Nas entrelinhas
Luiz Carlos Azedo: Sete lições dos caminhoneiros
A palavra de ordem “Fora, Temer!” é unificadora de extremos. Houve ciberataques aos órgãos oficiais. Grupos radicais tentaram derrubar o governo e atuarão fortemente nas eleições
Não se recomenda a ninguém jogar um paralelepípedo para o alto, bem na vertical, e ficar olhando para ver o que acontece. Com sorte, o sujeito escapa com vida de um traumatismo craniano. A greve dos caminhoneiros, depois de 10 dias, entrou mesmo em declínio, mas quase deixou a economia do país em estado de coma. A primeira lição a se tirar talvez seja a de que nenhuma categoria profissional tem o direito de fazer a nação de refém, como disse o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF). Por isso, é legítimo utilizar os meios de defesa do Estado para evitar que isso aconteça, inclusive as Forças Armadas. Não importa que o governo Temer seja impopular nem que a opinião pública, como um suicida, majoritariamente apoie o movimento como quem quer cabecear um paralelepípedo. Todos devem ter seus direitos de ir e vir respeitados.
A segunda lição é a de que o país não está preparado para enfrentar um locaute das empresas de transportes e de distribuição, que foram a espinha dorsal do movimento; sem esse apoio, a greve não teria a mesma envergadura. Agora, sabemos que esse setor minoritário da economia tem o poder de pôr em colapso o país. É preciso repensar o atual modelo de transportes. Um pacto perverso entre o setor automotivo, os sindicatos de metalúrgicos e o governo gerou o excesso de oferta de frete no mercado, exacerbado pela “nova matriz econômica” e a recessão do governo Dilma.
Terceira lição: os militares não estavam preparados para enfrentar uma crise do modelo de logística que tanto defenderam como via de integração nacional. Não havia um plano de contingência para prevenir o bloqueio de portos, refinarias, centros de distribuição e principais eixos rodoviários do país; as Forças Armadas, mesmo convocadas, demoraram 10 dias para abrir os corredores de abastecimento dos principais centros do país. Até o aeroporto de Brasília ficou sem condições operacionais, o que não acontece nem em Bagdá, Damasco e Cabul.
A substituição das ferrovias pelas rodovias no Brasil tem muito a ver com a experiência da II Guerra Mundial, na qual o deslocamento rápido de tropas e blindados alemães por rodovias surpreendeu os franceses e escancarou a obsolescência da Linha Maginot. As fortificações construídas pela França ao longo de suas fronteiras com a Alemanha e a Itália, após a Primeira Guerra Mundial, entre 1930 e 1936, eram compostas de 108 fortes a 15 km de distância uns dos outros, edificações menores e casamatas, e mais de 100 km de galerias. Interrompida a 20km de Sedan, por ali avançaram as britzkrieger alemãs, apesar das lições da derrota de Napoleão III e seus 88 mil homens, no mesmo local, em 1870, na guerra franco-prussiana. Com a Linha Maginot intacta, a França foi ocupada e as tropas inglesas cercadas e empurradas para o mar.
Quarta lição da greve: as estruturas verticais de poder, em tempos líquidos, não conseguem traduzir e representar a sociedade no fluxo das crises. Como nas manifestações de 2013, os caminhoneiros se organizaram horizontalmente pelas redes sociais; o movimento continuou mesmo após os sindicatos terem fechado um acordo com o governo. Foi preciso outra negociação, com líderes regionais; ainda assim continuou mais radicalizado e violento, porque a minoria fez uso da força para manter os bloqueios nas estradas. Não houve um ponto estratégico, em todo o território nacional, em que um grupo atuante não impusesse suas decisões aos demais, num nível de cooperação e coordenação superior até ao das forças de segurança.
Eleições
A ficha dos políticos só caiu quando eles se deram conta de que havia setores do movimento dos caminhoneiros interessados em desestabilizar o Planalto e provocar uma intervenção militar. Já não existe um governo de coalizão, essa é a quinta lição. O isolamento do presidente Michel Temer foi absoluto. Não houve solidariedade do Congresso. Alguns governadores mandaram a Polícia Militar se recolher. Corretamente, as Forças Armadas foram orientadas a negociar exaustivamente com os grevistas, jamais entrar em confronto com os manifestantes. Foram raros os casos de emprego de tropa de choque para dissolver bloqueios ilegais e até desumanos, no caso de transporte de oxigênio e produtos farmacêuticos. Dois homicídios estão na conta de grevistas.
A sexta lição: a Constituição de 1988 ainda é o que nos une, com todos os defeitos. Graças a elas as instituições funcionam e têm legitimidade. Seus mecanismos, quando acionados, responderam às necessidades, mais uma vez tendo o Judiciário como poder moderador. Temos um governo fraco, mas um Estado forte, capaz de exercer suas funções essenciais: arrecadar, normatizar e coagir. Finalmente, a última lição: a greve dos caminhoneiros foi instrumentalizada por grupos radicais. Estão muito organizados na internet, utilizam perfis falsos, robôs e fake news. A maioria é de direita e simpática ao deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ), candidato a presidente da República, mas setores de esquerda a eles se aliaram para desestabilizar o governo, irresponsavelmente. A palavra de ordem “Fora, Temer!” é unificadora dos extremos. Houve muitos ciberataques aos órgãos oficiais. Está óbvio que esses grupos atuarão fortemente nas eleições, com os mesmos métodos. Até que ponto tentarão inviabilizá-las ou fraudá-las?
Férias — Entrarei em recesso por três semanas. Leonardo Cavalcanti me substituirá.
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Luiz Carlos Azedo: Caiu a ficha
Como o governo, deputados e senadores foram surpreendidos pela greve dos caminhoneiros e, mais ainda, pelas consequências dramáticas para o abastecimento e os serviços públicos
Parece que caiu a ficha de que o governo Temer e a cúpula do Congresso são sócios da crise e não adianta ninguém tirar casquinha, porque a situação é desastrosa. Estão em risco a economia do país e a estabilidade política. Ontem, Temer e os presidentes do Senado, Eunício de Oliveira (MDB-CE), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), divulgaram uma nota na qual se comprometem a colocar em prática o acordo feito com os caminhoneiros: “Neste momento, os poderes Executivo e Legislativo estão unidos na defesa dos interesses nacionais. Assumem o compromisso de aprovar e colocar em prática, no menor tempo possível, todos os itens do acordo”. Maia vinha se estranhando com Temer; Eunício, com Maia. Enquanto isso, caminhoneiros radicalizados dificultam a normalização do abastecimento e pregam uma intervenção militar.
Apesar da nota, o clima no Congresso é de apreensão e perplexidade. Como o Palácio do Planalto, deputados e senadores foram surpreendidos pelo vigor da greve dos caminhoneiros e, mais ainda, pelas consequências dramáticas do movimento para o abastecimento da população e funcionamento dos serviços públicos. Os políticos estão descolados da sociedade e demonstram incapacidade de respostas positivas para situações complexas e graves.
Resultado: o país ainda não saiu do sufoco causado pela greve dos caminhoneiros, e os petroleiros já anunciam uma paralisação de 72 horas, com apoio das centrais sindicais. Detalhe: fora da data-base, com o objetivo de inviabilizar a normalização do abastecimento de combustível. É uma greve política, na linha do “Fora, Temer!”, cuja intenção imediata, a deposição do governo, não difere em nada da “intervenção militar” defendida pelos caminheiros que permanecem em greve: derrubar o governo.
O Caroço
Quem quiser que se iluda, tem caroço nesse angu. Análise realizada pela AP/Exata — Inteligência em Comunicação Digital — no Twitter sobre as redes nos primeiros dias da greve dos caminhoneiros mostra que o movimento foi deflagrado pelas hashtags #TemerAbaixaAGasolina e #EuApoioAGreveDosCaminhoneiros. Em meia hora, foram realizados 2.772 tweets. O monitoramento do fluxo em tempo real revelou um perfil específico muito influente: @JqTeixeira. Trata-se de um perfil fake, que dissemina ideias conservadoras, a partir de uma elevada carga moral e da defesa do militarismo. “Personagem do bom pai de família honesto, cristão e patriota”, um perfil fictício, a conta possui mais de 207 mil seguidores e está sendo investigada pelos órgãos de inteligência.
A conta não tem conteúdo pessoal, costuma partilhar e publicar com regularidade assuntos de teor político de extrema direita. Possui ainda outros perfis, com centenas de milhares de seguidores, nos quais realiza igual tipo de posts sobre as mesmas temáticas. As publicações e os perfis já foram suspensos mais de uma vez por Twitter e Instagram, mas depois retornaram.
O post que turbinou a greve foi o seguinte: “Sextou? Não vai ter álcool no bar nem cigarro. O X beicon acabou. Não há munição pro revólver. Del Rey com tanque vazio. Prostitutas paralisadas. É o fim da sexta-feira como a conhecemos. Que Deus nos proteja. #TemerAbaixaAGasolina”. Após 447 compartilhamentos, com 51 comentários, o tweet viralizou. O engajamento foi mecanizado, promovido por perfis de interferência: fakes, robôs e perfis militantes. As redes sociais foram operadas para transformar a greve num movimento de desestabilização do governo.
Joaquin Teixeira também publica ocasionalmente posts em apoio ao deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ). A AP/Exata encontrou vários elos em comum. O ritmo de publicações do perfil é similar em ambas as contas, registrando aproximadamente 100 tweets semanais. E tem relação com a formação de comunidades em torno da hashtag #EuApoioAGreveDosCaminhoneiros. No começo da greve, em meia hora, foram realizados 4.192 tweets. Essa rede é muito mais orgânica que a anterior, visto que o protagonismo de influência está dividido em vários perfis, entre os quais Patriotas Caminhoneiros, que defende a intervenção militar; Caminhoneiros Brasil; Brasil Caminhoneiro; Caminhoneiros; e Blog do Caminhoneiro, que propagam vídeos e material publicitário sobre a greve. Após a reunião do governo com os caminhoneiros, na quinta-feira passada, essas páginas imediatamente difundiram vídeos dizendo que o movimento continuaria.
Apesar de as interações da hashtag #EuApoioAGreveDosCaminhoneiros serem predominantemente orgânicas, houve interferência de perfis de apoio a Jair Bolsonaro, anti-PT e de “direita”, mas perfis de “esquerda”, anti-Temer e pró-PT também aderiram à comunidade. Essa convergência entre radicais de direita e de esquerda nas redes se materializa agora com a anunciada greve dos petroleiros, com apoio das centrais sindicais CUT, Força Sindical, UGT, CTB, Nova Central e CSB. Se a greve for bem-sucedida, a crise de abastecimento recrudescerá.
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Luiz Carlos Azedo: O fiel da balança
O DEM pode desestabilizar o governo, que depende do apoio de Maia para aprovar no Congresso o acordo com as lideranças dos caminhoneiros
A cúpula do DEM se reúne hoje na residência oficial do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (RJ), para discutir a relação do partido com o governo Michel Temer. A reunião foi convocada pelo presidente da legenda, ACM Neto, prefeito de Salvador. Enquanto a velha guarda avalia que Maia “pisou no tomate” na crise provocada pela greve/locaute dos caminhoneiros, ao esticar a corda com Temer, outra parte da bancada, mais jovem, defende o desembarque do partido do governo, a exemplo do que foi feito pelo PSDB.
Maia é candidato a presidente da República e lidera uma coalizão formada pelo DEM, pelo PP do senador Ciro Nogueira (PI) (legenda que encabeça um bloco com 69 deputados, o maior da Câmara) e pelo Solidariedade, de Paulinho da Força (cuja central sindical apoia os caminhoneiros). O grupo soma 134 parlamentares. O presidente da Câmara, desde o início da greve, critica a condução dada à crise pelo Palácio do Planalto, inclusive a mobilização das Forças Armadas. Um desembarque do DEM, agora, pode desestabilizar o governo, que depende do apoio de Maia para aprovar as medidas provisórias que enviou ao Congresso em razão do acordo com as lideranças dos caminhoneiros.
Maia é um crítico da política de preços da Petrobras. Segundo ele, a empresa pode fazer uma política de mais previsibilidade para a sociedade, “com aumentos em períodos mais longos”. Nas contas do presidente da Câmara, com o aumento do preço do petróleo, os royalties, a participação especial e o bônus de assinatura, o governo vai receber neste ano mais de R$ 13 bilhões. Essa conta não bate com os cálculos do ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, que avalia em R$ 9,5 bilhões o rombo no Tesouro em razão do acordo com os caminhoneiros. Desse total, R$ 5,7 bilhões virão de uma reserva orçamentária, e os outros R$ 3,8 bilhões, do corte de despesas. Quem pagará essa conta será o consumidor, é claro.
O Congresso Nacional já recebeu as três medidas provisórias que resultaram do acordo com os caminhoneiros para pôr fim à greve nacional iniciada no dia 21, o que joga no colo de Maia a conclusão das negociações. Além das MPs, o governo anunciou a redução de R$ 0,46 no preço do litro do diesel por 60 dias. A redução do preço do combustível é um dos pontos principais da pauta dos grevistas. A MP 831/18 reserva 30% do frete contratado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para cooperativas de transporte autônomo, sindicatos e associações de autônomos.
A MP 832/18 institui a Política de Preços Mínimos do Transporte Rodoviário de Cargas, com a finalidade de promover condições razoáveis à realização de fretes no território nacional. A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) publicará duas tabelas por ano (dias 20 de janeiro e 20 de julho) com os preços mínimos dos fretes por quilômetro rodado, levando em conta o tipo de carga (geral, a granel, frigorificada, perigosa e neogranel) e, prioritariamente, os custos do óleo diesel e dos pedágios. A ANTT publicará a primeira tabela, com vigência até 20 de janeiro de 2019, no prazo de cinco dias.
A MP 832 foi elaborada com base no Projeto de Lei 528/15, do deputado Assis do Couto (PDT-PR), aprovado na Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado. O texto também institui a Política de Preços Mínimos do Transporte Rodoviário de Cargas, com preços mínimos de frete fixados a cada seis meses. A aprovação do projeto é uma das reivindicações dos caminhoneiros. A última medida provisória editada pelo governo (MP 833/18) altera a Lei dos Motoristas para estender às rodovias estaduais, distritais e municipais a dispensa de pagamento de pedágio do eixo suspenso de caminhões, uma das principais reivindicações dos grevistas. Foi negociada com os caminhoneiros pelo governador de São Paulo, Márcio França (PSB).
Politização
Apesar do acordo, o governo ainda enfrenta dificuldades para normalizar o abastecimento de combustíveis, porque a greve continua parcialmente e ainda há muitos pontos de bloqueios nas estradas e nos terminais de abastecimento. Há um faz de conta: as forças federais conseguiram desobstruir mais estradas, mas caminhoneiros usam artifícios para impedir que os caminhões-tanque vazios se reabasteçam. Na Petrobras, no fim de semana, não houve emissão de autorizações para abastecimento, somente foram abastecidos os que já tinham notas fiscais emitidas. Agora, os sindicatos de petroleiros, controlados pela CUT, se mobilizam para parar as refinarias de petróleo a partir de amanhã, estrangulando o reabastecimento.
A greve galvanizou a insatisfação da população com o governo, por causa da falta de combustível e do desabastecimento. De um lado, os setores que defendem a intervenção militar insuflam os grevistas, que receberam apoio do deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ). De outro, os petistas aproveitam o momento para defender a candidatura de Lula e unificar a oposição. Na prática, como candidatos a salvadores da pátria, apostam no caos.
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Luiz Carlos Azedo: Governo fraco
A União, o Congresso, os governos estaduais, as empresas de transportes e os caminhoneiros brigam por um acordo que jogue a conta no colo do consumidor
“Isso é coisa de governo fraco”, sapecou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ao criticar a mobilização das Forças Armadas para enfrentar a crise de abastecimento provocada pela greve dos caminhoneiros (na verdade, um grande locaute das transportadoras, que só agora começa a ser enfrentado pelo governo como manda a lei). Na quarta-feira, Maia foi protagonista de uma votação na Câmara que complicou ainda mais a situação, ao induzir os deputados a votarem pela extinção do Pis-Cofins no diesel dizendo que a perda seria de R$ 3 bilhões, quando na realidade seria de R$ 10 bilhões. Disse que as contas da receita estavam erradas, ao contrário dos cálculos da assessoria técnica do relator, deputado Orlando Silva (PCdoB-RJ).
O último presidente da Câmara a se aproveitar de um governo fraco foi o ex-deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ), que abriu o processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT), aliado à oposição, mas hoje está cumprindo pena em regime fechado. Dilma havia passado por um tremendo desgaste em 2013, quando foi surpreendida por grandes manifestações de protestos em todo o país, mas, mesmo assim, conseguiu a reeleição. Não resistiu, porém, quando as mobilizações de rua convergiram para as articulações no Congresso, em razão do colapso de sua “nova matriz econômica”, que jogou o país na maior recessão de sua história e provocou desemprego em massa. Seu vice, Michel Temer, entrou na conspiração e assumiu seu lugar. É um presidente fraco pela própria natureza.
Ao contrário de Cunha, Maia é hoje o primeiro na linha de sucessão de Temer. Na semana passada, o ambiente na Câmara era de vaca estranhar o bezerro, como gostam de afirmar os políticos. Os que haviam votado contra a denúncia contra Michel Temer diziam que sua manutenção no cargo foi um erro. Estava-se pagando um preço muito alto por isso, pois o governo não se recuperou da crise ética, apesar da queda da inflação e dos juros baixos. Aliados de Temer admitem que estão sendo muito cobrados pelos eleitores por causa do voto contra a denúncia. O ambiente na Câmara não é favorável ao governo. Resumindo, se houver uma nova denúncia, Temer será afastado do poder.
Maia sabe disso e parece arrependido do apoio a Temer. Teve os destinos do país nas mãos, mas não atendeu ao apelo da maioria dos seus pares, depois de um puxão de orelhas de sua mãe, uma chilena que viveu os dias dramáticos da queda de Salvador Allende ao lado do ex-prefeito Cesar Maia, então um jovem professor de economia exilado no Chile. Mariangeles Ibarra Maia, em mensagem encaminhada ao filho, pediu: “Não conspire contra Temer”. A pré-candidatura de Maia a presidente da República parecia uma jogada para garantir a recondução ao comando da Câmara; agora, começa a ter outro sentido.
Caso Temer fosse afastado, Maia assumiria a Presidência e poderia concorrer à reeleição no cargo. Há dois caminhos para isso: abrir um processo de impeachment, o que teria uma conotação golpista para o presidente da Câmara; ou esperar a terceira denúncia contra Temer, com base na investigação do Porto de Santos. Nos tempos de Janot, isso já teria ocorrido. A procuradora-geral Raquel Dodge, porém, não tem a mesma gana do antecessor contra Temer, por quem foi nomeada para o cargo, sendo a segunda mais votada entre os procuradores.
Abastecimento
O Brasil já teve muitos governos fracos, alguns acabaram depostos, como a Regência da princesa Isabel, em 1889, e os governos de Washington Luiz, na Revolução de 1930, e o de João Goulart, em 1964. Mas nenhum foi tão fraco como a Regência Provisória que assumiu o comando do país com a abdicação de Dom Pedro I, em 1831, formado pelo paulista José da Costa Carvalho, o maranhense João Bráulio Munis e o general Francisco de Lima e Silva. Num dos seus piores momentos, o governo passou seis dias cercado por mercenários amotinados, traficantes e fidalgos insatisfeitos. Nessa crise, avultou-se o ministro da Justiça, o padre Diogo Antônio Feijó, e um jovem major do Exército, Luiz Alves de Lima e Silva, filho do general, que enfrentaram os amotinados e, depois, uma série de rebeliões. Era uma época em que o nosso Estado-nação estava nos seus primórdios.
Hoje, temos um governo fraco, mas um Estado forte, com instituições sólidas e mão pesada. É uma ironia, mas a crise que estamos vivendo decorre mais do segundo do que do primeiro aspecto. Resulta de um conflito distributivo no qual a conta já não fecha, além de uma estratégia de desenvolvimento que tem como polos mais dinâmicos da indústria a produção de veículos automotivos e a exploração e o refino de petróleo do pré-sal, de um lado; a construção civil nas cidades e a produção de commodities agrícolas no campo, de outro. O Estado forte vive de aumentar impostos de combustíveis, telecomunicações e energia elétrica, para financiar governos ineficientes e subsidiar setores privilegiados da economia.
A paralisação colapsou a economia, enquanto a União, o Congresso, os governos estaduais, as empresas de transportes e os caminhoneiros brigam para ver quem vai ganhar mais ao jogar a conta no colo do consumidor. Por essa razão, a greve dos caminhoneiros gerou sentimentos contraditórios na população, que num primeiro momento ficou contra o governo, porque abraça a ideia de reduzir impostos para baixar o preço do combustível, muito inflacionado pela alta do dólar. Até o abastecimento entrar em colapso. Agora, a opinião pública se volta contra os grevistas, mas não refresca o governo. A crise política instalada só se resolverá nas eleições
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Luiz Carlos Azedo: Coisa estranha
Nunca é demais lembrar que uma greve de caminhoneiros, em 1972, desestabilizou o governo de Salvador Allende no Chile e abriu caminho para o golpe do general Pinochet
Depois de seis horas de negociações com os líderes dos caminhoneiros, o governo conseguiu uma trégua e a suspensão da greve que há quatro dias provocava bloqueios de rodovias e desabastecimento em todo o país. A incógnita agora é saber se o acordo será aceito pelos grevistas, já que um dos líderes se recusou a assiná-lo. De qualquer forma, duas dezenas de decisões liminares para desobstruir as rodovias federais já foram concedidas, em razão do colapso do sistema de transporte rodoviário, o risco de paralisação de aeroportos e o desabastecimento da população, não somente de combustíveis. A especulação nos postos de gasolina, que ainda provoca grandes filas, é criminosa.
O imobilismo do governo federal e dos governos estaduais quanto à desobstrução das rodovias durante a greve foi espantoso. Houve paralisação dos frigoríficos, até as fábricas de automóveis suspenderam a produção. O bloqueio dos portos registrou um fato ainda mais preocupante: a adesão de pescadores, que interditaram os canais de navegação, com suas traineiras, nos portos de Itajaí (SC) e de Santos (SP). A crise agora está no colo do ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, diante da necessidade de rapidamente desobstruir as rodovias e normalizar o abastecimento.
Há dois atores nessa crise que precisam esclarecer melhor a sua verdadeira posição: o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), pré-candidato a presidente da República, que foi mais um a impor condições e contingenciar o governo nas negociações, e o presidente da Força Sindical, deputado Paulinho da Força (Solidariedade), que apoia os caminhoneiros incondicionalmente. Ambos são aliados e estão jogando juntos. O presidente Michel Temer, que sempre foi um conciliador, vacilou quanto a definir uma clara linha divisória entre o que seria uma greve legítima de caminhoneiros avulsos e o que está acontecendo, um locaute das grandes transportadoras.
Pescador de águas turvas, o candidato do PSL, deputado Jair Bolsonaro (RJ), declarou apoio à greve com um discurso articulado, assentado sobre a agenda de reivindicações dos caminhoneiros, pondo mais lenha na fogueira, pois mobilizou apoio aos grevistas. Não tinha nada a perder, qualquer que fosse o desfecho da greve, pois ganha com o desgaste do governo Temer e ganharia mais ainda se a situação provocasse a edição de um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e a mobilização das Forças Armadas.
A decisão da Petrobras de reduzir o preço do diesel em 10% resultou numa queda de 14% das ações da empresa na Bolsa de Valores, o que deslocou a petroleira da condição de mais valiosa empresa do país, com uma perda da ordem de R$ 40 bilhões num só dia. No mercado financeiro, a empresa ainda sofre um ataque especulativo, com a interpretação de que o gesto de redução de preços foi uma mudança de política e que a solução para o problema seria a privatização da petroleira. O mercado financeiro cavalga essa crise para levar vantagem. Não devemos esquecer que a Petrobras é uma empresa de capital aberta, apesar do controle acionário ser estatal.
O governo Temer foi surpreendido pelo que poderia se transformar numa tempestade perfeita, pois o desalinhamento de preços no setor de transportes, que sempre foi oligopolizado, e a gana arrecadadora dos estados e da própria União acabaram inviabilizando a política de flutuação do preço dos combustíveis de acordo com o mercado internacional. No meio dessa crise, as máfias dos combustíveis, que existem, se aproveitaram para auferir lucros absurdos e ilegais, com o aumento dos preços na bomba, num oportunismo selvagem. As agências do governo responsáveis pelo bom funcionamento do mercado, como a ANP e Procon, demoraram a reagir.
Tempestade perfeita, grosso modo, é um evento desfavorável drasticamente agravado pela combinação de circunstâncias, transformando-se em um desastre. A expressão também é usada para descrever fenômenos meteorológicos de grande magnitude, resultante de uma inusitada confluência de fatores, do tipo Efeito Borboleta, como a crise financeira de 2008. Não foi o caso, mas pode vir a ser, devido à perplexidade do governo e a crise de abastecimento.
Norberto Bobbio, notável jurista e filósofo italiano, ao falar dos maus governos, dizia que, graças às funções essenciais do Estado, mesmo assim serão sempre a forma mais concentrada de poder, porque arrecadam, normatizam e coagem. Quando nada funciona, advertia o mestre, a propósito da crise italiana do final dos anos 1970, um “subgoverno” se encarrega de exercer essas funções. É aí que mora o perigo dessa crise, pois nova greve dessa envergadura tem alto poder de desestabilização do governo, às vésperas das eleições presidenciais e na iminência de uma possível terceira denúncia contra o presidente Temer. Pode ser que essa tenha sido uma aposta de atores políticos interessados em se beneficiar da crise.
Nunca é demais lembrar que uma greve de caminhoneiros, em 1972, desestabilizou o governo de Salvador Allende no Chile e abriu caminho para o golpe do general Pinochet. O mesmo expediente fora usado antes, no Brasil, para desestabilizar o governo de Juscelino Kubitschek, em 1959, sem o mesmo sucesso. É bom não subestimar o que aconteceu, numa conjuntura em que o governo e o Congresso estão muito desgastados, e o país parece desnorteado. Só há um rumo a seguir: garantir as eleições e o respeito à Constituição, inclusive ao direito de ir e vir dos cidadãos, que foi muito agredido pela greve.
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Luiz Carlos Azedo: Os deuses e os mortos
O que não falta são candidatos a deuses e a mortos-vivos. Vicejam num ambiente de iniquidade social, desesperança, violência e crise ética. O país foi atropelado pela globalização e pela Operação Lava-Jato
Dirigido pelo moçambicano naturalizado brasileiro Ruy Guerra, Os deuses e os mortos é um ícone da fase “alegórica” do Cinema Novo, vencedor do festival de Brasília de 1970, numa abordagem barroca e tropicalista que retrata a violência no campo e o monopólio da política pelas oligarquias. Era uma época em que o regime militar estava no auge; parte da esquerda ainda acreditava que derrubaria o regime pegando em armas e que implantaria um “governo popular”. Era tudo um delírio, do “Brasil, ame ou deixe-o”, do general Garrastazu Médici, ao “Quem samba fica, quem não samba vai embora”, de Carlos Marighela.
Com fotografia excepcional de Dib Lufti e trilha sonora de Milton Nascimento, o filme tinha um elenco estrelado, a maioria viria a brilhar nas novelas da Globo: Othon Bastos (“O Homem”), Norma Bengell (“Soledade”), Rui Polanah (“Urbano”), Ítala Nandi (“Sereno”), Dina Sfat (“A Louca”), Nelson Xavier (“Valu”), Jorge Chaia (“Coronel Santana”), Vera Bocayuva (“Jura”), Fred Kleemann (“Homem de branco”), Vinícius Salvatore (“Cosme”), Mara Rúbia (“Prostituta”), Monsueto Menezes (“Meu Anjo”), Milton Nascimento (“Dim Dum”), Gilberto Sabóia (“Banqueiro”) e José Roberto Tavares (“Aurélio”).
O filme foi saudado pelo The New York Times como um “western tropical”, que misturava o japonês Akira Kurosawa com o italiano Sérgio Leone no sul da Bahia, tendo a temática do cacau na saga descrita por Jorge Amado como base do roteiro do próprio Guerra, Paulo José e Flávio Império. Ao lado do diretor, Sérgio Sanz fez uma edição fascinante. Audacioso no plano estético e político, a alegoria poética retratava de forma antropológica a vida nacional dos anos 1930, num ambiente rural que culturalmente permanecia o mesmo, mas, economicamente, já estava em mudança. Sua força vital e mágica parecia surgir do nada, como acontece hoje nas periferias e favelas. O protagonista é um personagem fantasmagórico, interpretado por Othon Bastos, ator de Deus e o diabo na Terra do Sol (1964) e São Bernardo (1972).
O Homem Sem Nome (Othon Bastos), depois de levar sete balas no corpo e não morrer numa chacina, se intromete entre dois clãs de coronéis que lutam pelo poder, ou seja, pela terra e pelo cacau, em cenas memoráveis. A câmara de Dib Lufti, num determinado plano-sequência, percorre lentamente um grupo enorme de guerrilheiros, com armas, sentados nos degraus a toda a volta da praça principal da cidade, à espera do grande confronto. Na cena seguinte, um plano muito aberto mostra toda essa gente agonizando na praça ensanguentada. O Homem Sem Nome fracassa.
A mesma alegoria poderia ser transposta para o cotidiano da vida urbana do presente, pois o seu material humano, do ponto de vista cultural e político, continua presente. A violência, a disputa de território, o banditismo, as oligarquias, a cultura do velho coronelismo, todos os elementos do roteiro de Os Deuses e os mortos estão vivíssimos não só nos grotões, mas nas grandes metrópoles.
Ruy Guerra sabia o que estava fazendo. “Esse filme é talvez o passo mais importante desde Deus e o diabo na Terra do Sol para definir uma realidade cultural, religiosa e humana do brasileiro, que não depende apenas do situacionismo econômico e histórico (…) O Homem, interpretado por Othon Bastos, está infinitamente ligado com o fato de ele não ser caracterizado em termos de passado, presente ou futuro, o que ‘desindividualiza’, o torna atemporal e alegórico; o desejo impessoal do poder”, explicou à época.
Ajuste de contas
A alegoria com a nossa política também seria perfeita, basta ler as notícias dos jornais. O que não falta são candidatos a deuses e a mortos-vivos. Vicejam num ambiente de iniquidade social, desesperança, violência e crise ética. As narrativas desses atores funcionam como alegorias de um passado recente que foi atropelado pela globalização e pela Operação Lava-Jato, mas continua a assombrar o presente. Um ex-governador cordato e querido pelos pares tem a prisão decretada, o ex-líder de toda uma geração rebelde volta à cadeia, um ex-presidente preso insiste numa candidatura ficha-suja. Ministros, senadores, deputados, governadores compõem um cortejo de mortos-vivos, surgem candidatos a deuses.
Fora desse universo, o aparelho de segurança e o crime organizado se enfrentam, com baixas de ambos os lados. E a morte espreita o cidadão a cada esquina, no asfalto ou no morro, na noite escura ou à plena luz do dia, enquanto a vida segue milagrosamente o seu curso, ainda que a esperança não tenha sido reinventada, como nas cenas de Os deuses e os mortos. As instituições do país ainda funcionam, a economia resiste maltratada. Na democracia, acreditem, o povo astucia sua própria saída, que sempre aparece nos processos eleitorais, mesmo quando tudo parece dominado. Em algum momento, após a Copa do Mundo, haverá um reencontro entre a política e os cidadãos. E um democrático ajuste de contas.
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Luiz Carlos Azedo: A crise venezuelana
Engana-se quem pensa que o regime bolivariano cairá num passe de mágica. Não há a menor chance disso acontecer enquanto os militares venezuelanos apoiarem Maduro
Integrante do Grupo de Lima, formado por 14 países das Américas, o Brasil anunciou ontem que não reconhece a legitimidade das eleições presidenciais na Venezuela, em que Nicolás Maduro foi reeleito presidente. Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Guiana, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Peru e Santa Lúcia também condenaram a reeleição. Cuba, Bolívia, Rússia e Bolívia apoiaram a recondução de Maduro; a China foi pelo mesmo caminho, enquanto os Estados Unidos anunciaram a adoção de duras sanções econômicas.
As eleições venezuelanas foram marcadas por dois tipos de oposição: o não comparecimento às urnas de 54% do eleitorado (8,6 milhões de eleitores) e uma das mais baixas votações do chavismo, 5,8 milhões, ou seja, 67% dos votos. Também emergiu das urnas uma dissidência do chavismo, que reiterou aquilo que a oposição já antevia ao boicotar o pleito: houve uma fraude escandalosa nas urnas. Os candidatos derrotados, Henri Falcón, que obteve 21% dos votos, e Javier Bertucci, com 11%, ambos chavistas, não reconhecem o resultado e pedem novas eleições.
Em reação ao pleito, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, proibiu o envolvimento de cidadãos norte-americanos em negociações de títulos da dívida da Venezuela e de outros ativos. Segunda a Casa Branca, o objetivo é impedir que oficiais venezuelanos corruptos façam negócios e lavem dinheiro de propina. Desde maio, 62 pessoas e 15 entidades venezuelanas estão com bens congelados e proibidos de fazer negócios nos Estados Unidos, que consomem um terço do petróleo da Venezuela. As petroleiras americanas não podem mais negociar dívidas públicas do país ou comprar petros, a criptomoeda criada por Caracas.
Entretanto, a China ainda aposta alto no regime de Maduro. Recentemente rebateu as acusações do Tesouro dos Estados Unidos de que estaria ajudando o governo venezuelano com investimentos suspeitos envolvendo empréstimos em troca de petróleo. Em Pequim, o porta-voz da chancelaria chinesa, Geng Shuang, destacou que o país auxiliou a construção de mais de 10 mil casas de baixo custo, a geração de eletricidade e o gasto com eletrodomésticos para três milhões de lares venezuelanos de baixa renda.
A Venezuela vive uma crise humanitária, com mais de um milhão de venezuelanos em fuga pelas fronteiras com a Colômbia e o Brasil. A situação tende a se agravar com as novas sanções. Mas se engana quem pensa que o regime bolivariano cairá num passe de mágica. Não há a menor chance disso acontecer enquanto os militares venezuelanos apoiarem Maduro. A única tentativa de rebelião militar, no Forte Paramacay, no ano passado, foi um fracasso. A probabilidade maior é o regime endurecer ainda mais, expurgando a oposição interna, que passará a ser tratada como a antiga oposição liberal e social-democrata. Do ponto de vista das relações internacionais, Maduro ainda tem aliados poderosos, tanto do ponto de vista econômico quanto militar.
Armas
Militarmente, a Venezuela aparece em 45º lugar no mundo. Na América Latina, ocupa o sexto, atrás da Colômbia (40º), Peru (39º), Argentina (35º), México (34º) e o Brasil, que ocupa a 17ª posição do GFP (Global Firepower, compilado pelos Estados Unidos). Não existe nenhum risco de crise militar entre os países da região que possa resultar numa guerra com a Venezuela a curto prazo; na verdade, a tensão externa serve como biombo e pretexto para o endurecimento do regime, que já pode ser caracterizado como uma ditadura disfarçada.
O regime de Maduro não seria o que é hoje sem a passagem do coronel Hugo Chávez pela Presidência. Ele operou com destreza o alinhamento do alto-comando militar das Forças Armadas com seu projeto político, dando aos militares grande poder na economia, seja na gestão das empresas, seja no direcionamento dos negócios, principalmente petrolíferos. Além disso, modernizou o equipamento militar, com a aquisição de aviões, tanques e mísseis russos. Também formou uma milícia com 500 mil voluntários em todo o país, nos moldes cubanos, que pode ser mobilizada e prontamente armada pelo Exército.
Maior do que o risco de guerra com um país vizinho, que a Venezuela hoje não pode bancar sem entrar em completo colapso, a não ser que receba ajuda direta e maciça de Cuba, da Rússia ou da China, o que impensável sem uma escalada de tensões com os Estados Unidos, é a possibilidade de desestruturação progressiva de suas forças armadas, que já não têm condições de atender necessidades elementares. São cada vez mais frequentes os casos de militares venezuelanos doentes ou feridos que buscam socorro médico atravessando, sem se identificarem como tal, a fronteira com o Brasil. O maior problema são armas de mão e mísseis que podem ser transportados e lançados por um só homem, armamentos que podem ser vendidos ou contrabandeados por oficiais corruptos ou soldados em dificuldades financeiras para manter as respectivas famílias.
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Luiz Carlos Azedo: A desesperança
Até agora, ninguém se apresentou com um programa exequível que enfrente de forma combinada a crise fiscal e o combate às desigualdades
A cinco meses das eleições para a Presidência da República, a única certeza até agora é a mais importante de todas: o calendário eleitoral está mantido. Não é pouca coisa, num país cuja história é marcada por golpes de Estado como saída para crises. O que preocupa, entretanto, são os vetores de crise que perturbam a economia e a ausência de um projeto novo para um país que se atrasou na globalização.
O primeiro vetor é um cenário internacional em mudança, em razão da política econômica de Donald Trump, cumprindo à risca promessas de campanha que pareciam apenas peças de retórica, entre as quais a guerra comercial com a China. A expectativa de elevação dos juros nos Estados Unidos inverte a direção dos fluxos de investimentos no mundo, que deixam os países emergentes em busca de negócios naquela que ainda é a maior economia do mundo, e agora funciona como uma força centrípeta em relação à periferia. O Brasil já está sentindo o peso dessa variável, agravada por problemas em relação às nossas exportações, principalmente de frango e carne bovina, inclusive em relação ao outro polo da economia mundial, a China. A alta do dólar tem muito a ver com isso.
O segundo vetor é a nossa atividade econômica abaixo da expectativa, com redução das previsões oficiais de crescimento de 3% para cerca de 2,3%. O mercado já trabalha com um PIB de 1,5% a 2,5%, previsão corroborada pelo Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br), que teve queda de 0,13% no primeiro trimestre deste ano em relação ao último trimestre de 2017. Com isso, o PIB do primeiro trimestre deve ficar na casa de 0,2% em comparação com igual período do ano anterior.
Não por acaso, porém, o BC interrompeu a redução dos juros, que haviam baixado de 14,25% ao ano em outubro de 2016 para os atuais 6,5%. O dólar fechou a semana a R$ 3,74, mesmo com o governo intervindo no câmbio, o que eleva as projeções de inflação para R$ 3,5%. Para quem viajar, o dólar já está quase a R$ 3,95. As expectativas de inflação para este ano, segundo a pesquisa Focus do BC, continuam em torno de 3,5%. O comunicado do Copom ressaltou que no cenário com juros constantes a 6,5% ao ano e a taxa de câmbio constante a R$ 3,60 por dólar, porém, as projeções de inflação sobem para cerca de 4% neste ano e em 2019. A meta de inflação deste ano é um IPCA de 4,5% com margem de tolerância de 1,5 ponto percentual, ou seja, piso de 3% e teto de 6%. no país. Havia expectativa de que se mantivesse em torno do piso; agora, o cenário já é outro.
Há um terceiro vetor de crise, que está tendo grande impacto entre os agentes econômicos: a falta de blindagem da política fiscal, mesmo com aprovação do Teto de Gastos, por causa do grande deficit fiscal da União. Com a grande contribuição do Congresso, que abdicou da agenda das reformas, o enfraquecimento contínuo do governo Temer, as renúncias fiscais e a elevação dos gastos públicos pesam muito na balança. Ainda mais com o desgaste provocado pela crise ética, esses vetores somente poderiam ser neutralizados se houvesse um certo consenso entre os candidatos à Presidência em relação à necessidade de redução dos gastos públicos. Isso não acontece. Segundo o economista Arminio Fraga, o próximo presidente terá de fazer um ajuste fiscal de 5% do PIB. Num cenário eleitoral no qual a elite política enfrenta grande desgaste moral, uma proposta como essa não tem nenhum apelo eleitoral, a não ser que viesse acompanhada de um plano de metas robusto.
Candidatos
Até agora, ninguém se apresentou com um programa exequível que enfrente de forma combinada a crise fiscal e o combate às desigualdades. Candidatos que defendem o ajuste fiscal não apresentam um programa capaz de combatê-las. Em contrapartida, os que tratam das questões sociais não estão nem aí para a redução dos gastos do governo, mantendo uma narrativa populista. O resultado é a incerteza em relação à economia, que vinha numa trajetória de gradativo crescimento. Diante dessa situação, a reação dos agentes econômicos é de cautela quanto aos investimentos; e do eleitor, de indiferença em relação ao pleito. Será assim até depois da Copa do Mundo.
O lado mais dramático da situação é um exército de 25 milhões de desempregados, dos quais 11 milhões são jovens nem-nem (não estudam nem trabalham), sem perspectivas a curto prazo, seja porque a economia formal não gera empregos suficientes, seja porque a baixa atividade econômica também não permite a expansão do empreendedorismo. Além disso, nos setores mais dinâmicos, o surgimento de vagas demanda níveis de conhecimento técnico que aprofundam as desigualdades.
Num universo de 144 milhões de eleitores, essa massa de desempregados se deixa seduzir facilmente por propostas populistas e salvadores da pátria. Os eleitores de classe média, cada vez mais divorciados da política e suas instituições, também dão sinais de que não sabem ainda o rumo que vão tomar. Há um mar de desesperança, ainda mais porque a crise ética quebrou a confiança na elite política do país de forma generalizada entre as parcelas mais instruídas da população. No fundo, é preciso reinventar a esperança.
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Luiz Carlos Azedo: Mais do mesmo na política
O problema é que “mercado não ganha eleição”. É preciso construir um discurso capaz de galvanizar a opinião pública
O pré-candidato do PSDB à Presidência da República, Geraldo Alckmin, anunciou ontem que os economistas Edmar Bacha e Pérsio Arida, dois dos criadores do Plano Real, formarão sua equipe econômica. Bacha, que é um dos diretores da Casa das Garças, vai cuidar da política de comércio exterior. Também foram anunciados os economistas José Roberto Mendonça de Barros, que foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda entre 1995 e 1998, e seu filho, Alexandre Mendonça de Barros.
Num momento em que a economia dá sinais de estancamento por causa da crise fiscal e da nova situação internacional provocada pela política econômica de Donald Trump nos Estados Unidos (guerra comercial com a China e elevação dos juros pelo banco central norte-americano), o anúncio de Alckmin teve por objetivo criar um fato político que reaproxime os agentes econômicos de sua candidatura, que enfrenta grandes dificuldades para decolar. Para o mercado, não deixa de ser significativa a iniciativa, uma vez que o afrouxamento da política fiscal pelo governo Temer já comprometeu as expectativas de crescimento acima dos 3% do PIB em 2018.
O problema, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso gosta de dizer, é que “mercado não ganha eleição”. É preciso construir um discurso capaz de galvanizar a opinião pública, o que o candidato tucano não vem conseguindo. Outro problema é o isolamento político de Alckmin. No mesmo dia em que anunciou o miolo de sua equipe econômica, o presidente do MDB, Romero Jucá (RR), revelou que havia conversado com o presidente Michel Temer sobre as vantagens de anunciar logo a candidatura do ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles à Presidência da República, pelo MDB. Segundo ele, como não há um candidato de centro que se destaque, o ex-ministro da Fazenda poderia começar a ocupar esse espaço.
Nos bastidores do Palácio do Planalto, o projeto de reeleição de Michel Temer já foi sepultado, mas o de uma candidatura própria do MDB ainda não, apesar das resistências regionais. O documento “Encontro com o Futuro”, com um balanço dos dois anos de governo, na verdade, é uma plataforma política para as eleições, com propostas de políticas públicas e continuidade das reformas, inclusive da Previdência. Meirelles está entusiasmado com a possibilidade de ser candidato, uma vez que as relações entre Alckmin e Temer continuam estremecidas. Para setores do PSDB, porém, o ex-ministro da Fazenda seria o vice ideal do tucano paulista.
Lula e Dirceu
Para os petistas, ainda não caiu a ficha de que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está fora da eleição e continuará preso, diante dos sucessivos recursos negados pela Justiça. Ontem, mais um sinal de que a prisão será mantida foi dado pelo juiz Haroldo Nader, da 6ª Vara Federal de Campinas, que decidiu suspender os benefícios do ex-presidente da República, ou seja, quatro seguranças, dois motoristas e dois assessores. Ação popular que alegava não haver razão para o petista contar com os benefícios na carceragem da Polícia Federal em Curitiba foi deferida pelo magistrado.
Para Nader, a Constituição prevê a suspensão de atos com custos para o patrimônio da União em caso de “inexistência dos motivos”. Lula não precisaria de nenhum dos três tipos de funcionários aos quais tem direito, estando preso e cumprindo “pena longa”. Também não necessita de segurança adicional, uma vez “sob custódia permanente do Estado, em sala individual (fato notório), ou seja, sob proteção da Polícia Federal”. Quanto ao motorista, argumentou que o ex-presidente “tem o direito de locomoção restrito ao prédio público da Polícia Federal”. Nader também considera “sem qualquer justificativa razoável a manutenção de assessores gerais a quem está detido, apartado dos afazeres normais, atividade política, profissional e até mesmo social”.
A decisão do juiz não deixa de ser uma resposta à forma como Lula está se comportando na prisão, em sintonia com a presidente do PT, senadora Gleisi Hoffmann (PR), que armou um acampamento em Curitiba para prestar solidariedade ao ex-presidente. A intensa articulação política feita pelo PT para caracterizar a prisão de Lula como um “ato de exceção”, inclusive no exterior, faz parte da narrativa de vitimização do petista. Do ponto de vista da sua defesa jurídica, porém, é um tremendo fracasso. Lula está perdendo todos os recursos.
Outro sinal de que o tempo fechou para os petistas foi a decisão de ontem do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com sede em Porto Alegre, que negou, por unanimidade, o último recurso do ex-ministro José Dirceu (PT) contra uma condenação na Operação Lava-Jato. José Dirceu foi considerado culpado por ter promovido vantagens indevidas à empreiteira Engevix em ao menos quatro contratos com a Petrobras, que lhe renderam pagamentos de propina, mas nega a acusação. Amigos sugeriram ao petista procurar a embaixada da Bolívia, Venezuela ou Cuba e pedir asilo político, mas o ex-ministro tem dito que prefere cumprir a pena com bom comportamento e brigar na Justiça para reduzi-la. Dirceu completou 72 anos em março passado.
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Luiz Carlos Azedo: Pintados para a guerra
A decisão de Fachin amplia o foco da Lava-Jato em relação ao MDB, que estava concentrado no Palácio do Planalto, mas agora chegou à cúpula do Senado
O ministro Luiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), relator da Operação Lava-Jato, determinou a investigação dos repasses milionários de recursos da J&F para políticos do MDB, principalmente do Norte e Nordeste, na eleição de 2014, ou seja, na reeleição da presidente Dilma Rousseff, irrigando com recursos financeiros seus palanques regionais. São os mesmos políticos “golpistas” que depois apoiaram o impeachment da petista, mas já se reaproximaram do PT nas coligações regionais dos seus respectivos estados. Os repasses somam mais de R$ 40 milhões.
Segundo a procuradora-geral, Raquel Dodge, as investigações serão feitas com base nas delações premiadas do ex-senador Sérgio Machado, que presidiu a Transpetro, e de Ricardo Saud, ex-executivo da J&F, e miram os senadores Renan Calheiros (AL), Jader Barbalho (PA), Romero Jucá (RR), Eunício Oliveira (CE), Vital do Rêgo (PB), hoje ministro do Tribunal de Contas da União, Eduardo Braga (AM), Edison Lobão (MA), Valdir Raupp (RO), Dario Bergher (SC) e Roberto Requião (PR). Também serão investigados o ex-ministro da Integração Helder Barbalho (PA), o ex-ministro do Turismo Henrique Alves (RN) e o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, que teria determinado os repasses da J&F, a pedido do PT.
A decisão de Fachin amplia o foco da Lava-Jato em relação ao MDB, que estava concentrado no Palácio do Planalto, mas agora chegou à cúpula do Senado, hoje presidido pelo senador Eunício Oliveira. A Casa é um bunker para a legenda, cujo poder no Norte e Nordeste do país deriva muito dessa posição de força em relação ao Executivo, qualquer que seja o presidente da República. Nem mesmo o presidente Michel Temer tem ascendência sobre esse grupo de senadores, que é muito unido. A abertura do inquérito, às vésperas de uma eleição em que os envolvidos disputam a recondução ao Senado ou pretendem concorrer aos governos locais, fragiliza-os eleitoralmente e deve provocar alguma reação política contra o ministério Público Federal (MPF), em linha com a Câmara.
A mais provável retaliação será a tentativa de acabar com o foro privilegiado para juízes e procuradores, restringindo-o aos presidentes dos três poderes da República. Já existe uma articulação para isso na Câmara, que deve ganhar força com o engajamento dos senadores do MDB. Eles influenciam outras bancadas e, também, os deputados federais a eles ligados. A legenda funciona como uma federação de caciques regionais, que operam com maestria a política nos estados. A Lava-Jato é outro alvo desses senadores, que já tentaram inclusive retirar as garantias constitucionais que protegem os juízes em relação às suas sentenças. São todos políticos muito experientes, com grande capacidade de articulação e sobreviventes de várias crises políticas nacionais. Destacam-se, nesse aspecto, Renan Calheiros e Jader Barbalho, que já presidiram o Senado, e Romero Jucá, atual presidente da legenda, que foi líder dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Hoje, é o líder do governo Temer.
Lava-Jato
Há duas polêmicas envolvidas neste caso. A primeira é sobre o foro adequado, já que, no último dia 3, o Supremo decidiu que deputados federais e senadores só terão direito ao foro privilegiado em casos de crimes cometidos durante o mandato e em função da atividade parlamentar. Nesse caso, o Ministério Público argumenta que “há razão suficiente para, neste momento, reconhecer que os fatos ocorridos denotam especial interligação nas condutas atribuídas a parlamentares federais e aos demais envolvidos”. A segunda tem a ver com o fato de que as doações da J&F nas eleições de 2014 precisam ser caracterizadas, pelas investigações, como “solicitações de vantagens indevidas pelos agentes políticos, antes de serem definitivamente entregues, dependiam de prévios interlóquios entre o ex-executivo Joesley Batista e Guido Mantega, ministro da Fazenda à época dos fatos”.
Esses temas vão gerar grandes polêmicas no Supremo Tribunal Federal. De certa forma, o fim das doações privadas de pessoas jurídicas, determinada pela Corte, passou uma régua nesse assunto, mas o passado não pode ser revogado e a linha divisória entre doações legais e lavagem de dinheiro de propina pelos partidos ainda não foi traçada. Há depoimentos de testemunhas, delações premiadas e o fluxo financeiro das transações investigadas, mas a interpretação do Ministério Público Federal precisa ser aceita pelo Supremo, a quem caberá separar o joio do trigo. Ou seja, haverá uma longa batalha jurídica. No plano eleitoral, porém, o desastre é imediato, pois a Polícia Federal terá 60 dias para concluir as investigações e isso significa uma agenda muito negativa às vésperas das eleições.
Não é à toa que os caciques do MDB estão pintados para a guerra. As declarações dos principais investigados dão bem o tom da reação, na qual todos têm uma tribuna livre no Senado para se defender, a começar pelo presidente da Casa: “A narrativa dos delatores é falsa e caluniosa”, disse Eunício Oliveira, que negou ter recebido doações eleitorais de Sérgio Machado, “seu adversário político histórico”, ou do Partido dos Trabalhadores. Jader Barbalho chutou o balde: “Desafio esse marginal internacional, dono da JBS, a provar, de qualquer forma, que eu recebi algum dinheiro dele, por doação oficial ou não”. Todos argumentam que receberam doações legais, devidamente declaradas à Justiça Eleitoral.
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Luiz Carlos Azedo: Uma vírgula
Doa a quem doer, o combate à corrupção pela Lava-Jato se tornou uma prioridade para a sociedade, como foi a luta contra a inflação no Plano Real
Quando a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) completou 100 anos, em 7 de abril de 2008, lançou uma campanha em parceria com o Grupo ABC que tinha a “vírgula” como protagonista. Com produção da agência África, de Nizan Guanaes, e narração do ator Matheus Nachtergaele, a campanha fez enorme sucesso: “Vírgula pode ser uma pausa… Ou não. Não, espere. Não espere… Ela pode sumir com seu dinheiro. 23,4. 2,34. Pode criar heróis… Isso só, ele resolve. Isso só ele resolve. Ela pode ser a solução. Vamos perder, nada foi resolvido. Vamos perder nada, foi resolvido. A vírgula muda uma opinião. Não queremos saber. Não, queremos saber. A vírgula pode condenar ou salvar. Não tenha clemência! Não, tenha clemência! Uma vírgula muda tudo. ABI: 100 anos lutando para que ninguém mude uma vírgula da sua informação.”
O presidente Michel Temer é a nova vítima da vírgula. A peça antológica, que virou case nas escolas de propaganda e marketing, foi ignorada pelo Palácio do Planalto, ao lançar o slogan comemorativo dos 24 meses de seu governo: “O Brasil voltou, 20 anos em 2”, em tempos de fake news, virou um tremendo tiro no pé, porque basta retirar a vírgula para mudar radicalmente o sentido da frase. O que era pra ser uma afirmação das realizações de sua administração virou objeto de piada. É óbvio que Temer não passou recibo da mancada, ao fazer um balanço de suas realizações, mas o assunto mais comentado no Palácio do Planalto ontem era a danada da vírgula.
Temer forçou a barra ao comparar seu governo com o de Juscelino Kubitschek, o construtor de Brasília, cujo slogan de governo foi “50 anos em 5”. O Plano de Metas de JK era um projeto de desenvolvimento nacional com 31 objetivos, um dos quais a transferência da capital federal. Baseava-se em estudos realizados pela Comissão Mista Brasil-Estados Unidos entre os anos de 1951 e 1953, cuja missão foi identificar os pontos cruciais de estagnação da economia brasileira que inviabilizavam o crescimento econômico do país em um viés capitalista e liberal.
Para promover “50 anos de progresso em 5 anos de realizações”, Juscelino escolheu cinco setores: energia, transportes, indústrias de base, alimentação e educação. Os três primeiros receberam 93% dos recursos, e educação e alimentação contaram apenas com 7%. Houve crescimento de 100% na indústria de base nacional, mas também um grande desequilíbrio monetário. Em contrapartida, o país esbanjou otimismo, num ambiente de liberdade, sem estado de sítio nem censura à imprensa, apesar da guerra fria.
O saldo de realizações do governo JK foi positivo, mas nem por isso ele deixou de ser atacado pela esquerda, após a renúncia de seu sucessor, Jânio Quadros, e a posse do trabalhista João Goulart, que acabou deposto por um golpe militar, em 1964. Liberal conservador, o PSD de Juscelino, Amaral Peixoto e Tancredo Neves é que dava equilíbrio de centro-esquerda à aliança com trabalhistas e comunistas que garantiu a posse de Jango, que logo se rompeu.
Juscelino era considerado entreguista pela esquerda e sua política de conciliação, uma ameaça de retrocesso, caso voltasse ao poder em 1965. Isso jogou o ex-presidente da República no colo das forças que depuseram João Goulart; quando se arrependeu do apoio aos militares, que suspenderam as eleições presidenciais, já era tarde: foi cassado e obrigado a se exilar. Morreu num desastre de automóvel, em 1976.
Futebol e política
Outra mancada foi misturar o velho slogan reciclado com o grito das torcidas de futebol em “O Brasil voltou”, uma alusão à entrada em campo de jogadores que estavam contundidos ou foram recontratados por suas equipes. Há certo mito em relação ao impacto do desempenho da seleção brasileira em copas do mundo nos anos de eleição. Isso vem da Copa de 1970, no México, quando o Brasil foi tricampeão e a Arena, partido governista do regime militar, obteve uma esmagadora vitória eleitoral. O slogan “Pra frente, Brasil” fez enorme sucesso àquela época, na qual o país vivia a euforia provocada pelas altas de taxas de crescimento do chamado “milagre brasileiro”, acima de 10%. Tanto que na Copa do Mundo de 2014, o traumático vexame da seleção, que perdeu por 7 a 1 para a Alemanha, não impediu a reeleição da presidente Dilma Rousseff.
Não faltam os “causos” de insucesso em relação à mistura de futebol com política. No antigo estado do Rio de Janeiro, um dos mais conhecidos era o da entrega de uniformes completos para um dos times de Niterói, pelo então candidato a governador do PSD, Getúlio de Moura. Depois que começou a partida, a charanga da torcida atacou: “Roberto Silveira, deu camisa e deu chuteira!”. O político trabalhista é que se elegeu governador, mas morreu precocemente num desastre de helicóptero, em 1961.
Voltando ao tema original, há que se reconhecer: diante da recessão que herdou de Dilma Rousseff, o presidente Temer realmente recolocou a economia do país nos trilhos, com o controle da inflação, a redução dos juros e a retomada do crescimento. Mas não resolveu o problema fiscal, porque a reforma da Previdência não foi aprovada, e o governo continua transbordando a Esplanada dos Ministérios. O maior problema do governo, porém, não é nem o desemprego. É a crise ética. Quem quiser que se iluda, doa a quem doer, o combate à corrupção se tornou uma prioridade para a sociedade, como foi a luta contra a inflação no Plano Real.
Vírgula – Campanha dos 100 anos da ABI
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Luiz Carlos Azedo: Ossos da abertura
Durante os governos Lula e Dilma, a Comissão de Verdade teve oportunidade de passar tudo a limpo, mas não revirou os porões do regime militar
A divulgação pelo pesquisador Matias Specktor, da Fundação Getulio Vargas (FGV), de memorando da CIA sobre reunião de 30 de março de 1974, entre o presidente Ernesto Geisel e três subordinados dos órgãos de segurança do Estado (generais Milton Tavares de Souza, Confúcio Danton de Paula Avelino, respectivamente o chefe que sai e o que entra do Centro de Informações do Exército (CIE), e João Baptista Figueiredo, chefe do SNI) reabriu o debate sobre a anistia na opinião pública.
O documento teve grande repercussão no Brasil e no exterior. “Desconstrói” a imagem do general Geisel, o presidente militar que ampliou a estatização, apostou na exploração de petróleo em alto mar, criou o Proálcool, assinou o acordo nuclear com a Alemanha e reconheceu o governo de Agostinho Neto (MPLA), em Angola, até mesmo antes de a União Soviética fazê-lo. A “distensão” de Geisel permitiu a espetacular vitória do antigo MDB nas eleições de novembro de 1974, quando a oposição renasceu das cinzas, depois do fiasco eleitoral de 1970, momento em que a Arena, o partido do regime, venceu as eleições de ponta a ponta, menos no Rio de Janeiro. Em resposta, Geisel mudou as regras do jogo eleitoral com o Pacote de Abril de 1977, que criou o “senador biônico”, mas nem assim evitou nova derrota acachapante da Arena no pleito de 1978.
Àquela época, qualquer militante de esquerda engajado numa das organizações de oposição ao regime sabia que havia uma política de extermínio de líderes e dirigentes políticos da oposição, estivessem envolvidos com a luta armada ou não. O alto clero católico e a cúpula do regime militar, também, tanto que criaram uma comissão bipartite para tratar das violações de direitos humanos e dos sequestros praticados pelos órgãos de segurança, encabeçada pelo arcebispo do Rio de Janeiro, cardeal Dom Eugênio Salles, e pelo general Antônio Carlos Murici, católico praticante. A comissão teve atuação discreta, mas cumpriu um papel relevante, salvando vidas.
O documento sobre a reunião é horripilante, mostra que o general Milton detalhou o trabalho do CIE durante o governo Médici, revelou a execução de 104 pessoas pelo CIE nos dois anos anteriores. Figueiredo apoiou e insistiu em sua continuidade. Geisel disse que pensaria sobre o assunto no fim de semana. No dia 1ª de abril, disse a Figueiredo para continuar com a política. Relatório da Comissão Nacional da Verdade constatou que 401 pessoas foram mortas ou desapareceram nos 21 anos de ditadura (1964-1985), a maioria no governo Emílio Médici (1969-1974). Já nos governos Geisel e Figueiredo morreram ou desapareceram 89 pessoas (1/4 do total desde o início do regime).
O jornalista Eumano Silva, que pesquisa a atuação dos órgãos de segurança durante o regime militar, pelo Twitter, destaca o impacto imediato da decisão: em 3 de abril de 1974, ou seja, dois dias depois da reunião, foram presos os dirigentes do Comitê Central do PCB João Massena Mello, Luiz Inácio Maranhão Filho e Walter de Souza Lima. Massena era metalúrgico e ex-deputado estadual cassado da antiga Guanabara, havia acabado de cumprir dois anos de prisão. Jornalista e professor universitário, Maranhão era ex-deputado estadual do Rio Grande do Norte, atuava junto ao clero católico, era amigo e interlocutor de Eugênio Salles. Ribeiro era jornalista e ex-tenente do Exército, expulso da Força por se opor ao envio de tropas brasileiras à guerra da Coreia; trabalhou com a equipe de Oscar Niemeyer na Terracap, na construção de Brasília, até o golpe de 1964. Era responsável pela montagem dos “aparelhos” da direção do PCB. Os três foram executados, seus corpos nunca foram localizados, como outros da lista.
Anistia recíproca
Diante dessas revelações estarrecedoras, o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, que presidiu a Comissão da Verdade em 2013, cobra do Supremo Tribunal Federal (STF) a rediscussão da anistia dada aos agentes da ditadura: “A tortura era uma política de Estado, comandada pela Presidência, e Geisel foi coautor dos homicídios praticados”, argumenta, para concluir: “Neste momento em que corremos o risco de voltarmos à ditadura pelo voto, é importante demonstrar o que ela foi no Brasil”.
Esse é o ponto. A anistia recíproca foi a moeda de troca para a democratização, numa longa transição pacífica, iniciada em 1979 e somente concluída nas eleições diretas de 1989. Na Espanha, o acordo incluiu a restauração da Monarquia; na África do Sul, foi uma das condições para o fim do apartheid e a entrega do poder a Mandela. Aprovada pelo Congresso, fazia parte da estratégia de abertura do regime, que pretendia se institucionalizar via colégio eleitoral. À época, políticos exilados, como Leonel Brizola (PDT), Miguel Arraes, Luiz Carlos Prestes e Hebert de Souza (Betinho), o irmão do Henfil, voltaram ao Brasil.
A abertura de Figueiredo possibilitou o surgimento de partidos, inclusive o PT, mas não a legalização do PCB e do PCdoB. Viabilizou a transição, cujo ponto de ruptura com o regime foi a eleição de Tancredo Neves, um político liberal e moderado, que morreu sem assumir. Não foi à toa que os militares envolvidos nos assassinatos e torturas exigiram a anistia: as ordens vieram da Presidência. Durante os governos Lula e Dilma, a Comissão de Verdade teve oportunidade de passar tudo isso a limpo, mas não revirou os porões do regime militar, nem mesmo em relação à identificação dos ossos do cemitério de Perus nem sobre a atuação dos infiltrados nas organizações de esquerda. Sem embargo de que toda verdade é bem-vinda, e as famílias merecem toda reparação, por que mexer com a anistia recíproca?
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