negacionismo

Elio Gaspari: Quem protegeu a Prevent?

Na quarta-feira deverá comparecer à CPI da Covid o doutor Paulo Roberto Vanderlei Rebello Filho, diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde (ANS). Ele poderá contar o que fez diante das denúncias do comportamento da Prevent Senior durante a pandemia. A primeira suspeita de que havia fogo debaixo daquela fumaça veio do próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em abril de 2020, quando ela tinha no acervo 58% dos mortos de São Paulo. O dono da operadora chamou-o de “irresponsável” e, pelo que se viu, colocou sua empresa debaixo da asa do Planalto, maquiando mortes, empurrando cloroquina e ameaçando médicos com retórica de miliciano.

O que a ANS fez? A autossatanização da Prevent tem no seu bojo uma competição empresarial, e a Agência a conhece muito bem. Nesse mercado há de tudo: portas giratórias, capilés e jabutis em medidas provisórias. A Justiça guarda pelo menos duas delações premiadas de uma empresa corretora de planos que concordou em pagar R$ 200 milhões de multa.

Durante os dias da Lava-Jato, chegou-se a especular que os procuradores voltassem seus olhos para a privataria da saúde. Quando apareceu a lista de operadoras de planos entre os patrocinadores das palestras de um deles, viu-se que rendiam pelo menos “R$ 10 mil limpos”. A Lava-Jato olhou para outros lados.

A Prevent é um caso em si, e seus maganos estão sofrendo pelo que fizeram, mas a ANS sabe muitos mais. Basta lembrar que foi ela que obrigou as operadoras de planos a cobrirem os custos dos testes para o vírus. Até a terceira semana de março do ano passado havia operadoras se recusando a fazê-lo. Até agosto, quando os mortos passavam de 90 mil, alguns planos continuavam negando cobertura aos testes sorológicos. Só a ação da ANS os levou a mudar de conduta.

De Pedro@gov para Fabio.Jatene@edu

Prezado doutor Jatene,

Escrevo-lhe por sugestão de meu médico, o conde de Motta Maia, do nosso velho amigo Louis Pasteur e de seu pai, o doutor Adib.

Na noite de 17 de novembro de 1889, quando uns militares me embarcaram como negro fugido, mandando-me para a morte no exílio, eu lhes disse: “Os senhores são uns doidos”.

Passou-se o tempo e vejo que, de tempos em tempos, nossa terra fica nas mãos de doidos. Em março do ano passado, vosmicê disse que 45 mil moradores de São Paulo seriam atingidos pela epidemia desse novo vírus. Foi um Deus nos acuda, como se o senhor fosse mais um doido. Na semana passada, os infectados da sua cidade passaram de 1,5 milhão. Os mortos foram 30 mil.

O doutor Pasteur horrorizou-se com os charlatães que empurravam cloroquina nos pacientes e pediu-me que vosmicê lembrasse aos seus colegas e a esse moço que governa o Brasil o que lhe aconteceu, lidando comigo, em 1884.

Ele pesquisava uma vacina contra a raiva. Aplicando-a em cães, havia dado resultado, mas era preciso testá-la em gente. Foi quando me escreveu, oferecendo-se para testá-la no Brasil. Pedia que eu a oferecesse a presos condenados à morte, no dia da execução. Tomariam a vacina. Se morressem, ficaria tudo igual. Se sobrevivessem, estariam livres. Eu lhe disse que no Brasil não aplicávamos mais a pena de morte, pois eu a comutava.

(Como bom dissimulador, estava desconversando, reconheço.)

Os doidos daí testaram a tal cloroquina sem informar aos pacientes, e o moço do governo fez propaganda do remédio até em reuniões de chefes de Estado.

Mesmo entristecido, sinto-me vingado: os senhores são uns doidos.

Atenciosamente,

Pedro de Alcântara.

Jango em Moscou e na China

Passados 60 anos, veio à tona o relatório do embaixador João Augusto de Araújo Castro, narrando a visita de João Goulart à China, em agosto de 1961. O texto é de 4 de setembro, quando a crise provocada pela renúncia do presidente Jânio Quadros já havia esfriado, com a solução do parlamentarismo que permitiria a posse de Jango.

Em 30 páginas, Araújo Castro conta a passagem da comitiva do então vice-presidente por Moscou e Beijing. No dia 25 de agosto, quando Jango já estava em Singapura, Jânio renunciou. Mais tarde, Araújo Castro viria a ser o último chanceler de Goulart e morreria em 1975, como embaixador do governo do general Médici em Washington.

O relatório de Araújo Castro mostra como os chineses tentaram forçar a transformação de um acordo interbancário num sinal de reconhecimento do governo de Beijing, com o qual o Brasil não tinha relações diplomáticas. Jango e Castro habilmente contornaram a manobra e acabou tudo bem.

Antes de chegar a Beijing, a comitiva de Goulart passou por Moscou, onde Jango se encontrou com o primeiro-ministro Nikita Kruschev e ouviu o seguinte: “Eu disse a Kennedy (o presidente dos Estados Unidos): Fidel Castro não é comunista, mas acabará sendo. Ele não tem alternativa.”

Kruschev tinha um viés fanfarrão, mas sabia do que estava falando.

Naqueles dias, os Estados Unidos já haviam rompido relações com Cuba, e a Casa Branca havia patrocinado uma fracassada invasão da ilha.

No dia em que Araújo Castro assinou seu relatório, Fidel mandou uma carta a Kruschev pedindo 388 mísseis de curto alcance. Era o início de uma negociação que evoluiu para a entrega de ogivas nucleares capazes de atingir os Estados Unidos e, um ano depois, levou o mundo para a beira da Terceira Guerra Mundial.

Valentia incompleta

A Universidade de Campinas cassou o título de doutor honoris causa que concedeu em 1973 ao então ministro da Educação, Jarbas Passarinho.

Coronel da reserva, Passarinho morreu em 2016. Ele mandou às favas os seus escrúpulos de consciência quando defendeu a edição do AI-5, em 1968. É direito de qualquer universidade conceder e mesmo cassar títulos de doutorado honoris causa, mas fazê-lo depois da morte do homenageado, é coisa meio girafa. A Federal do Rio de Janeiro cassou o título do presidente Emílio Médici em 2015, 20 anos depois de sua morte.

Seria o jogo jogado se as congregações das universidades divulgassem, junto com a cassação da honraria, quase sempre bajuladora, a lista dos professores doutores que a concederam. Afinal, nem Médici nem Passarinho pediram coisa alguma.

Sinal do Centrão

Jair Bolsonaro assumiu sabendo que não tinha base parlamentar além do cacife da Bolsa da Viúva. Fala em “bancadas temáticas”, uma espécie de cloroquina política.

Aninhando-se no Centrão, conseguiu a proeza de ver derrubados 12 de seus vetos num só dia.

O Centrão sentiu cheiro de queimado.

O repórter Lauro Jardim informa que Lula combinou um jantar para quarta-feira. Nele poderão estar, além do ex-presidente José Sarney:

Eunício de Oliveira, dono da casa, foi ministro das Comunicações de Lula.

Edison Lobão foi ministro de Minas e Energia de Lula e de Dilma Rousseff.

Jader Barbalho foi ministro da Previdência de Sarney.

Renan Calheiros foi ministro da Justiça de FHC.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/quem-protegeu-prevent-1-25222231


Elio Gaspari: Quem protegeu a Prevent?

A Prevent é um caso em si, e seus maganos estão sofrendo pelo que fizeram, mas a ANS sabe muitos mais

Elio Gaspari / O Globo

Na quarta-feira deverá comparecer à CPI da Covid o doutor Paulo Roberto Vanderlei Rebello Filho, diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde (ANS). Ele poderá contar o que fez diante das denúncias do comportamento da Prevent Senior durante a pandemia. A primeira suspeita de que havia fogo debaixo daquela fumaça veio do próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em abril de 2020, quando ela tinha no acervo 58% dos mortos de São Paulo. O dono da operadora chamou-o de “irresponsável” e, pelo que se viu, colocou sua empresa debaixo da asa do Planalto, maquiando mortes, empurrando cloroquina e ameaçando médicos com retórica de miliciano.

O que a ANS fez? A autossatanização da Prevent tem no seu bojo uma competição empresarial, e a Agência a conhece muito bem. Nesse mercado há de tudo: portas giratórias, capilés e jabutis em medidas provisórias. A Justiça guarda pelo menos duas delações premiadas de uma empresa corretora de planos que concordou em pagar R$ 200 milhões de multa.

Durante os dias da Lava-Jato, chegou-se a especular que os procuradores voltassem seus olhos para a privataria da saúde. Quando apareceu a lista de operadoras de planos entre os patrocinadores das palestras de um deles, viu-se que rendiam pelo menos “R$ 10 mil limpos”. A Lava-Jato olhou para outros lados.

A Prevent é um caso em si, e seus maganos estão sofrendo pelo que fizeram, mas a ANS sabe muitos mais. Basta lembrar que foi ela que obrigou as operadoras de planos a cobrirem os custos dos testes para o vírus. Até a terceira semana de março do ano passado havia operadoras se recusando a fazê-lo. Até agosto, quando os mortos passavam de 90 mil, alguns planos continuavam negando cobertura aos testes sorológicos. Só a ação da ANS os levou a mudar de conduta.

De Pedro@gov para Fabio.Jatene@edu

Prezado doutor Jatene,

Escrevo-lhe por sugestão de meu médico, o conde de Motta Maia, do nosso velho amigo Louis Pasteur e de seu pai, o doutor Adib.

Na noite de 17 de novembro de 1889, quando uns militares me embarcaram como negro fugido, mandando-me para a morte no exílio, eu lhes disse: “Os senhores são uns doidos”.

Passou-se o tempo e vejo que, de tempos em tempos, nossa terra fica nas mãos de doidos. Em março do ano passado, vosmicê disse que 45 mil moradores de São Paulo seriam atingidos pela epidemia desse novo vírus. Foi um Deus nos acuda, como se o senhor fosse mais um doido. Na semana passada, os infectados da sua cidade passaram de 1,5 milhão. Os mortos foram 30 mil.

O doutor Pasteur horrorizou-se com os charlatães que empurravam cloroquina nos pacientes e pediu-me que vosmicê lembrasse aos seus colegas e a esse moço que governa o Brasil o que lhe aconteceu, lidando comigo, em 1884.

Ele pesquisava uma vacina contra a raiva. Aplicando-a em cães, havia dado resultado, mas era preciso testá-la em gente. Foi quando me escreveu, oferecendo-se para testá-la no Brasil. Pedia que eu a oferecesse a presos condenados à morte, no dia da execução. Tomariam a vacina. Se morressem, ficaria tudo igual. Se sobrevivessem, estariam livres. Eu lhe disse que no Brasil não aplicávamos mais a pena de morte, pois eu a comutava.

(Como bom dissimulador, estava desconversando, reconheço.)

Os doidos daí testaram a tal cloroquina sem informar aos pacientes, e o moço do governo fez propaganda do remédio até em reuniões de chefes de Estado.

Mesmo entristecido, sinto-me vingado: os senhores são uns doidos.

Atenciosamente,

Pedro de Alcântara.

Jango em Moscou e na China

Passados 60 anos, veio à tona o relatório do embaixador João Augusto de Araújo Castro, narrando a visita de João Goulart à China, em agosto de 1961. O texto é de 4 de setembro, quando a crise provocada pela renúncia do presidente Jânio Quadros já havia esfriado, com a solução do parlamentarismo que permitiria a posse de Jango.

Em 30 páginas, Araújo Castro conta a passagem da comitiva do então vice-presidente por Moscou e Beijing. No dia 25 de agosto, quando Jango já estava em Singapura, Jânio renunciou. Mais tarde, Araújo Castro viria a ser o último chanceler de Goulart e morreria em 1975, como embaixador do governo do general Médici em Washington.

O relatório de Araújo Castro mostra como os chineses tentaram forçar a transformação de um acordo interbancário num sinal de reconhecimento do governo de Beijing, com o qual o Brasil não tinha relações diplomáticas. Jango e Castro habilmente contornaram a manobra e acabou tudo bem.

Antes de chegar a Beijing, a comitiva de Goulart passou por Moscou, onde Jango se encontrou com o primeiro-ministro Nikita Kruschev e ouviu o seguinte: “Eu disse a Kennedy (o presidente dos Estados Unidos): Fidel Castro não é comunista, mas acabará sendo. Ele não tem alternativa.”

Kruschev tinha um viés fanfarrão, mas sabia do que estava falando.

Naqueles dias, os Estados Unidos já haviam rompido relações com Cuba, e a Casa Branca havia patrocinado uma fracassada invasão da ilha.

No dia em que Araújo Castro assinou seu relatório, Fidel mandou uma carta a Kruschev pedindo 388 mísseis de curto alcance. Era o início de uma negociação que evoluiu para a entrega de ogivas nucleares capazes de atingir os Estados Unidos e, um ano depois, levou o mundo para a beira da Terceira Guerra Mundial.

Valentia incompleta

A Universidade de Campinas cassou o título de doutor honoris causa que concedeu em 1973 ao então ministro da Educação, Jarbas Passarinho.

Coronel da reserva, Passarinho morreu em 2016. Ele mandou às favas os seus escrúpulos de consciência quando defendeu a edição do AI-5, em 1968. É direito de qualquer universidade conceder e mesmo cassar títulos de doutorado honoris causa, mas fazê-lo depois da morte do homenageado, é coisa meio girafa. A Federal do Rio de Janeiro cassou o título do presidente Emílio Médici em 2015, 20 anos depois de sua morte.

Seria o jogo jogado se as congregações das universidades divulgassem, junto com a cassação da honraria, quase sempre bajuladora, a lista dos professores doutores que a concederam. Afinal, nem Médici nem Passarinho pediram coisa alguma.

Sinal do Centrão

Jair Bolsonaro assumiu sabendo que não tinha base parlamentar além do cacife da Bolsa da Viúva. Fala em “bancadas temáticas”, uma espécie de cloroquina política.

Aninhando-se no Centrão, conseguiu a proeza de ver derrubados 12 de seus vetos num só dia.

O Centrão sentiu cheiro de queimado.

O repórter Lauro Jardim informa que Lula combinou um jantar para quarta-feira. Nele poderão estar, além do ex-presidente José Sarney:

Eunício de Oliveira, dono da casa, foi ministro das Comunicações de Lula.

Edison Lobão foi ministro de Minas e Energia de Lula e de Dilma Rousseff.

Jader Barbalho foi ministro da Previdência de Sarney.

Renan Calheiros foi ministro da Justiça de FHC.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/quem-protegeu-prevent-1-25222231


Jamil Chade: A reinvenção do futuro

Se uma mudança não ocorrer, estaremos nos livros como a geração que não ouviu o que pode ter sido um último sinal de alerta

Jamil Chade / El País

“Roma, lá fora, é uma cidade muito triste. Noite após noite, o país dorme desolado com a contagem, ainda às centenas, dos mortos, as cenas de terror se repetem nos hospitais”. O comentário é parte de um texto da escritora brasileira, Juliana Monteiro, radicada com sua família na capital italiana. Ela escrevia e descrevia o auge do primeiro confinamento vivido pela Itália, país que foi o primeiro epicentro da pandemia da covid-19 na Europa. “Que triste tantos italianos enterrando seus avós, aqui, onde são tão amados”, constatou, ainda nos primeiros meses de 2020.

O que a escritora de uma sensibilidade ímpar presenciava de seu balcão não era apenas uma impressão da dor que atravessava um continente. Mais de um ano depois daquele primeiro lockdown, dados confirmam o que ela sentia: a pandemia gerou a maior queda de expectativa de vida desde a Segunda Guerra Mundial.

A pesquisa, realizada pela Leverhulme Centre for Demographic Science, de Oxford, analisou dados de mortalidade em 29 países, incluindo Europa, EUA e Chile. Desse total, 27 deles registraram uma queda na expectativa de vida em 2020, numa escala que borrou o progresso objetivo durante anos na questão da mortalidade.

O que esses números revelam, no fundo, é uma enorme transformação na sociedade. Jamais, em épocas de paz, as mortes atingiram tais dimensões em economias ricas. A fome no mundo continua a matar mais que a covid-19. Mas, cinicamente, europeus consideravam essa outra pandemia como um problema distante e que, portanto, não merecia manchetes. E nem uma solução.

O que a pandemia revelou é que nada é inevitável, nem o futuro. Se as mortes atingiram níveis desconhecidos nesses países, algo parecido ocorreu com a taxa de natalidade. Os mais otimistas acreditavam que haveria um aumento de nascimentos nove meses depois do primeiro lockdown. Mas os números revelaram exatamente o oposto. Uma pesquisa na França e Alemanha em meados do ano passado indicou que 50% dos casais adiariam gravidezes.

Nos EUA, os números de queda começaram a aparecer de forma importante a partir de dezembro de 2020, nove meses depois da eclosão da crise. Segundo o CDC, a queda foi de 8% nos nascimentos no último mês do ano passado, uma tendência mantida em janeiro e fevereiro. Na Itália, a queda foi ainda maior, de 21%, contra 20% de redução na Espanha para o mês de dezembro. Já a França teve dezembro e janeiro com índices de natalidade mais baixos em 20 anos.


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Não apenas a vida foi suspensa. Alianças foram desfeitas e a quantidade de casamentos que chegaram ao final explodiu. Só no Reino Unido entre julho e outubro de 2020, o escritório de advocacia Stewarts registrou um aumento de 122% em reuniões com indivíduos iniciando consultas sobre possíveis divórcios.

Agora, com as vacinas para uma classe privilegiada, os planos podem voltar a ser feitos. Tanto na Europa como nos EUA, os primeiros sinais literalmente de vida também começam a aparecer, com a volta de casais em busca de filhos. Ou pelo menos voltando a falar sobre o assunto. O Instituto Max Planck de Pesquisa Demográfica na Alemanha constata, por exemplo, que a busca no Google por termos relativos à gravidez deu um salto nas últimas semanas.

Mas para milhões de famílias mais pobres ou em luto, o futuro terá de ser reinventado. Mesmo na rica Europa, a era pós-pandemia também aponta que ninguém sairá ileso. Nas clínicas e hospitais, a onda de pacientes de covid-19 começa a ser substituída por outra: a de pessoas com sinais de depressão, stress e casos psiquiátricos.

Perguntas existenciais também ecoam pelas estruturas do poder nos corredores das grandes capitais. Como, apesar de toda nossa tecnologia e peso econômico, permitimos que tantos mortos se acumulassem? E o que garante a soberania: respiradores ou helicópteros militares de última geração? Até que ponto podemos comemorar um dia da independência e aplaudir um desfile militar enquanto nosso sistema de saúde não atende sua própria população?

O futuro também exigirá lidar com um prejuízo de 13 trilhões de dólares deixado pela pandemia. Mas de quem cobrar quando a obscenidade da desigualdade foi escancarada?

Nas entidades internacionais, os cálculos confirmam que a crise sanitária abalou 30 anos de progresso no índice de desenvolvimento humanos e que o planeta contará, ao final do ano, com um exército de 318 milhões de novos miseráveis.

Quem tinha oxigênio conseguiu evitar um colapso social. A UE, por exemplo, destinou 2,3 trilhões de euros em medidas de apoio para garantir a liquidez das economias. Isso impediu uma onda de falências e, de fato, os números de empresas fechadas foi o menor desde 1999. De acordo com a UE, sem esse dinheiro, 25% de todas as empresas do bloco teriam fechado suas portas ao final de 2020, após exaurir seus caixas.

Mas essa aparente estabilidade pode não durar. No mercado, o temor é de que “empresas zombis” - que de fato não tinham mais atividade - comecem a fechar. “Muitas insolvências foram adiadas, e não impedidas”, alertou a francesa Coface SA, uma empresa de seguro de crédito.

A tendência de austeridade deve marcar também outros setores. Das 1.600 discotecas existentes na França, 100 nunca voltarão a abrir suas portas, com milhares de postos de trabalho fechados. E milhares de beijos que talvez nunca ocorram.

Se há uma lição que a pandemia deixa ao mundo é de que o modelo está esgotado, inclusive moralmente. Ou como explicar que, em plena pandemia, bilionários façam viagens pornográficas ao espaço? Há algo de podre quando países ricos começam a pensar em jogar fora 100 milhões de vacinas que vencerão em dezembro, enquanto os pobres não sabem nem sequer quando vão receber a primeira dose.

Numa catástrofe ética, o planeta recupera sua lógica colonial mais crua. Desta vez com vacinas. Fábricas de imunizantes na África passaram meses sendo obrigadas a fornecer doses para os países ricos, enquanto a população do continente implorava por doses.

Mais de seis meses após o início da vacinação, economias ricas tinham obtido 61 vezes mais doses que os países mais pobres. Neste mês, 300 milhões de vacinas estarão sentadas em depósitos na Europa e EUA, sem saber como serão usadas.

Alguns deixarão explícita a indignação diante dessa realidade. Outros guardarão segredos impublicáveis sobre a crise que definiu uma geração. Um grupo ainda lutará para impedir a ruptura de um status quo que os garante fortunas e privilégios.

Mas, para todos, a era do mundo infinito acabou de vez. O futuro que muitos imaginavam que existia se provou insustentável, insuficiente e intolerável.

A história irá nos olhar sem compaixão. Se uma mudança não ocorrer, estaremos nos livros como a geração que não ouviu – ou optou por ignorar - o que pode ter sido o último sinal de alerta antes de uma crise climática e social de proporções inéditas.

Nosso único presente é a reinvenção do futuro. Retornar ao passado é suicida. Num planeta mais quente, mais improvável, mais hostil e mais desigual, reimaginar o que será da sociedade e da coexistência não é uma opção. Mas um ato de sobrevivência.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-09-28/a-reinvencao-do-futuro.html


Cristiano Romero: A mais difícil e a mais urgente das reformas

Todos querem mudança tributária há trinta anos

Cristiano Romero / valor Econômico

Os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), não sepultaram a possibilidade de aprovação da reforma tributária nesta legislatura, mas inovaram ao indicar que o tema, por bem ou por mal, será apreciado até dezembro. Como ocorreu nos últimos 30 anos, a reforma institucional mais demandada pelos agentes econômicos _ inclusive, os contribuintes pessoas físicas _ pode não sair do papel. E a razão é uma só: é impossível conciliar todos os interesses envolvidos nesse tema.

Razões para justificar mudanças no regime tributário brasileiro não faltam. O sistema taxa mais o consumo do que a renda, na contramão das economias avançadas. No 8º país que mais concentra renda no planeta, onde existem mais de 50 milhões de pessoas miseráveis (dependentes de programas de transferência de renda para sobreviver) e a maioria da população é pobre, essa regra ajuda a perpetuar uma de nossas maiores chagas.

Trata-se de uma “brasileirice” sem tamanho, típica de uma sociedade dilacerada pela cultura escravagista por mais de 500 anos: neste imenso pedaço de terra abençoado, mas esquecido por Deus, os pobres pagam mais imposto que os ricos. E isso ocorre porque, por razões óbvias, essa parcela da população consome mais, isto é, despende fatia maior de sua renda com bens de consumo e, quando a maré permite, serviços.

Incidem sobre o consumo três tributos _ o ICMS (estadual) e dois federais (PIS e Cofins) _, todos sobre a mesma base de cálculo, o faturamento das empresas que vendem os produtos. As alíquotas do ICMS são as mais elevadas. No caso de serviços como telefonia e energia, superam o patamar de 40%! Não nos esqueçamos do IPI, imposto que incide sobre a produção de bens industriais.

As “brasileirices” (sinônimo de jabuticaba) que condenam este país a não ser nação não param por aí. Neste território riquíssimo em recursos naturais onde vive um dos maiores contingentes de cidadãos pobres do mundo, indivíduos de classe média e os ricos podem deduzir, da base de cálculo do Imposto de Renda, tudo _ isso mesmo, tudo _ o que gastam em hospitais particulares e planos de saúde, inclusive, no exterior.

PRESIDENTES DA CÂMARA E DO SENADO


Senador Rodrigo Pacheco, presidente do Senado. Foto: Pedro França/Agência Senado
Rodrigo Pacheco, Bolsonaro e Arthur Lira no dia da posse dos novos presidentes da Câmara e do Senado. Foto: PR
Arthur Lira durante anúncio sobre o voto impresso ir ao plenário. Foto: Najara Araújo/Câmara dos Deputados
Arthur Lira, presidente da Câmara e Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, no início do ano legislativo. Foto: Agência Senado
Arthur Lira e o ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Pablo Valadares/Agência Câmara
Arthur Lira durante a sessão sobre o voto impresso. Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados
Jair Bolsonaro acompanhando de Ministros, entregam a MP do Auxílio Brasil ao Presidente da Câmara, Arthur Lira. Foto: Marcos Corrêa/PR
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Senador Rodrigo Pacheco, presidente do Senado. Foto: Pedro França/Agência Senado
Rodrigo Pacheco, Bolsonaro e Arthur Lira no dia da posse dos novos presidentes da Câmara e do Senado. Foto: PR
Arthur Lira durante anúncio sobre o voto impresso ir ao plenário. Foto: Najara Araújo/Câmara dos Deputados
Arthur Lira, presidente da Câmara e Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, no início do ano legislativo. Foto: Agência Senado
Arthur Lira e o ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Pablo Valadares/Agência Câmara
Arthur Lira durante a sessão sobre o voto impresso. Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados
 Jair Bolsonaro acompanhando de Ministros, entregam a MP do Auxílio Brasil ao Presidente da Câmara, Arthur Lira. Foto: Marcos Corrêa/PR
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O raciocínio por trás dessa maldade é o seguinte: como a Constituição de 1988 assegura, a todos os viventes nesta extensão de terra no hemisfério sul da Terra, acesso universal a serviços públicos de saúde, é razoável que os transeuntes tenham o direito de requerer dedução das despesas que tiverem com serviços particulares de saúde. O cinismo _ uma “brasileirice” da qual ninguém fala, do mesmo quilate das férias de dois meses de juízes e procuradores _ chega ao paroxismo quando os defensores da vilania alegam que “a dedução é um direito, uma vez que o sistema de saúde estatal ainda não consegue atender a toda a demanda.

Se alguém tem alguma dúvida de por que o país a que chamamos de Brasil não dá certo, não precisa ir muito longe. Como os pobres não têm dinheiro para serem atendidos em hospitais particulares, eles não têm direito a deduzir nada da base de cálculo do Imposto de Renda. Os cínicos, neste momento da tertúlia, rompem qualquer fronteira do bom senso civilizacional: “Ora, pobres não pagam Imposto de Renda, logo, eles não precisam deduzir os gastos com saúde”.

Era só o que faltava: o sonho dos pobres no Brasil, agora, é pagar Imposto de Renda! Na verdade, eles já pagam, pois, já é obrigado a isso quem percebe pouco mais de R$ 2 mil por mês. Em termos menos edulcorados, o que esse sistema injusto e concentrador de renda faz é tirar bilhões de reais que deveriam financiar a saúde pública, que segundo a Carta Magna é para todos, inclusive, estrangeiros que estejam de passagem pelo país, e transferi-los para hospitais particulares e grandes empresas de planos de saúde.

Mesmo tendo consciência de que o Sistema Único de Saúde (SUS) pode ter uma gestão melhor, deveríamos considerar nas duras críticas que fazemos ao serviço público o fato de que o próprio Estado abre mão de bilhões de reais para beneficiar meia dúzia de grupos de interesse específico.

Depois da Segunda Guerra Mundial, os americanos perceberam-se mais importantes do que achavam antes do conflito. Essa constatação mudou tudo. Logo, viram que, para sua economia crescer na velocidade desejada, eles precisavam de uma matéria-prima _ petróleo (energia) _ que eles possuíam, mas não na quantidade necessária.

Ora, o jeito foi sair pelo mundo em busca de fornecedores “confiáveis”_ um dos principais, a Venezuela, que, até o início deste século, fornecia 20% do petróleo consumido pelos Estados Unidos. A fome americana por óleo era tanta que moldou a geopolítica mundial a partir dali. Internamente, a decisão foi desonerar o preço do combustível consumido por empresas e famílias americanas, afinal, o país precisava crescer. Taxar excessivamente a gasolina para financiar o Estado, como fizeram outros grandes produtores de petróleo (México, Venezuela, Nigéria, Arábia Saudita), seria contraproducente: aumentaria a presença do governo na atividade econômica, tornando-o ineficiente por definição; estimularia a corrupção; desestimularia o desenvolvimento de outros setores; por fim, diminuiria a produtividade, uma vez que não haveria, de forma geral, incentivos para o desenvolvimento de uma economia dinâmica.

Quando achou que tinha chegado a sua hora de reluzir na economia mundial, depois de se deitar em berço esplêndido por quatro séculos e meio, a Ilha de Vera Cruz também não tinha petróleo suficiente. Mas, o que se viu desde então foi a taxação sempre elevada dos combustíveis. Como facilitar o crescimento da atividade?

Em entrevista à Maria Fernanda Delmas, diretora de redação do Valor, Lira e Pacheco expuseram o drama infindável da reforma que não se realiza. “É óbvio que a reforma tributária guarda uma série de divergências. É sem dúvida a proposta com maior dificuldade de conciliação, de entendimento do que é bom para o país”, disse Pacheco.

Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/brasil/coluna/a-mais-dificil-e-a-mais-urgente-das-reformas.ghtml


Rosângela Bittar: Mil noites obscuras marcam governo Bolsonaro

Não se trata do que Bolsonaro fez ou deixou de fazer, mas do que simplesmente destruiu

Rosângela Bittar / O Estado de S. Paulo

A tentativa de se aplicar a régua dos mil dias para celebrações demonstrou o que se esperava. O governo Jair Bolsonaro nada tem a festejar. Não há fatos, inspiração relevante ou oscilação dos gráficos que não sejam lamentáveis.

Os historiadores, um dia, se ocuparão do legado de Bolsonaro, suas ações e omissões. Os brasileiros, hoje, se ocupam de sobreviver entre os escombros a que o País está sendo reduzido.

Bolsonaro provocou a deterioração de setores e atividades que até então resistiam ao pessimismo. A começar pela política externa, reduzida a improvisações circenses.

Sua visão reacionária caracteriza a política ambiental, renega os conceitos científicos da saúde, desestabiliza o sistema educacional e inibe as manifestações da cultura.

Não se trata do que fez ou deixou de fazer nestas áreas, mas do que simplesmente destruiu. As sucessivas trocas de ministros demonstraram a ausência de compromisso com ideias: foram dois das Relações Exteriores, dois do Meio Ambiente, quatro da Saúde, quatro da Educação, quatro da Cultura. Todos esquecíveis.

A recente declaração brasileira na 76.ª Assembleia-geral da ONU mostrou a incoerência e o primarismo da visão do mundo que o governo pratica. Bolsonaro não quer saber se a China é o maior parceiro comercial ou se a França exprime conquistas civilizatórias. Despreza o laboratório americano Pfizer tanto quanto achincalha os chineses do Sinovac. A desestabilização das relações internacionais repete-se em cada decisão. Com a mesma ignorância, sem considerar os interesses nacionais.

O caos em que transformou a política ambiental despertou, às vésperas da conferência da ONU sobre mudanças climáticas, em Glasgow, a reação do empresariado. Até a economia se deu conta do risco do isolacionismo e da contaminação do meio ambiente aos seus fundamentos. O governo promete um programa de desenvolvimento verde para se recuperar da imagem de destruidor, desmatador e incendiário que construiu. A conferir se ainda terá crédito.

Na Saúde, a negação da ciência acentuou o obscurantismo. Bolsonaro viveu a pandemia como quem sai a passeio. São 600 mil vidas perdidas e o presidente ironizando os que obedecem a medidas de proteção universais. Transferiu a subalternos responsabilidade de liderança que devia exercer. Agravou a doença com a charlatanice de remédios letais. Contestou as vacinas.

O presidente nem sequer imaginou a gravidade da desmontagem que promoveu no Ministério da Saúde, cortando a influência de suas equipes técnicas. Entregou a um grupo de militares, pelo maior tempo da sua milhagem, a gestão para a qual não estavam preparados. Além do amadorismo, permitiu que ali se instalasse uma rede criminosa de corrupção.

Na Educação, em que se experimentaram saudáveis propostas – no governo Fernando Henrique, com Paulo Renato, e no governo Lula, com Cristovam Buarque –, ocorreu um esvaziamento cruel. Brasileiros de todas as idades foram prejudicados na sua progressão escolar. O MEC foi reduzido a salão de treinamento dos preceitos obsoletos da indigente seita olavista, alternativa que evoluiu para o obscurantismo religioso.

A ausência do governo nas difíceis tentativas de solução para garantir a educação de todos durante a pandemia é um dos fracassos mais terríveis, com um desfecho recente inacreditável: a imposição de propaganda do governo na rede da internet que finalmente fará chegar às escolas. Professores, estudantes, famílias ficaram abandonados à própria sorte.

Na área da Cultura, deu-se a destruição moral, ética, ideológica e funcional dos órgãos culturais e a obstrução da criatividade artística. O moralismo e os sentimentos de vingança dominaram a ação dos que geriram o incentivo do governo às artes em todas as suas expressões.

Bolsonaro transformou o Brasil em um lugar inseguro para todos, notadamente para os que pensam.

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,mil-noites-obscuras,70003853925


Eliane Catanhede: Desvantagem de Eduardo Leite pode se tornar virtude para 2022

O fato de ser jovem para um empreendimento tão audacioso pode ser vantajoso para viabilizar sua candidatura à Presidência em 2022

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

O maior empenho do governador Eduardo Leite (RS) para vencer as prévias do PSDB em novembro e viabilizar sua candidatura à Presidência da República em 2022 é transformar sua grande desvantagem na sua principal vantagem: o fato de ser jovem, uma novidade e inusitado para um empreendimento tão audacioso.

Quando lhe perguntam se não é cedo para disputar a Presidência, depois de ter passado apenas pela prefeitura de Pelotas e estar no primeiro mandato no governo do Rio Grande do Sul, Leite sorri: “Bem... É mais do que o Jair Bolsonaro, a Dilma Rousseff, o Lula e o próprio Fernando Henrique tinham quando viraram presidentes”.

E não é que ele tem razão? Apesar dos 28 anos de Parlamento de Bolsonaro, de um ministério e uma secretária estadual de Dilma, da liderança política e sindical de Lula e da sólida carreira acadêmica de FHC, nenhum dos ex-presidentes teve experiência administrativa numa prefeitura ou num governo estadual, muito menos num governo relevante como o que Leite ocupa.

E a idade? Aos 36 anos, lá vem ele com outra comparação: Jacinda Ardern, a bem-sucedida primeira-ministra da Nova Zelândia, e Emmanuel Macron, presidente da França, também assumiram antes dos 40 anos. Sem contar Justin Trudeau, primeiro ministro do Canadá, que tomou posse aos 43. E deram muito certo, como frisa o governador. Seu problema, pelas pesquisas, não é a idade, mas o desconhecimento nacional. Por enquanto...

Sempre que alguém anunciava uma candidatura a posto importante, a então poderosa assessora de FHC, Ana Tavares, ironizava: “Ele (ou ela) conhece os códigos de Brasília?” Feita esta pergunta a Leite, ele responde que, depois de passar por Pelotas e pelo Palácio Piratini, em momento de pandemia, crise financeira e tantas dificuldades, está craque em negociação política.

“É fundamental fazer política para sustentar sua agenda”, diz ele, que, aliás, tem uma fórmula interessante para parlamentares aprovarem temas por vezes indigestos e impopulares: “Dar conforto para eles votarem”. Como? Negociando, participando, explicando para a população por que tal medida, ruim à primeira vista, é importante para todos.

O obstáculo mais imediato de Eduardo Leite, porém, é outro: o governador João Doria (SP), que tem o grande trunfo de ter sido pioneiro ao trazer vacinas anticovid para o Brasil e ter aplicado a primeira dose, mas também um grande entrave: alta rejeição mesmo no seu Estado.

Na avaliação da equipe de Leite, Doria teria de desfazer sua imagem para construir uma nova, o que é muito mais difícil do que simplesmente construir ou consolidar uma imagem positiva – que é o que Leite trata de fazer, circulando no PSDB, entre governadores, prefeitos e políticos de vários partidos, particularmente MDB, DEM/PSL e PSD e, claro, buscando mais exposição popular.

Com as prévias, dê Leite, dê Dória, a guerra estará só começando e não será fácil, diante da polarização entre o “fica Bolsonaro” e o “volta Lula”. Para furar essa bolha, ele já entra no jogo anunciando que não disputaria a reeleição. Por que? Quem ganhar a eleição ficará num fogo cruzado infernal entre os dois lados, a não ser que não seja ameaça para a volta deles quatro anos depois.

“Desanuvia o ambiente”, diz Leite, que tem uma característica curiosa: não é belicoso, briguento, como é da tradição dos políticos gaúchos, inclusive seus antecessores no governo estadual. Segundo ele, é uma questão de temperamento e também de racionalidade: “Não adianta ficar na paixão do debate e não resolver os problemas. O que importa é resolver os problemas.” Vamos combinar que não serão poucos, seja quem for o futuro presidente.

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,desvantagem-de-eduardo-leite-pode-se-tornar-virtude-para-2022-leia-analise,70003853910


Senadores dos EUA alertam para ameaças à democracia no Brasil

Departamento de Estado deve condicionar apoio ao país à preservação da democracia, defendem parlamentares

DW Brasil

Membros da Comissão de Relações Exteriores do Senado americano alertaram nesta terça-feira (29/09) que o relacionamento dos Estados Unidos com o Brasil estará em risco, caso o presidente Jair Bolsonaro desrespeite as regras democráticas nas eleições de 2022.

Eles temem que alegações infundadas de fraude eleitoral por parte de Bolsonaro possam gerar atos de violência semelhantes à invasão à sede do Congresso americano, no dia 6 de janeiro, quando centenas de apoiadores do ex-presidente Donald Trump tentaram impedir a formalização da vitória democrata nas eleições americanas.

Na carta, endereçada ao secretário de Estado, Antony Blinken, senadores do Partido Democrata afirmam que perturbação da ordem democrática no Brasil poderia colocar em risco a fundação das relações entre as duas nações mais populosas do Hemisfério Ocidental.

"Pedimos que o senhor deixe claro que os Estados Unidos apoiam as instituições democráticas do Brasil e que um rompimento antidemocrático da atual ordem constitucional terá graves consequências”, afirma o documento assinado pelo presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado, Bob Menendez, juntamente com os senadores Dick Durbin, Ben Cardin e Sherrod Brown.

A preocupação dos senadores diz respeito aos questionamentos feitos pelo presidente brasileiro ao sistema de votação do país, que resultaram na tentativa frustrada de impor uma reforma eleitoral, barrada no Congresso.

Bolsonaro sinalizou em várias ocasiões que poderá, inclusive, não aceitar uma virtual derrota nas urnas no ano que vem, o que também seria uma espécie de manobra para insuflar sua base de apoio.

"Linguagem irresponsável"

"Esse tipo de linguagem irresponsável é perigosa para qualquer democracia, mas é especialmente imerecida em uma democracia de um calibre como a do Brasil, que por décadas se demostrou capaz de viabilizar transições pacíficas de poder”, afirmam os senadores. "A deterioração da democracia brasileira teria implicações no hemisfério e além.”

As preocupações dos senadores se justificam, uma vez que Bolsonaro vem se envolvendo em constantes atritos com as instituições democráticas brasileiras. Além da controvérsia envolvendo o sistema eleitoral, o presidente costuma lançar fortes ataques ao Supremo Tribunal Federal, além de ter criticado diversas vezes a atuação do Congresso.

Os senadores pediram ao secretário de Estado para tornar o apoio à democracia brasileira "uma prioridade diplomática, inclusive em discussões bilaterais relacionadas à participação do Brasil em organizações como a OCDE e a Otan".

Sem o apoio americano, o Brasil não teria chances de atingir sua ambição de se tornar membro da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, chamada de o "clube dos países ricos”.

O governo do presidente Joe Biden adota uma postura cautelosa e evita entrar em confronto direto com Bolsonaro. Na ocasião da Assembleia-Geral da ONU, na semana passada, Blinken se reuniu com o ministro brasileiro do Exterior, Carlos França.

Uma fonte do Departamento de Estado disse que o objetivo principal do encontro era tentar encorajar o governo brasileiro a aumentar suas ambições climáticas, antes da Conferência do Clima da ONU em novembro, em Glasgow. O Brasil é considerado um ator fundamental na defesa do meio ambiente, em meio à crescente preocupação internacional com a preservação a Amazônia e outros biomas.

A passagem de Bolsonaro por Nova York, durante a Assembleia-Geral, atraiu bastante atenção nos EUA, mas não do modo como desejavam os aliados do governo. Ele reforçou a imagem de negacionista, por ser o único líder dos países do G20 a não estar vacinado contra a covid-19, e por não utilizar máscaras em várias ocasiões.

Em seu discurso na ONU, ele criticou medidas preventivas adotadas por vários países para conter as transmissões do coronavírus, e ainda defendeu o tratamento precoce, que se baseia em medicamentos comprovadamente ineficazes contra a doença.

Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/senadores-dos-eua-alertam-para-amea%C3%A7as-%C3%A0-democracia-no-brasil/a-59345917


Luciano Hang presta depoimento à CPI da Pandemia

Investigações apontam que o bolsonarista foi membro atuante do grupo de aconselhamento a Bolsonaro durante a pandemia

Victor Fuzeira e Marcelo Montanini / Metrópoles

Com foco na ação do “gabinete paralelo”, a CPI da Covid-19 ouve, na manhã desta quarta-feira (29/9), o empresário Luciano Hang. As investigações apontam que o bolsonarista foi membro atuante do grupo de aconselhamento ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante a pandemia da Covid-19.

A ida de Hang ao colegiado também faz parte do esforço concentrado dos senadores para apurar irregularidades que envolvem a operadora de saúde Prevent Senior.

Hang chegou ao Senado pouco depois das 10h e falou com a imprensa. Ele afirmou que, ao contrário de outros depoentes, chega ao colegiado sem um habeas corpus que lhe concede o direito de não responder perguntas durante a oitiva.

“Hoje aqui estou sozinho, como um brasileiro normal, um comerciante. Tenho a certeza que estou com Deus e com milhões de brasileiros que querem um Brasil melhor e é por isso que eu luto”, disse.

Aliado de Bolsonaro, o empresário, que assumiu a alcunha de Veio da Havan dada por críticos, é suspeito de ter financiado a disseminação de fake news em blogs bolsonaristas e o grupo de consultores informais do presidente Jair Bolsonaro.

A Prevent Senior tem ligação com o “gabinete paralelo”, como revelou o Metrópoles, por meio do virologista Paolo Zanotto, que integrava o grupo e levava dados da empresa para o governo federal.

Outra situação que envolve Hang e a operadora de saúde é o caso da possível alteração na certidão de óbito da mãe dele, Regina Hang, supostamente a pedido do próprio empresário. A advogada Bruna Morato, que representa ex-médicos da Prevent Senior, confirmou, nessa terça-feira (28/9), em depoimento à CPI, que a mãe do empresário usou medicamentos sem comprovação de eficácia para a Covid-19 e teve a certidão de óbito alterada.

Profissionais de saúde da Prevent Senior, representados por Bruna Morato, elaboraram um dossiê entregue à comissão com denúncias de uso indiscriminado, nos hospitais da empresa, de medicamentos sem comprovação de eficácia para o tratamento da Covid-19 e coação de médicos para adotarem esse protocolo.

Outra acusação que pesa sobre a empresa é a de alterar atestados de óbitos para ocultar morte de pacientes por Covid-19, com orientação para os médicos mudarem os prontuários.

Às vésperas do depoimento, o empresário divulgou vídeo, nas redes sociais, algemado, provocando a comissão. Hang disse que vai depor com “o coração aberto”. “Se não aceitarem o que vou falar, já comprei uma algema para não gastarem dinheiro. Vou entregar uma chave para cada senador. E que me prendam”, ironizou.

Há uma expectativa de depoimento tenso. Contudo, o vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), contemporizou: “Ele é um depoente como qualquer outro e nós já tivemos um triste espetáculo de depoente que se utilizou das prerrogativas de parlamentar, que é o caso do deputado Ricardo Barros [líder do governo Bolsonaro na Câmara], para tentar tumultuar, [mas] o senhor Hang não tem imunidade parlamentar. Então, eu espero que ele se comporte conforme reza o Código de Processo Penal”, afirmou o parlamentar.

“As algemas, a mim não me incomodaram. Se ele está tão obcecado pelo uso assim, é uma escolha dele”, alfinetou.

Fake news

Além do “gabinete paralelo” e da Prevent Senior, outro assunto que os senadores querem apurar é a disseminação de fake news relativas à pandemia, e Hang é um dos alvos. Documentos obtidos pela CPI, e divulgados pela TV Globo na semana passada, relevam que o empresário teria financiado o blogueiro Allan dos Santos por intermédio do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro.

Allan dos Santos é investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos inquéritos que apuram disseminação de fake news e atos antidemocráticos.

Seguindo a linha de investigação sobre a disseminação de fake news e a ligação com o governo federal, a comissão ouvirá outro empresário bolsonarista, Otávio Fakhoury, que é vice-presidente do Instituto Força Brasil. Ele também é investigado pelo STF no inquérito das fake news.

Assista:



Fonte: Metrópoles / Agência Senado
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/cpi-da-covid-luciano-hang-depoimento


Pedro Fernando Nery: É preciso pensar em formas de financiar o SUS

Com o envelhecimento da população, é preciso pensar em formas de financiar o SUS

Pedro Fernando Nery / O Estado de S. Paulo

Neste mês, comemoramos o aniversário do Sistema Único de Saúde (SUS). Sua contribuição na resposta à pandemia fez muitos levantarem os lemas #DefendaOSUS ou #VivaOSUS, populares nas postagens de vacinação. Mas, para além das hashtags que sinalizam virtude, o que significa defendê-lo? Se normalmente se evocam como ameaças o fantasma do fim de gratuidade ou a participação do setor privado (que já é abundante no sistema), há um desafio muito mais concreto: o envelhecimento da população. O custo de um sistema já deficiente irá estourar: como arranjar os recursos para defendê-lo?

É um elefante na sala que ainda não debatemos enquanto sociedade. O Brasil é um dos países que envelhecem mais rapidamente no mundo, como mostram as projeções de medidas como a idade mediana da população ou a taxa de idosos. A desgraça da pandemia representa uma óbvia exceção, mas em breve a tendência deve retornar: cada vez menos crianças nascendo de um lado, e idosos vivendo mais. 

Esta grande conquista, fruto do avanço da medicina e do próprio SUS, pressiona políticas públicas cujo financiamento foi pensado em um outro Brasil. Com menos jovens entrando na força de trabalho, temos menos contribuintes para gerar os recursos utilizados na Previdência ou no SUS, ambos demandados em especial pelos idosos.

Segundo as Nações Unidas, a proporção de idosos na população brasileira irá quadruplicar de 7% para 28% em apenas 50 anos (entre 2010 e 2060). Em outros países, esse processo será muito mais longo, tanto porque começaram a envelhecer primeiro, quanto porque vão envelhecer mais devagar do que o Brasil – que não conta, por exemplo, com fluxos imigratórios relevantes. A ONU estima que França e Suécia levarão quatro vezes mais tempo: 200 anos para quadruplicar a população de idosos de 7% para 28%. Para EUA e Reino Unido, a estimativa é superior a 150 anos.

Doenças cardiovasculares já são a principal causa de morte no Brasil e em vários países. Com uma população mais idosa, a incidência desse tipo de doença irá aumentar. Com ela, a demanda por serviços do SUS. O Brasil caminha para ser um País de cardíacos. 

Economistas chamam de “imposto do pecado” (sin tax) uma possível solução. Esse imposto serviria para desencorajar o consumo de certos produtos, ao torná-los mais caros. Entende-se que esse consumo traz custos não pagos apenas pelo consumidor direto, recaindo sobre o conjunto da sociedade (por exemplo, onerando um sistema de saúde gratuito e universal). Além de álcool e cigarros, modernamente se fala em imposto do pecado para produtos com alto teor de açúcares e gordura. Esses produtos seriam caros demais para a saúde pública para serem baratos para o consumidor.

Há certa ambiguidade no objetivo: reduzir a demanda pelos produtos (reduzindo também o custo para a saúde pública lá na frente) ou arrecadar mais para custear o sistema. No início do governo, o ministro Paulo Guedes defendia a inclusão do imposto do pecado na reforma tributária. Já que o esforço em muitas propostas de reforma é de unificar a alíquota de todos os produtos e serviços da economia, exceções seriam abertas nesses casos – por exemplo, para que a alíquota seja menor na venda de uma bicicleta do que na venda de uma cerveja. 

Dificilmente, porém, o imposto do pecado tem potencial para reduzir de forma significativa a demanda ou aumentar a arrecadação, a não ser que sua alíquota seja proibitiva. Tende a afetar mais os pobres e gerar reação da indústria e do comércio. Intervenções mais atuais apontam para “nudges”, medidas sem custo e que, com base na psicologia, tentam induzir o consumidor a fazer melhores escolhas (por exemplo, diminuindo a visibilidade de alguns produtos no supermercado ou reduzindo tamanho de pratos). O impacto também parece limitado.

Dificilmente escaparemos de redução em outras despesas ou aumento em tributos para fazer frente a esta gradual nova realidade, mas ela deveria poder ser atenuada. O #DefendaOSUS precisa deixar de ser festivo e evoluir para uma discussão madura sobre como empreender a grande ousadia de disponibilizar saúde gratuita a todos em um País de renda média que envelhece.

Amanhã é o Dia Mundial do Coração. 

*Doutor em economia 


Fernando Gabeira: Brasil de bolsonaro mostra o dedo para o mundo

O jornal alemão Frankfurter Allgemeine disse que o Brasil mostrou o dedo para o mundo

Fernando Gabeira / O Globo

Era uma alusão à posição negacionista de Bolsonaro, que não apenas recusa a vacina, como quebrou o código de honra da ONU, que esperava um encontro de imunizados. Na verdade, a manchete era uma síntese da atitude de Bolsonaro com a do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que mostrou o dedo para manifestantes contrários ao governo.

A primeira coisa que me ocorreu é que durante muito tempo falamos do brasileiro como um homem cordial. É uma visão idealizada. No entanto jamais poderíamos suspeitar que uma delegação brasileira “mostrasse o dedo para o mundo na ONU”e que isso se transformasse na manchete de um dos principais jornais alemães.

Quando Bolsonaro defendeu a hidroxicloroquina, dizendo que a História e a ciência fariam justiça ao tratamento precoce da Covid-19, lembrei-me de seu esforço no Congresso para aprovar uma pílula contra o câncer, desenvolvida por um pesquisador de São Paulo. Bolsonaro tinha pela fosfoetanolamina a mesma empolgação e é incapaz de se perguntar hoje para quem a ciência e a História deram razão.

Tenho a impressão de que sua confiança na cura mágica cresce com a complexidade do nome do remédio. Certamente se interessou pela proxalutamida.

Dois dias depois do espetáculo de realidade paralela que ofereceu na ONU, Bolsonaro aparece com seis dedos na mão, numa imagem em suas redes sociais. Realmente, falam com os dedos, e essa linguagem foi bem captada dentro da van que levava Marcelo Queiroga. Ele mostrou o dedo médio, numa escolha claramente pornográfica. O chanceler Carlos Alberto França, diplomaticamente, optou pelos dois dedos que simulam uma arma, símbolo permanente do bolsonarismo.

Os seis dedos de Bolsonaro afirmam apenas como ele é mentiroso. Os dedos de Queiroga e do chanceler apontam para a essência da proposta bolsonarista: vulgaridade e violência.

Mas há algo que talvez os jornais estrangeiros não tenham captado. Embora Bolsonaro tenha sido eleito com a maioria dos votos, hoje seu governo é rejeitado por quase 70% da população.

Bolsonaro se orgulha de não ser vacinado. No entanto o Brasil, segundo algumas pesquisas, é o país com mais adesão popular à vacina.

Não vou cair na tentação de reafirmar pura e simplesmente a tese do homem cordial, mas o Brasil, na realidade, não pode ser confundido com o governo. A maioria dos brasileiros, longe de mostrar o dedo para o mundo, estende a mão para a humanidade. Sempre fomos um país solar, e alguns estrangeiros, cativados pela alegria de nossas festas populares, achavam até que a felicidade era um fator associado ao Brasil.

Certamente esgotaria meu espaço discorrer sobre as causas dessa transformação ou mesmo descrever como se gestou o ovo dessa serpente.

O impacto da passagem de Bolsonaro pela ONU me fez lembrar Peter Sellers no filme “Dr. Strangelove”. Bolsonaro falava de vacina, mas uma espécie de força estranha o levava a defender tratamento precoce e a combater passaportes sanitários. Havia um discurso feito para ele, e o braço rebelde que se levantava contra o consenso mundial, o pária que precisa comer pizza no passeio porque não pode entrar no restaurante.

Peter Sellers intepretava um personagem no filme de Stanley Kubrick com essa força contraditória em suas atitudes. De vez em quando, perdia o controle do braço e fazia uma saudação nazista. Se me lembro bem, em determinado momento, ele se levanta da cadeira de rodas e diz: “Mein Führer, posso andar”.

Não quero dizer com isso que Bolsonaro seja nazista. Seria banalizar uma grande tragédia da humanidade.

Seu novo espasmo numa entrevista a extremistas de direita da Alemanha:

—Algumas pessoas com Covid tinham comorbidade. Morreriam de qualquer jeito, dias ou semanas depois.

Mein Führer, consigo andar.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/mostrando-o-dedo-para-o-mundo.html


Gaudêncio Torquato: Brasil vegeta sob o reino da mentira

Hoje, o Bra­sil vive sob o Estado de Direito, mas vegeta sob o Estado da ética e da moral, com um mandatário-mor que nega a ciência

Gaudêncio Torquato / Blog do Noblat / Metrópoles

Há 44 anos, o jurista Goffredo da Silva Telles Jr., falecido no dia 27 de junho de 2009, dando vazão ao sentimento da sociedade brasileira, foi convidado para ler a Carta aos Brasileiros69. O País abria as portas da redemocratização. Hoje, o Bra­sil vive sob o Estado de Direito, mas vegeta sob o Estado da ética e da moral, com um mandatário-mor que nega a ciência, é responsável pela pior gestão da pandemia de coronavírus 19 do planeta, e faz um vergonhoso discurso na abertura da ONU, privilégio que, historicamente, cabe ao Brasil desde 1947.

Em quatro décadas, o País eliminou o chumbo que cobria os muros de suas instituições sociais e políticas, resgatou o ideário liber­tário que inspira as democracias, instalou as bases de um moderno sistema produtivo e, apesar de esforços de idealistas que lutam para pôr um pouco de ordem na casa, não alcançou o estágio de Nação próspera, justa e solidária. O país faz vergonha ao mundo. O baú do retrocesso continua lotado. Te­mos uma estrutura política caótica, incapaz de promover as reformas fundamentais para acender a chama ética, e um governo que prometeu acabar com a corrupção, amarrado às mais intricadas cordas da velha política, usando a extraordinária força de verbas e cargos para cooptar legisladores e partidos, principalmente do Centrão, transformando-se, ele próprio em muralha que barra os caminhos da mudança.

Não por acaso, anos depois o professor Goffredo confessava ter vontade de ler uma segunda carta, desta feita para conclamar pela reforma política e por uma democracia participativa, em que os cida­dãos votem em ideários, não em fulanos, beltranos e sicranos. O velho mestre das Arcadas, que formou uma geração de advogados, tentava resistir à Lei de Gresham, pela qual o dinheiro falso expulsa a moeda boa – princípio que, na política, aponta a vitória da mediocridade so­bre a virtude.

No Brasil, especialmente, os freios do atraso impedem os avanços. Vivemos com a sensação de que há imensa distância entre as locomotivas econômica e política, a primeira abrindo fronteiras, a segunda fechando porteiras. Olhe-se para os Poderes Executivo e Legislativo. Parecem carcaças do passado, fincadas sobre as estacas do patrimonialismo, da competitividade e do fisiologismo. Em seus cor­redores, o poder da barganha suplanta o poder das ideias.

Em setembro de 1993, na segunda Carta aos Brasileiros, o mestre Goffredo escolheria como núcleo a reforma política, eixo da democracia participativa com que sonha. Mas falta disposição aos congressistas para fazê-la. Em 2002, Lula da Silva também leu sua Carta aos Brasileiros, onde pregava uma nova prática política e a instalação de uma base moral. Nada disso foi cumprido. O país continuou a ser um deserto de ideias.

Sem uma base eleitoral forte, os entes partidários caíram na indigência, po­luindo o ambiente de miasmas. Até hoje, os eleitores esperam que as grandes questões nacionais recebam diagnósticos apropriados e propostas de solução para nosso pedaço de chão. Infelizmente, o voto continua a ser dado a oportunistas, operadores de promessas, poucos com ideários claros e correspondentes aos anseios sociais.

A utopia nacional resvala pelo terreno da desilusão. Nesses tempos da CPI da Covid, o Reino da Mentira, descrito pelo senador Rui Barbosa, nos idos de 1919, volta à ordem do dia: “Mentira por tudo, em tudo e por tudo. Mentira na terra, no ar, até no céu. Nos inquéritos. Nas pro­messas. Nos projetos. Nas reformas. Nos progressos. Nas convicções. Nas transmutações. Nas soluções. Nos homens, nos atos, nas coisas. No rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita. Nas res­ponsabilidades. Nos desmentidos”.

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/o-reino-da-mentira-por-gaudencio-torquato


Alon Feuerwerker: Um Bolsonaro para Bolsonaro? E Moro

Alguém que tire do incumbente a liderança do bloco que vai do centro para a direita, exatamente como o atual presidente fez com o PSDB

Alon Feuerwerker / Blog do Noblat / Metrópoles

Toda previsão no Brasil deveria trazer junto um seguro-imprevisibilidade, mas é razoável supor que entramos num período algo estável, no qual a guerra de movimento vem sendo substituída por uma guerra de posição, e de baixa ou média intensidade. Por uma razão: nem o presidente da República reuniu até o momento força para suplantar os demais poderes nem os opositores acumularam por enquanto massa crítica para depô-lo.

Daí que as atenções comecem a se voltar cada vez mais para a próxima janela de oportunidade na disputa do poder: a eleição. Com uma competição particular entre os candidatos a ser o “Bolsonaro do Bolsonaro”. Alguém que tire do incumbente a liderança do bloco que vai do centro para a direita, exatamente como o atual presidente fez com o PSDB na corrida de 2018. Um PSDB que nas seis disputas anteriores ou ganhara ou pelo menos fora ao segundo turno…

Os dois pré-candidatos tucanos afiaram as lanças esta semana, exibindo suas impecáveis credenciais antipetistas, pouquíssimo tempo após a vaga de opiniões e emocionados apelos pela “frente ampla”. Faz sentido. Para a legenda, a vaga em disputa no segundo turno não é a de Luiz Inácio Lula das Silva, mas a do adversário dele. E os governadores paulista e gaúcho estão num momento de “ciscar para dentro”.

Enquanto isso, o presidente busca um certo reposicionamento, mostrando que a carta redigida em conjunto com o ex Michel Temer não foi raio em céu azul. Tem lógica, pois Jair Bolsonaro não enfrenta concorrência séria no campo da direita. Se mantiver os traços estruturais do discurso, pode tranquilamente fazer movimentos táticos ao “centro”, inclusive por não ter maiores antagonismos com o centrismo. Corre pouco risco de perder substância.

Quanto vai durar a (quase) calmaria? Um palpite é que dure enquanto os dois blocos que hoje travam a disputa mais acalorada, o bolsonarismo e o centrismo, acreditarem reunir potencial de voto para prevalecer em outubro de 2022. Por isso mesmo, seria imprudente apostar todas as fichas num processo eleitoral no padrão dos anteriores, absolutamente estável. Pois alguma hora um desses dois blocos notará que a vaca está indo para o brejo.

A não ser que Lula derreta no caminho. O que por enquanto não está no horizonte.

E os imprevistos? Como dito amiúde, é imprudente desprezá-los. Especialmente diante de um Judiciário fortemente inclinado ao ativismo. Mas eventuais decisões que removam algum contendor manu militari não garantem vida fácil a quem sobrar na corrida. Pois pode perfeitamente acontecer como em 2018: o removido apoiar alguém e manter ocupado o espaço político que se pretendeu deixar vago.

E há outra variável, que ensaia alguns passos, costeando o alambrado: Sergio Moro. As ofertas para ele estão feitas. Com o pulverizado cenário da “terceira via”, a possibilidade de ocupar esse espaço não deixa de ser atraente para o ex-juiz e ex-ministro.

Sobre isso, escrevi em janeiro do ano passado (E se Moro virar o “candidato do centro”?).

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/um-bolsonaro-para-bolsonaro-e-moro-por-alon-feuerwerker