Nas entrelinhas
Luiz Carlos Azedo: A crise continua
A troca de ministro não está ocorrendo para mudar a política sanitária ou porque Bolsonaro estava insatisfeito com Pazuello, mas para evitar a instalação de uma CPI na Saúde
O presidente Jair Bolsonaro indicou o médico paraibano Marcelo Queiroga, presidente da Associação Brasileira de Cardiologia, para o cargo de ministro da Saúde, no lugar do general de divisão da ativa Eduardo Pazuello, que deve voltar à caserna. Foi o desfecho de três dias de muita confusão e intensa fritura do militar, que atuou de forma desastrada à frente da pasta, seguindo cegamente a orientação do presidente da República durante a pandemia da covid-19. Queiroga assumirá o cargo sob forte desconfiança, depois da recusa da médica goiana Ludhmila Hajjar, que fora convidada por Bolsonaro, mas recusou o convite por discordar da orientação do chefe do Executivo.
O convite à cardiologista e intensivista do Hospital das Clínicas foi um tiro no pé. Hajjar pretendia promover um choque de gestão à frente do Ministério da Saúde, defendendo a criação de leitos e preparação das equipes de atendimento à covid-19; o apoio ao lo- ckdown decretado por governadores e prefeitos; a formação de um comitê de crise 24 horas para apoiar as demais autoridades do Sistema Único de Saúde (SUS); e mobilização das sociedades médicas, a rede de saúde privada e as empresas para combater a pandemia. A médica também é contrária ao uso de cloroquina e outros medicamentos sem eficácia comprovada no “tratamento precoce”, defendendo um protocolo unificado de atendimento aos pacientes de covid-19 que adote as melhores práticas comprovadas.
As conversas entre Bolsonaro e Hajjar, no domingo e ontem pela manhã, foram um desastre, por causa das divergências entre ambos e do fato de que os bolsonaristas fizeram intensa campanha de difamação contra a médica, que sofreu ameaças de morte e até tentativas de invasão do seu quarto no hotel de Brasília, onde pernoitou. Ingenuamente, estimulada por políticos e autoridades de quem tratou de covid-19, Hajjar imaginou que Bolsonaro estava disposto a mudar a orientação do Ministério da Saúde. Suas posições críticas em relação à pandemia eram públicas e conhecidas. Frustrada pelo fato de que o presidente não pretende mudar a orientação do Ministério da Saúde e assustada com os ataques que sofreu dos partidários do chefe do Planalto, Hajjar resolveu revelar à imprensa a conversa com Bolsonaro e denunciar as agressões dos bolsonaristas, reiterando, também, suas posições sobre o combate à pandemia.
Bolsonarista raiz
Com as horas contadas no cargo, Pazuello fez uma prestação de contas de sua atuação à frente da pasta na tarde de ontem. Focou na aquisição de vacinas contra covid-19, cujo atraso está sendo desastroso. Em nenhum momento reconheceu seu fracasso ou fez autocrítica. Na verdade, a troca de ministro não está ocorrendo para mudar a política do Ministério da Saúde ou porque Bolsonaro estava insatisfeito com Pazuello. O general foi defenestrado porque os líderes do Congresso exigiram sua substituição para evitar a instalação de uma CPI voltada a investigar a sua atuação à frente da pasta, como deseja a oposição.
Enquanto Pazuello concedia sua entrevista de despedida, Queiroga se reunia com Bolsonaro no Palácio do Planalto. Logo depois, o próprio presidente anunciou sua indicação: “Foi de- cidido, agora à tarde, a indicação do médico, doutor Marcelo Queiroga, para o Ministério da Saúde. Ele é presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia. A conversa foi excelente, já conhecia há alguns anos, então não é uma pessoa que tomei conhecimento há poucos dias. Tem tudo, no meu entender, para fazer um bom trabalho, dando prosseguimento em tudo que o Pazuello fez até hoje”, afirmou à porta do Palácio da Alvorada.
Queiroga é bolsonarista raiz, será o quarto ministro da Saúde desde o começo da pandemia da covid-19, há pouco mais de um ano; seus antecessores foram o médico e ex-deputado Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) e o médico oncologista Nelson Teich, além de Pazuello. Formado em medicina pela Universidade Federal da Paraíba, fez residência em cardiologia no Hospital Adventista Silvestre, no Rio de Janeiro. Tem especialização em hemodinâmica e cardiologia intervencionista. Indicado por Bolsonaro para ser um dos diretores da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), não chegou a ocupar o cargo, porque dependia ainda de aprovação do Senado. Assume para dar continuidade à política de Bolsonaro. Ou seja, a crise continua.
Luiz Carlos Azedo: O principe audacioso
A reeleição de Bolsonaro subiu no telhado. Além da pandemia e da recessão, agora tem um adversário calejado e com sangue nos olhos: o ex-presidente Lula
Nicolau Maquiavel, o fundador da ciência política moderna, viveu o esplendor da República Florentina (fundada em 1115), durante o governo de Lorenzo de Médice (1449 1492), antes de ser transformada num ducado hereditário pelo papa Clemente II, em 1532. Não há texto mais lido pelos políticos do que O Príncipe, sua obra-prima. A razão é simples: Maquiavel trata da conquista e da preservação do poder. Uma de suas edições mais interessantes, por exemplo, é a comentada por Napoleão Bonaparte (Ediouro), que esbanja bom humor e ironias. Nem por isso deixou de perder a guerra contra Rússia e, depois, contra os ingleses, em Waterloo, na Bélgica.
Uma das lições de Maquiavel é sobre os príncipes que chegam ao poder mais pela sorte (Fortuna) do que por suas virtudes (Virtù). Esses são os que têm mais dificuldade para se manter no poder quando as circunstâncias mudam. Parece o caso do presidente Jair Bolsonaro. Não se pode dizer que sua ascensão ao poder não teve grande preparação. Teve, sim; por anos a fio, Bolsonaro cultivou a representação política de certas corporações e grupos de interesse — militares, policiais, agentes de segurança, milicianos, grileiros e madeireiros — , além de ruralistas.
Mesmo assim, isso não seria suficiente para chegar à Presidência, embora lhe garantisse uma base de apoio muito ativa. Foi fundamental também o apoio das igrejas evangélicas, capturando o sentimento de preservação da família unicelular patriarcal ameaçada pela renovação dos costumes, e de setores reacionários e conservadores da classe média tradicional, insatisfeita com a insegurança e perda de poder aquisitivo causadas, respectivamente, pela revolução tecnológica e recessão econômica. Um episódio imprevisto praticamente decidiu o rumo da campanha eleitoral de 2018: a facada que levou em Juiz de Fora. O atentado tresloucado praticamente zerou a rejeição que sofria em certos segmentos, que o demonizavam, e reforçou o sebastianismo salvacionista de quem já o considera um mito.
Havia também um cenário internacional muito favorável à eleição de Bolsonaro, com Donald Trump na Presidência dos Estados Unidos e outros líderes de direita em países importantes da América Latina e da Europa. Todos surfavam a crise das democracias representativas e o aprofundamento das desigualdades provocadas pela globalização. A situação agora é completamente diferente. A pandemia de covid-19 virou tudo de pernas para o ar. Trump perdeu a reeleição para o democrata Joe Biden, outras lideranças conservadoras se reposicionaram em relação à crise sanitária e às políticas econômicas ultraliberais.
Reeleição
A pandemia nos revela que Bolsonaro tem mais dificuldades para se manter no poder num cenário adverso do que teria se tivesse chegado ao governo pela Virtù. Seu governo é um fracasso sanitário e econômico. Sustenta-se pelas regras do jogo democrático e pela opção inteligente dos generais do Palácio do Planalto, que operaram a aliança com o Centrão, em favor de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), na disputa das Mesas da Câmara e do Senado, respectivamente. Também puxaram o freio de mão no confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF).
A reeleição de Bolsonaro subiu no telhado. Além da pandemia e da recessão, agora tem um adversário calejado e com sangue nos olhos: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A anulação de suas condenações pelo ministro Edson Fachin, fez de Lula uma alternativa de poder, repercutindo em todo o cenário político. O que pode mudar esse jogo é o surgimento de um príncipe audacioso, que rompa a polarização entre Bolsonaro e Lula, o que não é nada fácil. As alternativas são o governador de São Paulo, João Doria (PSDB); o ex-governador do Ceará Ciro Gomes (PDT); o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro; o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM); e o apresentador da TV Globo Luciano Huck. O problema é que isso não depende só da vontade de cada um; na democracia, quem escolhe o príncipe audacioso é o povo.
Luiz Carlos Azedo: Isolamento ou morte
Bolsonaro não está se dando conta do tamanho do desastre que sua atitude contraria às medidas de isolamento social pode provocar
A “imprensa mequetrefe”, deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), tem seu valor. “Mequetrefe” (indivíduo intrometido, dado a meter-se no que não é de sua conta; enxerido), por exemplo, fora o repórter free-lance Gareth Jones, assim tratado pelo governo soviético na década de 1930. Ele tinha 27 anos, havia entrevistado Hitler e viajou para Moscou por conta própria com o firme propósito de entrevistar Stálin. Sem acesso ao líder comunista, rumou clandestinamente para Ucrânia, intrigado com a origem dos recursos investidos na industrialização da antiga União Soviética. Descobriu a “grande fome” provocada pelas coletivizações forçadas de Stálin, presenciando até casos de canibalismo.
A história é contada no filme “Mr. Jones” — “A Sombra de Stálin”, na versão brasileira –, exibido no NOW. O roteiro se inspira no documentário “Hitler, Stalin & Mr. Jones”, levado ao ar em 2012 pela BBC. Chantageado para se calar sobre o que viu, Jones foi vítima de uma campanha de difamação, após publicar sua história na imprensa londrina. Fora desmentido por Walter Duranty, jornalista do New York Times e vencedor do Pulitzer, mais preocupado com o acesso às autoridades soviéticas do que com a realidade ao seu redor. A roteirista Andrea Chalupa inclui na trama o escritor George Orwell, autor do romance “A Revolução dos Bichos”, aproveitado o fato de que o dono da fazenda também se chama Mr. Jones. A censura em Moscou justificaria a analogia.
Holodomor é uma palavra ucraniana que significa “deixar morrer de fome”, “morrer de inanição”. Tal palavra passou a ser empregada para definir os acontecimentos que levaram à morte por fome de milhões de ucranianos entre os anos de 1931 e 1933. É óbvio que a intenção de Stálin não era essa, seu objetivo era expropriar os camponeses que haviam enriquecido nos tempos da “Nova Política Econômica” (NEP) do líder bolchevique Vladimir Lenin, que adotara o capitalismo no campo para abastecer as cidades.
As coletivizações forçadas de Stálin foram feitas para financiar a indústria pesada e preparar a União Soviética para a guerra iminente com a Alemanha, porém, resultaram numa tragédia humanitária. Estima-se de 3,3 a 6,3 milhões o número de mortos no Homolodor. Para Stálin, a morte dos camponeses ucranianos foi o efeito colateral da industrialização acelerada e do esforço de guerra contra Hitler.
Isolamento
A história de Mr. Jones não tem nada a ver com o que está acontece no Brasil? Tem, sim. Bolsonaro não está se dando conta do tamanho do desastre que sua atitude contraria às medidas de isolamento social pode provocar. Governadores e prefeitos as estão adotando para conter a expansão da pandemia. Comete um erro atrás do outro com seu negacionismo, darwinismo social e falta de empatia com as vítimas da pandemia. Não se deu conta de que deixar o novo coronavírus se reproduzir e sofrer mutações possibilita reinfecções e uma nova onda ainda mais violenta da pandemia, que está se transformando numa endemia. Não leva em conta os cálculos exponenciais dos sanitaristas sobre o aumento de casos e mortes.
Na avaliação de Bolsonaro, os óbitos são inevitáveis, o mais importante é manter a economia em pleno funcionamento. Entretanto, não é o isolamento que provoca recessão e desemprego, mas a multiplicação dos casos de covid-19, numa velocidade muito maior do que a vacinação da população. Estamos tendo um “apagão” nos hospitais, daqui a pouco teremos um “apagão” nos cemitérios. Não são apenas falta de leitos, faltam insumos e profissionais de saúde; faltarão câmaras frigoríficas.
Bolsonaro não é um desorientado, tem uma estratégia errada mesmo. Erra de conceito, ao apostar na centralidade a qualquer preço da atividade econômica; erra de método, ao desarticular o Sistema Único de Saúde (SUS), opondo o Ministério da Saúde aos governadores e prefeitos; e erra ao pregar desobediência civil às medidas sanitárias, criando um ambiente favorável para o vírus se propagar. Não leva em conta que o colapso sanitário resultará no colapso econômico, com desorganização da cadeia produtiva e crise de abastecimento. Com a velocidade atual de propagação da covid-19, somente um freio de arrumação pode evitar o desastre, ou seja, o lockdown temporário onde for preciso.
Luiz Carlos Azedo: Cadê as vacinas, Bolsonaro?
As previsões de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), que sanitaristas e infectologistas vinham fazendo desde o mês passado, estão se confirmando
A cúpula do governo já se deu conta de que está protagonizando a maior tragédia sanitária da nossa história, ao fracassar no combate à covid-19, com o negacionismo reiterado do presidente Jair Bolsonaro e a incompetência do ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello. Ontem, em solenidade no Palácio do Planalto, bem que Bolsonaro tentou dar um cavalo de pau e mudou o discurso em relação às vacinas, até disse que a senhora sua mãe foi vacinada em São Paulo (com a Coronavac do instituto Butantan, quanta ironia, a vacina do governador João Doria). Somente fez isso porque foi duramente atacado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por sua atuação como presidente da República durante a pandemia.
As previsões de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), advertência que os sanitaristas e infectologistas vinha fazendo desde o mês passado, estão se confirmando. O Brasil registrou nas últimas 24 horas 2.286 mortes por Covid-19 e 79.876 novos casos, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). O número de vítimas fatais da doença no Brasil chegou a 270.65 e o total de casos aumentou para 11,202 milhões. Mesmo assim, Bolsonaro continua sabotando os esforços de governadores e prefeitos para conter a propagação da pandemia com o isolamento social, enquanto não há vacinas suficientes para imunizar a população.
“A política do lockdown adotada no passado, o isolamento ou confinamento, visava tão somente dar tempo para que hospitais fossem aparelhados com leitos de UTI e respiradores. O governo federal não poupou esforços, não economizou recursos para atender todos estados e municípios”, disse Bolsonaro. O presidente anunciou que o Brasil já adquiriu 270 milhões de doses de vacinas, a maioria para o primeiro semestre deste ano, mas as vacinas não chegam na frequência que a velocidade de propagação do vírus exige, por causa da incompetência do governo nas negociações. Voltou a defender o “tratamento imediato” com medicamentos não recomendados pelas autoridades de saúde, ao sancionar uma lei que prorroga a suspensão do cumprimento de metas pelos prestadores de serviço do Sistema Único de Saúde (SUS).
Patentes
O general Pazuello, atarantado com a ameaça de que a crise de Manaus se repita simultaneamente em várias capitais do país, também corre atrás do prejuízo. Tenta minimizar seu fracasso e ressalta os esforços dos principais centros de produção de vacinas: “Sem a produção da Fiocruz e do Butantan, nós hoje praticamente não teríamos vacinado ninguém. Essa é a realidade”. Desde janeiro, o país utiliza os imunizantes CoronaVac e Oxford/AstraZeneca.
Ontem, na reunião da Organização Mundial do Comércio, em Genebra (Suíça), porém, o Brasil voltou a se manifestar contra a suspensão dos dispositivos de propriedade intelectual sobre patentes de remédios, vacinas e outros produtos de combate à pandemia da Covid-19. A proposta apresentada pela Índia e pela África do Sul em outubro de 2020 visa a suspender patentes ligadas a tratamentos e métodos de prevenção para a Covid-19. Na epidemia de AIDS, a quebra de patentes foi fundamental para controlar a doença.
Diante do fracasso, Pazuello pediu ajuda à China, que tanto foi hostilizada pelos filhos do presidente Bolsonaro e integrantes do governo, inclusive o chanceler Ernesto Araújo. Enviou ofício à embaixada da China no Brasil para pedir auxílio para a compra de 30 milhões de doses da vacina da farmacêutica chinesa Sinopharm, que havia sido ofertada pelo governo chinês no ano passado, pois trata-se de um laboratório estatal, mas à época não houve interesse do governo. Pazuello também negocia a compra de outros imunizantes, como o produzido pela Pfizer, único com registro definitivo concedido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o que é outra novela.
Luiz Carlos Azedo: Como Getúlio e Perón
O PT mantém sua hegemonia nos movimentos sociais e elegeu a maior bancada na Câmara dos Deputados, mesmo com Haddad perdendo a eleição e Lula na cadeia
Livre das condenações, que foram anuladas pelo ministro Édson Fachin, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está em vias de se lançar mais uma vez à disputa pela Presidência da República, o que faz desde 1989. Não concorreu em 2010, porque a Constituição não permite um terceiro mandato sucessivo, e em 2014, na reeleição de Dilma Rousseff, o que talvez seja o seu maior arrependimento, pois a petista não terminaria o mandato. Ao longo desse período, construiu um partido político que se envolveu em escândalos de corrupção, como o “mensalão” e o “petrolão”, mas revela grande resiliência. O PT mantém sua hegemonia nos movimentos sociais e elegeu a maior bancada na Câmara dos Deputados, mesmo com Fernando Haddad perdendo a eleição para o presidente Jair Bolsonaro. Lula estava na cadeia, não pode concorrer.
Desde a sua criação, em 1982, durante a reforma partidária protagonizada pelo presidente João Figueiredo, são quase quarenta anos de trajetória política, com o partido ocupando um espaço na sociedade brasileira que antes do golpe militar de 1964 fora dividido entre o PTB, o PCB e PSB. O PT reuniu sindicalistas, estudantes, militantes de comunidades eclesiais de base e ex-militantes de extrema-esquerda que participaram da luta armada contra o regime militar. Sua composição, ao longo dos anos, se alterou profundamente, mas a legenda continua sob comando da geração que fundou o partido.
A volta de Lula à cena eleitoral lembra o regresso à política do ex-presidente Getúlio Vargas, nas eleições de 1950, pela legenda do PTB, com apoio do PSD. O segundo governo Vargas se iniciou em 1951, com uma mudança de rumos na economia: em vez da abertura ao capital estrangeiro, uma política nacionalista, com forte intervenção do Estado na economia, marcada pela criação da Petrobras. Também criou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), com o objetivo de garantir os investimentos necessários aos projetos econômicos.
A pressão popular levou Getúlio Vargas a nomear como ministro do trabalho João Goulart, o Jango, um político ligado aos meios sindicais. A principal medida tomada por Vargas no âmbito trabalhista foi o aumento de 100% do salário-mínimo, em 1954. A medida gerou oposição dos setores empresariais e de militares, liderada pelo coronel Bizarria Mamede, da Escola Superior de Guerra (ESG). O resultado da pressão foi a demissão de Jango, que mais tarde viria a ser presidente da República deposto em 1964.
O principal porta-voz da insatisfação era o jornalista Carlos Lacerda, da União Democrática Nacional (UDN), que sofreu um atentado em 5 de agosto de 1954. Lacerda foi ferido na perna, mas seu guarda-costas, Rubens Florentino Vaz, major da Força Aérea, foi morto. As suspeitas envolviam o chefe da guarda pessoal de Vargas, Gregório Fortunato, o que levou os opositores a apontarem o presidente da República como mandante do atentado. A UDN e alguns setores do exército pressionavam pela saída de Vargas do poder. Sua opção foi o suicídio, realizado na manhã de 24 de agosto de 1954, com um tiro no coração. A notícia da morte do presidente, junto à publicação de sua carta testamento, encontrada ao lado do corpo, causou uma intensa comoção nacional. Seu legado político-eleitoral foi o trabalhismo.
Na Argentina
A volta de Lula também se parece com a do ex-ditador Juan Domingo Perón ao poder, em 1973, nos braços do povo, defendendo a industrialização, o controle das exportações, o Estado forte, a saúde e a educação públicas, os subsídios sociais, a neutralidade internacional e a integração política e comercial sul-americana. O peronismo é um movimento popular, democrático e nacionalista, formado por milhares de trabalhadores. É força política mais resiliente da Argentina, sobrevivendo à ditadura militar argentina (1976-1983), que depôs a então presidenta da República María Estela Martínez de Perón, que sucedera marido após ele falecer, em 1974.
O peronismo votou ao poder com Carlos Menem, que fez um governo ultra-liberal por dois mandatos, de 1989 a 1995, mas lançou a Argentina num mar de escândalos e grande recessão. Mesmo assim, a partir de 2003, por 12 anos, os Kirchnner (Néstor e a sua esposa Cristina Fernández) governaram a Argentina. O peronismo perdeu as eleições em 2015 para o neoliberal Macri, por conta de uma série de erros políticos, mas recuperou o poder através de Alberto Fernández, no fim do ano 2019. O atual presidente pouco tem a ver com os Kirchnner. Faz um governo de centro-esquerda pragmática. O Partido Justicialista é formado por peronistas de direita e de esquerda.
Luiz Carlos Azedo: Lula livre para 2022
O fantasma petista assombra os eleitores que elegeram Bolsonaro e dele estavam se afastando, por causa de seus desatinos na pandemia
Como dizia o maestro Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin surpreendeu o mundo político e até seus colegas de Corte ao anular todas as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa “interpretação técnica” do princípio do “juiz natural”. Tomou por base a jurisprudência do próprio Supremo, contra a qual se opusera quando a maioria dos ministros decidiu desmembrar os processos da Odebrecht, OAS e JBS do caso da Petrobras, remetendo-os para Brasília, Rio de Janeiro ou São Paulo, decisão que esvaziou a força-tarefa de Curitiba e sua própria relatoria no escândalo da Lava-Jato.
A decisão foi cirúrgica: acabou com a inelegibilidade de Lula e frustrou as expectativas de punição do ex-ministro Sérgio Moro e dos integrantes da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba, cuja suspeição foi arguida pela defesa de Lula. No mundo jurídicos e nos meios políticos, a aposta era de que somente a condenação de Lula no processo do triplex de Guarujá seria anulada, por suspeição de Moro, enquanto a condenação no caso do sítio de Atibaia seria mantida, no aguardado julgamento da suspeição pela Segunda Turma do Supremo. Presidente dessa Turma, desculpem-me o trocadilho, o ministro Gilmar Mendes ficou com o voto na mão.
Para o presidente Jair Bolsonaro, seus aliados e boa parte da oposição não petista, a anulação do processo do triplex de Guarujá e a suspeição dos protagonistas da Lava-Jato seriam o cenário ideal: Lula fora da eleição e Moro desmoralizado. Fachin pôs tudo de pernas para o ar, porque liberou Lula para concorrer à Presidência da República e manteve o ex-ministro Sérgio Moro no jogo de 2022, protegendo ainda os procuradores da Lava-Jato, a investigação da qual é o relator no Supremo e que estava à beira da extinção.
Outros réus poderiam pedir anulação de seus respectivos processos, pois é disso que se trata, principalmente para os advogados que atuam na Lava-Jato e sempre questionaram os métodos heterodoxos de Moro e dos procuradores de Curitiba. Na prática, a decisão de Fachin pode garantir a presença de Lula na eleição porque uma condenação em segunda instância, no Tribunal Regional Federal de Brasília, uma Corte garantista, leva em média 6 anos; além disso, como Lula tem mais de 70 anos, o caso já estará prescrito, pois os fatos ocorreram há quase dez anos e a prescrição cai de 16 para oito anos.
Tensão institucional
No plano imediato, o principal foco de tensão é dentro do Supremo, que voltará a se dividir profundamente. Em recente decisão sobre os processos criminais, a Corte estabeleceu que nenhuma decisão monocrática pode ser reformada por outro ministro ou pelas Turmas, no caso dos processos criminais, somente pelo plenário da Corte. O Ministério Público Federal (MPF) já anunciou que recorrerá da decisão, e não será surpresa se a defesa de Lula insistir na suspeição de Moro e dos procuradores, sendo acolhida pelo ministro Gilmar Mendes, na reunião de hoje da Segunda Turma.
O segundo foco é o Congresso, principalmente a Câmara, cujo presidente, Arthur Lira lidera as articulações para acabar com a Lava-Jato. O Centrão e maioria das bancadas do PT e do PSDB apostavam na suspeição de Moro. O terceiro, o Palácio do Planalto, muito mais interessado no fim da Lava-Jato e na inelegibilidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A retórica de Bolsonaro sobre a decisão mira o desgaste do Supremo junto aos militares e uma parte da opinião pública. A candidatura de Lula já está precificada. No esquema binário da narrativa bolsonarista, a esquerda é o inimigo principal. O fantasma de Lula assombra os eleitores que elegeram Bolsonaro e dele estavam se afastando, por causa de seus desatinos na pandemia e outras questões nas quais confronta os grandes consensos. Com Lula livre, o discurso golpista de Bolsonaro ganha uma dimensão eleitoral antecipada, com sua cantilena contra a urna eletrônica. Ou seja, quer ganhar no voto ou no grito.
Luiz Carlos Azedo: As tardes com Huck
O apresentador já é uma personalidade política, mas precisa escolher o eixo de sua atuaçao: o mundo do entretenimento ou a disputa pelo poder
O filme Uma noite em Miami (One Night in Miami) narra o encontro secreto de Malcolm X com o campeão de boxe Cassius Clay, o rei do soul, Sam Cooke, e o astro do futebol americano Jim Brow, na noite de 24 de fevereiro de 1964. Dirigido por Regina King, é uma adaptação da peça de Kemp Powers, lançada em 2013, na qual o líder negro convence seus amigos a ultrapassarem a condição de celebridades e ingressarem como ativistas na luta pela igualdade de direitos para os afro-americanos. Clay comemorava a conquista do título mundial dos pesos-pesados, aos 22 anos de idade, com os três grandes amigos, num modesto quarto de motel na Flórida, que aceitava negros.
Clay (Eli Goree) lutara contra um adversário branco, debaixo de vaias e xingamentos; Cooke (Leslie Odom Jr.) acabara de ser hostilizado pela plateia branca na célebre boate Copacabana; e Brown (Aldis Hodge) fora humilhado por um torcedor rico e fanático do seu time, o Cleveland. Esse é o contexto dos tensos diálogos do filme, que chegam à beira do confronto físico. Há grandes diferenças de temperamento, modo de vida e visão de mundo entre eles, mas a conversa foi um catalizador da ruptura que fizeram em suas vidas.
Na mira do FBI de J. Edgar Hoover e decepcionado com o líder muçulmano Elijah Muhammad, Malcolm fundou a Unidade Afro-Americana, grupo não religioso e não sectário. Em 21 de fevereiro de 1965, na sede de sua organização, receberia 16 tiros, a maioria no coração. Foi assassinado aos 39 anos, diante de sua esposa, Betty, que estava grávida, e de suas quatro filhas. Cassius Clay anunciaria a adoção do islamismo e seu novo nome, Muhammad Ali; recusou-se a lutar na Guerra do Vietnã e acabou perdendo o título. Sam Cooke viria a compor e gravar a canção A Change is Gonna Come, um hino da luta pelos direitos civis. Jim Brown trocaria o futebol americano pelo cinema (Os Doze Condenados); protagonizou, com Raquel Welch, a tórrida cena de amor interracial do filme 100 Rifles, que escandalizou os segregacionistas.
Escolha difícil
E as tardes de Luciano Huck? Como os personagens do filme, o apresentador da TV Globo está diante de uma escolha difícil. Desde 2018, alimenta o sonho de ser presidente da República, em razão de sua tomada de consciência sobre as desigualdades sociais no Brasil e a ambição de liderar um projeto político novo, sob influência de economistas e políticos de suas relações pessoais. Como comunicador, bateu no teto com o Caldeirão, apesar dos benefícios materiais que o programa lhe proporciona.
Eis que a TV Globo anuncia a aposentadoria do apresentador Fausto Silva e a intenção de mudar a sua programação nas tardes de domingo. No cast da emissora, o primeiro na linha de sucessão é Huck. Nos bastidores, comenta-se que teria recebido uma proposta de R$ 3 milhões de luvas e salário mensal de R$ 500 mil para assumir o lugar de Faustão, ao mesmo tempo em que a apresentadora Angélica, sua esposa, seria escalada para comandar o Caldeirão nos sábados. É uma proposta tentadora. Como a política deixou de ser monopólio dos políticos, militares e diplomatas, como cidadão, Huck pode ter o mesmo protagonismo político que personalidades do mundo do entretenimento hoje têm nos Estados Unidos.
A outra opção é mais complexa, significa descer do telhado pelo outro lado e anunciar a intenção de disputar a Presidência da República; mesmo sem a certeza da vitória, se engajar. Na construção de uma nova alternativa de poder. O cavalo desta vez não passará arreado. A campanha eleitoral foi antecipada, já são três candidatos com os pés na estrada: o presidente Bolsonaro (sem partido), Fernando Haddad (PT) e Ciro Gomes (PDT). O ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM) e o ex-ministro da Justiça Sergio Moro (sem partido) também estão no jogo. Nesse cenário, a ambiguidade é desgastante para o apresentador. Huck já é uma personalidade política, sem dissimulação, mas precisa escolher o eixo de sua atuação na sociedade: o mundo do entretenimento ou a disputa pelo poder.
Luiz Carlos Azedo: O Brasil está de luto
Nada disso, porém, importa para o presidente Bolsonaro. Seu comportamento é o que pode ser chamado de darwinismo social, segundo o qual os mais fortes sobrevivem
Com mais 1.699 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas e 75.102 novos casos, o Brasil está de luto fechado. Já são 260 mil famílias que choram pela perda de entes queridos, mas o presidente Jair Bolsonaro conseguiu, ontem, bater o recorde da falta de respeito e empatia com as vítimas da pandemia do novo coronavírus, que já tem 10.793.732 de casos confirmados: “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”, disse, ao criticar medidas de restrição de circulação da população em meio a recorde de mortes pela doença.
Bolsonaro está irritado com governadores, que cobram mais empenho do governo na compra das vacinas, liberação de verbas para mais leitos e o endosso do Ministério da Saúde às recomendações dos seus sanitaristas. Os governadores, em documento encaminhado ao governo, alegam que estão no “limite” e que a vacinação em massa “é a alternativa que se afigura como a mais recomendável e, provavelmente, a única capaz de deter a pandemia”.
“Neste momento, há novas, reais e importantes justificativas para que o Brasil obtenha, com celeridade, novas remessas de imunizantes, a principal delas é a chegada e a rápida disseminação, já no estágio de transmissão comunitária, da nova variante P1, que tem se revelado ainda mais letal, prejudicando os esforços para proteger a vida de nossas cidadãs e cidadãos, bem como de suas famílias”, afirmam no documento.
Os governadores destacam que as preocupações das autoridades sanitárias de todo o mundo estão voltadas para o Brasil, por causa das nossas dimensões continentais e do grande número de casos, mas, sobretudo, devido à falta de controle sobre a expansão da pandemia e suas novas variantes, que podem pôr em risco todo o esforço feito para imunizar no mundo, se não houver igual empenho de vacinação no Brasil. “O mundo acompanha com preocupação o rápido avanço do contágio por essa variante no Brasil, o que torna o bloqueio da disseminação desse tipo de vírus matéria de interesse de diversas nações, inclusive porque outras variantes podem dela advir”, afirmam, com toda a razão.
Darwinismo social
O que está acontecendo no Brasil equivale à tragédia da Aids na África do Sul, que tem 5,7 milhões de infectados pela doença, ou seja, 11,8% dos 49,2 milhões de habitantes. A Aids virou uma endemia por causa do negativismo do ex-presidente Thabo Mvuyelwa Mbeki, que sustentava a tese de que era causada por falta de vitaminas e recomendava tratamento com ervas medicinais dos sacerdotes tribais. Não é uma interpretação muito diferente das ideias do presidente Jair Bolsonaro, que sabota todos os esforços feitos pelas demais autoridades para combater a pandemia.
O encontro de um vírus (que não é considerado um ser vivo) com uma bactéria é considerado pelos biólogos um dos fenômenos da criação. Esse encontro é que permite a reprodução do vírus e também possibilita mutações genéticas. A mutação E484K encontrada na variante brasileira P1 é uma das alterações já identificada no novo coronavírus: o Sars-Cov-2. Essa mutação também está presente em outras duas variantes que causam preocupação pelo mundo: a B.1.1.7, identificada no Reino Unido, e B.1.351, na África do Sul. Suspeita-se de que ela ajude a se tornar mais transmissível e enfraqueça os anticorpos humanos contra o vírus.
Pesquisadores da Fiocruz identificaram a E484K no Ceará, no Paraná, em Santa Catarina, no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul, em Pernambuco, em Alagoas e em Minas Gerais. No Paraná e no Ceará, o índice de prevalência da mutação superou os 70% nas amostras, o que é muito grave. Nada disso, porém, importa para o presidente Bolsonaro. Seu comportamento é o que pode ser chamado de darwinismo social, segundo o qual, os menos aptos deixariam de existir, porque não são capazes de se adaptar e acompanhar a linha evolutiva. Assim, entrariam em extinção, acompanhando o princípio de seleção natural.
Luiz Carlos Azedo: Mortes, recessão e desemprego
O negativismo de Bolsonaro em relação ao distanciamento social, à eficácia das vacinas e ao uso adequado de máscaras aumenta as dificuldades para combater o vírus
As notícias não são boas, porque a recessão, o desemprego e as mortes por covid-19 avançam. Mesmo assim, o presidente Jair Bolsonaro vive num mundo só dele, que talvez não seja compartilhado nem pela maioria de seus seguidores, cujo negacionismo em meio à crise sanitária não chega a ponto de se recusar a tomar uma vacina. Em vez de liderar o combate à pandemia, Bolsonaro ataca governadores e prefeitos que tentam conter sua expansão. “Criaram pânico, né? O problema está aí, lamentamos. Mas você não pode entrar em pânico. Que nem a política, de novo, do ‘fique em casa’. O pessoal vai morrer de fome, de depressão?” — disse Bolsonaro, ontem, a apoiadores, em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília.
Como sempre acontece quando se vê diante de dificuldades, o presidente terceiriza responsabilidades e se faz de vítima: “Para a mídia, o vírus sou eu”. Ontem, o Brasil registrou 1.910 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas, um novo recorde desde o início da pandemia, e mais 71.704 novos casos, segundo informou o Ministério da Saúde. O número de óbitos pela doença chegou a 259,2 mil, e o total de casos aumentou para 10,718 milhões. O cenário é de colapso iminente do Sistema Único de Saúde (SUS) na maioria dos estados. Em Santa Catarina, por exemplo, dezenas de pessoas morreram por falta de UTI; casos graves estão sendo transferidos para o Espírito Santo.
A transmissão da doença está sendo homogênea e mais rápida do que a vacinação; o estoque de contaminados aumenta exponencialmente, sem leitos suficientes nas UTIs para internação, inclusive na rede privada. Entretanto, a narrativa de Bolsonaro é obsessivamente eleitoral, responsabiliza governadores e prefeitos pela recessão e o desemprego, por causa das medidas de distanciamento social. Explora o senso comum das pessoas que querem manter seus empregos ou atividades produtivas como se não houvesse amanhã.
A causa da recessão e do desemprego em todo o mundo é a pandemia da covid-19, que somente pode ser combatida de forma eficaz e definitiva com a vacinação em massa da população. O negativismo de Bolsonaro em relação ao distanciamento social, à eficácia das vacinas e ao uso adequado de máscaras aumenta as dificuldades para combater o vírus, a recessão e o desemprego, porque tira do eixo de coordenação da política de saúde pública o Ministério da Saúde e estimula a população a reproduzir atitudes temerárias em relação ao vírus, como aglomerações, abraços e apertos de mão, sem o uso correto de máscaras.
Auxílio emergencial
Com 4,1% de recessão em 2020, o Brasil saiu do ranking das 10 maiores economias do mundo e caiu para a 12ª colocação, segundo levantamento da agência de classificação de risco Austin Rating. Em 2019, o Brasil ficou na nona posição. Fomos superados por Canadá, Coreia e Rússia. São raros os momentos da história em que o Brasil andou para trás. Mesmo durante a hiperinflação, no governo Sarney, todos os indicadores sociais melhoraram. Recentemente, isso somente ocorreu durante a recessão do governo Dilma Rousseff (PT), que foi afastada pelo impeachment.
Bolsonaro subestima o que está acontecendo. É uma fuga da realidade. Com base nas projeções do FMI para 2021, a Austin estima que o Brasil pode cair para a 14ª posição no ranking das maiores economias do mundo, sendo superado também por Austrália e Espanha, considerando um cenário otimista de alta de 3,3% do PIB brasileiro deste ano e uma taxa de câmbio média de R$ 5,24 por dólar.
A contrapartida para evitar um desastre maior na economia é a aprovação do auxílio emergencial, sobre cuja necessidade há um amplo consenso, mas existem muitas divergências quanto às condições em que isso pode ser feito. Ontem, em nota técnica, o Ministério da Economia alertou o Congresso Nacional de que a prorrogação do auxílio emergencial sem respeitar os limites fiscais “tem o potencial de deteriorar a trajetória inflacionária, reduzir a atividade econômica e aumentar o desemprego”. Entretanto, isso ‘e estimulado por Bolsonaro, cujas decisões intempestivas e intervencionistas na economia estão “fritando” o ministro Paulo Guedes, o que também agrava a crise.
Luiz Carlos Azedo: A política como negócio
O senador Flávio Bolsonaro acaba de comprar uma casa no Setor de Mansões Dom Bosco, um dos mais valorizados da capital, no valor de R$ 5,7 milhões
Max Weber, em sua antológica palestra A política como vocação, divide os políticos em duas categorias: os que vivem para a política e os que vivem da política. No primeiro caso, estão aqueles que veem a política como bem comum; no segundo, como negócio. As duas espécies se digladiam na democracia, faz parte do jogo na ordem capitalista. Mas no Brasil é diferente: todos dizem defender o bem comum, ninguém assume que está na política para defender interesses empresariais. Como temos um pé no Oriente, em razão de nossas raízes ibéricas, muitos estão na política para formar patrimônio.
Parece o caso do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), que acaba de comprar uma casa no Setor de Mansões Dom Bosco, um dos mais valorizados da capital, no valor de R$ 5,7 milhões. O imóvel tem área total de 2,4 mil metros quadrados. O registro em cartório da aquisição do imóvel revela que houve o pagamento de R$ 2,87 milhões à vista, além do valor da parcela do financiamento, entre R$ 18,7 mil e R$ 21,5 mil. Para justificar a operação, o filho primogênito do presidente Jair Bolsonaro disse que vendeu um apartamento na Barra da Tijuca (RJ) e a franquia de sua loja de chocolates para dar a entrada no imóvel na capital federal.
Um blogueiro gozador, rapidamente, fez as contas, comparando o valor do imóvel com a quantidade de Nhá Benta (merengue coberto por chocolate), equivalentes aos R$ 6 milhões: 182.370 caixas de 90 gramas, de acordo com os preços da loja virtual da Kopenhagen. O financiamento obtido no Banco de Brasília (BRB) para aquisição do imóvel foi bem camarada. Pelas regras do sistema financeiro habitacional, a prestação não pode ultrapassar 30% da renda bruta. Do valor total do imóvel, R$ 3,1 milhões foram financiados, em 360 parcelas, a uma taxa de juros de balcão efetivos de 4,85% ao ano. No cartório em Brazlândia, onde foi registrada a operação de compra e venda, consta que Flávio Bolsonaro tem renda de R$ 28,3 mil e sua esposa, R$ 8,6 mil.
A notícia da compra do imóvel pegou de surpresa os aliados do presidente Jair Bolsonaro, pois o senador tem direito a apartamento funcional. Logo, repercutiu nas redes sociais, porque o imóvel havia sido anunciado por corretores e havia abundância de imagens em vídeo da mansão na internet (https://youtu.be/TrzNkaBgYE4). Recentemente, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por 4 votos a 1, havia anulado a quebra de sigilo das contas do senador, que é investigado no escândalo das “rachadinhas” da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, supostamente, por ter movimentado cerca de R$ 2,3 milhões. De acordo com a denúncia do Ministério Público, o dinheiro teria sido lavado com aplicação em uma loja de chocolates no Rio, da qual o senador era sócio, e em imóveis.
Preconceitos
Para o senso comum, as pessoas ricas poderiam se dedicar inteiramente à política de forma genuína, pois não teriam interesses econômicos nela. As pessoas que vivem da política seriam aquelas que veem na política sua profissão. Essa é uma visão preconceituosa, que não é bem o que Max Weber quis dizer, porque dá margem à ideia de que pessoas ricas estariam mais habilitadas a entrar na política, pois não roubariam, enquanto uma pessoa pobre não poderia fazer o mesmo, pois veria na política um meio de garantir sua vida financeira.
O que Weber quis dizer é que políticos que vivem para a política atuam em defesa do bem comum, não importa se são ricos ou pobres. A remuneração de um parlamentar existe exatamente para permitir que um assalariado possa exercer seu mandato sem pôr em risco a sobrevivência de sua família. De igual maneira, há pessoas que entram na política não porque vão ganhar um alto salário como deputado, por exemplo, mas, sim, porque esse cargo lhe permitirá participar da cúpula do poder, com a possibilidade de tomar decisões que favoreçam um grupo específico ao qual pertence ou ao qual deva favores, o que é legítimo na democracia. Mas também há inúmeros casos de homens ricos que estão na política para fazer seus próprios negócios e que se notabilizaram como políticos corruptos.
Luiz Carlos Azedo: O retrato da (in)governança
“A crise sanitária escancara a incapacidade de o governo pôr em movimento, de forma coordenada e a partir de amplos consensos, as políticas públicas do país”
A foto divulgada pelo presidente Jair Bolsonaro no Twitter, na noite de domingo, com as sete pessoas mais importantes da República –– excluídos o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, e vice-presidente Hamilton Mourão ––, após uma reunião fora da agenda no Palácio da Alvorada, diz muito mais sobre o que se deixa de fazer do que sobre qualquer outra coisa. Embora os assuntos tratados, segundo o post, fossem muito relevantes: vacina, auxílio emergencial, emprego e situação da pandemia. As conclusões da reunião são um mistério.
Quem são as autoridades na foto? Além de Bolsonaro, os generais Braga Neto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Eduardo Pazuello (Saúde), todos sem máscara, a atitude mais negativista possível em relação à pandemia; os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, esses com máscaras. Evidentemente, a foto sinaliza força política, os pilares da governabilidade: a união entre os generais do Palácio do Planalto e os chefes do Legislativo, além do homem que toma conta do cofre da União, em torno do presidente da República.
Mais governabilidade, impossível. Entretanto, a foto é o retrato da crise de governança em que o país está sendo lançado. A reunião não apontou um rumo. Muito pelo contrário, a crise sanitária se agrava, a escassez de vacinas retarda a imunização em massa, permanece o impasse sobre a PEC Emergencial, a economia desanda. Não foi à toa que o dia de ontem foi pautado pelas manifestações de governadores e prefeitos cobrando mais responsabilidade do governo federal e do Congresso no enfrentamento da crise sanitária. Na semana passada, como em outras, não era essa a prioridade de Bolsonaro e das principais lideranças do Poder Legislativo.
Há uma grande diferença entre governabilidade e governança. A expressão “governance” é uma invenção do Banco Mundial (Bird), focada na existência de um “Estado eficiente”. É a maneira pela qual o poder é exercido na administração dos recursos sociais e econômicos de um país visando ao desenvolvimento, ou seja, a sua capacidade de planejar, formular e implementar políticas e cumprir funções. Ao formular o conceito, o Bird considerou dois aspectos: o desenvolvimento sustentado, o que inclui equidade social e direitos humanos, e os procedimentos governamentais, entre os quais a articulação público-privada e a participação dos interessados nas decisões.
Pintando meio-fio
A alta burocracia do governo federal foi treinada para operar os dois conceitos, com os quais Bolsonaro não tem intimidade. Demorou para valorizar a governabilidade, que se refere à dimensão estatal do exercício do poder, suas condições sistêmicas, como as relações entre os poderes e a intermediação de interesses. A governança, porém, ainda é como aquele caviar do samba de Barbeirinho e Marcos Diniz, consagrado na voz de Zeca Pagodinho: “Nunca vi, nem comi/ eu só ouço falar”.
A governança não se restringe aos aspectos gerenciais e administrativos do Estado. Refere-se a padrões de articulação e cooperação entre atores sociais e políticos e arranjos institucionais, coordenação e regulação de transações dentro e através das fronteiras do sistema econômico e do mundo social, como o consórcio que prefeitos estão formando para fazer o que o governo não faz: comprar vacinas. A crise sanitária escancara a incapacidade de o governo pôr em movimento, de forma coordenada e a partir de amplos consensos, as políticas públicas do país.
Infelizmente, os generais que comandam o Palácio do Planalto não trabalham com os demais entes federados e a sociedade na base da cooperação e coordenação (como recomenda a moderna doutrina militar). Sob o comando de Bolsonaro, operam de forma prussiana, vertical, hierarquizada, de cima para baixo, como quem manda pintar de branco o meio-fio dos quarteis ou tomar ivermectina e cloroquina contra a covid-19. Além de um centro, essa visão das coisas tem um método: manda quem pode, obedece quem tem juízo. O resultado é que o país está paralisado, sem rumo, como o coelho hipnotizado pela serpente.
Luiz Carlos Azedo: A tragédia do negacionismo
Bolsonaro é paranoico, vê conspiração em tudo. Acredita que os defensores do lockdown querem desestabilizar seu governo e aprovar o seu impeachment
O presidente Jair Bolsonaro bateu no teto do negacionismo quando atacou governadores e prefeitos que adotaram medidas de lockdown. Em Fortaleza, durante evento que causou aglomeração e ao qual compareceu sem máscara, na sexta-feira, disse: “Agora, o que o povo mais pede, e eu tenho visto, em especial no Ceará, é trabalhar. Essa politicalha do ‘fique em casa, a economia a gente vê depois’, não deu certo e não vai dar certo”. Aproveitou para ameaçar os governadores que não seguirem a sua cartilha: “O auxílio emergencial vem por mais alguns meses e, daqui para a frente, o governador que fechar seu estado, o governador que destrói emprego, ele é quem deve bancar o auxílio emergencial”.
Mirou, sobretudo, o governador cearense Camilo Santana (PT), que havia endurecido as medidas de distanciamento social. Fortaleza está com uma taxa de ocupação de leitos de UTI de 94%, sendo uma das capitais em risco de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS). As demais são: Porto Velho (RO), 100%; Florianópolis (SC), 96,2%; Manaus (AM), 94,6%; Goiânia (GO), 94,4%; Teresina (PI), 93%; e Curitiba (PR), 90,0%. O país já contabilizou 10,4 milhões de casos e 252 mil óbitos por covid-19 desde o início da pandemia. Na véspera das declarações, Bolsonaro havia questionado o uso de máscaras, enquanto o país batia o recorde de mortos num único dia: 1.582.
Psicologicamente, negacionismo é uma forma de escapar de uma verdade desconfortável. Na ciência, o negacionismo é definido como a rejeição dos conceitos básicos, incontestáveis e apoiados por consenso científico a favor de ideias radicais e controversas. Costuma se fortalecer quando a sociedade se depara com situações de instabilidade, como essa crise sanitária, ou diante de algo nunca presenciado, um vírus novo e letal, como é o caso. O negacionismo apela para teorias e discursos conspiratórios, que acabam favorecendo disputas ideológicas, interesses políticos e religiosos. Bolsonaro é paranoico, vê conspiração em tudo. Acredita que os defensores do lockdown (medida para conter a velocidade de propagação do vírus e evitar o colapso do sistema de saúde) querem desestabilizar seu governo e aprovar o seu impeachment.
Vacinas
No governo, além de Bolsonaro, os ministros de Relações Exteriores, Ernesto Araujo; do Meio Ambiente, Ricardo Salles; e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, em suas respectivas pastas, estão na linha de frente do negacionismo. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, também fez parte desse time. Sua responsabilidade no colapso do SUS em Manaus, por falta de oxigênio, está sendo investigada, assim como no atraso da compra de vacinas, inclusive, as que estão sendo produzidas no Brasil, como a CoronaVac (Instituto Butantan); a Oxford (Fiocruz) e a Sputnik V (União Química, privada). Agora, corre atrás das vacinas da Pfizer, que negocia desde agosto e refugou em setembro passado.
O negacionismo é insidioso e perigoso, pois atua no campo ideológico para influenciar a opinião pública e legitimar governantes com posições anticientíficas. Com isso, pode resultar em tragédias humanitárias. É o caso da epidemia de Aids na África do Sul, que chegou a registrar 5,4 milhões infectados, para uma população de 48 milhões de pessoas. O ex-presidente sul-africano Thabo Mbeki (1999-2008) ficou para a história como o principal negacionista do HIV/Sida, que mandou tratar com erva, o que custou a vida de mais de 300 mil pessoas. Há quem exija que seja julgado por crimes contra a humanidade.
A negligência no combate à pandemia, a negação das vacinas e a insistência na promoção de tratamentos comprovadamente ineficazes contra a covid-19, pelo presidente Jair Bolsonaro, porém, provocou ampla mobilização de médicos, pesquisadores e entidades científicas, que atuam nos meios de comunicação e nas redes sociais para combater a fake news e explicar à população o que realmente está acontecendo. O negacionismo irresponsável é tanto que até hoje o governo não fez uma campanha oficial de esclarecimento e incentivo à vacinação, que é a última fronteira do combate ao negacionismo em relação à pandemia da covid-19.