sobre o caminho da felicidade, que não confundirá mercadorias da indústria cultural e suas linguagem reificadas como a forma máxima da emancipação racial. Como essa linguagem, com essas falas, com essa naturalização da degradação da língua, não há política alguma. 

Diante da catástrofe (e o que temos diante de nós é a descrição mais clara de catástrofe ―não apenas a catástrofe do número impensável de mortos por negligência do estado, mas a catástrofe da “vida normal” que parece voltar em uma letargia muda), seria o caso de dizer que este é um país não-viável, sentir até o mais profundo de nossos ossos sua inviabilidade para que esse sentimento queime todo e qualquer desejo de retorno em direção ao que quer que seja.   

Ao menos, esse desejo de não-retorno nos pouparia do último de nossos “desejos responsáveis” que só serviram para cavar mais fundo o impasse, a saber, os chamados para grandes “frentes amplas” contra o fascismo (e se me permitirem, vai aqui uma autocrítica pois até eu assinei um desses chamados, o que definitivamente não faria novamente). Pois esse é o país das frente amplas inúteis, dos bons sentimentos de responsabilidade civil que produzem monstros. Esse é o país dessa linguagem do “diálogo” entre “diferentes”. Do eterno diálogo de cúmplices. O mesmo argumento estava lá a selar o aperto de mão entre Luis Carlos Prestes e Getúlio Vargas no final da Segunda Guerra. Uma frente ampla com comunistas, trabalhistas e os bons e velhos representantes das oligarquias locais. O resultado não foi brilhante. Ele voltou mais outra vez como certidão de nascimento da Nova República quando uma outra frente ampla subiu aos palanques para dizer um “eu quero votar para presidente” que apenas serviu para dar alguma forma de legitimidade  ao pacto de paralisia que nos marcará durante os trinta anos por vir, pacto selado entre oposicionistas moderados e governistas sagazes.  Se as palavras de ordem fossem para valer, a primeira coisa que Tancredo Neves-José Sarney teriam feito seria renunciar para a convocação de eleições gerais imediatas. Mas, não. Era o mesmo discurso “contra o ódio” (que, na época, atendia por outro nome. Seu alcunha era “revanchismo”).

Agora, foi necessário apenas duas semanas para entender qual era a real função da “frente ampla”. O Brasil conhece atualmente forte tensão entre uma extrema-direita popular de claros traços fascistas, que controla o executivo, e uma direta tradicional e oligárquica, que controla o judiciário e o legislativo. Novos atores fora do horizonte tradicional da política, vindos do lumpem-proletariado, e a casta política tradicional. Os dois lados do embate representam os mesmo interesses econômicos, comungam do mesmo projeto, mas não obedecem a mesma cadeia de comando. Era necessário um certo equilíbrio temporário que não dizia em nada a respeito de políticas de proteção da população contra a pandemia, mas apenas a uma geometria mais “estável” de partilha do poder. Geometria esta conquistada através da pressão da  chamada “frente ampla”. 

Esta era apenas uma forma de pressão que em momento algum levou efetivamente em conta a possibilidade de lutar para afastar o Governo. Assim, o país pode continuar a assassinar sua população vulnerável enquanto preserva a ilusão própria a esta “democracia geograficamente sitiada” que construímos. Democracia que funciona em um espaço geográfico definido nas regiões centrais das grandes cidades enquanto inexiste em suas periferias e nas relações no campo. Foi para preservar essa democracia geograficamente sitiada que ameaçava ruir que tais “frentes amplas” foram convocadas.

Ou seja, na hora de tomar ciência do intolerável, de mobilizar o entusiasmo para a tarefa dura e necessária de parar de falar como sempre falamos e começar a falar de outra forma, um falar de outra forma que produz necessariamente um agir de outra forma (já que vale aqui o dito de Austin, “dizer é fazer”), eis que reencarnam os mesmo enunciados, com seus mesmos tons e exortações, com suas mesmas falas de duplo sentido, que devem ser sempre lidas nas entrelinhas.  

Esse país deveria aprender a recusar as falas que lhe são impostas, recusar a crença de que nossa emancipação se dará com as formas produzidas pelos setores mais fetichizados da indústria cultural, recusar os que nos aconselham o que fazer com nossos conflitos insolúveis, sejam eles individuais ou sociais. Parecem tipos de problemas diferentes colocados, de forma indevida, em um mesmo nível. Mas quando a imaginação social de um país se paralisa, todos os níveis da vida parecem girar em torno da mesma cantilena. Melhor seria lembrar, como dizia Wittgenstein, que: “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Essa deveria ser a primeira lição para todos os que querem realmente entender política: explodir os limites da linguagem para que o mundo vá junto.