Nas entrelinhas

Luiz Carlos Azedo: O bom e o ruim

“O Brasil vive sob o signo do maniqueísmo. Entretanto, os grandes problemas não decorrem das ideologias, mas da realidade objetiva do país”

Maniqueu, filósofo cristão do século 3, também conhecido como Manes ou Mani, dividia o mundo simplesmente entre Bom, ou Deus, e Mau, ou o Diabo. Ganhou influência no mundo greco-romano a partir das antigas Babilônia e Pérsia, sincretizando ideias do hinduísmo, do budismo, do judaísmo e do cristianismo, depois de viajar pela Índia, China e Tibete. Foi perseguido pelos sacerdotes do zoroastrismo, os Magos, durante o reinado de Vararanes 1º (274–277). Preso e condenado como herege, foi esfolado vivo: sua carne foi atirada ao fogo e a pele, crucificada em praça pública, na cidade de Bendosabora, no atual Iraque.

Para Maniqueu, a luz e as trevas originaram o mundo material, essencialmente mau. Por isso, os “pais da Justiça” vieram à Terra redimir os homens, mas a mensagem deles foi corrompida. Maniqueu pretendeu completar a missão deles, como o salvador prometido por Cristo, que detinha os segredos para a purificação da luz, destinados apenas àqueles que tinham uma vida ascética. No dualismo maniqueísta, a matéria é intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom. Com o tempo, maniqueísta passou a ser um adjetivo para toda doutrina fundada nos dois princípios opostos do bem e do mal.

Seu mais famoso discípulo foi Agostinho de Hipona, Santo Agostinho, que fundou as bases da filosofia adotada pela Igreja Católica, depois de romper com o maniqueísmo. Até então, os filósofos cristãos defendiam que o fundamento e a essência da vida deveriam ser a fé. A partir dela, os homens tomariam decisões importantes em suas vidas e realizariam os julgamentos morais. A razão regia decisões menores e rotineiras da vida cotidiana. Profundo conhecedor de diversas religiões, porém, Agostinho buscou na Razão a justificativa para a fé. Foi além da própria fé para levar os descrentes a considerá-la. Por exemplo, defendeu o livre-arbítrio como uma graça divina. De fato, liberdade não combina com maniqueísmo.

Mais médicos
Desde a campanha eleitoral, o Brasil vive sob o signo do maniqueísmo; talvez tenha sido determinante do resultado das eleições, tanto para bolsonaristas como para petistas. Esse maniqueísmo vem desde o “nós contra eles” da reeleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2006, e contamina toda o debate político. Entretanto, os grandes problemas nacionais, ao contrário do que muitos imaginam, não decorrem das ideologias, mas da realidade objetiva do país.

Exemplo de maniqueísmo é a discussão sobre o programa Mais Médicos, que está contaminada pela disputa eleitoral. O problema atinge 2.885 prefeituras, das quais em 1.575 municípios com menos de 20 mil habitantes. São 8.500 equipes de Saúde da Família que ficarão desfalcadas em 40 dias, em razão da decisão do governo cubano de repatriar esses profissionais, antes da posse do presidente eleito Jair Bolsonaro.

Bolsonaro sempre foi um crítico do programa. Diz que os médicos trabalham em regime de escravidão e que a maior parte do que deveriam receber vai para o governo cubano. Também questiona a qualificação dos médicos. A sua posição tem a ver com a narrativa da campanha eleitoral, ou seja, é uma promessa de campanha endossada pela maioria dos eleitores. A decisão cubana, obviamente, tem a ver com a nova política externa a ser implementada por Bolsonaro, cuja teologia é maniqueísta, se levarmos em conta os novos paradigmas do futuro ministro de Relações Exteriores, Ernesto Fraga Araújo. Essa é a parte ruim do caso Mais Médicos.

A parte boa, digamos assim, é que Bolsonaro mudou sua agenda dos 100 primeiros dias de governo, que naturalmente seria focada nas questões da segurança pública e da corrupção, além da Previdência e do corte de gastos. Com o fim da parceria com Cuba, a agenda da saúde pública caiu antecipadamente no colo de novo presidente da República, que precisa de um novo programa para enfrentar o problema. Uma das alternativas seria militarizar a contratação de médicos para atuar em locais remotos, pequenos municípios e periferia das grandes cidades, oferecendo serviço temporário nas Forças Armadas para médicos residentes e recém-formados , como acontece com os atletas olímpicos.

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Luiz Carlos Azedo: O banqueiro de Guedes

“Economistas liberais defendem a tese de que o ajuste deve ser imediato e profundo, para que a econmia possa se recuperar mais rapidamente. É uma aposta que nunca foi adotada”

Para quem tinha dúvidas, a indicação do economista Roberto Campos Neto, executivo do Santander, para comandar o Banco Central no governo Bolsonaro foi a confirmação de que o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, prepara a abertura do setor financeiro para que mais bancos estrangeiros possam operar no Brasil, como parte do choque liberal que pretende anunciar. Talvez seja a indicação mais simbólica da equipe, que incorporou alguns integrantes do atual governo, como Ivan Monteiro, na Petrobras, e Mansueto de Almeida, que deverá continuar na Secretaria do Tesouro, além da polêmica nomeação do ex-ministro Joaquim Levy para o BNDES. Como o sobrenome já diz, é neto do economista Roberto Campos, expoente do pensamento liberal no Brasil, que foi ministro do Planejamento no governo Castelo Branco.

Com 49 anos, formado em economia e com especialização em finanças pela Universidade da Califórnia, Campos Neto trabalhou no Banco Bozano Simonsen e na Caritas, antes de fazer carreira no Santander, onde atualmente ocupa a Tesouraria do banco. Embora a narrativa do novo ministro da Economia seja a favor da autonomia do Banco Central, com a fixação de mandatos para presidente e diretores da instituição não coincidentes, a indicação do economista reforça a interpretação de que Paulo Guedes exercerá rígido controle sobre o BC, que hoje é uma autarquia ligada ao Ministério da Fazenda, ainda que a independência do banco venha a ser aprovada.

A principal missão da autoridade monetária é o controle da inflação, tendo por base o sistema de metas. Quando as estimativas para a inflação estão em linha com as metas, o BC reduz os juros; quando estão acima da trajetória esperada, a taxa Selic é elevada. Outra atribuição do Banco Central é a política cambial, que executa por meio de intervenções no mercado, da oferta de contratos de “swap cambial”, a venda de dólares no mercado futuro, para segurar a alta da moeda. Sempre que ocorre ingerência política nas decisões sobre a taxa básica de juros, a Selic, e na supervisão do sistema financeiro, há reflexos diretos nos juros futuros e nas taxas bancárias. A redução a fórceps das taxas de juros, como no governo Dilma Rousseff, não funciona.

O maior problema de Guedes, entretanto, é o deficit fiscal da União e da maioria dos governos estaduais, cujo epicentro são os gastos com a folha de pagamentos e a Previdência. Economistas liberais defendem a tese de que o ajuste deve ser imediato e profundo, para que a econmia possa se recuperar mais rapidamente. É uma aposta que nunca foi adotada no Brasil desde a redemcratização. Desta vez, dependerá da disposição de Bolsonaro no sentido de enfrentar as corporações federais e os governos estaduais, forçando um ajuste que pode jogar sua popularidade no chão. Como o desemprego no Brasil é muito alto, em torno dos 13 milhões de trabalhadores que procuram colocação, a reação dos sindicatos de trabalhadores tende a ser insignificante, com exceção das entidades de funcionários públicos. Quebrar essa resistência é o maior desafio para aprovação da reforma da Previdência.

Estatais

Muitas coisas na esfera do próprio governo precisam ser resolvidas. As despesas com estatais deficitárias, por exemplo, aumentaram 125% entre 2009 e 2017, crescimento bem acima da inflação do período, de 69,9%. No total, os gastos com as empresas enquadradas nesse critério foram de R$ 67,9 bilhões. Algumas são importantes, como a Embrapa, de pesquisa agropecuária. Mas há coisas inexplicáveis, como a Empresa de Planejamento e Logística (EPL), que deveria cuidar do projeto do trem-bala ligando São Paulo ao Rio, herança do governo Dilma Rousseff.

Esse aumento de despesas tem relação direta com o número de funcionários, que passaram de 37,9 mil em 2009 e chegam a quase 73,5 mil, com salário médio mensal de R$ 13,4 mil. Essas empresas explicam parte do crescimento do deficit primário e da dívida bruta do país. Com patrimônio líquido de R$ 8,244 bilhões, têm perdas previstas de R$ 7,3 bilhões com ações cíveis, trabalhistas, administrativas, fiscais e tributárias. Entre as mais deficitárias, duas são consideradas “imexíveis” pelos militares: a INB, que detém monopólio da produção e comercialização de materiais nucleares, e a Imbel, que fabrica armas, munições e explosivos.

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Luiz Carlos Azedo: Deus é brasileiro

“Para Fraga Araújo, Itamaraty evitou a todo custo participar de blocos e preservou a capacidade de desenvolver uma política externa autônoma, mas precisa ir além disso”

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, anunciou que o diplomata Ernesto Henrique Fraga Araújo será o novo ministro das Relações Exteriores. Atual diretor do Departamento dos Estados Unidos, Canadá e Assuntos Interamericanos, nunca comandou uma embaixada; porém, como ministro de primeira classe e chefe de departamento, tem status de embaixador. Ao confirmar o nome em entrevista, depois de anunciá-lo pelo Twitter, Bolsonaro classificou o novo chanceler, que tem 29 anos de carreira, como “uma pessoa bastante experiente” e “intelectual brilhante”. Fraga tem 51 anos e disputou a posição com outros diplomatas de grande prestígio.

Fraga Araújo fez campanha eleitoral de rua para o presidente eleito. Sem falsa modéstia, disse que à frente do Itamaraty fará uma política “efetiva em função do interesse nacional”, tornando o Brasil um país “atuante”, “próspero” e “feliz”. Negou alinhamento automático com o governo dos Estados Unidos, tangenciando a tese que defende sobre a política externa brasileira, explicitada no artigo “Trump e o Ocidente”, publicado nos Cadernos de Política Exterior nº 6, do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, que fez a cabeça de Bolsonaro. Segundo Fraga Araújo, Trump propõe uma visão do Ocidente não baseada no capitalismo e na democracia liberal, mas na recuperação do passado simbólico, da história e da cultura das nações ocidentais.

“Avante, ó filhos de helenos,/ libertai a pátria,/ libertai vossos filhos,/ vossas mulheres,/ os templos de vossos deuses,/ os túmulos dos ancestrais,/ agora mais que nunca,/ lutai!”. Esse trecho do poema Os Persas, de Ésquilo, que exalta a batalha naval de Salamina, na qual os gregos derrotaram os invasores persas, em 480 a.C, assinala o marco fundador da primeira aliança do Ocidente. “A visão de Trump tem lastro em uma longa tradição intelectual e sentimental, que vai de Ésquilo a Oswald Spengler, e mostra o nacionalismo como indissociável da essência do Ocidente. Em seu centro, está não uma doutrina econômica e política, mas o anseio por Deus, o Deus que age na história. Não se trata tampouco de uma proposta de expansionismo ocidental, mas de um pan-nacionalismo. O Brasil necessita refletir e definir se faz parte desse Ocidente”, propõe o futuro chanceler.

Araújo critica o Iluminismo e o globalismo. Segundo ele, a Europa e os Estados Unidos viviam já fora da história, depois da história, num estado de espírito (ou falta de espírito) onde o passado é um território estranho. Toda a tradição liberal e revolucionária constituiu-se numa rejeição do passado, aos heróis, ao culto religioso e à família, destaca. Ao contrário, Trump, ao falar de alma, desafia frontalmente o homem pós-moderno, “que não tem alma, que tem apenas processos químicos ocorrendo aleatoriamente entre seus neurônios”.

Salvação
O Ocidente teria sido salvo pelos Estados Unidos: “Nestas últimas sete décadas não foram os europeus, mas os norte-americanos que preservaram o legado ocidental em seus principais pilares, não só militar e economicamente, não só institucional e politicamente, mas também na vida do espírito: a fé cristã morreu na Europa para todos os efeitos, mas viceja nos EUA (não penso apenas nos protestantes, penso também na Igreja Católica, vigorosa nos EUA, enfraquecida na Europa). O sentido de nação foi banido do mainstream cultural e social europeu, mas permanece central na vida americana. A própria cultura clássica é celebrada e vivenciada somente nos EUA como parte da própria herança, enquanto na Europa ela hoje se esgota na dimensão acadêmica, por um lado, e turística, por outro”, afirma.

Para Fraga Araújo, o Itamaraty evitou a todo custo participar de blocos e preservou a capacidade de desenvolver uma política externa autônoma, mas precisa ir além disso. “Queremos relacionar-nos com todos os blocos, mas sem fazer exclusivamente parte de nenhum deles. Vemos, então, com grande desconfiança a ideia de integrarmos um Ocidente que necessariamente exclui outras civilizações e que nos deixaria presos a um determinado bloco. Mas esse não alinhamento absoluto não deveria impedir o Brasil de alinhar-se consigo mesmo e com a própria essência de sua nacionalidade, se chegarmos à conclusão de que essa essência é ocidental.”

Fraga Araújo propõe o que chama de uma “metapolítica” externa, para que o Brasil possa se situar e atuar naquele “plano cultural espiritual em que, muito mais do que no plano do comércio ou da estratégia diplomático-militar, estão-se definindo os destinos do mundo”. Propõe, além de um ponto de vista geopolítico, uma “teopolítica”: “Não será o desenvolvimento nem a tecnologia nem a justiça social nem a cooperação nem a sustentabilidade nem os direitos humanos que nos salvarão. Somente um Deus poderá salvar-nos, dar-nos sentido — se Ele o quiser, se nós O quisermos”.

Com a narrativa sofisticada e “presbítera” de Fraga, Bolsonaro alinha o Itamaraty ao seu governo e exuma a política externa defendida por Juraci Magalhães (UDN), um dos líderes militares da Revolução de 1930 no Nordeste, que foi ex-interventor e, depois, governador eleito da Bahia. No governo do general Castelo Branco, o primeiro do regime militar, foi nomeado embaixador brasileiro nos Estados Unidos, quando pronunciou sua célebre frase: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Em seguida, ocupou sucessivamente as pastas da Justiça e das Relações Exteriores.

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Luiz Carlos Azedo: Balões de ensaio

“Em meio à confusão criada por declarações desencontradas e balões de ensaio, Bolsonaro está montando uma cadeia de comando, na qual seus ministros estão tendo liberdade para formar equipes”

Os jornalistas estão com dificuldades para fazer a cobertura do governo de transição de Jair Bolsonaro, que anuncia ministros pelo Twitter e tem prazer de “furar” a imprensa. Na equipe de transição, não há uma política de comunicação, cada um diz o que lhe dá na telha nas entrevistas. Falam o que não deveriam e, depois, reclamam dos repórteres que tentam arrancar uma informação. Ontem, por exemplo, o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, reclamava de uma repórter que insistiu tanto numa pergunta sobre o Mercosul que o futuro czar da economia acabou falando o que pensa realmente sobre o assunto. Acontece que a opinião do novo ministro não coincide com a dos empresários que realizam o comércio entre esses países e, muito menos com a do Itamaraty. A saída foi minimizar o que disse e pôr a culpa na jornalista. Não foi a primeira vez que isso aconteceu, nem será a última.

Paulo Guedes foi protagonista de uma decisão estratégica do novo governo, porém, que sinaliza como as coisas vão funcionar doravante: a indicação do ex-ministro Joaquim Levy para a presidência do BNDES. Depois do anúncio, o economista foi bombardeado pelos petistas e seus aliados, que o responsabilizam pelo fracasso do governo Dilma Rousseff, já que não podem responsabilizar a petista sem dar um tiro no próprio pé na narrativa do golpe. Também foi bombardeado por setores ligados ao próprio Bolsonaro, que saiu em defesa de Guedes: “Ele (Guedes) é que está bancando o nome Joaquim Levy. Ele tem um passado com a Dilma, sim, teve 10 meses, tem um passado com o governo Cabral, mas nada tem contra sua conduta profissional. Assim sendo, eu endosso Paulo Guedes. Esse é um ponto pacificado”, afirmou o presidente eleito, numa entrevista “quebra-queixo”, na entrada do condomínio onde mora, na Barra da Tijuca, logo após o anúncio.

Levy é um executivo polivalente, capaz de transitar do setor financeiro para a administração pública e vice-versa, sem se enrolar na quantidade de zeros. Foi ministro da Fazenda no segundo mandato da então presidente Dilma Rousseff, secretário do Tesouro Nacional no primeiro mandato do então presidente Lula e secretário da Fazenda do Rio de Janeiro no governo Sérgio Cabral (MDB). Diretor do Banco Mundial, em Washington (EUA), também foi diretor da administradora de investimentos Bradesco Asset Management. Tem a missão de abrir a “caixa-preta” do BNDES, leia-se, os empréstimos para os governos da América Latina e da África e os financiamentos camaradas aos “campeões nacionais” escolhidos a dedo pelo ex-presidente Lula, que está preso em Curitiba.

Sun Tzu
Muito mais importante, porém, foi a atitude de Bolsonaro ao bancar a indicação de Guedes. “Comandar muitos é o mesmo que comandar poucos. Tudo é uma questão de organização”, dizia o general chinês Sun Tzu, na Arte da Guerra. Em meio à confusão criada por declarações desencontradas e balões de ensaio, Bolsonaro está montando uma cadeia de comando, na qual seus ministros estão tendo liberdade para formar equipes e comandá-las. No caso da Economia, Guedes resolveu assimilar também alguns quadros do atual governo, em áreas sensíveis, onde não pode aterrissar sem trem de pouso, arrastando a barriga na Esplanada dos Ministérios. Manteve Ivan Monteiro no comando da Petrobras e guindou Mansueto de Almeida, o atual secretário do Tesouro, à futura Secretaria da Fazenda.

Na mesma linha, deu-se a escolha do general Fernando de Azevedo e Silva, ex-chefe do Estado-Maior do Exército, que estava assessorando o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, para o cargo de ministro da Defesa. Ligado ao comandante do Exército, Eduardo Villas-Boas, que sofre de uma grave doença degenerativa, mas está muito lúcido e falante, o novo ministro será uma blindagem à politização das Forças Armadas, grande preocupação dos atuais comandantes militares, em razão da forte presença de líderes militares reformados no governo, a começar pelo próprio presidente da República e pelo vice, general Mourão, além do futuro ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno.

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Luiz Carlos Azedo: O terceiro turno

“Bolsonaro tem um projeto ambicioso: sepultar o modelo de “presidencialismo de coalizão”, que tem caraterizado o governo federal desde o presidente Itamar Franco”

Ao contrário do que se imaginava, por enquanto, não é com a oposição petista que se arma uma espécie de “terceiro turno” das eleições. É com as forças centristas do Congresso, que controlam as duas casas legislativas e não querem abrir mão desse poder no novo governo. Por enquanto, não é uma guerra aberta, mas uma queda de braços em torno das presidências da Câmara e do Senado. Formalmente, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, declara que não tomará partido nas disputas, mas isso é apenas uma cortina de fumaça. Há muitas coisas em jogo, entre as quais a própria natureza do governo, que lida com duas forças que sempre optaram por arbitrar a governabilidade do país a partir do Congresso: o MDB e o DEM.

Na Câmara, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) opera com desenvoltura a própria reeleição. Mas há surpresas: ontem, um deputado do PSB, João Henrique Caldas (PSB-AL), conhecido como JHC, visitou Bolsonaro na Barra da Tijuca, no Rio, para comunicar sua candidatura. O vice-presidente da Câmara, Fábio Ramalho (MDB-MG), também articula sua candidatura. Bolsonaro cancelou a reunião que teria nesta semana com Maia e com o presidente do Senado, Eunício de Oliveira (MDB-CE), para tratar das agendas legislativas que podem virar uma pauta-bomba.

Maia tem reclamado da falta de interlocução de Bolsonaro com o Congresso: “Ainda não houve nenhuma articulação. Não vou pautar uma matéria porque eu li no jornal”, disse, na semana passada, numa reunião de representantes do mercado financeiro, sobre a reforma da Previdência. “O governo acha que viabiliza a base por meio das frentes parlamentares, mas eu acho que não viabiliza”, arrematou Maia.

Outro problema é o Senado. Derrotado nas urnas, Eunício Oliveira arruma as gavetas, nas quais não faltam projetos que aumentam os gastos públicos. Mesmo pressionado pelo futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, o presidente do Senado pôs em votação e aprovou o aumento do Judiciário, o que vem sendo criticado por Bolsonaro. Eunício não tem nada a perder, mas seu partido, que tem a maior bancada, pode ficar sem a Presidência da Casa. Quem se movimenta para evitar que isso aconteça é o senador Renan Calheiros (MDB-AL), que pretende voltar ao comando do Senado, no qual é um sobrevivente.

Bolsonaro tem um projeto ambicioso em relação ao Congresso: sepultar o modelo de “presidencialismo de coalizão”, que tem caraterizado o governo federal desde o presidente Itamar Franco. Esse modelo sempre provocou déficits no Orçamento da União e o loteamento dos cargos federais com os partidos e os governadores. Era a metodologia para montar a maioria parlamentar governista. Bolsonaro, porém, tem reiterado que não haverá toma lá dá cá. O problema é como evitar que isso aconteça. A rigor, a negociação com as frentes partidárias, testada no caso da indicação da ministra da Agricultura, Tereza Cristina (DEM-MS), embora enfraqueça os partidos, não deixa de ser uma forma de barganha.

A aposta de Bolsonaro é a mudança na composição do Congresso, no qual a bancada do PSL pode garantir uma tropa de choque para o novo presidente. Com 52 deputados e quatro senadores alinhados ideologicamente, o presidente eleito contará com um bloco assumidamente de direita em plenário para defender a agenda do seu governo. Deputados e senadores eleitos na aba do chapéu de Bolsonaro também pretendem ter protagonismo nas duas Casas, porém, de certa forma, temem ser preteridos pelos caciques do MDB e do DEM que sobreviveram ao tsunami eleitoral de 7 de outubro.

Pacto fiscal
O futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, prepara uma reunião com 20 governadores para discutir um pacto fiscal entre a União e os estados, que estão quebrados. Um dos protagonistas do encontro é o governador eleito de São Paulo, João Doria (PSDB). Na pauta, a reforma da Previdência, com aprovação de normas que se apliquem aos aposentados e pensionistas dos estados. Há expectativa de que esse acordo ajude a enfrentar o problema sem o toma lá dá cá que sempre caracterizou as votações de temas polêmicos no Congresso.

Guedes está sendo cauteloso na transição, optou por alguns nomes que garantam certa estabilidade para os assessores que estão chegando à nova equipe econômica. Uma peça-chave é o economista Mansueto de Almeida, secretário de Tesouro, que cuidará da Fazenda, sem status de ministro, é claro. Outro é o atual presidente da Petrobras, Ivan Monteiro, responsável pela condução da empresa desde a crise dos caminhoneiros, que resultou na saída de Pedro Parente do cargo.

O nome mais polêmico foi o de Joaquim Levy, indicado para presidir o BNDES, que foi muito atacado por ter sido ministro da Fazenda de Dilma Rousseff no começo do segundo mandato e secretário de Fazenda no governo de Sérgio Cabral. Bolsonaro aceitou essa indicação de Paulo Guedes, mas avisou que vai abrir a “caixa-preta” do BNDES, uma alusão aos empréstimos internacionais concedidos a países, como Cuba, Angola, Nicarágua e Venezuela.

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Luiz Carlos Azedo: O mundo de Bolsonaro

“Os efeitos das tarifas impostas por Trump às importações chinesas, assim como das restrições de acesso a tecnologias americanas, já desaceleram o comércio mundial, o que não é bom para o Brasil”

Na montagem de sua equipe, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, já deu pistas de como a banda vai tocar no seu governo em relação a alguns temas da agenda nacional. Por exemplo, ninguém pode dizer que se enganou em relação ao futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, cuja pasta combaterá o crime organizado e a corrupção. A mesma coisa pode-se dizer quanto ao superministro da Fazenda, Paulo Guedes, que o mercado conhece muito bem. Idem para a ministra da Agricultura, Tereza Cristina (DEM-MS), indicada pelo agronegócio de exportação. O futuro ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, também não engana ninguém: seu estilo e modo de operar no Congresso são conhecidos.

O que permanece uma incógnita é a relação do futuro governo com a política mundial. Os sinais de Bolsonaro eram no sentido de um alinhamento automático com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Deu várias declarações nessa direção, seja em relação aos acordos multilaterais, como o Mercosul e o de Paris, seja em questões mais específicas, como as relações comerciais com a China e a intenção de mudar a embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. Ocorre que essas declarações tiveram repercussão muito negativa, e as eleições norte-americanas de 6 de novembro mostraram que o vento mudou em relação a Trump. Com os democratas conquistando a maioria na Câmara, nada será como antes.

Nos bastidores da transição, com o roque do Ministério da Defesa para o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), as quatro estrelas do general Augusto Heleno passaram a brilhar mais do que todas as outras, inclusive as do vice-presidente, general Hamilton Mourão, que é mais “moderno”. Essa mudança tem impacto no posicionamento estratégico de governo sobre vários temas, um deles é a política externa. Desde a Guerra das Malvinas, quando os EUA deram apoio logístico aos ingleses e, inclusive, inviabilizaram a utilização de seus mísseis pelos argentinos, a velha Doutrina Monroe caducou.

Vigorava desde 2 de dezembro de 1823, quando o presidente James Monroe, no Congresso norte-americano, disse que o continente não deveria aceitar nenhuma intromissão europeia: “América para os americanos”, proclamou. De uma só vez, os EUA rechaçaram a criação de novas colônias no continente, a interferência de nações europeias em questões internas e a neutralidade norte-americana em conflitos envolvendo países europeus. Esses princípios funcionaram contra a Espanha e a antiga União Soviética, mas não contra o principal aliado dos EUA no Atlântico, a Inglaterra. A guerra das Malvinas aprofundou o chamado “pragmatismo responsável” dos chanceleres Azeredo da Silveira e Saraiva Guerreiro. Durante os governos Geisel e Figueiredo, respectivamente, o Brasil abandonou o alinhamento automático aos Estados Unidos.

Guerra comercial
Nessa época, o redirecionamento da política externa para as relações Norte-Sul mirava principalmente a África e os países árabes; o eixo do comércio mundial não havia se deslocado do Atlântico para o Pacífico, como acontece agora. Mas, com essa mudança, a China acabou se transformando no principal parceiro comercial do Brasil, desbancando os Estados Unidos. Ocorre que nossa infraestrutura de comércio exterior e logística está voltada para o Atlântico, não temos escala de investimentos para redirecioná-la ao Pacífico com a eficiência e a rapidez necessárias. Quem paga o preço é a nossa indústria.

É nesse contexto que o jovem chefe do Departamento de Estados Unidos, Canadá e OEA do Itamaraty, o ministro de primeira classe Ernesto Henrique Fraga Araújo, encantou Bolsonaro com um artigo “presbítero” publicado na revista do Itamaraty, intitulado “Trump e o Ocidente”. No texto, afirma que o presidente norte-americano está salvando a civilização cristã ocidental do islamismo radical e do “marxismo cultural globalista”, ao defender a identidade nacional, os valores familiares e a fé cristã. Música para os ouvidos de Bolsonaro.

Entretanto, o cargo de ministro das Relações Exteriores exige muito mais do que uma visão religiosa de mundo. Outros nomes já foram sugeridos a Bolsonaro, entre os quais o atual embaixador no Canadá, Paulo Bretas, e os ex-embaixadores em Washington Roberto Abdenur, Sergio Amaral e Rubens Barbosa. A escolha de um deles definirá os rumos da política externa de Bolsonaro, num momento em que o Brasil, como outros emergentes, pode virar marisco na guerra comercial entre os Estados Unidos e a China. Os efeitos das tarifas impostas por Trump às importações chinesas, assim como das restrições de acesso a tecnologias americanas, já desaceleram o comércio mundial, o que não é bom para o Brasil, a não ser que os Estados Unidos voltem a reduzir a sua taxa de juros, o que enfraqueceria o dólar e beneficiaria os emergentes. Mas aí já é adivinhação.

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Luiz Carlos Azedo: Acordar com passarinhos

“Bolsonaro ainda está enrolando o paraquedas. Muito das declarações desencontradas do novo presidente da República e de seus ministros revela dificuldades operacionais futuras”

Nos dois dias que passou em Brasília, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, mudou a rotina do prédio da quadra de deputados onde tem apartamento funcional, com a grande movimentação de pessoas a partir das cinco horas da madrugada, já em pleno horário de verão. Participou das comemorações dos 30 anos da Constituição, reuniu-se com os presidentes do Supremo Tribunal Federal e com os ministros do Superior Tribunal de Justiça, trocou figurinhas com o presidente Michel Temer e incorporou à transição dois futuros ministros, o juiz federal Sérgio Moro, que comandará um superministério da Justiça, e a deputada Tereza Cristina (DEM-MS), que assumirá o Ministério da Agricultura sem o pepino do meio ambiente.

Bolsonaro ainda está enrolando o paraquedas. Muito das declarações desencontradas do novo presidente da República e de seus ministros revela dificuldades operacionais futuras. Deve ser até angustiante, principalmente para os generais que compõem seu estado-maior, constatar a desorganização da tropa. Militares têm regras rígidas de “apronto operacional” e “aprestamento pessoal”. No manual, uma tropa “só pode ser considerada adestrada quando dispuser de homens prontos para serem empregados no mais curto espaço de tempo a partir do momento em que for acionada”. Por enquanto, Bolsonaro está muito longe disso. O mais provável é que isso nunca aconteça, pois o governo não é uma unidade militar, é uma organização civil, ainda que com forte presença de militares.

Todo governante assume o mandato cheio de energia e disposição de pôr a tropa na rua; quer dizer, o bloco na rua. Lembro-me do começo do governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, eleito em 1982, num tsunami, como o que aconteceu agora no Brasil. No primeiro dia de mandato, o governador madrugou no Palácio Guanabara, para desespero dos repórteres que cobriam a administração estadual. Na primeira coletiva, disse que chegaria com os passarinhos. O repórter Ernesto Rodrigues, desde aquele dia, passou a anotar o horário de chegada de Brizola. Ao fim dos 100 primeiros dias de administração, quando geralmente acaba a lua de mel com a imprensa, o jornalista emplacou a manchete do Globo: “Brizola já não chega com os passarinhos”. Houve dias em que o governador nem sequer apareceu no seu gabinete, despachou do próprio apartamento, em Copacabana.

Palácios de governo são “jaulas de cristal”. O governante é cercado pelos áulicos e se isola da sociedade, mas muito do que acontece nos bastidores do seu gabinete acaba chegando à opinião pública. Árbitro de disputas constantes no interior de sua equipe, isso acaba agravando a solidão do poder, pois tudo o que um governante fala e decide acaba pondo mais lenha na fogueira das rivalidades, intrigas e idiossincrasias dos integrantes de sua equipe. Antes mesmo de tomar posse, a disputa se instala: primeiro entre a tropa de assalto, aqueles que chegaram primeiro e carregaram nas costas a campanha eleitoral, e a tropa de ocupação, os que foram chamados a compor a equipe por serem supostamente mais capazes de exercer as funções técnicas de governo.

Pelo Twitter

Divergências na equipe são a parte mais complicada. Muito da crise que levou à renúncia o presidente Jânio Quadros, segundo relato do jornalista Carlos Castelo Branco, que foi assessor de imprensa dele, foi consequência das disputas e intrigas entre José Aparecido e Raul Riff, dois colaboradores íntimos do presidente da República. Na equipe de Bolsonaro, o chefe da transição, Onyx Lorenzoni, e o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, superpoderosos, são dois fios desencapados. Não foi à toa que o general Augusto Heleno, homem acostumado a comandar gente da casca grossa, foi deslocado do Ministério da Defesa para o Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Apesar de militar, já é o algodão entre os cristais.

O maior embate no interior do novo governo, provavelmente, será com a alta burocracia federal, que votou em massa em Bolsonaro, mas espera recompensas. Políticos se movem pela ética das convicções, quem zela pela legitimidade dos meios, ou seja, a ética da responsabilidade, é a burocracia. Ao defender a reforma fiscal, o enxugamento do governo e a reforma da Previdência, Bolsonaro desperta o mais profundo corporativismo entre os servidores públicos. Além disso, o exercício do poder exige paciência e muita reflexão; o voluntarismo pode ser desastroso. Não é possível governar só pelo Twitter. O tipo de comunicação que adotou na campanha, por exemplo, nem sempre funciona na gestão pública, em que os binômios “comunicar-executar” e “executar-comunicar” se alternam de acordo com as circunstâncias.

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Luiz Carlos Azedo: Não morra antes da hora

“Quem disse que a democracia nos Estados Unidos estava à beira da morte queimou a língua”

Poeta, dramaturgo, romancista, ensaísta, fotógrafo e ator, Evguêni Evtuchenko (1932- 2017) foi o cronista da mudança política na antiga URSS. Nos anos 1960, seus recitais ao lado de Bella Akhmadulina, sua ex-mulher, atraíam multidões que lotavam estádios. Seu poema Babi Yar, nome de um desfiladeiro nas imediações de Kiev, que relata o massacre de 35 mil judeus pelos nazistas, em setembro de 1941, serviu de inspiração para a 13ª Sinfonia de Chostakóvitch, cuja força lírica também foi uma crítica ao antissemitismo soviético.

Seu livro em prosa Não morra antes de morrer, publicado no Brasil pela Record, em 1999, relata a crise que levou ao colapso o sistema soviético, depois do sequestro de Mikhail Gorbatchov pelos militares, que tentaram dar um golpe de Estado contra a perestroika. Foi um tiro pela culatra, pois houve grande reação popular. Evtuchenko e o então presidente da Rússia, Boris Yeltsin, lideraram os protestos que acabaram frustrando os objetivos da linha dura comunista e resultaram no fim do comunismo soviético.

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, dois conceituados professores de Harvard, são os autores do best-seller Como morrem as democracias (Zahar), o livro político da moda no Brasil. É uma leitura instigante, porque eles procuram explicar como a eleição de Donald Trump se tornou possível e mostram as vicissitudes dos regimes democráticos do Ocidente nos últimos 100 anos, com destaque para a ascensão do nazismo na Alemanha, com Hitler, e do fascismo na Itália, com Mussolini, dois líderes carismáticos que se aproveitaram do direito de expressão e da liberdade de organização asseguradas pela democracia para se tornar ditadores sanguinários.

No mesmo embalo, fazem uma radiografia das ditaduras latino-americanas da década de 1970, entre as quais as do Cone Sul, inclusive o Brasil. Segundo eles, a democracia atualmente não termina com uma ruptura violenta nos moldes de uma revolução ou de um golpe militar; agora, a escalada do autoritarismo se dá com o enfraquecimento lento e constante de instituições críticas — como o Judiciário e a imprensa — e a erosão gradual de normas políticas de longa data. A Rússia de Putin, a Turquia de Erdogan e a vizinha Venezuela de Maduro seriam exemplos desse processo. Lançado às vésperas das eleições aqui Brasil, nas quais o deputado Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República, o livro é um sucesso de crítica e de vendas, quando nada porque deu sustentação teórica ao alarmismo que cercou a vitória do capitão reformado do Exército.

De fato, uma onda conservadora varre as democracias do Ocidente, ressuscitando forças ultradireitistas e velhos sentimentos chauvinistas. Ao mesmo tempo, as elites políticas tradicionais e seus partidos são atropeladas por movimentos cívicos e atores subterrâneos nas redes sociais, sem saber bem o que fazer para se manterem no poder. No Brasil, não é muito diferente o que aconteceu nas eleições. Entretanto, mais uma vez, a democracia norte-americana, que surpreendeu o mundo com a eleição de Barack Obama e do próprio Donald Trump, volta a demonstrar sua vitalidade e capacidade de oferecer contrapesos ao poder da Casa Branca.

Onda azul
Ao renovar a Câmara dos Representantes, os eleitores americanos cortaram as asas de Donald Trump, que utilizou a vitória de 2016 para dividir ainda mais o país, com suas declarações racistas e xenófobas. Agora, será duro o caminho para a sua reeleição. Embora tenha preservado a maioria vermelha no Senado (é isso mesmo: nos EUA, vermelhos são os republicanos), a “onda azul” democrata obrigará Trump a buscar o caminho do centro, quando nada porque seu poder foi limitado e estará sob a vigilância da nova maioria democrata na Câmara. Adeus à construção do muro no México; a revogação do Obamacare, outra grande obsessão, é um projeto derrotado.

Quem disse que a democracia nos Estados Unidos estava à beira da morte queimou a língua. Foi por causa disso que lembrei o falecido poeta russo e sua crônica memorialista. Na fornada eleitoral do Partido Democrata, na qual brilhou a liderança do ex-presidente Obama, foram eleitos latinos, indígenas, muçulmanos e até um governador gay, no Colorado. Além disso, os democratas ganharam força para investigar os negócios do presidente da República e até aprovar um processo de impeachment, caso se comprove seu envolvimento com Putin nas eleições. Restarão a Trump a blindagem republicana do Senado e seu próprio poder de veto.

Ontem, o presidente eleito Jair Bolsonaro indicou a sexta integrante de seu governo, a deputada Tereza Cristina (DEM-MS), para o Ministério da Agricultura. Presidente da Frente Parlamentar Agropecuária do Congresso Nacional, é engenheira agrônoma e empresária. Nos bastidores da Câmara, sua escolha foi o resultado de um grande embate entre ex-integrantes da antiga União Democrática Ruralista (UDR), que projetou o recém-eleito governador de Goiás, Ronaldo Caiado, e representantes do agronegócio paulista, que foram contra a extinção do Ministério do Meio Ambiente e levaram a melhor na queda de braço. Depois da indicação do juiz federal Sérgio Moro para o Ministério da Justiça, com um olho na opinião pública e outro no Congresso, foi outro gol de placa de Bolsonaro na montagem de sua equipe.

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Luiz Carlos Azedo: O livrinho fez 30 anos

“Bolsonaro falou o que todos queriam ouvir, depois de vários discursos dos chefes dos poderes nos quais se reiterou a centralidade do respeito à Constituição para a vida política do país”

O ponto alto das comemorações dos 30 anos da Constituição de 1988, ontem, na sessão solene do Congresso Nacional, foi a declaração do presidente eleito, Jair Bolsonaro, de que a Carta Constitucional é o único norte da democracia brasileira. Usou o que aprendeu na academia militar para fazer uma analogia: “Na topografia, existem três nortes, o da quadrícula, o verdadeiro e o magnético. Na democracia, só um norte, é o da nossa Constituição”, disse num discurso rápido, ao lado das principais autoridades da República.

Bolsonaro falou o que todos queriam ouvir, depois de vários discursos dos chefes dos poderes nos quais se reiterou a centralidade do respeito à Constituição para a vida política do país. Não faltaram recados para o presidente eleito: “Devemos sempre, sempre respeitá-la (a Constituição) e, principalmente, cumpri-la”, ressaltou o presidente do Senado, Eunício de Oliveira (MDB-CE). “Não é trivial que propostas que acenaram para a substituição da Constituição em vigor tenham sido repudiadas pela opinião pública durante o último processo eleitoral”, disse o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

“Nossa Constituição reconhece a pluralidade étnica, linguística, diferença de opinião, a equidade no tratamento e o respeito às minorias, garante liberdade de imprensa para que a informação e a transparência saneiem o conluio e revelem os males contra indivíduos de bem comum”, lembrou a procuradora-geral da República, Raquel Dodge. “Não podemos negar que temos passado por episódios turbulentos nos últimos anos, investigações envolvendo a própria classe política e empresarial, um impeachment de uma presidente da República, a cassação de presidente da Câmara, a prisão de um ex-presidente da República. Olho com otimismo, pois todos os impasses foram resolvidos pela via constitucional, com respeito à Constituição e às leis brasileiras”, arrematou o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli.

Último a falar, o presidente Michel Temer, que foi constituinte, destacou a grande participação da sociedade na elaboração da Constituição e o fato de que, na democracia, a soberania é uma titularidade do povo, não de seus representados. Sugeriu que Bolsonaro se reúna com os presidentes dos demais poderes regularmente, “para direcionar o país no caminho que a Constituinte de 88 anos indicou”. Testemunha privilegiada desses 30 anos, o ex-presidente José Sarney, que convocou a Constituinte, e foi um crítico do texto constitucional, participou da cerimônia, não discursou. Essa nunca foi a Constituição dos seus sonhos, mas é o seu maior legado político à história do Brasil. Com ela, Sarney garantiu a transição democrática e protagonizou o restabelecimento do Estado democrático de direito, como enfatizou Temer, um professor de direito constitucional.

Reformas

A elaboração de uma nova Constituição foi um dos temas debatidos no primeiro turno das eleições. O candidato do PT, Fernando Haddad, havia proposto a convocação de uma Constituinte exclusiva em seu programa de governo; o vice de Bolsonaro, general Hamilton Mourão, chegou a defender que uma comissão de notáveis elaborasse um novo texto constitucional, que depois seria submetido a um plebiscito. Ambas as propostas foram esquecidas no segundo turno, tamanhas discórdia e polêmica que causaram.

O canto de sereia do revisionismo constitucional partia da ideia de que o ciclo político que a pautou se esgotou. As principais críticas, de vários matizes, são: extensa e prolixa, abarca questões que deveriam ser objeto de legislação ordinária; excesso de direitos outorgados e escassez de deveres; rigidez orçamentária e ordenamento tributário engessado; ampliação de prerrogativas corporativas e manutenção de privilégios, em especial, pelo funcionalismo público; alargamento da autoridade do Judiciário, particularmente do Supremo Tribunal Federal e do Ministério Público Federal.

Entretanto, foi a graças à atual Constituição que todas as crises políticas se resolveram por vias institucionais, pacificamente, sem intervenção dos militares, como até então ocorrera na história republicana. Ao defendê-la, o país pode vir a superar o clima de radicalização que caracterizou a disputa eleitoral. A Carta de 1988 pode não ser enxuta como a norte-americana, de 1789, nem tão antiga, como a Carta Magna inglesa, de 1521, mas ainda é o que nos une.

 

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Luiz Carlos Azedo: A decisão estratégica

“Um alívio de cinco anos no caixa do Tesouro é tudo o que o novo governo precisa para executar seu programa de reformas e retomar o crescimento econômico”

“A decisão mais estratégica é a aprovação da reforma da Previdência que está pronta para ser votada no Congresso. Com ela, o novo governo terá melhores condições para cuidar da economia”, acredita o ministro de Minas e Energia, Moreira Franco, responsável pela elaboração do documento Uma ponte para o futuro, que continua sendo a principal agenda de reformas do país, e um dos artífices das articulações que levaram Michel Temer à Presidência. Moreira já arruma as gavetas para uma retirada em ordem, como se diz no jargão militar. Mas está entre os que defendem a maior colaboração possível com o novo presidente eleito, Jair Bolsonaro, para que a transição de governo seja suave.

Um alívio de cinco anos no caixa do Tesouro é tudo o que o novo governo precisa para executar seu programa de reformas e retomar o crescimento econômico. Mas a prioridade política de qualquer governo que se inicia é a eleição das Mesas da Câmara e do Senado. É aí que está o problema. Bolsonaro tem interesse em aprovar qualquer coisa que o ajude no começo do governo a enfrentar o deficit fiscal, mas precisa da eleição de aliados para as presidências das duas Casas para ter governabilidade, ainda mais diante de uma oposição como o PT, que elegeu a maior bancada da Câmara.

Atual presidente da Câmara, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) é candidato à reeleição. Sem seu apoio decidido, a soma de esforços de Temer e Bolsonaro pode não ser suficiente para aprovar a reforma. O ministro extraordinário da transição de governo, Ônix Lorenzoni (DEM-RS), futuro chefe da Casa Civil, responsável pelas articulações no Congresso, sabe disso. Entretanto, é um desafeto de Rodrigo Maia, com quem entrou em rota de colisão quando era líder da legenda e acabou sendo por ele isolado. Deu a volta por cima como dissidente da legenda, que apoiou o tucano Geraldo Alckmin. Lorenzoni foi dos primeiros a embarcar na nau catarineta de Bolsonaro, que o levou ao poder. Sem acordo entre Bolsonaro e Maia a reforma sequer entra na pauta.

Dificuldades

O novo governo tem uma base parlamentar robusta, mas as estrelas do partido de Bolsonaro, o PSL, não têm quilometragem rodada para disputar e vencer uma eleição na Câmara. Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), campeão de votos, é um deputado novato, que já se coloca como líder informal do novo governo, mas não tem cancha para articular uma votação que depende do apoio de três quintos da Câmara, ou seja, 308 votos. Além disso, a Previdência é um assunto que divide a própria bancada de Bolsonaro, onde há muitos interesses corporativos cristalizados, e o novo presidente emite sinais de que pretende mudar os paradigmas das negociações com o Congresso, fechando acordos em bloco com os partidos, sem troca de cargos e liberação de verbas.

Ao contrário de Temer, que loteou o governo para garantir a permanência no cargo, Bolsonaro tem a legitimidade das urnas para se impor ao Congresso, mas não necessariamente o atual, cujos integrantes se consideram “sobreviventes” ou foram mesmo derrotados, pois houve uma renovação de 47% na Casa. Segundo o relator do projeto, deputado Arthur Oliveira Maia (DEM-BA), um dos que se reelegeu, para que o projeto avance é necessário que haja articulação política por parte do novo presidente eleito.

Segundo o cientista político Murilo Aragão, da Arko Advice, mesmo sendo uma reforma mais enxuta, encontra um rol de dificuldades. Não há um texto consensual. Ainda é necessário um amplo processo de negociação com as lideranças partidárias. Por se tratar de emenda constitucional, são necessários 308 votos.

“O prazo é curto, porque faltam apenas sete semanas de atividade parlamentar até o recesso do Congresso, que começa no dia 22 de dezembro. Aqueles que não foram reeleitos creditam sua derrota à aprovação da reforma trabalhista; por isso, não querem sair aprovando outra medida impopular. Os atuais parlamentares não querem aprovar uma reforma mais enxuta se, no próximo ano, terão de aprovar uma reforma ainda mais agressiva. A diminuição do número de ministérios e a reduzida quantidade de indicações políticas para cargos relevantes restringem a motivação política do atual Congresso para aprovar a reforma ainda este ano”, avalia Aragão.

Pesquisa realizada entre 9 e 11 de outubro pela Arko Advice com 164 deputados mostrou que 51,82% não acreditavam na aprovação da reforma da Previdência em 2018, caso Bolsonaro vencesse as eleições presidenciais. “Portanto, a chance de aprovação da reforma ainda este ano fica em torno de 40%. Para que seja viabilizada, Bolsonaro teria de participar ativamente das negociações. Contudo, em caso de derrota, seu envolvimento direto traria mais desgaste ao novo governo do que os benefícios advindos de uma eventual aprovação”, conclui o cientista político.

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Luiz Carlos Azedo: Os mascates

“O Brasil ainda recebe refugiados de braços abertos. É o caso das famílias palestinas do Rio Grande do Sul, que buscaram a integração plena e uma nova cidadania no Brasil”

Há um mês, cerca de mil pessoas — homens, mulheres crianças e até idosos —, fugindo da fome e da violência, deixaram a cidade de São Pedro Sula, em Honduras, em busca do sonho americano. A notícia se espalhou pelas redes sociais, e milhares de pessoas de outros países da América Central se juntaram a elas na Guatemala, em direção ao México. Às vésperas das eleições legislativas de 6 de novembro, a marcha virou uma dor de cabeça para o presidente dos Estados Unidos, porque já reúne quase 10 mil pessoas e chegou ao México, sendo acompanhada pela mídia do mundo inteiro.

Trump já anunciou a intenção de impedir a entrada dos imigrantes e mandou mais 15 mil homens da Guarda Nacional para a fronteira. Acusa o Partido Democrata de estimular a marcha. O risco é os mexicanos aderirem em massa ao movimento, autodenominado “Pueblo Sin Fronteiras” (Povo Sem Fronteiras). Cerca de 10% da população da Guatemala, El Salvador e Honduras já deixaram seus países para fugir da criminalidade e do recrutamento forçado por gangues, em busca de poucas oportunidades de trabalho. Trump ameaça cortar a ajuda norte-americana aos países de América Central. Segundo a Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional, a Guatemala recebe mais de US$ 248 milhões por ano; Honduras, US$ 175 milhões; e El Salvador, US$ 115 milhões.

Esse fenômeno parecia distante do Brasil, mas também já é vivido por nós em razão da crise venezuelana. A diferença é que o governo brasileiro, depois dos incidentes entre brasileiros e venezuelanos em Pacaraima (RR), na fronteira com a Venezuela, com apoio das Forças Armadas, montou uma infraestrutura adequada para receber milhares de refugiados, que são redistribuídos para os diversos estados do país. O êxodo de 2,4 milhões de venezuelanos, em apenas dois anos, já é o maior da história da América do Sul e atinge praticamente todos os países do subcontinente. A diferença é que o presidente Michel Temer, ele próprio descendente de imigrantes libaneses, seguindo a tradição de nossa política externa, tem uma posição oposta à xenofobia de Trump.

Jerusalém

O Brasil ainda recebe refugiados de braços abertos. É o caso das famílias palestinas do Rio Grande do Sul, que buscaram a integração plena e uma nova cidadania no Brasil. O documentário “A Palestina Brasileira”, de Omar de Barros Filho, mostra como essas famílias vivem uma “nakba” (palavra árabe que significa catástrofe) que já dura 70 anos. A vida de um casal residente na região metropolitana de Porto Alegre resume a tragédia: a família abandonou a Palestina com a criação do Estado de Israel, em 1948; mudou-se para Bagdá, onde reconstruiu a vida. Com a invasão do Iraque pelas tropas dos EUA, refugiou-se no campo de Al Rweished, em pleno deserto, na fronteira da Jordânia. Após alguns anos, o casal foi trazido pela ONU para o Rio Grande do Sul, mas a família se desgarrou: o filho vive na Indonésia, a filha está em Bagdá.

A produção do filme foi uma aventura. Uma das locações foi o campo Al Fawwar, próximo a Hebron, onde palestinos ainda são refugiados dentro da própria Palestina. Nunca recuperaram seus bens, propriedades ou terras tomadas por Israel. A equipe de filmagem, hospedada em Ramallah, teve seu alojamento invadido. Portas foram arrombadas, bagagens, reviradas; o hotel foi depredado. A equipe foi detida por um longo tempo em um checkpoint israelense no histórico mercado de Jerusalém. O guia palestino brasileiro foi expulso do local. O diretor foi conduzido ao centro de controle policial do Muro das Lamentações e proibido de realizar entrevistas e de utilizar equipamento de som e luz. Quando tentaram entrar na mesquita de Al Aqsa, foram bloqueados por policiais de Israel. No aeroporto Ben Gurion, em Tel Aviv, uma das câmeras foi confiscada e nunca devolvida.

O marco inaugural da nossa diplomacia com o mundo árabe é a visita de D. Pedro II ao Líbano, em 1880. Proibidos de entrar nos Estados Unidos, cristãos sírios e libaneses perseguidos pelos turco otomanos optaram pelo Brasil, que estava em franca urbanização. Exímios comerciantes, tornaram-se “mascates” e tiveram um papel fundamental na ligação comercial do litoral com o sertão. Numa época em que a moeda era escassa e rigidamente controlada pelo governo, conquistaram a confiança dos brasileiros no fio do bigode: vendendo fiado.

Entretanto, as boas relações com o mundo árabe podem se deteriorar por causa de uma decisão anunciada pelo presidente eleito Jair Bolsonaro: transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, a pedido do presidente Trump e do primeiro-ministro de Israel, Benjamin “Bibi” Netanyahu. Temos excelentes relações com Israel, mas romper com a moderada Autoridade Palestina é trazer para o Brasil, principalmente para a Tríplice Fronteira, onde já atuam militantes clandestinos do Hamas e agentes israelenses do Mossad, uma briga que nunca foi nossa.

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Luiz Carlos Azedo: Os intocáveis

“Moro deixa a carreira de magistrado às vésperas de mais um julgamento do ex-presidente Lula. No processo do sítio de Atibaia, as provas seriam até mais robustas do que as do tríplex de Guarujá”

O mais famoso investigador da história norte-americana era apenas um agente do Tesouro inconformado com o descumprimento da Lei Seca em Chicago. Eliot Ness (Chicago, 19 de abril de 1903 — Coudersport, 16 de maio de 1957) liderou a equipe de investigadores que conseguiu prender Al Capone e desmantelar a quadrilha. Por ter resistido a várias tentativas de suborno, a força-tarefa ficou conhecida como Os intocáveis e foi glamorizada pelo diretor Brian de Palma no filme do mesmo nome, lançado em 1987, com Kevin Costner no papel principal, coadjuvado por Sean Connery e Robert De Niro.

O Ness de carne e osso era um homem comum, que raramente andava armado. De 1935 a 1942, após a liberação da venda e consumo de bebidas alcoólicas, foi secretário da Segurança Pública de Cleveland. A boa reputação desmoronou, porém, em 1942, quando abandonou o local de um acidente de trânsito aparentemente provocado por ele. Após o episódio, perdeu uma eleição para prefeito e fracassou como empresário. Morreu pobre, de ataque cardíaco, em 16 de maio de 1957.

É meio inevitável a analogia com a indicação do juiz federal Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, para o Ministério da Justiça, confirmada ontem pelo presidente eleito Jair Bolsonaro, depois de conversa na qual recebeu carta branca para combater a corrupção e o crime organizado. Bolsonaro concordou com as propostas de Moro: “Ele queria liberdade total para combater a corrupção e o crime organizado e um ministério com poderes para tal”, disse o presidente eleito. Para a opinião pública, foi um gol de placa.

No livro Artes da Política: diálogo com Amaral Peixoto, de Aspásia Camargo, Lucia Hippolito, Maria Celina D’Araujo e Dora Rocha, o ex-interventor e ex-governador eleito do antigo Estado do Rio de Janeiro atribui parte do seu sucesso como administrador à escolha do seu secretário de Segurança Pública. Sem um bom chefe de polícia, segundo ele, ninguém consegue governar. Há controvérsias sobre essa relação entre o governante e o chefe de polícia, cujas atribuições e autoridade estão estabelecidas na Constituição de 1988, que garante autonomia à autoridade policial. A Polícia Federal é judiciária.

Tanto é verdade que o presidente Michel Temer continuou sendo investigado pela Polícia Federal, sob orientação do ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Barroso, depois de a Câmara dos Deputados ter sustado os dois processos da Operação Lava-Jato nos quais foi denunciado. Entretanto, do ponto de vista da opinião pública, ninguém deve ter dúvida de que as palavras do “comandante” Amaral Peixoto, a raposa do antigo PSD, continuam válidas.

Superxerife
O governador do Espírito Santo, Paulo Hartung (PMDB), cujo governo é considerado um exemplo de responsabilidade fiscal, inviabilizou sua reeleição por causa de uma greve de policiais militares que provocou caos e barbárie nas ruas das principais cidades do estado e jogou seu prestígio popular na lona. O governador fluminense Fernando Pezão, sem o delegado José Beltrame à frente da polícia fluminense, perdeu completamente o controle da segurança pública, hoje sob intervenção federal.

Sérgio Moro será um “superxerife”. Concentra um poder que somente pode ser comparado ao do falecido senador Filinto Muller, quando foi chefe de polícia do Distrito Federal. Muller se notabilizou pelas acusações contra a Aliança Nacional Libertadora (ANL) e a prisão de Luís Carlos Prestes, de quem era desafeto desde sua deserção da famosa Coluna Prestes. A deportação de Olga Benário para um campo de concentração nazista na Alemanha, onde foi executada em 1942, é atribuída a ele, mas foi uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), por influência de Vargas, mesmo não havendo pedido de extradição.

Como Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra, Muller era simpatizante do Eixo. Em 1942, reprimiu uma manifestação de estudantes a favor de o Brasil entrar na guerra ao lado dos Aliados e foi demitido. O chanceler Oswaldo Aranha e Amaral Peixoto, genro de Getúlio Vargas, já haviam articulando com os Estados Unidos a entrada do Brasil na guerra ao lado dos Aliados. Alzira Vargas, filha de Getúlio, financiava as manifestações de estudantes e comunistas a favor de o Brasil entrar na guerra contra o nazi-fascismo.

Moro deixa a bem-sucedida carreira de magistrado às vésperas de mais um julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que já está condenado a 12 anos e 1 mês de prisão e cumpre pena em Curitiba. No processo do sítio de Atibaia, as provas seriam até mais robustas do que as do caso do tríplex de Guarujá. Mesmo antecipando a saída da Justiça Federal, Moro fez recrudescer as críticas de que teria favorecido Bolsonaro na eleição. Entretanto, isso já estava precificado. Seu problema é não fracassar nas tarefas de combate ao crime organizado e à corrupção. Se não demolir a própria imagem, pode virar o primeiro na linha de sucessão de Bolsonaro.

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