Nas entrelinhas

Luiz Carlos Azedo: A crise dos partidos

Três grandes partidos derivaram para o patrimonialismo e o clientelismo. Com seu transformismo, ameaçam garrotear a democracia brasileira

A crise de representação dos partidos políticos não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Ocorre em todo o mundo, em consequência de vários fenômenos, alguns mais antigos, como o surgimento dos meios de comunicação de massas, outros mais recentes, como o crescente papel das redes sociais na formação de opinião. Mas, no caso brasileiro, tem ingredientes que são bem característicos da nossa formação política.

Os partidos políticos, tal como os conhecemos, surgiram após a Revolução Francesa e na sociedade industrial estruturada em classes mais ou menos definidas. Sua transformação em partidos de massa, com características ideológicas definidas, a partir do final do século XIX, decorreu de projetos programáticos e do surgimento de democracias de massa, mas não se pode dizer que estivessem intrinsecamente comprometidos com elas. Os partidos comunista e fascista, por exemplo, foram vocacionados para assaltar e manter o poder pela força, não para exercê-lo no âmbito da democracia representativa.

No Brasil, onde as ideias políticas acabam sempre mitigadas, os partidos já nasceram dissociados de seus objetivos programáticos. No Império, por exemplo, a luta de liberais (luzias) e conservadores (saquaremas) gravitava em torno do tema centralização/descentralização, ou seja, do exercício e controle do poder nas províncias; do ponto de vista programático, porém, ambos eram monarquistas e intransigentes defensores da escravidão. O movimento abolicionista desenvolveu-se à margem dos partidos; assim como o movimento republicano, era mais bem representado pela Escola Militar da Praia Vermelha do que pelo minúsculo partido ao qual emprestava o nome.

De certa maneira, o mesmo fenômeno se repete na crise da República Velha, na qual as elites regionais se digladiaram na luta pelo poder, até que as sucessivas crises da economia do café e o grande debate “agrarismo e/ou industralização” implodiram o pacto perverso das elites oligárquicas e seu sistema excludente e elitista de partidos regionais que se revezavam no poder a partir do eixo Rio-São Paulo.

A opção da elite cafeeira paulista pela industrialização gerou uma disjuntiva na qual o eixo da modernização se deslocou da República Velha para o Estado Novo, depois da Revolução de 1930, da fracassada Revolta Constitucionalista de 1932 e do incipiente levante comunista de 1935. A tentativa de constituir um sistema de representação corporativista na Constituinte de 1937, claramente de inspiração fascista, com a entrada do Brasil na guerra contra o nazifascismo, morreu no nascedouro.

Com a redemocratização, em 1945, a Guerra Fria se encarregou de fraudar o sistema representativo da Segunda República. O Partido Comunista (PCB), que ressurge no pós-guerra como um partido de massas, foi posto na ilegalidade, o que reforçou sua vertente golpista; e a antiga União Democrática Nacional (UDN), que nasceu da resistência à ditadura de Vargas, derivou de forma irreversível para o golpismo. Os três partidos de vocação verdadeiramente democrática eram o Partido Social-Democrata (PSD), conservador, elitista e ligado às oligarquias; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), um partido de massas, nacionalista e populista; e o pequeno Partido Socialista Brasileiro (PSB), uma pequena agremiação de intelectuais progressistas.

Depois do golpe

Esses partidos protagonizaram os melhores e piores momentos da vida nacional, até o golpe de 1964, após o qual foram todos expurgados da vida política, com a reforma partidária imposta pelos militares, uma tentativa frustrada de implantar o bipartidarismo no Brasil. O projeto de institucionalização do regime autoritário, que havia derivado para o fascismo após o Ato Institucional no. 5, era uma espécie de “mexicanização” do país, no qual a hegemonia absoluta da Arena seria a via de transferência do poder para os civis.

Esse projeto sofreu sucessivas derrotas eleitorais — 1974 e 1978 — e foi sepultado com a anistia e a volta do pluripartidarismo, em 1979. Nova derrota do regime nas eleições de 1982, nas quais a oposição conquistou os principais governos estaduais, e a campanha das Diretas, Já!, apesar de frustrada, resultaram na derrota definitiva do regime, com a eleição de Tancredo Neves, em 1985, que não assumiu, mas cujo vice, José Sarney, convocou uma Constituinte e completou a transição.

O regime partidário que resultou da Constituição de 1988, cuja marca é a ampla liberdade para formação de partidos, já surgiu, porém, em meio às mudanças no mundo descritas no começo desse artigo, embora com a aparência de que algo novo estava nascendo. O PMDB emergiu da ditadura como o grande partido político liberal democrático. Com o colapso do socialismo real no Leste Europeu, o surgimento do PT como partido de massas, ligado aos sindicatos e aos movimentos sociais, sinalizava, porém, uma ruptura com o comunismo e o populismo. Fundado por políticos e intelectuais progressistas, o PSDB oferecia à sociedade brasileira um programa social-democrata moderno, em sintonia com as necessidades de modernização do país.

Esses três grandes partidos, mas não somente, derivaram para o patrimonialismo e o clientelismo. Com seu transformismo, ameaçam garrotear a democracia brasileira, como principais artífices de uma reforma política cujo objetivo principal é salvar seus quadros enrolados na Operação Lava-Jato de uma degola eleitoral, em vez de renovar os costumes políticos do país.

 


Temer passa à ofensiva

O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, para mobilizar o apoio dos agentes econômicos, anunciou que o governo pretende aprovar a reforma da Previdência até outubro

Livre da denúncia do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, até o fim de seu mandato, o presidente Michel Temer pretende passar à ofensiva no Congresso, com objetivo de aprovar uma extensa pauta legislativa, cujo nó górdio é a reforma da Previdência. O Palácio do Planalto conseguiu mobilizar o apoio de 263 deputados para congelar a investigação, mas precisará de pelo menos 308 votos para aprovar essa reforma, considerada crucial para restabelecer o equilíbrio das contas públicas. Para isso, acena para os dissidentes da base do governo com a promessa de perdão por terem votado a favor de seu afastamento.

Ontem, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, para mobilizar o apoio dos agentes econômicos, anunciou que o governo pretende aprovar a reforma da Previdência até outubro. Meirelles minimizou a diferença de votos a ser alcançada. “São decisões diferentes. Acreditamos sim na viabilidade de aprovação”, disse. Na prática, são 45 deputados que precisam ser conquistados se não houver nenhuma defecção na base hoje existente. Mas anunciou também que o governo pretende aprovar a reforma tributária ainda este ano, o que não é fácil.

O maior aliado de Temer para aprovação das reformas é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que não compartilha o mesmo otimismo, embora esteja engajado plenamente nessa agenda. Maia comemorou a rejeição da denúncia, mas disse que o resultado não era bom para as reformas pelo fato de que a manifestação a favor de Temer não alcançou o quórum equivalente ao de aprovação de emendas constitucionais. De certa forma, revelou certa surpresa com o número de votos contra Temer.

O PSDB rachou na votação da denúncia contra o presidente Michel Temer: dos 47 deputados da bancada, 22 votaram a favor do presidente e 21, contrários. Quatro estavam ausentes. Esse resultado fragilizou a posição do PSDB na Esplanada, sendo que a pasta das Cidades, ocupada pelo deputado Bruno Araújo (PE), é o objeto de desejo do chamado Centrão (PP, PR, PSD e PTB), que reúne 142 deputados. Mas o grupo também não votou monoliticamente: houve 32 deputados dissidentes, sendo 14 do PSD, cuja bancada tem 38 deputados. No PMDB, somente sete dos 63 deputados votaram contra Temer, mesmo com o partido fechando questão. Temendo punição, já procuram outras legendas.

No caso dos tucanos, a tensão na legenda é grande. O presidente interino, Tasso Jereissati (CE), ontem, disse que a permanência dos ministros tucanos no governo é um problema do presidente da República e não da legenda, que não precisa de cargos para aprovar as reformas. O senador Aécio Neves (MG), licenciado da presidência da legenda por causa da Lava-Jato, foi um dos artífices da vitória de Temer. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, passou a defender publicamente o desembarque do governo. Segundo ele, a permanência do PSDB na administração federal perderá o sentido depois da reforma da Previdência.

Reforma política

Uma extensa agenda legislativa já está definida para o Congresso, mas a intenção do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-EJ), é pôr em votação na próxima semana a reforma política. As principais propostas em discussão são a instituição do financiamento público de campanhas; o sistema de listas partidárias preordenadas para as eleições proporcionais; o fim das coligações; a perda de mandatos majoritários por infidelidade partidária; e cláusula de barreira. A proposta mais polêmica em discussão, porém, é a criação do chamado “distritão”, uma jabuticaba plantada pelo presidente Michel Temer quando ainda era vice da presidente Dilma Rousseff.

O “distritão” acaba com a eleição proporcional, em vigor desde as eleições de 1945, e absolutiza o voto uninominal. Serão eleitos os deputados mais votados em cada estado, independentemente da votação de seus respectivos partidos. Não é fácil a aprovação dessa proposta no plenário da Câmara, porém, porque a mudança altera profundamente as condições para a reeleição dos atuais parlamentares, acostumados com as regras atuais. Outra discussão aberta com a reforma política é a adoção do parlamentarismo. O impeachment de Dilma Rousseff e as agruras de Michel Temer, que assumiu seu lugar, para muitos parlamentares, são a demonstração de que o chamado presidencialismo de coalizão é um sistema falido, que joga o país em longas crises quando o governo perde sua base parlamentar.

 


A nova base de Temer

A vitória (262 votos contra 227, 2 abstenções e 19 ausências) demonstrou que o presidente da República tem força para governar sem depender da cúpula tucana e outros aliados da antiga oposição

O resultado da votação de ontem na Câmara, que rejeitou a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra o presidente da República, inaugura uma nova fase do governo Temer. O novo Centrão cobrará o preço do apoio com olho grande nas pastas sob controle do PSDB, cuja bancada rachou na votação da denúncia (22 votos contra, 21 a favor e 4 ausências). Mesmo que Temer seja magnânimo e resolva lamber as feridas da base, como deu a entender no pronunciamento de ontem à noite, nada será como antes. A vitória (262 votos contra 227, 2 abstenções e 19 ausências) demonstrou que o presidente da República tem força para governar o país até 2018 sem depender da cúpula tucana e outros aliados da antiga oposição, ainda que para isso tenha que negociar caso a caso as medidas que exigirem quórum qualificado.

Quem vacilou não estará inteiramente fora do jogo, quando nada porque há compromisso programático dessas forças com as reformas, principalmente a da Previdência, mas passará à condição de aliado de segunda classe. Os preferenciais são os que votaram “sim” na noite de ontem. A reforma da Previdência, que subiu no telhado, será uma espécie de rubicão. Se não for aprovada, o presidente da República será visto como uma espécie de “pato manco”, a expressão usada pelos norte-americanos para se referir aos presidentes sem apoio no Congresso. Aprová-la será a maior demonstração de que governo foi capaz de reagrupar a base.

A atual composição do governo Temer espelha as articulações e acordos feitos pelo presidente da República para isolar e afastar do poder a ex-presidente Dilma Rousseff. A maioria dos partidos aliados ao PT permaneceu no governo após o impeachment, mas o aliado principal de Temer passou a ser o PSDB, o que se reflete na ocupação de posições estratégicas na Esplanada dos Ministérios. A posição da metade da bancada tucana a favor da aceitação da denúncia, porém, terá como consequência alterar a relação do partido com Temer, reduzindo a influência da legenda.

Um ator importante nesse processo é o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, que em todos os momentos defendeu a posição de que o PSDB não deveria abandonar o governo. Entretanto, não moveu uma palha para obrigar os tucanos paulistas a votarem contra a denúncia. Quem trabalhou fortemente para rejeitar a denúncia foi o presidente licenciado do PSDB, senador Aécio Neves (MG), que atua para retomar o controle da legenda.

Se antes a hegemonia na base do governo era das forças que lhe defendiam a responsabilidade fiscal e as reformas, agora passou aos setores interessados em contingenciar ao máximo a Operação Lava-Jato e se viabilizar eleitoralmente por meio de liberação de cargos e verbas, ou seja, o velho toma lá da cá. A consequência é o descontrole dos gastos públicos. Será muito difícil o governo alcançar a meta fiscal deste ano, um deficit primário de no máximo R$ 139 bilhões, se a economia seguir lenta, como no primeiro semestre, e a arrecadação continuar decepcionante. Ainda neste mês o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, deverá decidir se uma nova meta para 2017, mais acessível, que terá que ser submetida ao Congresso.

Lava-Jato

O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, voltou à carga contra o presidente da República. Pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) que inclua Michel Temer como investigado no inquérito que apura se integrantes do PMDB formaram uma organização criminosa para desviar recursos da Petrobras e de outros órgãos públicos. O pedido será analisado pelo relator da Lava-Jato no Supremo, ministro Luiz Edson Fachin.

Assim, a Operação Lava-Jato continua sendo um espectro que ronda o Palácio do Planalto e a cúpula do PMDB. A investigação contra Temer no caso JBS foi congelada pela decisão da Câmara, mas será retomada quando a acabar o mandato. A poderosa coalizão formada para barrar a denúncia atuará no sentido de contingenciar a investigação, o que já vem acontecendo. Os sinais de inflexão na Lava-Jato vêm de todos os lados.

A “delação premiada” do publicitário Marcos Valério, já encaminhada ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela Polícia Federal, foi um sinal de enfraquecimento de Janot. A nomeação da nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge sinaliza essa inflexão a partir do próprio Ministério Público.

No âmbito do governo, medidas administrativas foram tomadas para reduzir a equipe da Polícia Federal que atua em Curitiba e redistribuí-la para outros estados. A grande mudança, porém, será a substituição do diretor-geral da Polícia Federal, Leandro Daiello Coimbra, que já arruma as gavetas e negocia a sucessão.

 


O julgamento é político

Para uma parte da oposição, como é o caso do PT, alongar a crise e desgastar o governo pode ser melhor até do que afastar Temer

A votação de hoje na Câmara dos Deputados sobre a admissibilidade da denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra o presidente Michel Temer é um julgamento político. Não tem nada a ver com a consistência ou não das acusações, uma atribuição do Supremo Tribunal Federal (STF), que julgará Temer se a denúncia for aceita ou congelará o processo até que seu mandato acabe.

Essa é a regra do jogo, estabelecida pela Constituição de 1988, para garantir o equilíbrio entre os poderes e o Estado de direito democrático. Ou seja, para evitar que um poder não eleito, no caso o Judiciário, provocado pelo Ministério Público Federal, afaste um governante eleito com apoio de uma maioria eventual no Congresso. Pela mesma razão, todo presidente da República é blindado pela Constituição: não pode ser investigado por atos cometidos antes do exercício do mandato.

Essa blindagem, porém, foi rompida quando Temer recebeu o empresário Joesley Batista em sua residência oficial, o Palácio do Jaburu, e por este foi gravado em conversa privada e nebulosa, supostamente para acertar propina, segundo a denúncia do procurador-geral Rodrigo Janot. Com a delação premiada do dono da JBS, Temer ficou na berlinda. Caso a denúncia seja rejeitada, como tudo indica, uma pedra será colocada temporariamente sobre o assunto, apesar do burburinho das ruas. A blindagem estará restabelecida.

É bem verdade que outra denúncia está sendo preparada por Janot, mas nada indica que isso modificará a situação no Congresso. É bom lembrar que a Constituição de 1988 foi elaborada durante o governo Sarney, que amargou grande impopularidade depois do fracasso do Plano Cruzado, até concluir seu mandato em 1989. Ou seja, foi concebida para evitar crises políticas que levem a rupturas institucionais. É preciso a total falta de governabilidade para que o afastamento do cargo ocorra, como aconteceu nos impeachments de Collor de Mello e Dilma Rousseff. Basta o apoio de 172 deputados para barrar qualquer intenção de destituição do presidente da República.

Nos bastidores do Congresso, consta que Temer somente não renunciou ao mandato porque foi aconselhado a resistir pelo ex-presidente José Sarney, o político mais longevo em atividade no país, cuja influência no governo se mantém, mesmo já estando sem o mandato de senador. Sarney viveu todas as crises políticas desde 1955. Temer foi incentivado a usar todo o poder de que dispõe na Presidência para barrar a denúncia. E não está vacilando nisso.

Maioria
Hoje, 11 dos 12 ministros que são deputados devem voltar à Câmara para votar a favor de Temer (a exceção é o da Defesa, Raul Jungmann, que é suplente). É uma sinalização de que o jogo está mesmo pesado e aqueles que não conseguirem mobilizar suas bancadas ficarão lá mesmo, na Câmara, não voltarão aos seus cargos. O partido que ficou na maior saia justa foi o PSDB, cuja bancada federal é majoritariamente a favor da denúncia. A cúpula da legenda, porém, trabalha para rejeitá-la , inclusive o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin.

Não interessa ao governo adiar a votação; somente à oposição. Para uma parte da oposição, como é o caso do PT, alongar a crise e desgastar o governo pode ser melhor até do que afastar Temer. Mas o Palácio do Planalto tem interesse em encerrar o assunto ainda hoje, com a maior demonstração de força possível. Mesmo com a certeza de que a denúncia será barrada, um resultado no qual o governo não mostre músculos poderosos pode ser o começo do fim. Outra denúncia será apresentada por Janot, antes de completar seu mandato, em setembro, e há muitas medidas provisórias que precisam ser aprovadas no Congresso.

Temer precisa do apoio de pelo menos 257 deputados para demonstrar que tem força para barrar a denúncia e também para garantir a sua governabilidade. Essa contabilidade é importante diante da sua agenda legislativa. Não se trata apenas da reforma da Previdência, que para muitos subiu no telhado. Com o estouro das contas públicas, o governo precisa aumentar impostos e mudar a meta fiscal, cujo deficit previsto é de R$ 139 bilhões, mas já estourou. Se não mudar a meta, Temer pode ser enquadrado em crime de responsabilidade. E aí a situação se complica ainda mais.

 

 


Entre a ordem e a malandragem

As Forças Armadas estão empregando o conceito de “guerra assimétrica” . Isso tem a ver com combate ao terrorismo. Faz sentido, o tráfico de drogas atua como uma espécie de guerrilha urbana

Desde sexta-feira, mais de 10 mil homens das forças federais reforçam a segurança no Rio de Janeiro, por decisão do presidente Michel Temer, que resolveu enfrentar o problema da violência e do crime organizado no estado. Em entrevista coletiva, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, afirmou que o decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) permitirá a atuação das Forças Armadas (são 8,5 mil homens do Exército e Marinha, principalmente) com poder de polícia, em caráter permanente, até o fim de 2018 (renovado), com ações de inteligência, operações especiais e patrulhamento preventivo, para desmantelar o crime organizado e desalojá-lo dos territórios que hoje controla.

Há muitas questões envolvidas nessa intervenção que merecem reflexão, a começar pelo fato de que as Forças Armadas, desta vez, estão empregando plenamente o conceito de “guerra assimétrica”. Na doutrina militar, isso tem a ver com combate ao terrorismo. Mas faz sentido, se levarmos em conta que o tráfico de drogas no Rio de Janeiro reúne as condições ideais para atuar como uma espécie de guerrilha urbana: dispõe de uma topografia favorável, uma base social robusta e uma fonte permanente de financiamento.

A iniquidade social nos territórios ocupados pelo crime organizado facilita o recrutamento permanente de crianças e adolescentes, que logo se tornam soldados do tráfico. Além disso, a proximidade de um mercado consumidor com alto poder aquisitivo, principalmente na Zona Sul do Rio, faz da venda de drogas uma atividade econômica importante na economia informal; a recessão e a crise fiscal, porém, fizeram o movimento cair e a alternativa dos traficantes para financiar suas atividades são o roubo de carga e os arrastões em praias, túneis e avenidas da cidade.

Pura ironia da história. Onde fracassou Carlos Marighella, o líder da guerrilha urbana contra o regime militar, vence o traficante Fernandinho Beira-Mar. Com a diferença de que o primeiro foi assassinado pelos órgãos de segurança e o segundo está muito bem protegido de seus inimigos num presídio de segurança máxima. Depois do colapso das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), os morros do Rio de Janeiro voltaram ao controle dos traficantes. Quem mostra bem a realidade do tráfico nas favelas cariocas é jornalista Caco Barcelos, num livro intitulado Abusado, o dono do Morro Dona Marta.

Malandragem

Os cariocas sempre glamourizaram a malandragem e prezam uma cultura de transgressão, o que naturalmente também tem suas consequências. Uma delas é a dificuldade para estabelecer uma justa relação entre a questão da segurança pública e a defesa dos direitos humanos. A esquerda carioca, por exemplo, odeia as forças de segurança pública.

As origens da Polícia Militar do Rio de Janeiro estão bem descritas num clássico do romantismo, Memórias de Um Sargento de Milícias, de Manoel Antônio de Almeida. Escrito em meados do século 19, a trama do livro ocorre no tempo de Dom João VI. Leonardo, o protagonista principal, é um jovem irrequieto e transgressor, que se envolve com a mulata Vidinha e passa a sofrer as perseguições do major Vidigal, um caçador de malandros e vagabundos (àquela época só havia traficantes de escravos). Para não ser preso, é forçado a se alistar. Mas continua arruaçeiro e desobedece seguidamente ao major. Por isso, acaba preso. Entretanto, consegue a liberdade graças à ação de uma ex-namorada de Vidigal, Maria Regalada, que lhe promete, em troca, a retomada do antigo afeto. Leonardo não só é solto, como é promovido. Com a ajuda do Major, se torna sargento de milícias. Os arquétipos de Leonardo e Vidigal estão vivíssimos na tropa e na oficialidade da PM fluminense.

O problema é que, agora, depois do fracasso das UPPs, o pacto perverso entre a banda podre da polícia e os traficantes se rompeu. Em consequência, policiais militares estão sendo mortos com muita frequência pelos traficantes, que resolveram escorraçá-los de seus territórios. A crise financeira do estado e a desmoralizaçao completa da elite política local levaram a segurança pública ao colapso. A alternativa encontrada para restabelecer a ordem, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, foi a intervenção das Forças Armadas.

Nessa intervenção, porém, além das inúmeras questões aqui suscitadas, existe um ingrediente político importante. A ação é vista no Palácio do Planalto como uma grande jogada de marketing político, na qual o presidente Temer acredita que pode melhorar a sua popularidade, ao empunhar as bandeiras da ordem e do combate ao crime organizado. A população aplaude a iniciativa e espera que dê os resultados almejados. De fato, não deixa de ser uma oportunidade para reposicionar sua imagem, em meio ao desgate provocado pelas denúncias da Operação Lava-Jato e às vésperas da votação do pedido de admissibilidade da denúncia contra o presidente da República pela Câmara.

 

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Janot esvazia as gavetas

Raquel Dodge assumirá a PGR com a mesa cheia de processos polêmicos. A presença de procuradores considerados “xiitas” pelos políticos na equipe de transição assustou alguns integrantes do governo

O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, promete esvaziar suas gavetas em agosto, antes de concluir seu mandato à frente do cargo. O ministro Edson Fachin, relator da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), já está trabalhando em Brasília, se preparando para a retomada das sessões da Corte, em linha com a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia. Nos meios políticos, por causa disso, especula-se que a segunda denúncia contra o presidente Michel Temer pode ser encaminhada ao Congresso na próxima segunda-feira, véspera do dia marcado para a votação da primeira.

Janot pretende encaminhar todos os pedidos de investigação e denúncias baseados nas delações premiadas da Lava-Jato até a passagem do cargo para a nova procuradora-geral, Raquel Dodge, marcada para 18 de setembro. No Ministério Público Federal, há grande expectativa quanto à equipe de transição montada por ela, que deverá se assenhorar dos casos previstos e ficará com um tremendo abacaxi nas mãos. Raquel Dodge assumirá a Procuradoria-Geral da República com a mesa cheia de processos polêmicos, que deverá arquivar ou dar seguimento. A presença de procuradores considerados “xiitas” pelos políticos na equipe de transição assustou alguns integrantes do governo.

Nesse meio-tempo, a temperatura política deve subir, com o acirramento do choque entre o governo e o MPF. Ontem mesmo, houve um bate-boca entre o procurador federal Athayde Ribeiro Costa e o ministro da Justiça, Torquato Jardim. Na entrevista coletiva sobre a prisão de Aldemir Bendine, ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobras, Costa acusou Jardim de não procurar saber quais são as necessidades da Operação Lava-Jato ao fazer mudanças na equipe da Polícia Federal em Curitiba, extinguindo o grupo que atuava exclusivamente na força-tarefa local: “Sequer consultou a força-tarefa sobre o quanto de investigação tinha e o quanto de necessidade de efetivo havia. É uma responsabilidade dele essa diminuição, e temos que fortalecer a Polícia Federal”, afirmou o procurador.

Segundo Costa, no Ministério Público Federal, está claro que a Lava-Jato é prioridade. “É assim com o doutor Rodrigo Janot e certamente será com a doutora Raquel Dodge”, disse. Desde 6 de julho, a equipe passou a integrar a Delegacia de Combate à Corrupção e Desvio de Verbas Públicas (Delecor). O ministro da Justiça rebateu as críticas: “Vejo a crítica como infundada. Basta olhar o meu passado profissional (…), você não encontrará nenhum gesto de crítica ou desapreço à Lava-Jato”, disse Torquato Jardim. E tirou por menos o fato de não ter visitado a força-tarefa em Curitiba: “Não me constava do protocolo do ministério que eu devesse fazer visita oficial à Lava-Jato. Se ele acha isso necessário, vamos combinar um café”, declarou. Segundo Jardim, a Lava-Jato atua em 16 capitais e em Brasília, por exemplo, já é maior do que em Curitiba.

Homem da Dilma

O ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobras Aldemir Bendine, homem da confiança da ex-presidente Dilma Rousseff, foi preso na manhã de ontem na 42ª fase da Operação Lava-Jato, batizada de Cobra. Ele foi um coringa à frente do banco e da petroleira. Suspeito de receber R$ 3 milhões da Odebrecht, acabou sendo detido na casa da filha, em Sorocaba (SP), às vésperas de viajar para Portugal. O executivo só tinha uma passagem de ida, marcada para hoje. O Ministério Público descobriu sobre a viagem por meio de escuta telefônica legal.

“É importante destacar que o MPF encontrou apenas a passagem de ida, não significa que não havia a passagem de volta”, ressalvou o procurador Athayde Ribeiro Costa. Segundo ele, a prisão foi motivada também pelo fato de Bendine ter nacionalidade italiana e de haver indícios de atividade criminosa após a deflagração da Lava-Jato. O executivo é acusado de pedir R$ 17 milhões à Odebrecht para rolar uma dívida da empresa com o Banco do Brasil, mas não recebeu o valor. Na véspera de assumir a Petrobras, teria pedido R$ 3 milhões para não prejudicar os contratos da estatal com a empreiteira, segundo delação de ex-executivos da empresa. O valor teria sido pago em 2015.

Pesquisa

Pesquisa do Ibope divulgada ontem mostra nova queda na avaliação do governo do presidente da República, Michel Temer (PMDB). Segundo o levantamento, a aprovação de 5% é o menor índice desde o início da série histórica do instituto, que começou em março de 1986. Antes do resultado de Temer, o pior havia sido o do ex-presidente José Sarney, que, em junho/julho de 1989, teve 7% de ótimo/bom. O instituto de pesquisa ressaltou que, por conta da margem de erro da pesquisa de dois pontos percentuais para mais ou para menos, tecnicamente Temer e Sarney estariam empatados. O governo foi considerado “regular” por 20% dos entrevistados, e “ruim/péssimo”, por 70%. O levantamento do Ibope, encomendado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), foi realizado entre 13 e 16 de julho e ouviu duas mil pessoas em 125 municípios.

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A queda de braços

O atabalhoado lançamento do Plano de Demissões Voluntárias (PDV) para servidores públicos federais atropelou a equipe econômica e gerou tensão entre a Fazenda e o Planalto

Os números divulgados ontem pelo Banco Central e pela Secretaria do Tesouro representam, respectivamente, um passo à frente, dois atrás. Explico: o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central decidiu, por unanimidade, baixar os juros básicos da economia brasileira de 10,25% para 9,25% ao ano. Foi o sétimo corte seguido na taxa Selic, o que já era esperado pelo mercado. Um passo à frente para a economia. No mesmo dia, as contas do governo registraram um deficit primário de R$ 56,09 bilhões no primeiro semestre deste ano, segundo a Secretaria do Tesouro Nacional. Foi o pior resultado para o período desde o início da série histórica, em 1997, ou seja, em 21 anos, o que não se esperava. Vale dois passos atrás.

A política monetária mira a meta de inflação, que despencou por causa da recessão; já a política fiscal visa controlar o deficit público, que não para de subir. Até então, o maior rombo para esse período havia sido registrado em 2016, chegou a R$ 36,47 bilhões no primeiro semestre. É o terceiro ano seguido em que as contas ficam no vermelho. O resultado primário considera apenas as receitas e despesas, não leva em conta os gastos do governo federal com o pagamento dos juros da dívida pública. Ou seja, o governo está gastando mais do que deveria, onde não deveria; e deixando de fazê-lo em áreas vitais.

Essa situação reflete uma queda de braços entre a equipe econômica liderada pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, e o do Planejamento, Dyogo Oliveira, que atua em sintonia política com o líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), ex-titular da pasta, e o núcleo político do Palácio do Planalto. O atabalhoado lançamento do Plano de Demissões Voluntárias (PDV) para servidores públicos federais, por exemplo, atropelou a equipe econômica e gerou muita tensão entre Meirelles e Dyogo, que ontem ganhou a queda de braços, ao emplacar no plano a isenção de Imposto de Renda e de pagamento de INSS para quem aderir, o que pode ser inconstitucional (mais um privilégio para servidores em relação aos demais assalariados).

A decisão sinalizou para os agentes econômicos que a política econômica está com a blindagem fragilizada no Palácio do Planalto. O ministro do Planejamento, desde o desbloqueio das contas inativas do FGTS, tem levado a melhor, graças ao apoio do núcleo político do governo, principalmente Jucá, que conhece o Orçamento melhor do que ninguém no Congresso. Os números, porém, são muito teimosos. De acordo com a Secretaria do Tesouro Nacional, as receitas totais recuaram 1,2% em termos reais (após o abatimento da inflação) de janeiro a junho deste ano, na comparação com igual período de 2016, para R$ 664,8 bilhões. As despesas totais, ao contrário, avançaram 0,5% em termos reais, na comparação com os seis primeiros meses do ano passado, para R$ 604,27 bilhões.

Previdência

Na verdade, a Fazenda opera numa faixa muito estreita de manobra, por causa das despesas obrigatórias. Além disso, o rombo da Previdência Social avançou de R$ 60,44 bilhões, nos seis primeiros meses de 2016, para R$ 82,86 bilhões no mesmo período deste ano, um aumento de 37,1%. Para 2017, a expectativa é um resultado negativo de R$ 185,7 bilhões.

Enquanto os economistas do governo fazem projeções considerando a frieza dos números, o Palácio do Planalto analisa os riscos. No momento, o pior dos mundos para o governo é a admissibilidade da denúncia da Procuradoria-Geral da República contra Temer, não o problema fiscal. Passada essa ameaça, teoricamente, a questão da Previdência passa a ser uma prioridade capaz de reagrupar a base governista. O governo acredita que terá condições de aprovar a reforma no Congresso e, assim, sair da armadilha fiscal. É uma aposta no ponto futuro.

O problema é que os humores do Congresso no segundo semestre já não serão iguais aos do primeiro, porque as eleições de 2018 estão logo ali e o governo amarga grande impopularidade. Dependendo da forma como a denúncia da PGR for rejeitada pelo Congresso, como é mais provável, o governo pode não ter força para aprovar uma reforma da Previdência que enfrente o deficit no curto prazo. Mitigada em razão das alianças para rejeitar a denúncia contra o presidente da República, a reforma da Previdência pode ser mais uma fuga pra frente e ter caráter meramente simbólico, ou seja, mostrar que Temer mantém a narrativa das reformas.

 

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Foto: EBC

Luiz Carlos Azedo: O busílis é a política

As forças que hoje dão sustentação ao governo Temer não têm um discurso para enfrentar o populismo, à direita e à esquerda, porque a retórica economicista é um haraquiri eleitoral

Deve-se ao marqueteiro de Bill Clinton, James Carville, a frase que virou case de marketing eleitoral: “É a economia, estúpido!”. Em 1991, o presidente dos Estados Unidos, George Bush, havia vencido a Guerra do Golfo e resgatado a autoestima dos americanos após a dolorosa derrota no Vietnã. Assim, era o favorito absoluto nas eleições de 1992 ao enfrentar o então desconhecido governador de Arkansas. Clinton apostou que Bush não era invencível com o país em recessão e a frase de Carville virou a cabeça do eleitor.

Desde então, virou uma espécie de varinha de condão para governantes e candidatos em apuros, que apostam tudo na economia para enfrentar seus desafios eleitorais. Foi assim nas últimas eleições, quando a oposição achava que ganharia a eleição por causa da máxima de Carville. Logo no começo do segundo turno, Aécio Neves (PSDB) estava à frente de Dilma e os dados da economia eram muito negativos. As projeções do PIB em 2014 não passavam de 0,3%, mesmo com as pedaladas. A inflação chegava a 6,75% nos últimos 12 meses, com a taxa de juros (Selic) na casa dos 11% e do congelamento dos preços administrados, principalmente o preço da gasolina. Dos 48.747 empreendimentos da segunda versão do Programa de Aceleração do Crescimento, apenas 15,8% estavam concluídos.

Mas a oposição perdeu. Não apenas porque houve abuso de poder econômico (eis uma discussão vencida, que ironia, porque o TSE, em julgamento inédito, absolveu a chapa dessa acusação), mas porque Dilma, Lula e o PT politizaram a eleição na base do “nós contra eles”. Acusaram a oposição de querer acabar com os programas sociais petistas para favorecer os interesses dos mais ricos. Era música para 14 milhões de beneficiários do Bolsa Família, ou seja, 56 milhões de pessoas. Além disso, havia 1,5 milhão de beneficiados no Minha Casa, Minha Vida e um exército de 97 mil ocupantes de cargos comissionados defendendo o governo com unhas e dentes, temerosos de perderem o que tinham. O tempo da política não é o da economia, a recessão só veio depois, para embalar a campanha do impeachment.

O economicismo é uma praga na análise política, cuja origem é atribuída ao determinismo econômico marxista. É uma injustiça com Marx, embora essa responsabilidade seja dos teóricos social-democratas do começo do século, principalmente do teórico alemão Eduard Bernstein, para quem o desenvolvimento das forças produtivas pelo capitalismo levaria ao socialismo. Outros teóricos marxistas criticaram essas interpretações. O economicismo sobrevaloriza os fatores considerados econômicos na evolução dos processos sociais e políticos, porém, a política é a economia concentrada.

Quem tiver oportunidade de ler o 18 Brumário, de Luís Bonaparte, que trata da restauração da monarquia na França após a revolução burguesa — na verdade, uma grande reportagem sobre os acontecimentos da época — , verá ali a centralidade da política na visão do autor d’O Capital. Na década de 1930, por exemplo, a ascensão do fascismo na Itália foi vista como uma via de industrialização de um país economicamente atrasado. Pois bem, não era um fenômeno determinado pela economia, mas pela política. Tanto que assombrou o mundo quando a Alemanha, um dos países mais desenvolvidos da Europa, sucumbiu à loucura nazista. No pós-guerra, o economicismo tornou-se uma presa fácil do nacionalismo e do populismo, que nos rondam novamente, inclusive na Europa.

Qual é a agenda?

Temos um governo que assumiu o poder e herdou o desgaste de Dilma Rousseff — até porque Michel Temer era o vice-presidente da República e o PMDB, o aliado principal do PT —, com o país em recessão e o desemprego em massa, além de ser assediado por denúncias de corrupção contra o próprio presidente da República. O governo adotou uma política de ajuste fiscal de longo prazo — a meta fiscal é um deficit de 139 bilhões — e promoveu reformas de cima para baixo, necessárias para enfrentar a crise e reorganizar a economia, mas sem apoio popular. Além disso, não cortou na própria carne como deveria: a relação dívida/PIB se aproximará de 80% no final do próximo ano.

As forças do impeachment de Dilma, que hoje dão sustentação ao governo Temer, não têm um discurso para enfrentar o populismo, à direita e à esquerda, porque a retórica economicista é um haraquiri eleitoral. As reformas não garantirão um crescimento espetacular, capaz de resgatar os empregos perdidos na escala necessária. Não haverá sequer um voo de galinha da economia, embora possa haver um ganho real com a redução da inflação. Além disso, espinafrar a Operação Lava-Jato não resolve o problema da crise ética, pode até agravá-la. No máximo, nivela na lama a disputa entre governo e oposição. O país precisa de um novo projeto político, que reinvente o Estado e a economia, a partir dos interesses da sociedade, e combata a corrupção, a violência e os privilégios. Esse é o desafio principal para tirar o país do atraso e garantir o futuro das novas gerações.

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Luiz Carlos Azedo: A crise do corporativismo

A alta burocracia estatal, para manter os privilégios, aliou-se à elite política e fechou os olhos para o clientelismo e o patrimonialismo, quando não incorreu nas mesmas práticas

A Era Vargas sempre foi um tema controverso na história do Brasil. Nélson Werneck Sodré e Hélio Jaguaribe, por exemplo, viram a Revolução de 1930 como um movimento de classes médias, fruto das contradições econômicas entre esses setores médios da sociedade e os grandes fazendeiros que controlavam a República Velha. Wanderley Guilherme dos Santos e Ruy Mauro, em contraponto, foram os primeiros a defender a tese de que, na verdade, resultou da cisão da burguesia nacional e da ascensão da burguesia industrial ao aparelho do Estado.

Na década de 1970, Boris Fausto publicou tese sobre a Revolução de 1930, caracterizada como o resultado do conflito intraoligárquico, no qual movimentos militares dissidentes liquidaram a hegemonia da burguesia cafeeira. Em virtude da incapacidade de as demais frações de classe assumirem o poder de maneira exclusiva, e com o colapso da burguesia do café, abriu-se um espaço vazio que possibilitou o surgimento de um “Estado de compromisso”, fruto de um grande acordo entre as várias frações de classe e “aqueles que controlam as funções do governo”, sem vínculos de representação direta.

No ambiente de radicalização política da década de 1930, que resultou na II Guerra Mundial, embora o Brasil tenha tomado o lado dos Aliados, Vargas flertou com o fascismo de Mussolini. Isso se traduziu no golpe de 1937 e na implantação do chamado Estado Novo, a forma institucional que encontrou para o tal “Estado de compromisso”, a pretexto de combater a ameaça comunista. Ao lado do patrimonialismo e do clientelismo, velhos conhecidos, emergiu no Brasil o corporativismo, consagrado pelo jurista Francisco Campos, na Constituição de 1937.

No corporativismo, o poder Legislativo é atribuído a corporações representativas dos interesses econômicos, industriais ou profissionais, por meio de representantes de sindicatos de trabalhadores e patronais, associações de comércio, indústria e agricultura, academias, universidades e etc. Conhecida como “Polaca”, a nova constituição ampliou os poderes de Vargas. A inexistência de um partido que intermediasse a relação entre o povo e o Estado não impediu o ditador de construir uma ampla rede de apoio, por meio de mecanismos de controle e da negociação política com os caciques regionais.

Além disso, a nova legislação trabalhista, inspirada na Carta Del Lavoro, garantiu o apoio dos sindicatos, até então tratados como caso de polícia. Ao conter o conflito de interesses entre trabalhadores e empresários, Vargas criou condições favoráveis ao desenvolvimento do setor industrial brasileiro. Foram criadas a Companhia Siderúrgica Nacional (1940), a Companhia Vale do Rio Doce (1942), a Fábrica Nacional de Motores (1943) e a Hidrelétrica do Vale do São Francisco (1945). Entre os novos órgãos criados pelo governo, como o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que era responsável por controlar os meios de comunicação da época, o novo Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) deu origem a uma nova burocracia, menos afeita ao tráfico de influências, às práticas nepotistas e a outras regalias.

Os privilégios
Em 1943, um documento intitulado Manifesto dos Mineiros, assinado por intelectuais e influentes figuras políticas, exigiu o fim do Estado Novo e a retomada da democracia. Vargas criou uma emenda constitucional que permitia a criação de partidos políticos e anunciava novas eleições para 1945. Em 1945, com o fim da II Guerra, a saída de Vargas tornou-se inevitável, mas não é o caso de tratar disso aqui. O que nos interessa destacar é o legado corporativista que lhe garantiu um mandato como senador, entre 1945 e 1951, e o retorno ao poder nas eleições de 1951.

O corporativismo sobreviveu ao suicídio de Vargas, na crise de 1954, e ao golpe ocorrido 10 anos depois. O regime militar se utilizou de sindicatos patronais e de trabalhadores, dependentes do imposto sindical criado por Vargas e da Justiça do Trabalho, e ainda ampliou a alta burocracia federal, que adotou uma ideologia tecnocrática para legitimar o apoio ao autoritarismo. O corporativismo na burocracia estatal, com a formação de núcleos de excelência em órgãos públicos e empresas estatais, ganhou ainda mais força com a democratização, graças aos Poderes e direitos adquiridos com a Constituição de 1988. Na verdade, a alta burocracia estatal, para manter os privilégios, aliou-se à elite política e fechou os olhos para o clientelismo e o patrimonialismo, quando não incorreu nas mesmas práticas.

Isso resultou na acumulação de mordomias, privilégios e altos salários por esses setores, equivalentes aos executivos das empresas privadas, ao contrário da grande massa de servidores responsáveis diretos pela prestação de serviços à população que tiveram salários aviltados. Parte da crise de financiamento do Estado brasileiro decorre desses privilégios, principalmente, na Previdência, que garante aposentadorias com vencimento integral, incorporando gratificações, muito acima do que recebem os trabalhadores que se aposentam no setor privado. Agora, com a crise fiscal, tudo isso entrou em xeque.

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Luiz Carlos Azedo: A conta do desajuste

A política de conciliação continua vivíssima. Tornou-se, mais uma vez, a tábua de salvação do velho patrimonialismo. Estão aí o clientelismo com gastos públicos e as articulações contra a Lava-Jato

Não existe política de conciliação no Brasil sem uma grande dose de patrimonialismo, que é a marca registrada das práticas políticas que não distinguem os limites do público e do privado. O patrimonialismo surgiu com a decadência do Império Romano, por influência dos bárbaros germânicos, quando os governantes começaram a se apropriar privadamente dos antigos bens da República. Tornou-se uma característica do absolutismo e, assim, chegou ao Brasil, com a concessão de títulos, sesmarias e poderes quase absolutos aos senhores de terra pela Coroa portuguesa.

No clássico Coronelismo: enxada e voto, Vitor Nunes Leal descreve como o patrimonialismo sobreviveu ao Império e chegou à República Velha. Em troca dos votos dos coronéis fazendeiros, o Estado brasileiro homologou seus poderes formais e informais. Em contrapartida, os senhores de terra foram se adaptando aos novos tempos políticos, entregando os anéis para não perderem os dedos. Isso não seria possível sem a velha política de conciliação do Império, inaugurada no gabinete do Marquês de Paraná.

Entre a abdicação de Dom Pedro I e o Golpe da Maioridade de Dom Pedro II, os partidos liberal e conservador protagonizavam disputas políticas da época. Os liberais (luzias) reivindicavam a ampliação da autonomia dos governos provinciais e a reforma de alguns aspectos contidos na Constituição de 1824; os conservadores (saquaremas) eram favoráveis à manutenção da estrutura política centralizada e à preservação dos poderes reservados ao imperador.

A eclosão das rebeliões e de outros movimentos de contestação que questionavam as determinações da Regência resultou, em 1840, no Golpe da Maioridade. Dom Pedro II assumiu o governo, foi apoiado e prestigiou a presença de figuras liberais em seu ministério. Escândalos de violência e corrupção envolvendo os liberais nas eleições, porém, provocaram a dissolução do ministério, em 1853, e a convocação de Honório Carneiro Leão, o Marquês de Paraná, um político conservador que estava havia 10 anos rompido com Dom Pedro II, para compor um novo gabinete. No regime parlamentarista da época, o imperador escolhia o presidente do Conselho de Ministros, e este formava o gabinete, escolhendo os demais ministros. Carneiro Leão montou um gabinete de liberais e conservadores mais leais a Dom Pedro II do que aos seus partidos.

O Gabinete Paraná representou a consolidação de uma inédita estabilidade, que proporcionou conquistas inimagináveis em tempos de ferrenha disputa política. Como havia unidade de interesses das elites liberais e conservadoras, principalmente em defesa da escravidão, o Segundo Reinado conseguiu manter a sua estrutura centralizada sem maiores sobressaltos. Carneiro Leão, que fora nomeado presidente da província de Pernambuco após a repressão à Revolução Praieira, descobriu em primeira mão que os princípios partidários eram vistos como irrelevantes e ignorados em níveis provinciais e locais. Um gabinete poderia ganhar o apoio de chefes locais para candidatos nacionais usando apenas o clientelismo.

Quem narra muito bem esse período é Joaquim Nabuco, no livro Um Estadista no Império, que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso não cansou de recomendar aos tucanos inconformados com sua aliança com o PFL, como o falecido governador paulista Mário Covas. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva seguiu seus passos com sinal trocado, o que resultou no transformismo petista. Dilma Rousseff, também desse ponto de vista, fez tudo errado e perdeu o apoio das velhas oligarquias e dos novos chefes políticos.

Clientelismo
Na chamada Nova República, o grande partido da conciliação vem sendo o PMDB, que soube conviver em conflito com o PT nos estados e a ele se aliar no poder central, como os saquaremas fizeram com os luzias no Império. A política de conciliação sobreviveu a duas ditaduras e continua vivíssima. Tornou-se, mais uma vez, a tábua de salvação do velho patrimonialismo. Estão aí o clientelismo com gastos públicos e as articulações para salvar da Operação Lava-Jato os que foram pegos se apropriando de bens públicos.

O problema é o custo dessas alianças para os cofres públicos, como acontece agora. Ontem, o governo anunciou mais um aumento de impostos, para obter uma receita adicional de R$ 10,4 bilhões. O objetivo das medidas é cumprir a meta fiscal de 2017, um deficit (despesas maiores que receitas) de R$ 139 bilhões. A conta não inclui as despesas com pagamento de juros da dívida pública. Para compensar a tunga no bolso do contribuinte, fará um bloqueio adicional de R$ 5,9 bilhões em gastos no orçamento federal.

A tributação sobre a gasolina subirá R$ 0,41 por litro, ou seja, mais que dobrou, já que passará a 0,89 cada litro de gasolina, considerando a incidência da Cide, que é de R$ 0,10 por litro. O diesel subirá em R$ 0,21 e ficará em R$ 0,46 por litro. Segundo a Receita Federal, o crescimento de 0,77% na receita foi insuficiente para fechar as contas públicas. Na verdade, a receita com impostos e contribuições caiu 0,20% no período. O resultado positivo foi salvo pelos royalties pagos por empresas que exploram petróleo. O governo Temer não cortou na própria carne; pendurou a conta do ajuste fiscal na lei do teto de gastos. Ou seja, empurrou com a barriga.

* Luiz Carlos Azedo é jornalista

 


Luiz Carlos Azedo: Uma porta fechada

Na bolsa do Congresso, cada novo deputado valerá R$ 2,4 milhões na campanha eleitoral de 2018, um senador, R$ 6,7 milhões. Tudo isso com recursos públicos

O esgotamento do modelo nacional desenvolvimentista baseado no capitalismo de laços, que entrou em colapso com as revelações sobre seus mecanismos mais perversos e corruptos pela Operação Lava-Jato, e o fracasso da política de adensamento da cadeia produtiva nacional têm outra face: a implosão do modelo de financiamento dos partidos, a partir do uso e abuso do caixa dois eleitoral por meio do desvio sistemático de recursos públicos pelos chamados “campeões nacionais”, como os grupos Odebrecht e JBS e outros financiadores de campanha. Isso provocou a atual crise ética.

Esse duplo colapso agravou a crise econômica, que se somou à crise política e nos levou ao impeachment de Dilma Rousseff. O presidente Michel Temer, que a sucedeu, deu uma resposta relativamente bem-sucedida à crise econômica, mas não se pode dizer o mesmo em relação às crises política e ética. Mesmo fragilizado pelas denúncias de corrupção e pela impopularidade, manteve a rota das reformas propostas por seu governo como um ciclista que não pode parar de pedalar para não se estatelar no asfalto.

Esse ímpeto reformador, que conta com a adesão das forças que apoiaram o impeachment em relação à economia, porém, esbarra na lógica conservadora da reforma política que está sendo alinhavada no Congresso. Talvez seja esse o nó górdio da crise política e ética, porque as mudanças que estão sendo discutidas no sistema eleitoral têm o objetivo de salvar os políticos enrolados na Lava-Jato de uma debacle eleitoral e nada mais. Em consequência, já surgem no Congresso os sintomas mórbidos e patológicos de uma situação na qual a velha política está morrendo e a nova ainda não emergiu.

Os mecanismos de financiamento eleitoral criados a partir da Constituição de 1988 se degeneraram e foram desarticulados pela Operação Lava-Jato. Agora, precisam ser substituídos. Os caciques das legendas preparam uma reforma cujo objetivo é mantê-los no poder. Para isso, querem determinar — a priori e pela força da grana — quem tem chances de se eleger e quem não tem. Até o sistema eleitoral será modificado com esse objetivo, de maneira a que os grandes partidos possam canibalizar os menores antes mesmo da eleição, e neutralizar os danos eleitorais decorrentes da Lava-Jato.

Uma reforma política de verdade, a essa altura do campeonato, debateria uma alternativa ao presidencialismo de coalizão. Um sistema híbrido, por exemplo, com características parlamentaristas, na qual a Presidência da República cuidaria das questões de Estado — Relações Exteriores, Defesa, Interior — e um governo de maioria parlamentar, da Fazenda, da Justiça, da Agricultura, da Saúde e da Educação… É como acontece na França e em Portugal.

Não é o que ocorre. O que está sendo tramado é a criação de um bilionário fundo de financiamento eleitoral e a concentração desses recursos e a distribuição do tempo de televisão nas mãos das cúpulas partidárias, bem como a adoção do chamado “distritão”, no qual são eleitos os mais votados por estado. O conjunto da obra seria liquidação da possibilidade de renovação dos partidos, que passariam a ser monopólios dos atuais deputados federais e senadores.

Na distribuição de recursos do fundo e do tempo de televisão, não é considerado o desempenho eleitoral para os demais cargos eletivos do país, ou seja, dos candidatos a presidente da República, a governador, a deputado estadual, a prefeito e a vereador, nas diversas esferas de governo. O mais justo seria a distribuição entre os partidos de acordo com a votação em cada eleição. Mas o relator da reforma política na Câmara, deputado Vicente Cândido (PT-SP), propõe a distribuição de 49% dos recursos divididos pelos votos na eleição de 2014 para deputado federal; 15% pela atual bancada de senadores; 34% pelo atual número de deputados titulares; e 2% para todos os partidos.

Troca-troca

Antes mesmo de ser aprovada, a reforma abala as relações políticas no Congresso, ao provocar intenso troca-troca entre partidos que já estão a funcionar como balcões de negócios. A decisão do Supremo Tribunal Federal que estabelece punição drástica para os parlamentares que mudarem de partido sem justificativa desde 2008 virou letra morta: ninguém perderá o mandato por trocar de legenda. Para tangenciar essa jurisprudência, o Congresso já havia aprovado uma emenda à Constituição (PEC) que abriu duas “janelas” para mudança de partido, a primeira em 2016, para as eleições municipais, e a segunda entre março e abril de 2018. Uma nova janela de 30 dias será aberta em agosto.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), é um dos artífices da reforma. Transformado em alternativa de poder em razão das denúncias contra o presidente Michel Temer, Maia articula fortemente para que dissidentes governistas do PSB, partido que resolveu passar à oposição, engrossem as fileiras de sua legenda. A movimentação gerou tensão no Palácio do Planalto e provocou reações do presidente Temer, que também resolveu participar do leilão com os meios de que dispõe: verbas e cargos governamentais. Na bolsa do Congresso, cada novo deputado valerá R$ 2,4 milhões na campanha eleitoral de 2018, um senador, R$ 6,7 milhões. Tudo isso com recursos públicos, para barrar a possibilidade de renovação da política e perpetuar o controle dos partidos pelos enrolados na Lava-Jato. A porta de saída da crise ética está sendo trancada.

 


Luiz Carlos Azedo: A ordem intersubjetiva

Somente uma organização tem condições de abalar a Lava-Jato: o próprio Judiciário. Esse é o centro da disputa política em curso

A democracia é uma ordem intersubjetiva. Além dos aspectos físicos e materiais que caracterizam as instituições, como a espetacular arquitetura da Praça dos Três Poderes, e da consciência individual de cada eleitor, ela só existe porque uma vasta rede de comunicação tece os elos entre o caráter objetivo das decisões políticas e a crença de cada indivíduo quanto à importância dessas decisões para suas vidas. Ou seja, a crença de que a democracia é um valor a ser preservado pela sociedade.
Uma das características da crise ética que estamos vivendo é uma espécie de desconexão dessa rede. As instituições políticas como sistema de poder começam a reagir à crise, tendo como prioridade a própria sobrevivência, sem considerar o fato de que, ao fazê-lo, não podem romper os elos subjetivos com a sociedade que fazem da democracia a tal ordem intersubjetiva.

No livro Sapiens, uma breve história da humanidade, Yuval Noah Harari, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, mostra que leis, dinheiro, deuses e nações são forças intersubjetivas, cuja existência é assegurada porque muitos indivíduos nelas acreditam e contra as quais a desconfiança ou descrença de alguns nada representam. Chegamos ao ponto que nos interessa aqui.

A condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba, e a denúncia do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente Michel Temer, estão na esfera desses fenômenos intersubjetivos. Por mais carismático que seja o primeiro ou por mais poderoso que seja o segundo, as declarações de ambos contra a sentença do magistrado e a peça de acusação do procurador nada representam do ponto de vista da ordem jurídica. São apenas o jus esperneandi. Mas tudo pode mudar de figura se essa interpretação rompe a rede compartilhada por milhões de cidadãos.

Sustentação

Nem Lula nem Temer têm condições de atingir esse objetivo sozinhos: seria preciso mudar a consciência de milhões de pessoas. Isso somente seria possível se a ordem imaginada pelas pessoas — nesse caso, a Operação Lava-Jato — fosse desmoralizada. Houve muitas tentativas até agora nesse sentido, nenhuma das quais teve êxito. Em tese, isso seria possível com a ajuda de uma organização complexa, como são os partidos políticos e os movimentos ideológicos.

Tanto o PMDB de Temer, quanto o PT de Lula não estão em condições de exercer esse papel, uma vez que perderam em muito a força que tinham como organizações, digamos, intersubjetivas. Somente uma organização tem condições de abalar a Lava-Jato: o próprio Judiciário. Esse é o centro da disputa política em curso. Quem quiser, que pague para ver. Para salvar o mandato de Temer, basta blindá-lo com o apoio de 172 deputados no plenário da Câmara; o mesmo apoio que a ex-presidente Dilma Rousseff não conseguiu reunir para barrar o impeachment.

Para evitar a prisão de Lula, porém, é preciso mais do que isso: domar a Polícia Federal, refrear o ímpeto dos procuradores, conter Moro e outros juízes de primeira instância, ter a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) contra a Lava-Jato.

Em ambos os casos, o grande problema é a disjuntiva entre as instituições da ordem democrática e a rede intersubjetiva que lhes dá sustentação na sociedade.

* Luiz Carlos Azedo é jornalista

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