Nas entrelinhas
Luiz Carlos Azedo: O passado que assusta
Documento mostra que havia uma lista de condenados à morte, que foram executados com prévio conhecimento e autorização de Figueiredo e Geisel
Um documento divulgado ontem pelo pesquisador Matias Specktor, da Fundação Getulio Vargas (FGV), lança por terra todas as versões de que o então presidente Ernesto Geisel não endossou a tortura e os assassinatos de oposicionistas nos quartéis, em razão da demissão sumária do comandante do 2º Exército, Ednardo D’Ávila Mello, após morte do operário Manoel Fiel Filho nas dependências de uma unidade do Exército na Rua Tutóia, em São Paulo.
O metalúrgico morto vivia na capital paulista desde os anos 1950. Havia sido padeiro e cobrador de ônibus antes de exercer a função de prensista na Metal Arte, no bairro da Mooca. Em janeiro de 1976, foi preso por dois agentes do DOI-Codi, na fábrica, sob a acusação de pertencer ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). No dia seguinte à sua prisão, os órgãos de segurança emitiram nota oficial afirmando que Manuel havia se enforcado em sua cela com as próprias meias. Porém, de acordo com colegas, quando preso, usava chinelos sem meias.
As circunstâncias da morte são muito semelhantes às de Alexandre Vannucchi Leme e Vladimir Herzog, que geraram grandes protestos à época. Segundo relato da esposa, no dia seguinte à prisão, um sábado, às 22h, um desconhecido, dirigindo um Dodge Dart, parou em frente à casa e, diante dela, das duas filhas e de alguns parentes, disse secamente: “O Manuel suicidou-se. Aqui estão suas roupas”. Em seguida, jogou na calçada um saco de lixo azul com as roupas do operário morto. A mulher dele, então, teria começado a gritar: “Vocês o mataram! Vocês o mataram!”. A vida e a morte de Manuel são a base do documentário Perdão, mister Fiel — o operário que derrubou a ditadura no Brasil, dirigido pelo jornalista Jorge Oliveira, que mostra a atuação dos Estados Unidos na caça aos comunistas e nas ditaduras militares na América do Sul.
O episódio da demissão do comandante do Exército foi um momento de inflexão na repressão à oposição e, de certa forma, humanizou a passagem do general Geisel pela Presidência da República, tanto em razão da versão relatada no livro do jornalista Élio Gáspari, como também de sua entrevista autobiográfica a Maia Celina DÁraujo e Celso Castro, historiadores, na qual o episódio também é abordado.
Política de Estado
“Este é o documento secreto mais perturbador que já li em 20 anos de pesquisa”, comentou Matias Specktor. O memorando é um relato da CIA sobre reunião de março de 1974 entre o General Ernesto Geisel, presidente da República recém-empossado, e três assessores: o general que estava deixando o comando do Centro de Informações do Exército (CIE), o general que viria a sucedê-lo no comando e o General João Figueiredo, indicado por Geisel para o Serviço Nacional de Informações (SNI). O primeiro, o quinto e parte do sexto parágrafos do documento permanecem em sigilo:
“2. Em 30 de março de 1974, reuniu-se presidente do Brasil, Ernesto Geisel, com o general Milton Tavares de Souza (chamado de general Milton) e o general Confúcio Danton de Paula Avelino, respectivamente o chefe que sai e o que entra do Centro de Informações do Exército (CIE). Também esteve presente o general João Baptista Figueiredo, chefe do SNI.
3. O general Milton, que falou durante a maior parte do tempo, detalhou o trabalho da CIE contra os alvos subversivos internos durante a administração do ex-presidente Emílio Garrastazu Médici. Ele ressaltou que o Brasil não pode ignorar a ameaça subversiva e terrorista e que os métodos extralegais devem continuar sendo usados contra subversivos perigosos. A esse respeito, o general Milton disse que cerca de 104 pessoas nessa categoria foram sumariamente executadas pelo CIE durante o ano passado, ou pouco antes. Figueiredo apoiou essa política e insistiu em sua continuidade.
4. O presidente, que comentou a seriedade e os aspectos potencialmente prejudiciais dessa política, disse que queria refletir sobre o assunto durante o fim de semana antes de chegar a qualquer decisão sobre sua continuidade. Em 1º de abril, o presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que muito cuidado deveria ser tomado para assegurar que apenas subversivos perigosos fossem executados. O presidente e o general Figueiredo concordaram que, quando o CIE prender uma pessoa que possa se enquadrar nessa categoria, o chefe do CIE consultará o general Figueiredo, cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa seja executada. O presidente e o general Figueiredo também concordaram que o CIE deve dedicar quase todo o seu esforço à subversão interna e que o esforço geral do CIE será coordenado pelo General Figueiredo.
6. Uma cópia deste memorando será disponibilizada ao secretário de Estado Adjunto para Assuntos Interamericanos. [1½ linha não desclassificada]. Nenhuma distribuição adicional está sendo feita.”
Esse documento mostra que havia uma lista de condenados à morte, que foram executados com prévio conhecimento e autorização de Figueiredo e Geisel, ao mesmo tempo em que ambos operavam uma política de distensão cujo objetivo era a transferência do poder para um civil ligado ao regime e a retirada em ordem dos militares do poder para os quartéis. O primeiro objetivo foi frustrado pela eleição de Tancredo Neves, em 1985, mas o segundo foi alcançado plenamente, com a anistia recíproca.
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Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro e Lula
A tática do PT para evitar um desastre eleitoral em 2018 facilita a vida do ex-militar, que consolidou a imagem do antipetista
A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou ontem um pedido de liberdade apresentado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa votação virtual que está em 4 a 0. Votaram contra o pedido os ministros Edson Fachin, relator da Operação Lava-Jato, e Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandovski. Falta votar o ministro Celso de Mello. Conhecida como Jardim do Éden, porque tem uma maioria de ministros garantistas, que frequentemente concede habeas corpus aos réus, a decisão de ontem é uma pá de cal nas pretensões do petista de concorrer à Presidência da República até que a sua inelegibilidade tenha transitado em julgado no Supremo. Sinaliza que não sairá da cadeia antes da eleição.
No mesmo dia em que Lula sofreu mais uma derrota acachapante na Justiça, seu principal concorrente, o deputado Jair Bolsonaro, foi entrevistado pelos colegas Leonardo Cavalcanti, editor de Política do Correio, e a colunista Denise Rothenburg (Brasília-DF), no programa CB Poder, da TV Brasília. Acompanhado em tempo real no Facebook, a entrevista teve 7,9 mil comentários, 1,7 mil compartilhamentos e 79 mil visualizações, a maioria esmagadora em apoio às declarações do ex-militar (veja o resumo na edição de hoje do Correio) e atacando os dois jornalistas. Qualquer declaração estapafúrdia do entrevistado era veementemente endossada por seus apoiadores. É um fenômeno semelhante ao que aconteceu na eleição de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos, que derrotou a democrata Hilary Clinton. Qualquer desatino de Trump fazia sucesso entre seus eleitores.
Tendo o ex-presidente Lula como inimigo principal, Bolsonaro construiu uma campanha cujas características principais são um discurso duro e reacionário, que agora começa a derivar contra a centro-esquerda, tipo todo mundo é farinha do mesmo saco; segundo, uma agenda focada na segurança pública e de conteúdo conservador nas questões de gênero; terceiro, uma base de apoio radicalizada, que se organizou nas redes sociais e tem poder mobilização onde quer que seu candidato vá. Bolsonaro é um gênio fora da garrafa; não volta mais. Os seus eleitores, digamos assim, não têm vergonha de ser feliz e pensam igualzinho ao seu candidato.
Há pelo menos duas razões robustas para o enraizamento da candidatura de Bolsonaro, ambas têm a ver com os governos Lula e Dilma Rousseff. A primeira é o hegemonismo petista no campo da esquerda, que passou a ser sinônimo de incompetência e corrupção. Quanto mais o PT desqualifica os demais partidos de esquerda, mais fortalece essa tendência. A segunda é a captura dos governos petistas pelo patrimonialismo, o fisiologismo e a corrupção, o que agora permite que o foco de Bolsonaro derive com força para a questão ética, no estilo do velho “udenismo”. De certa forma, a antiga oposição também preparou o terreno para isso, embora agora também esteja em chamas.
Alianças
De certa maneira, a tática desesperada adotada pela cúpula do PT para evitar um desastre eleitoral em 2018 com a inelegibilidade de Lula, mantendo sua candidatura inviável, mesmo que o líder petista já esteja preso, facilita a vida de Bolsonaro, que consolidou a imagem do anti-Lula. E acaba complicando a vida do próprio PT, porque abre espaço para a transformação de um dos demais candidatos no anti-Bolsonaro. Essa será a corrida do primeiro turno, entre Ciro Gomes (PDT) e Marina Silva (Rede), à esquerda, Geraldo Alckmin (PSDB) e Álvaro Dias (Podemos) e Rodrigo Maia (DEM), mais ao centro; descartada a candidatura de Joaquim Barbosa (PSB), que desistiu da disputa antes mesmo de entrar, embora já aparecesse nas pesquisas como um grande azarão da eleição.
O grande problema de Bolsonaro é que o discurso contra tudo o que está aí tem um preço: o isolamento político, que pode ser fatal por causa do tempo de televisão. Nas redes sociais, Bolsonaro vai muito bem, obrigado; na tevê aberta, porém, será um fiasco. Nesse aspecto, contudo, está no mano a mano com a Marina. O problema é o que pode acontecer se essa desvantagem estratégica, em termos de televisão, se mantiver como nas eleições passadas. Bolsonaro pode minguar e os candidatos com mais tempo de televisão, crescer.
Essas são as grandes apostas de Alckmin e Maia. O primeiro começa a se reaproximar do MDB, apesar do ônus que isso pode trazer num momento em que o presidente Michel Temer e seus principais auxiliares são a bola da vez da Operação Lava-Jato. O segundo tenta uma aproximação com o Solidariedade e o PP, o que lhe daria uma bancada numerosa e barulhenta na Câmara e paridade estratégica com Alckmin em termos de tempo de televisão.
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Luiz Carlos Azedo: Música para profissionais
Desta vez, a esfinge é que foi devorada. Com a saída de Barbosa, que seria o grande outsider nas eleições deste ano, o jogo voltou a ser exclusivamente dos políticos, com seus defeitos e qualidades
Já virou lugar-comum a frase famosa do compositor e maestro Antônio Carlos Jobim: “O Brasil não é para principiantes”. Serve como uma luva para a decisão do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa de não concorrer à Presidência da República. O ex-ministro, depois que se filiou ao PSB, apareceu em todas as pesquisas como um candidato competitivo, mas em nenhum momento anunciou a candidatura. Nem a cúpula do PSB. Ontem, pelo Twitter, comunicou a desistência; os governadores do PSB agradecem.
Barbosa é orgulhoso de ter chegado aonde chegou pelo esforço pessoal; nas peladas ou nas sessões do Supremo, não era de levar desaforo para casa. Notabilizou-se como relator do mensalão, a ação penal que levou à cadeia o ex-presidente do PT José Genoíno, o tesoureiro do partido Delúbio Soares e o ex-ministro José Dirceu, entre outros caciques da legenda. Entretanto, não era um antipetista de carteirinha. Não só havia votado no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como se manifestou contra o impeachment de Dilma Rousseff.
A candidatura de Barbosa empolgou os militantes do PSB, mas não seus governadores, principalmente o de Pernambuco, Paulo Câmara; muito menos o de São Paulo, Márcio França, o vice que assumiu o lugar de Geraldo Alckmin (PSDB) com o compromisso de apoiar o tucano à Presidência. No encontro que teve com a Executiva do PSB, ficou patente a falta de empatia entre os caciques do partido e o jurista cascudo. Fizeram um pacto de não-agressão: Barbosa saiu falando que não havia se decidido ainda e, a Executiva do PSB, que avaliaria a candidatura.
Mesmo assim, o suspense mexeu com o posicionamento dos demais candidatos. As candidaturas de Ciro Gomes (PDT), Marina Silva (Rede) e Alckmin foram abaladas. Barbosa também era uma ameaça para Jair Bolsonaro. A seguir, o ex-ministro passou a ser fustigado na mídia e nas redes sociais como se fosse candidato. O questionamento era sobretudo em relação às suas ideias políticas. Grosso modo, Barbosa é um democrata com ideais liberais sobre o Estado, mas muito pouco se sabe sobre o que pensa em relação à economia e à política propriamente dita. Nesse período de lusco-fusco, comportou-se como um grande mudo. E foi muito cobrado por isso.
Barbosa permaneceu assaltado pelas dúvidas em relação à candidatura, em razão de certa ojeriza pela política tradicional, que exige muita inteligência emocional para administrar conflitos, fazer alianças complexas, suportar traições e frustrações de toda ordem. Desta vez, a esfinge é que foi devorada. Com a saída de Barbosa, que seria o grande outsider nas eleições deste ano, o jogo voltou a ser exclusivamente dos políticos profissionais, com seus defeitos e qualidades.
Novo cenário
Ainda há muita indefinição no cenário eleitoral. Até agosto, com uma Copa do Mundo no meio do caminho, muita coisa pode acontecer. Mas algumas tendências já estão mais ou menos definidas. A primeira é a ausência do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva do pleito. Preso em Curitiba, dificilmente sairá da cadeia até as eleições. Isso significa que não possa transferir votos para outro petista? Não, ainda tem prestígio eleitoral e conta com a resiliência dos militantes do PT. A insistência em manter sua candidatura, porém, fragiliza a campanha de seu substituto. Aparentemente, Lula está mais preocupado com a sua imagem do que com o desempenho eleitoral do seu eventual substituto. Entretanto, tudo dependerá da cabeça do eleitor.
Uma consequência imediata da não candidatura de Lula é o favoritismo de Bolsonaro (PSL), cuja campanha ganhou características de massa, embora não consiga ampliar suas alianças e tenha pouco tempo de televisão. A mesma coisa acontece, num quadrante à esquerda, com Marina Silva (Rede), que vive o mesmo dilema do isolamento político e da falta do tempo de televisão. Outra tendência é o fortalecimento da candidatura de Ciro Gomes (PDT), que herda os votos de Lula no Nordeste e pode vir a ser um candidato apoiado pelo próprio PT, como alguns petistas importantes já defendem nos bastidores. Álvaro Dias (Podemos) também se fortalece no Sul, avançando pela franja paulista da fronteira do Paraná.
E onde está o centro? A candidatura de Michel Temer à reeleição não passou de sonho de uma noite de verão. Encurralado pela Lava-Jato, o presidente da República não tem como manter o MDB unido em torno de seu nome por causa da impopularidade. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), que também se lançou candidato, não vive o drama da rejeição astronômica, mas também não consegue emplacar a candidatura. Quem resiste é Alckmin, muito mais pelo estoicismo do que pela sua força eleitoral. Fora do Palácio dos Bandeirantes, dedica-se a montar os palanques do PSDB nos estados e tenta uma aproximação com o MDB. A vantagem estratégica que tem na eleição é o tempo de televisão e esses palanques; mas ninguém sabe se isso funcionará como rampa de decolagem na eleição.
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Luiz Carlos Azedo: Boff e a ideia
A narrativa glauberiana do ex-franciscano não é gratuita, mira a punição imposta pela Justiça. Lula é tratado como um messias, que surge para anunciar a boa nova
O teólogo Leonardo Boff, após visitar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, comparou o petista a dois ícones mundiais, o indiano Mahatma Gandhi, que liderou a independência da Índia com sua “resistência pacífica”, e Nelson Mandela, que comandou da prisão a luta contra o apartheid na África do Sul, que teve um braço armado. Boff disse que Lula é candidatíssimo e se coloca “acima das brigas jurídicas”.
Boff havia tentado visitar o ex-presidente em 19 de abril, mas o pedido foi negado. Entretanto, Lula foi autorizado a receber “assistência espiritual” às segundas-feiras, além de visitas de dois “amigos” às quintas. Aproveita essas oportunidades para fazer campanha. “Se ganhar, vou não só repetir aquelas políticas sociais que fiz, mas fazer com que sejam políticas de Estado, que entrem no Orçamento, que sejam o centro do poder econômico e político orientado para aqueles que sempre foram excluídos”, disse Lula ao teólogo.
Ao sair do encontro, Boff afirmou que o petista está “muito bem” e “tem uma indignação justa, de quem sofre por causa de falsificações, distorções e mentiras com o objetivo de liquidar a candidatura dele e enfraquecer o mais possível o PT”. A narrativa é puro messianismo, do tipo “dragão da maldade” contra o “santo guerreiro”, corroborada por um teólogo da libertação. Como se sabe, na década de 1960, Boff exerceu grande influência na Igreja Católica, não somente no Brasil, mas em toda a América Latina.
A Teologia da Libertação se baseou em três correntes teológicas: o Evangelho Social, a Teologia da Esperança e a Teologia Antropo-política, que inspiraram o teólogo Harvey Cox, em 1965, a contestar a obra clássica de Santo Agostinho, De Civitate Dei. No lugar da clássica divisão entre a cidade dos homens (o mundo terreno) e a cidade de Deus (o mundo espiritual), a cidade dos operários oprimidos (o mundo proletário), a cidade dos donos do poder (o mundo geopolítico) e a cidade dos capatazes opressores (o mundo burguês).
Na obra Uma teologia da esperança humana (cujo título original era Em direção a uma Teologia da Libertação, sua tese de doutoramento no Princeton Theological Seminary), o então pastor presbiteriano e teólogo brasileiro Rubens de Azevedo Alves, no exílio, estabeleceu o que pode ser chamado de “afinidade eletiva” entre as teses de Cox e o marxismo: a dualidade mundo terreno/mundo espiritual teria sido superada pela dualidade mundo proletário/mundo burguês. O passo seguinte, a criação das chamadas “comunidades eclesiais de base”, teve grande apoio do alto clero católico latino-americano que fazia oposição aos regimes militares.
Na Igreja Católica, os principais teólogos latino-americanos foram o peruano Gustavo Gutiérrez, dominicano, recentemente recebido pelo Papa Francisco, numa espécie de “reabilitação”, e Leonardo Boff, que era franciscano. As críticas de Boff à hierarquia da Igreja, no livro Igreja, Carisma e Poder, acabaram provocando forte reação de Roma. Foi punido pela Congregação para a Doutrina da Fé, então dirigida por Joseph Ratzinger, mais tarde o Papa Bento XVI.
Sem batina
O próprio Cardeal Ratzinger concluiu que as opções de Boff “são de tal natureza que põem em perigo a sã doutrina da fé, que esta mesma Congregação tem o dever de promover e tutelar”. Em 1985, o franciscano foi condenado a um ano de “silêncio obsequioso”, perdendo sua cátedra e suas funções editoriais na Igreja Católica. Em 1986, recuperou algumas funções, mas sempre sob observação de seus superiores. Em 1992, ante novo risco de punição, pediu dispensa do sacerdócio. Uniu-se, então, à educadora e militante dos direitos humanos Márcia Monteiro da Silva Miranda, divorciada e mãe de seis filhos, com quem mantinha uma relação amorosa em segredo desde 1981.
A Igreja Católica dedicou dois documentos à Teologia da Libertação na década de 1980, considerando-a herética e incompatível com a doutrina católica, mas o movimento se manteve vivo, com reuniões a cada dois anos. No Brasil, sob a liderança de outro teólogo, Frei Beto, que é amigo de Lula e de Boff, as “comunidades eclesiais de base” derivaram para a construção do PT, o que garantiu ao partido sua base popular fora do âmbito do movimento sindical, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. Sem esse apoio, o PT jamais seria um partido nacional e de massas; e Lula também não seria uma “ideia”, pois o petista nunca defendeu uma doutrina política, sempre se considerou “uma metamorfose ambulante”.
A narrativa glauberiana de Boff não é gratuita, mira a punição imposta pela Justiça. Lula é tratado como um messias, que surge para anunciar a boa nova e trazer a esperança de volta àqueles que não a têm, uma espécie de cristo dos desvalidos, em torno do qual os excluídos e oprimidos devem se reunir. A ideia de que o petista está “acima das brigas jurídicas” é perigosa, pois subordina o Supremo Tribunal Federal (STF) à ambição de poder do PT.
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Luiz Carlos Azedo: Revirando o lixo da História
A condição humana é dada não pela atividade laboral, um meio de sobrevivência, mas pelo agir e pensar politicamente, em regime de plena liberdade
Exumei das redes sociais um velho texto (lá se vão três anos) publicado nessas “Entrelinhas” para analisar o colapso do governo Dilma. O título da coluna era “A lata do lixo da História”, o nome de uma peça dos anos 1970 do sociólogo Roberto Schwartz, então professor de teoria literária da Universidade de São Paulo (USP), na qual fazia uma sátira ao regime militar. A expressão “vai para a lata do lixo da História” era muito usada por setores de esquerda na época, servia para menosprezar o papel dos liberais na luta pela democracia; hoje, serve aos liberais que consideram toda a esquerda ultrapassada e não apenas os setores ligados ao PT. É um erro. O Brasil precisa de uma esquerda moderna que dialogue com os liberais para reconstruir o centro democrático.
Essa lembrança veio a propósito do discurso do presidente da China, Xi Jinping, ao comemorar o bicentenário do nascimento de Karl Marx, no Grande Palácio do Povo: “O marxismo, como um amanhecer espetacular, ilumina o caminho da humanidade na sua exploração das leis históricas e na busca da sua própria libertação”. Em resumo, disse que os comunistas chineses precisam voltar às origens. Entretanto, Karl Marx é um dos sujeitos mais mal interpretados de todos os tempos, por esta razão: seus escritos partem do princípio de que a ação política não pode estar descolada do pensamento intelectual.
Após sua morte, em 14 de março de 1883, a teoria de Marx foi simplificada e instrumentalizada para a luta política, inclusive por seu amigo Frederico Engels e seu genro, Paul Lafargue. Social-democratas, socialistas e comunistas usaram sua crítica como estratégia política, mas Marx nunca teve uma fórmula para construir um mundo diferente do capitalismo. Mesmo assim, os conceitos de “valor” e “fetichismo”, suas grandes contribuições à compreensão do capitalismo, perderam espaço e influência para o conceito de “luta de classes”.
Grande exemplo é um livro de Josef Stalin intitulado Problemas econômicos do socialismo na URSS, de 1953, com o qual o líder comunista puxou as orelhas dos economistas da Academia de Ciências: “Por isso, estão absolutamente errados os camaradas que declaram que, uma vez que a sociedade socialista não liquida as formas mercantis de produção, então todas as categorias econômicas próprias do capitalismo deveriam alegadamente ser restabelecidas no nosso país: a força de trabalho como mercadoria, a mais-valia, o capital, o lucro do capital, a taxa média de lucro etc.”
Stálin varreu para debaixo do tapete problemas que mais tarde levaram ao colapso a antiga União Soviética: “Além disso, penso que precisamos igualmente abandonar alguns outros conceitos, retirados de O Capital, no qual Marx procedeu à análise do capitalismo, e que são artificialmente apensos às nossas relações socialistas. Refiro-me, entre outros, a conceitos como trabalho necessário e sobretrabalho, produto necessário e sobreproduto, tempo necessário e suplementar. A conta chegou para Gorbatchov na década de 1990: quando o líder comunista quis retomar a discussão, na Perestroika, o socialismo real já era. Talvez Xi Jinping esteja diante do mesmo debate no seu país, onde os operários são superexplorados e florescem uma nova burguesia e uma robusta classe média.
Parêntesis: na teoria de Marx, valor é aquilo que permite comparar duas mercadorias. A quantidade de trabalho que foi incorporada à mercadoria é que determina o seu valor. Já o fetiche é uma consequência disso: uma cortina que nos impede de ver a mercadoria em si. No caso de um celular, por exemplo, não conseguimos perceber todo o processo produtivo que está por trás da sua fabricação — na China, por exemplo —, mas somente o produto final, como se o aparelho, em si, tivesse vida própria na loja.
Grande jogo
A gênese dos partidos operários é velha tese marxista da centralidade do trabalho na luta política, que parte da ideia de que a contradição entre o trabalho e o capital é o motor da história e o eixo de atuação política do partido, ou seja, a luta de classes. Vem daí o glamour perdido do PT e o fascínio de intelectuais e artistas pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A filósofa alemã Hanna Arendt, uma democrata radical, via nessa concepção que absolutiza o trabalho uma das raízes do totalitarismo. Para ela, a condição humana é dada não pela atividade laboral, um meio de sobrevivência, mas pelo “agir e pensar politicamente”, em regime de plena liberdade, o que tanto o fascismo como o stalinismo não permitiram. Essa crítica “racionalista” hoje faz ainda mais sentido, porque o trabalho humano está sendo substituído pelo “não trabalho” dos robôs e sistemas de inteligência artificial.
A China hoje é o nosso principal parceiro comercial, seguida dos Estados Unidos. Ambos disputam o controle do comércio mundial, cujo eixo se deslocou do Atlântico para o Pacífico. O “grande jogo” da política mundial e a globalização, porém, para muitos setores da esquerda, continuaram sendo vistos na óptica dos velhos paradigmas, ou seja, o inimigo principal é o imperialismo norte-americano; o capitalismo de Estado, após a tomada do poder, é a antessala do socialismo. Não importa que os Estados Unidos sejam uma democracia e a China, uma ditadura. Nunca é demais lembrar que o colapso do governo Dilma se deveu às ideias políticas e econômicas fora de lugar, que apostavam numa aliança com a China, a Rússia, a África do Sul e a Índia como aliados principais, contra os Estados Unidos e a Comunidade Europeia, seguidas por práticas patrimonialistas estimuladas por Lula, que enlamearam toda a esquerda e jogaram as lideranças do PT na cadeia. Todas essas ideias velhas não morreram, estão vivíssimas nestas eleições de 2018. E não na lata do lixo da história.
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Luiz Carlos Azedo: O lado B do câmbio
A operação de “dólar-cabo” é utilizada, para remessa ilegal de divisas ao exterior, por um sistema que funciona na base da confiança: o doleiro recebe o dinheiro no Brasil e entrega no exterior
A Operação “Cambio, Desligo” mirou no que viu, o esquema de lavagem de dinheiro do ex-governador fluminense Sérgio Cabral (MDB), e acertou no lado oculto do mercado de câmbio no Brasil, que envolve não só os políticos, executivos e operadores da propina da Operação Lava-Jato, mas também toda a rede de lavagem de dinheiro da economia informal, ou seja, o caixa dois de empresas que recorriam ao esquema e a grana dos “barões” do contrabando, dos “chefões” do tráfico de drogas, dos “coronéis” das milícias. Dos 45 mandados de prisão expedidos pelo juiz federal Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal do Rio, ontem, foram executados 33, com as prisões de 13 doleiros no Rio, oito em São Paulo, cinco no Rio Grande do Sul, dois em Minas Gerais, dois no Distrito Federal, e outros três no Uruguai.
Dário Messer, apontado como o doleiro mais influente no país, seria o centro das conexões, segundo os investigadores, porque era o “chefão” da rede de doleiros desbaratada ontem com apoio de autoridades uruguaias, mas que envolve 3 mil empresas offshore, que operam em 52 países e movimentaram US$ 1,6 bilhão (R$ 5,6 bilhões). Os suspeitos integravam um sistema chamado Bank Drop, no qual doleiros remetem recursos ao exterior através de uma operação chamada de “dólar-cabo”, completamente fora do controle do Banco Central. Ele foi denunciado pelos doleiros Vinícius Vieira Barreto Claret, o “Juca Bala”, e Cláudio Fernando Barbosa, o “Tony”, que estavam presos havia mais de um ano e ontem foram liberados para cumprir prisão domiciliar, depois de entregarem o esquema.
A operação de “dólar-cabo” é amplamente utilizada, para remessa ilegal de divisas ao exterior, por um sistema que funciona na base da confiança: o doleiro recebe o dinheiro no Brasil e compensa no exterior, apagando os rastros da operação em paraísos fiscais. Dario está foragido, não foi encontrado no seu apartamento no Leblon, Zona Sul do Rio, nem no Paraguai, onde também há um mandado de prisão contra ele. Após o caso Banestado — maior escândalo de lavagem de dinheiro do Brasil —, Messer passou a operar do Uruguai e do Paraguai. Messer foi dono do banco EVG, de Antígua e Barbuda. Entre os nomes supostamente ligados a ele estão Alexandre Accioly e Arthur César de Menezes Soares Filho, o “Rei Arthur”, acusado de pagar propina a Cabral. Messer deixou a sociedade no banco em 2012, após desentendimento com Enrico Machado, outro dono do banco que também firmou delação premiada.
Outro peso-pesado envolvido na Operação “Câmbio, Desligo” é o chinês Wu-Yu Sheng, apontado como responsável por obter dinheiro em espécie do comércio da 25 de Março, no Centro de São Paulo, para a empreiteira Odebrecht, ou seja, a grana da propina em espécie. Segundo o Ministério Público Federal, a Odebrecht teria movimentado cerca de R$ 90 milhões entre 2011 e 2014, e R$ 110 milhões entre 2014 e 2016, por meio de Wu-Yu, que se mudou para Miami. O chinês teria feito acordo de delação premiada com as autoridades norte-americanas depois da delação premiada de Marcelo Odebrecht, o que pode dificultar sua extradição.
O colapso
Mas o que deixou em colapso o lado B do câmbio foi a ofensiva contra a família Matalon (Marco Ernet, Ernesto Patrícia e Bella Kayreh Skinazi), que atua no câmbio ilegal em São Paulo desde a década de 1990, em parceria com os Messer, do Rio. Os patriarcas Mordko Messer, dono da Antur Turismo, e Marco Matalon, dono da Rosetur, são velhos amigos. Até 2003, com a transferência das operações para o Uruguai, as duas famílias movimentaram grandes montantes de dólar paralelo no país. O famoso relatório da CPI do Banestado, que não chegou a ser votado, apontou a evasão de US$ 30 bilhões (cerca de R$ 99 bilhões) de uma agência de Foz do Iguaçu (PR) para contas do antigo banco estatal no exterior, ao final da década de 90, via CC-5, contas utilizadas por empresas multinacionais para transferir dinheiro para fora do país.
As operações feitas pela família Matalon eram liquidadas no Uruguai por Claret e Barbosa, cujos depoimentos deram base à operação desta quinta. Os dois operavam o dólar-cabo desde a década de 1980, em agências de turismo, mas os Matalon supostamente optaram por encerrar sua estrutura em São Paulo e terceirizar a entrega, recolhimento e pagamento das operações. Patricia Matalon, sobrinha do patriarca Marco Matalon, chegou a fechar acordo de colaboração premiada no âmbito do Banestado, mas voltou a operar com Barbosa. Entre 2014 e 2017, ela teria movimentado mais de US$ 2 bilhões (cerca de R$ 6,6 bilhões), servindo clientes que possuíam dólares no exterior e precisavam obter reais em espécie no Brasil para corromper agentes públicos.
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Luiz Carlos Azedo: O sítio e o privilégio
O foro por prerrogativa de função é como coração de mãe: beneficia deputados, senadores, ministros, chefes de missão diplomática, governadores, prefeitos, magistrados, conselheiros de tribunais de contas e procuradores
Nove entre dez advogados de Brasília avaliam que o juiz Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, está sendo emparedado no Supremo Tribunal Federal (STF) pelos ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. É uma espécie de cerco e isolamento da Operação Lava-Jato. Seus desdobramentos podem ser progressivamente desmembrados e retirados da alçada da força-tarefa de Curitiba, cuja atuação ficaria restrita aos processos diretamente relacionados ao escândalo de Petrobras. O poder do ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal, também está sendo esvaziado pela maioria de seus colegas da Segunda Turma, também chamada de Jardim do Éden, onde quase sempre é derrotado pelos “garantistas”.
Ontem, Toffoli foi sorteado relator do pedido para retirar da Justiça Federal do Paraná o processo ao qual o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva responde por causa de um sítio em Atibaia (SP). O petista é acusado de receber o imóvel e obras de melhoria na propriedade como propina de empreiteiras por contratos na Petrobras. O laudo da perícia feita pela Polícia Federal, porém, reúne provas ainda mais robustas do que as do caso do tríplex de Guarujá, pelo qual o ex-presidente da República está preso na Polícia Federal em Curitiba, condenado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região a 12 anos e 1 mês em regime fechado.
Lula nega as acusações. O pedido de seus advogados será apreciado por Toffoli, que já tem um antecedente de revisão de decisões tomadas por Fachin (no caso do ex-prefeito Paulo Maluf, que recebeu um habeas corpus humanitário). Como relator do pedido, Toffoli poderá decidir monocraticamente, a pedido da defesa, ou remeter o caso para a Segunda Turma, que recentemente determinou que as provas relativas à delação premiada da Odebrecht no caso do sítio de Atibaia fossem remetidas por Moro para a Justiça Federal de São Paulo. A tese dos advogados de Lula é de que Moro não seria o juiz natural, e sim, um” juiz de exceção”, porque o caso do sítio de Atibaia não teria relação direta com a Petrobras. A interpretação da força-tarefa da Lava-Jato é contrária, ou seja, de que há ligação com o escândalo da estatal e que a decisão da Segunda Turma não retira o processo da alçada de Moro.
Toffoli foi autor do voto vencedor no julgamento que decidiu, na semana passada, enviar para a Justiça Federal de São Paulo os trechos das delações premiadas de ex-executivos da Odebrecht sobre o sítio e sobre suspeitas de irregularidades na instalação do Instituto Lula. A defesa de Lula requereu uma liminar para suspender o processo do sítio até que o STF decida se a ação penal deve ou não ser remetida para São Paulo, assim como foram enviados os depoimentos da Odebrecht. A condenação de Lula por Moro no caso do sítio é dada como quase inexorável, razão pela qual os advogados querem anular o processo com o argumento de que tanto as provas como o próprio julgamento seriam ilegais.
Prerrogativas
Hoje, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve concluir o julgamento sobre a restrição do foro privilegiado de deputados e senadores. Dez dos 11 ministros já votaram a favor, mas com entendimento diferente sobre seu alcance: sete são a favor de retirar do Supremo casos cometidos fora do mandato e também aqueles não ligados ao exercício do mandato parlamentar, tese defendida pelo ministro Luís Roberto Barroso; três ministros votaram na proposta do ministro Alexandre de Moraes, de manter no STF todos os processos de crimes cometidos durante o mandato, independentemente da relação com a atividade parlamentar.
O foro por prerrogativa de função, o chamado “foro privilegiado”, é como coração de mãe para a elite política e a alta burocracia do país: beneficia 513 deputados, 81 senadores, 28 ministros, 139 chefes de missão diplomática, 27 governadores, 5.570 prefeitos, 14.882 juízes, 2.381 desembargadores, 476 conselheiros de tribunais de contas e 13.076 integrantes do Ministério Público.
Somente o ministro Gilmar Mendes ainda não votou. O julgamento começou no ano passado, foi interrompido em maio e em novembro, sendo retomado ontem. A proposta de Barroso estabelece que o processo não mudará mais de instância quando alcançar o final da instrução processual, a última fase antes do julgamento, na qual as partes apresentam as alegações finais. Nesse caso, o político que responder a processo no Supremo por ter cometido o crime no cargo e em razão dele deixará automaticamente o mandato após a instrução e será julgado pela própria Corte, para não atrasar o processo com o envio à primeira instância. Mendes destacou que o assunto não pode ficar restrito aos parlamentares, teria que alcançar também os demais beneficiados. Seu voto será longo.
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Luiz Carlos Azedo: A torre e o palacete
O prédio era uma das joias da coroa do movimento dos sem-teto de São Paulo, que cresceu verticalmente durante a gestão do ex-prefeiro Fernando Haddad e se beneficiou do corpo mole da União
O incêndio do edifício Wilton Paes de Almeida é emblemático da degradação das cidades brasileiras e seus conflitos sociais, tendo como epicentro a ocupação predatória do espaço urbano. Tombado desde 1992, era considerado o pioneiro das novas tendências arquitetônicas da década de 1960. Projeto do arquiteto Róger Zmekhol para a sede da Cia. Comercial Vidros do Brasil (CVB), a torre de 24 andares, com lajes de concreto, estrutura metálica e fachadas de vidro, contracenava com a velha Igreja Luterana em estilo neogótico no Largo do Paissandu, no Centro de São Paulo, também parcialmente destruída pelas chamas. Juntos, o moderno e o tradicional dividiam o mesmo espaço público na maior metrópole do país, cuja Centro entrou em decadência, inclusive aquela região da confluência da Rua Antônio de Godói com a Avenida São João, vizinha à Cracolândia.
Quando ficou pronto, em 1966, era um dos edifícios mais modernos de São Paulo. Para projetá-lo, o arquiteto Róger Zmekhol, nascido em Paris, filho de refugiados cristãos da Síria, formado na primeira turma de arquitetura da FAU-USP, se inspirou no minimalismo do alemão Mies van der Rohe, um dos mestres da escola de design Bauhaus. Com sistema de ar condicionado embutido, pisos de ipê e divisórias móveis nos escritórios, seu hall de mármore e aço inoxidável era grandioso, assim como sua belíssima escada caracol, que utilizava os mesmos materiais. O projeto encantou a geração de arquitetos paulistas dos anos 1960.
Suas características arquitetônicas foram copiadas em centenas de prédios comerciais das grandes cidades brasileiras, inclusive Brasília, com banheiros, circulação vertical, infraestrutura hidráulica e elétrica na parte central, com ampla possibilidade de distribuição dos espaços internos até sua “pele de vidro”. Antes de abrigar o INSS, serviu como sede da Polícia Federal em São Paulo, de 1980 a 2003. Ali, o falecido delegado e senador Romeu Tuma anunciou a prisão do mafioso italiano Tommaso Buscetta e a descoberta da ossada do nazista Josef Mengele. Em 13 de dezembro de 1982, levou para o prédio todo o Comitê Central do antigo PCB, que tentara realizar um congresso no centro de São Paulo na semilegalidade. Vazio há 16 anos, o prédio de 11 mil m², desde setembro de 2002, pertencia à União. Por ironia do destino, o responsável pelo Patrimônio da União em São Paulo é Robson Tuma, seu filho.
No governo Dilma, em 2015, com o Brasil em recessão, o ministro Nelson Barbosa autorizou que a propriedade fosse a leilão, mas ninguém quis pagar R$ 21,5 milhões ao governo, que gostava de arbitrar a taxa de lucro de seus parceiros em operações desse gênero, o que geralmente resultava em fracasso. O Sesc, uma organização francesa e o governo federal ainda tentaram transformá-lo num centro cultural, mas a iniciativa não vingou. Em 2012, a Secretaria de Patrimônio da União cedeu o prédio para a Unifesp, que instalaria ali o Instituto de Ciências Jurídicas. O projeto também não foi à frente.
Joia da coroa
O prédio era uma das joias da coroa do movimento dos sem-teto de São Paulo, que cresceu verticalmente durante a gestão de Fernando Haddad na Prefeitura de São Paulo e se beneficiou do corpo mole da União quanto à situação dos edifícios públicos federais abandonados. Dezenas de imóveis públicos e privados no Centro de São Paulo estão invadidos e reproduzem a mesma situação do Wilson Paes de Almeida, com a diferença de que não são uma torre de vidro. Em nota, a Prefeitura de São Paulo informou que cadastrou 248 pessoas de 92 famílias que morariam no prédio incendiado. Após a tragédia, o jogo de empurra entre as autoridades é o de praxe: o prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), argumenta que o município não podia obrigar as famílias a sair nem pedir a reintegração de posse porque o prédio é da União.
O Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão alegou que o prédio “foi cedido provisoriamente pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU/MP) à prefeitura do município de São Paulo, em 2017, e a previsão é que seria utilizado para acomodar as novas instalações da Secretaria de Educação e Cultura de São Paulo”. O ex-prefeito João Doria, em campanha para o Palácio dos Bandeirantes, disse que o imóvel havia sido controlado por pessoas ligadas a uma facção criminosa, o PCC, com a conivência do movimento de moradores, supostamente ligado do PT.
Os moradores que sobreviveram ao incêndio, cujo número de vítimas é baixo, mas ainda desconhecido, se recusam a ir para albergues da prefeitura e têm um discurso pronto: alegam não que não vivem na rua e reivindicam um lugar para morar. No Centro de São Paulo, onde a força da grana ergue e destrói coisas belas, como diz a canção Sampa, de Caetano Veloso, verdadeiras joias da arquitetura e do urbanismo estão abandonadas, como o centenário palacete em estilo art nouveau que pertenceu ao presidente Rodrigues Alves, em Higienópolis. O imóvel serviu de sede do Dops paulista e pertence ao INSS. Está desocupado desde 2003 e pode ser invadido em qualquer madrugada fria.
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Luiz Carlos Azedo: Não tem volta!
Com o impeachment de Dilma e as reformas do governo Temer, principalmente o fim do imposto sindical, a capacidade dos sindicatos influírem nas decisões do governo e do Congresso definhou
Uma boa maneira de aferir a capacidade de mobilização do movimento sindical é observar as comemorações do Dia do Trabalhador mundo afora. A data comemorativa surgiu como marco de luta para que a relação entre trabalho e capital deixasse de ser um caso de polícia para se tornar uma questão social. No Brasil, isso somente veio a acontecer com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, após a Revolução de 1930, quando foi criada a legislação trabalhista e os sindicatos foram oficializados, sob o manto protetor e vigilante do Ministério do Trabalho. Nossa estrutura sindical, ainda hoje, tem viés corporativista. Não se pasmem, sua origem é a Carta Del Lavoro, de inspiração fascista.
Esse viés sobreviveu ao ciclo democrático do pós-Segunda Guerra Mundial e ao regime militar. Parecia que haveria uma ruptura após a democratização do país, em 1985, mas não foi o que ocorreu. Os novos sindicalistas, tão logo assumiram o controle, gostaram do que tinham nas mãos: uma estrutura assistencialista e financiada pelo imposto pago por todos os trabalhadores, sindicalizados ou não, arrecadados pelo governo direto na folha de pagamento e repassado às entidades sindicais.
As disputas entre as diversas correntes político-sindicais, que geraram meia dúzia de centrais, entre as quais a CUT e a Força Sindical, não chegaram à base de arrecadação dos sindicatos, porque aí se manteve a unicidade da representação. A divisão se deu em razão de uma “indústria” de criação de sindicatos cartoriais, principalmente de servidores públicos, seccionando as categorias por critérios cada vez mais corporativos. Até sindicatos de aposentados foram criados. Em contrapartida, com esses recursos, montou-se uma enorme estrutura sindical, com ativistas profissionalizados e fora da produção, que resultou no sindicalismo cupulista, apelegado e de baixo poder de mobilização nas campanhas salariais que temos hoje.
A chegada do PT ao poder, sob a liderança do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (que hoje está preso), foi como se a classe operária atingisse o paraíso. Houve o coroamento de uma estratégia bem-sucedida de “pacto social” seletivo, a partir do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, com enorme impacto na economia do país e na vida de nossas cidades. O chamado “acordo automotivo”, celebrado durante o governo de Itamar Franco, pôs fim ao ciclo de greves metalúrgicas, garantiu o regime de pleno emprego para a categoria durante um bom período e aumentos constantes de salário real, ao mesmo tempo em que manteve o setor como polo mais dinâmico da indústria brasileira, graças a incentivos e renúncias fiscais. Também nas cidades, o setor automotivo manteve-se como eixo dinâmico das economias locais.
Surgiu ali uma nova elite sindical “empoderada”, uma espécie de aristocracia operária, que viria a ocupar um papel de destaque nos governos Lula e Dilma Rousseff. Com a crise mundial de 2008 e a guinada da política econômica do governo em direção à nova “matriz econômica”, esse processo se esgotou. O país foi lançado na sua pior recessão, o padrão de mobilidade urbana ditado pelo acordo automotivo provou grandes manifestações de protesto em março de 2013 e o desemprego em massa desarticulou o movimento sindical. Com o impeachment de Dilma Rousseff e as reformas do governo Michel Temer nas relações capital-trabalho, principalmente o fim do imposto sindical, a capacidade dos sindicatos influírem nas decisões do governo e do próprio Congresso definhou. Além disso, o fim do imposto lançou-os em sua a sua maior crise de financiamento.
Novos meios
Essa crise do movimento sindical, porém, não se restringe a isso. Os metalúrgicos vivem o drama particular da automação e da robotização, que também se reproduz em outros setores importantes, de grande tradição de luta. De igual maneira, o setor bancário vive o impacto da informatização acelerada. Não é muito diferente a situação entre os trabalhadores rurais, mesmo entre os sem-terra, cujo peso relativo na economia rural é inversamente proporcional aos ganhos de produtividade e renda no campo com a tecnologia embarcada nos equipamentos agrícolas. No setor petrolífero, os sindicatos fizeram vista grossa à roubalheira na Petrobras e agora amargam o preço de reestruturação da empresa e da desorganização da exploração do petróleo da camada pré-sal, que somente agora começa a ser retomada. Os sindicatos também fizeram vista grossa, por exemplo, à má gestão dos fundos de pensão.
Hoje, teremos um grande teste nas manifestações de Primeiro de Maio. Os sindicatos vivem um dos seus piores momentos desde a democratização. Com o passar dos anos, esses atos sindicais se tornaram eventos festivos, com shows milionários e distribuição de brindes de alto valor, como automóveis, por exemplo. Digamos que esse seja um novo momento de luta dos trabalhadores, no qual ocorrem grande mudanças na estrutura produtiva e na relação entre o capital e o trabalho, com o desaparecimento de velho “ser operário” como classe geral, ou seja, que representava os interesses dos demais trabalhadores e tinha grande poder de mobilização graças à grande indústria mecanizada. Essa realidade não existe mais, com os sistemas flexíveis de produção, a automação, informatização e robotização em curso na indústria, nos serviços e na agricultura, que caracterizam a globalização e a revolução tecnológica em curso. De certa forma, a palavra de ordem “Lula livre”, que unifica os sindicatos, é compreensível. Ele é o símbolo de uma época que ficou para trás. E não tem volta. Os sindicatos terão que se reinventar.
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Luiz Carlos Azedo: Lula, Dirceu e Palocci
O mito fundador do PT foi a ideia de um partido operário que chegasse ao poder pela via eleitoral e fosse capaz de construir uma alternativa socialista com base na democracia. Reuniu em torno de um líder sindical operário, que aparecera na cena política nacional com a eclosão das greves dos metalúrgicos do ABC, em 1982, correntes de esquerda que haviam participado da luta armada, lideranças estudantis, o clero progressista e intelectuais marxistas que divergiam da linha do velho PCB, que aderiu ao reformismo, e sua antiga dissidência stalinista, o PCdoB. A fundação do PT foi viabilizada na brecha aberta pela reforma partidária de João Figueiredo, em 1979, enquanto a fracassada concorrência comunista somente conquistou a legalidade em 1985, em razão da estratégia bem-sucedida de abertura gradual e segura adotada pelos militares para se retirar do poder, cujo nó górdio foi a anistia ampla, mas recíproca, ou seja, dos torturadores aos ex-guerrilheiros.
O sucesso do PT foi garantido pelo ambiente favorável, tanto no plano internacional — o chamado “socialismo real” dava sinais de esgotamento na União Soviética e seus satélites do Leste europeu desde as greves operárias de Gdansk, na Polônia, e o surgimento do Solidariedade —, como no plano interno, com a crise do modelo de “capitalismo de Estado” adotado pelos militares (baseava-se no tripé investimentos estrangeiros, setor produtivo estatal e concentração de capital nacional) e as sucessivas vitórias eleitorais da oposição. O método de construção do PT foi uma inovação: a convivência pluralista entre suas correntes internas, algumas das quais oriundas de antigas organizações trotskistas ou da luta armada. O conceito que serviu de base para a essência do partido e a inspiração de seu nome, porém, não era novo, mas é o que mantém o partido unido até hoje. Tem inspiração no velho Manifesto Comunista de 1848, de Marx e Engels: a ideia do ser operário como “classe geral”, que, ao se libertar, é capaz de libertar todos os explorados e oprimidos da sociedade.
Quando o PT finalmente chegou ao poder, em 2002, a esquerda mundial estava impactada pelo fim da União Soviética e o colapso do socialismo no Leste Europeu. A ofensiva neoliberal comandada pelo presidente norte-americano Ronald Reagan e pela primeira-ministra inglesa Margareth Tatcher havia sido um sucesso. Mesmo nos países onde a social-democracia europeia era hegemônica, houve reformas do “Estado do bem-estar social”. A nova realidade imposta pela terceira revolução industrial era implacável com as velhas ideias de pleno emprego e redistribuição da riqueza pela via do setor produtivo estatal e da seguridade social. Os primeiros sinais de que uma quarta revolução estava se iniciando também não foram devidamente percebidos pela esquerda. Pelo contrário, a eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi comemorada como uma espécie de ascensão de um novo Salvador Allende, capaz de liderar uma nação em desenvolvimento no rumo do socialismo democrático. Teve tanta repercussão que o presidente democrata Barack Obama, ao receber a visita de Lula nos Estados Unidos, saudou com entusiasmo a presença do petista na cena mundial: “Esse é o cara!”.
Implosão
A eleição de Lula resultou de seu enorme carisma popular, mas também de uma estratégia eleitoral concebida e comandada por dois quadros do PT que ocupariam lugar de destaque no seu governo: os ex-ministros José Dirceu (Casa Civil) e Antonio Palocci (Fazenda). O primeiro era ex-guerrilheiro; o segundo, ex-militante trotskista da Libelu. Ambos foram responsáveis pela nova clivagem da campanha de 2002, que derrotou o candidato governista José Serra (PSDB), graças à ampliação das alianças do PT em direção às oligarquias políticas articuladas pelo ex-presidente José Sarney e dos grupos empresariais descontentes com o governo de Fernando Henrique Cardoso. Nessa operação, uma mão lavava a outra, ou seja, os grupos empresariais que desejavam se beneficiar das benesses do Estado financiavam os políticos ligados às oligarquias, o que não era nenhuma novidade, pois o PSDB e o DEM também recorriam ao mesmo expediente. A diferença foi a entrada do PT como eixo organizador de todo o sistema, o que nunca havia ocorrido antes. O resto é consequência.
Lula, Dirceu e Palocci estão muito enrolados na Operação Lava-Jato, assim como Aécio Neves e Eduardo Azeredo, do PSDB. Mesmo o presidente Michel Temer, que assumiu o poder como o impeachment de Dilma Rousseff, padece na crise ética, como outros caciques do PMDB, PP, DEM etc. Entretanto, Lula é o único cuja liderança ainda não foi parar no fundo do poço. A explicação para isso é a resiliência de seu partido, que preserva o seu velho mito fundador como ideia-força. As injustiças sociais e desigualdades no Brasil também realimentam essa crença na base social do PT, enquanto seus intelectuais e artistas ainda acreditam na existência de uma “classe geral”, mesmo que o “ser operário” como materialização dessa tese esteja em extinção. José Dirceu acredita na energia que isso ainda desperta e na possibilidade de o PT voltar ao poder, por isso, admite mofar na prisão; Palocci, não, ao fazer sua delação premiada, para se livrar da cadeia, se dispôs a implodir o que restou do partido como encarnação desse mito fundador.
Luiz Carlos Azedo: Efeito Palocci
O acordo de delação premiada do ex-ministro da Fazenda com a Polícia Federal pegou de surpresa o Ministério Público, mas não surpreendeu a cúpula do PT, que sabia de sua intenção de assim sair da cadeia
Quanto mais o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva reza, mais assombração lhe aparece. Tudo indica que seu ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci, que também foi chefe da Casa Civil de Dilma Rousseff, realmente fez acordo de delação premiada com a Polícia Federal. Os termos da delação são desconhecidos, mas deverão cair no colo do juiz federal Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba. O acordo é o primeiro do gênero no âmbito da Lava-Jato e, de certa forma, atropela a força-tarefa do Ministério Público Federal, que havia recusado conceder o benefício a Palocci. Em tese, caberá a Moro homologar o acordo.
Palocci havia sinalizado a intenção de fazer delação premiada ao prestar depoimento sobre o funcionamento do esquema de propinas pagas pela Odebrecht para agentes públicos “em forma de doação de campanha, em forma de benefícios pessoais, de caixa um, caixa dois”. Na ocasião, assumiu que era o “Italiano” das planilhas da empresa e que havia se reunido com Lula para tratar da obstrução à Lava-Jato. O acordo de delação premiada do ex-ministro da Fazenda com a Polícia Federal pegou de surpresa o Ministério Público, mas não surpreendeu a cúpula do PT, que sabia de sua intenção de assim sair da cadeia, desde quanto ele a revelou ao ex-ministro José Dirceu, quando ainda estavam juntos na cadeia. Condenado a 12 anos e 2 meses de prisão em regime fechado, Palocci está na carceragem da Polícia Federal em Curitiba, mas não tem contato com Lula. Sua decisão tem a ver com o fato de o Supremo Tribunal Federal (STF), por 7 votos a 4, no dia 12 de abril, ter rejeitado o habeas corpus que sua defesa havia impetrado.
Palocci foi uma peça-chave na eleição de Dilma Rousseff em 2010, sendo o grande responsável pela arrecadação de recursos para a campanha junto ao empresariado. Seu desempenho garantiu-lhe o cargo de ministro da Casa Civil, uma espécie de volta por cima depois de ter sido defenestrado do Ministério da Fazenda no governo Lula, por causa da quebra de sigilo bancário de um caseiro, suspeito de vazar informações para a imprensa. O ex-ministro foi ejetado da Casa Civil por causa de um novo escândalo: a compra de um apartamento nos Jardins, área nobre de São Paulo, por R$ 7 milhões em valores da época, em dinheiro vivo.
Estruturado
Na versão inicial de Palocci, a conta de propina da Odebrecht que administrava teria recebido um depósito de R$ 40 milhões como forma de compensá-lo por negócios vantajosos que garantiu para o grupo durante dois mandatos. Cinco anos antes de comprar o apartamento, havia declarado à Justiça Eleitoral possuir patrimônio no valor total de R$ 375 mil, cujos principais bens seriam uma casa de R$ 56 mil em Ribeirão Preto, um terreno e três carros. Na ocasião da compra do apartamento, o ex-ministro também comprou um escritório nas proximidades da Avenida Paulista; pagou R$ 882 mil em dinheiro vivo.
Sempre houve a suspeita de que Palocci havia criado a empresa de consultoria para administrar R$ 120 milhões em propina repassados pela Odebrecht. Conforme a confissão do executivo Marcelo Odebrecht, essa conta “estruturada” era administrada por Palocci, mas se destinava ao PT, com conhecimento pleno de Lula. Nos bastidores da Lava-Jato, porém, comentava-se que Palocci poderia provocar a anulação da delação premiada da Odebrecht, pelos mesmos motivos que levaram à revisão da delação premiada da JBS: a omissão de informações. Não por acaso, Marcelo Odebrecht continua passando informações para a força-tarefa da Lava-Jato, para complementar seus depoimentos anteriores.
Ontem, foi mais um dia agitado na Lava-Jato. O juiz Sérgio Moro decidiu que a ação sobre o sítio de Lula em Atibaia deve permanecer em Curitiba, até que seja julgada a chamada exceção de incompetência impetrada pela defesa do ex-presidente, há oito meses, na Justiça Federal do Paraná. O senador Aécio Neves (PSDB) prestou três horas de depoimento na sede da Polícia Federal em Brasília, no inquérito que apura se recebeu propina da Andrade Gutierrez e da Odebrecht para beneficiar essas empresas na construção da usina de Santo Antônio, no Rio Madeira, em Rondônia. E a Polícia Federal pediu a prorrogação por mais 60 dias do inquérito que investiga o presidente Michel Temer, aliados dele e empresas do setor portuário.
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Luiz Carlos Azedo: Truco no Jardim do Éden
O ministro-relator Edson Fachin está em minoria na Segunda Turma do STF e perde quase todas as votações, embora conheça profundamente as investigações e os processos da Lava-Jato
O truco é muito popular entre paulistas e goianos. Apesar de parecer simples, é um jogo de cartas que exige muita astúcia e possui diferentes táticas, o que complica a vida dos iniciantes. A primeira delas é manipular o adversário. Para isso, o bom jogador precisa ser agressivo, fazer o máximo possível para intimidá-lo. O jogador truca gritando, com objetivo de assustar e prejudicar o desempenho do concorrente durante o resto da disputa. Outra tática importante é escolher bem o parceiro. É preciso ter confiança e química para que possam se comunicar com um olhar. Quando o parceiro é perfeito, metade do jogo está ganho. Conhecer a ordem das cartas também é fundamental para não trucar na hora errada. E, finalmente, ter confiança em si mesmo, para convencer os demais jogadores de que suas cartas são as melhores, mesmo que não sejam. Por isso, o bom jogador nunca reclama do jogo que tem nas mãos, mesmo quando ele é fraco. Se blefar com convicção, ganha o jogo.
A sessão de ontem da segunda turma do Supremo Tribunal Federal (STF) foi como uma partida de truco bem jogada. Por 3 votos a 2, essa turma (chamada de Jardim do Éden pelos advogados) decidiu retirar trechos da delação de executivos da construtora Odebrecht que envolvem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva da alçada do juiz Sérgio Moro, do Paraná, enviando esses depoimentos para a Justiça Federal de São Paulo. Os ministros Antônio Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes concluíram que as informações dadas pelos delatores da Odebrecht sobre o sítio de Atibaia e sobre o Instituto Lula não têm relação com a Petrobras e, portanto, com a Operação Lava-Jato. Votaram pela manutenção o relator da Lava-Jato, Edson Fachin, e o decano da Corte, Celso de Mello.
Segundo Toffoli, Lewandowski e Mendes, não há razão para os depoimentos dos delatores serem direcionados a Moro, que é o responsável pela Lava-Jato na primeira instância da Justiça Federal. Essa interpretação pode ter sérias consequências para a Operação Lava-Jato, em especial para os processos aos quais responde o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Sua defesa, que considera Moro “um juiz de exceção”, já anunciou que fará um pedido para retirar da Justiça Federal do Paraná os processos aos quais o ex-presidente responde. Tanto a força-tarefa da Lava-Jato quanto o juiz federal foram pegos de surpresa e ainda não se pronunciaram sobre a decisão.
Há uma profunda divergência de entendimento entre a maioria da segunda turma do STF e o Ministério Público Federal, uma vez que a delação premiada da Odebrecht tem origem no esquema de corrupção da Petrobras investigado pela força-tarefa da Operação Lava-Jato. Acontece que o ministro-relator Edson Fachin está em minoria na turma e perde quase todas as votações, embora conheça profundamente o andamento das investigações e os autos dos processos da Lava-Jato. O recurso de Lula estava sendo analisado desde março, quando o ministro Toffoli pediu vista e interrompeu o julgamento. Ao retomá-lo, encaminhou o voto que mudou o rumo do processo. O julgamento só não foi relâmpago (durava 20 minutos) porque aguardou o ministro Gilmar Mendes, que estava viajando, chegar ao STF, para desempatá-lo, num voto curto e grosso.
O bem e o mal
A segunda turma é chamada de Jardim do Éden pelos advogados por causa da maioria “garantista” formada pelos três ministros, que votam em bloco. Todas as decisões são na direção de circunscrever a Lava-Jato e conceder habeas corpus, ao contrário da primeira turma, apelidada de “Câmara de Gás” pelos advogados dos réus, porque joga mais duro com os acusados e manda prendê-los. No Jardim do Éden, segundo o relato judaico-cristão, por ordem divina, o homem podia comer os frutos de todas as árvores, exceto os da árvore do conhecimento. Ao desobedecer essa ordem e comer esse fruto proibido, Adão e Eva conheceram o bem e o mal, e do pecado nasceu a vergonha e o reconhecimento de estarem nus.
Os teólogos debatem muito o significado dessa passagem bíblica. Todas as questões morais eram objetivas e não subjetivas. Havia uma moralidade absoluta. Alguém poderia fazer a coisa errada, mas a escolha estaria clara. A árvore cria uma confusão moral. Comer da árvore seria confundir o certo e o errado. Quando Adão e Eva comem da árvore, porém, os sentidos se tornam mais poderosos do que o intelecto e cada pessoa se sente com poderes para decidir por si mesma entre o certo e o errado, e a confusão moral entra no mundo.
A propósito do certo e do errado, a 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) manteve a condenação do ex-governador Eduardo Azeredo (PSDB) em segunda instância a 20 anos e um mês de prisão. A defesa do tucano pedirá embargos declaratórios, mas isso não muda mais a sentença, e pode recorrer a tribunais superiores. De acordo com a denúncia, o mensalão tucano teria desviado recursos para a campanha eleitoral de Azeredo, que concorria à reeleição ao governo do estado, em 1998. Ele nega envolvimento nos crimes.
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