Nas entrelinhas
Luiz Carlos Azedo: A volta do otimismo
“A única coisa que parece importar para o mercado é a reforma da Previdência. Aparentemente, a resistência dos militares já foi precificada”
Nada parece abalar as expectativas em relação a uma virada na economia a partir deste ano. O mercado financeiro tem dado sinais de alívio com as medidas anunciadas pelo novo governo. Desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, o real é a moeda que mais se valorizou em relação ao dólar e a Bovespa tem o segundo melhor desempenho mundial. Não é um fenômeno isolado, tem a ver com os desgastes do presidente norte-americano Donald Trump, por causa da guerra comercial com a China e da crise com o Congresso, provocada pela proposta de construção do muro com a fronteira do México. O rublo, da Rússia (3,9%), e o rand, da África do Sul (3,6%), também se fortaleceram, porém, menos do que o real, que acumula valorização de 4,3% frente ao dólar, negociado a R$ 3,71.
Um sinal de que os agentes econômicos apostam no êxito da política econômica do ministro da Economia, Paulo Guedes, é o desempenho da Bovespa, que fechou a semana em 6,57%, abaixo apenas do índice Merval, da Argentina (11,95%). No ano passado, a alta do dólar era uma preocupação recorrente dos economistas, mas houve uma inflexão depois que Jerome Powell, o presidente do Federal Reserve (Fed), o banco central dos EUA, decidiu abrandar a política de juros norte-americana. A economia dos EUA sinaliza desaceleração, o que melhora a posição relativa do nosso mercado de ações. Entretanto, iniciativas do novo governo também pesam na avaliação de investidores, como as mudanças no Conselho de Administração da Petrobras, cuja composição está sendo alterada para se ajustar à orientação da nova equipe econômica e acelerar a venda de subsidiárias e outros ativos, e a anunciada venda de estatais, entre as quais, a Eletrobras.
O que teve mais impacto na bolsa, porém, foi a mudança de posição do presidente Bolsonaro em relação à venda da Embraer para a Boeing, à qual havia feito restrições. Na sexta-feira, os termos do acordo foram ratificados e, segundo a Embraer, as negociações devem ser concluídas até o fim deste ano, um negócio de US$ 5,26 bilhões. Como a Embraer é a mais importante empresa de tecnologia do país, a venda da empresa consolidou no mercado a ideia de que os militares não se oporão à política ultraliberal de Paulo Guedes, muito pelo contrário. Foram os comandantes militares que convenceram o presidente da República de que a venda era a melhor alternativa para manter a capacidade de produção e desenvolvimento tecnológico da aviação no país, sobretudo porque foi criada uma empresa em parceria com a Boeing para fabricar os aviões militares, principalmente o cargueiro KC-390, de fabricação nacional, mas com controle acionário da Embraer.
Nem mesmo a crise de segurança pública no Ceará, que permanece fora do controle, ameaça o otimismo do mercado. Já era para ter ocorrido uma intervenção militar no estado, mas uma queda de braços entre o governador Camilo Santana (PT) e Bolsonaro, que perdeu a eleição presidencial no estado, complica o enfrentamento da crise. O petista pediu ajuda ao ministro da Justiça, Sérgio Moro, mas não solicitou ao presidente da República uma operação de “garantia da lei e da ordem”, que permitiria o emprego das forças armadas. A onda de violência no estado chegou ao 11º dia seguido, com 194 ataques em 43 municípios, mesmo com a transferência de 35 líderes das facções criminosas para presídios federais e a detenção de mais de 330 suspeitos. Na madrugada de ontem, os bandidos destruíram uma torre de transmissão de energia elétrica em Maracanaú (CE).
Previdência
A única coisa que parece importar para o mercado é a reforma da Previdência. Aparentemente, a resistência dos militares à reforma já foi precificada. O ministro Paulo Guedes anunciou uma reforma profunda, com objetivo de “democratizar” o sistema previdenciário, equiparando as aposentadorias dos funcionários públicos às do setor privado, com a criação também de um sistema de capitalização. Essa é a aposta para acelerar o crescimento e aumentar a produtividade da economia brasileira. Para Guedes, a Previdência está em colapso, com um saldo negativo superior a R$ 300 bilhões neste ano. No regime atual, de repartição, o trabalhador ativo paga os benefícios de quem está aposentado; no sistema de capitalização, a poupança de cada um é que garantirá o complemento da aposentadoria.
Falta combinar com os beques, como diria o Mané Garrincha. O ministro reconhece as dificuldades: “Um sistema de capitalização como estamos desenhando é algo bastante mais robusto, é mais difícil, o custo de transição é alto. Mas estamos trabalhando para as futuras gerações”, justifica. A nova Previdência e as mudanças no sistema atual serão encaminhadas para o Congresso num pacote único, que precisa de aprovação da Câmara e do Senado, com duas votações, cada, no caso de emendas constitucionais. A exclusão dos militares da reforma da Previdência é um precedente para outras carreiras de Estado — policiais militares e policiais civis, auditores-fiscais, diplomatas, procuradores e magistrados, principalmente — se mobilizarem contra a reforma. Como se sabe, o lobby em defesa de interesses corporativos é muito mais concentrado e poderoso do que a defesa de direitos difusos, como os dos trabalhadores do setor privado.
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Luiz Carlos Azedo: A passagem de comando
“Manifestações recentes dos comandantes militares e do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, sobre a reforma da Previdência revelam um ativismo político preocupante”
De todas as solenidades já realizadas no governo Bolsonaro, com exceção da posse do próprio presidente da República, talvez nenhuma outra mereça mais atenção como a passagem de comando da Força Terrestre, hoje, no Clube do Exército, ocasião em que o general Eduardo Villas Boas passará o bastão de comando do Exército para seu colega Edson Leal Pujol. Não deveria ser assim, mas é o que a realidade nos mostra, em razão da presença hegemônica de generais de quatro estrelas no novo ministério e do próprio papel que Villas Boas desempenhou nos últimos quatro anos, como discreto fiador do impeachment de Dilma Rousseff e, sabe-se agora, de decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) durante o processo eleitoral, entre as quais a manutenção do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na cadeia.
Villas Boas encerra sua carreira militar em precárias condições físicas, em razão de uma grave doença degenerativa, mas em pleno gozo de suas faculdades mentais. O que parecia ser um fator de desgaste e enfraquecimento de sua liderança, a deterioração de sua saúde, que o levou à cadeira de rodas, com o passar do tempo, aliada ao esforço de se fazer presente nos momentos mais importantes, se comunicar diariamente com a tropa e a sociedade pelas redes sociais e se manter em permanente diálogo com as principais autoridades do país, acabou aumentando o seu carisma na tropa e lhe reservou um lugar de honra na galeria de líderes militares reconhecidos e respeitados pela sociedade.
Por duas vezes, teve a História do país nas mãos. A primeira, durante a campanha do impeachment, quando impediu que a então presidente Dilma Rousseff decretasse o estado de sítio para reprimir a oposição; a segunda, mais recentemente, durante a campanha eleitoral, em pelo menos dois episódios que poderiam ter gerado insubordinação nos quartéis, o habeas corpus concedido ao ex-presidente Lula e a facada em Jair Bolsonaro. Nos bastidores da crise econômica, ética e política que o país enfrentou, reiterou o papel dos militares na manutenção da estabilidade, da legalidade e da legitimidade, bem como a defesa da Constituição Federal.
Entretanto, a história ainda julgará as consequências de sua intervenção no episódio do julgamento do habeas corpus de Lula, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 3 de abril do ano passado, quando deixou os bastidores para se manifestar publicamente sobre aquele momento político nas redes sociais: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”, escreveu no Twitter oficial de comandante do Exército brasileiro. Depois, completou: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.
Ovo da serpente
Essas declarações foram repudiadas pelo decano do Supremo, Celso de Mello, que comparou Villas Boas a Floriano Peixoto, o segundo presidente da República, que ficou conhecido como “marechal de ferro” por governar em regime de estado de sítio. Em seu voto a favor da concessão do habeas corpus, que acabou rejeitado pela maioria, o ministro disse que as declarações eram “claramente infringentes do princípio da separação de poderes” e pareciam “prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas (e lesivas) à ortodoxia constitucional”.
“A nossa própria experiência histórica revela-nos — e também nos adverte — que insurgências de natureza pretoriana, à semelhança da ideia metafórica do ovo da serpente (República de Weimar), descaracterizam a legitimidade do poder civil instituído e fragilizam as instituições democráticas, ao mesmo tempo em que desrespeitam a autoridade suprema da Constituição e das leis da República!”, disse Celso de Mello, que completou: “As intervenções pretorianas no domínio político-institucional têm representado momentos de grave inflexão no processo de desenvolvimento e de consolidação das liberdades fundamentais”.
O general Leal Pujol, o mais antigo do Alto-Comando, assumirá o Exército num contexto completamente diferente. Entretanto, manifestações recentes dos demais comandantes militares e do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, sobre a reforma da Previdência, revelam um ativismo político preocupante, nem tanto pela defesa de privilégios, mas porque sinalizam certa tutela sobre o próprio governo e demais poderes, a partir de interesses corporativos. Historicamente, esse costuma ser o primeiro degrau da anarquia nas Forças Armadas.
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Luiz Carlos Azedo: Caminho aberto para Renan
“Supremo faz um movimento de reaproximação com o Congresso, ante a ameaça de uma hipertrofia da relação com o Executivo”
Cada macaco no seu galho, digamos assim. Esse foi o sentido da decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, que ontem negou o pedido para que eleição da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados fosse realizada com votos abertos. O pedido havia sido feito pelo deputado federal eleito Kim Kataguiri (DEM-SP), que se lançou candidato ao comando da Casa, contra seu atual presidente, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ). A decisão foi um recado de que o Supremo não pretende interferir em assuntos que são prerrogativas do Congresso.
O voto secreto não é uma garantia de que Maia terá vida mais fácil para ser reconduzido ao comando da Câmara, apesar do apoio de 12 partidos que já contabiliza, entre os quais, a bancada do PSL, a segunda da Casa. O apoio do PT, que tem a maior bancada, subiu no telhado depois que Maia fechou com os governistas. No seu caso, o voto aberto talvez fosse até mais vantajoso, haja vista que seu principal adversário, o deputado Fábio Ramalho (PMDB-MG), tem amplo trânsito no chamado “baixo clero”, que é formado pela maioria dos deputados. Se houver traição, as chances do adversário aumentam muito, porque Maia costurou seus apoios via cúpulas dos partidos.
Por tabela, a decisão de Toffoli beneficia, sobretudo, o senador Renan Calheiros (PMDB-AL), que pretende voltar ao comando do Senado. Uma decisão liminar do ministro Marco Aurélio Mello determinava que a votação no Senado fosse aberta, mas acabou derrubada por Dias Toffoli, cuja decisão encerrou um ciclo de intervenções do Supremo em assuntos regimentais do Congresso:
“A escolha da Mesa Diretiva importa, para além de uma seleção do dirigir administrativo da Casa, uma definição de ordem política, intimamente relacionada à natural expressão das forças político-ideológicas que compõe as casas legislativas — que se expressa, por exemplo, na definição das pautas de trabalho e, portanto, no elenco de prioridades do órgão — impactando diretamente na relação do Poder Legislativo com o Poder Executivo. Essa atuação, portanto, deve ser resguardada de qualquer influência externa, especialmente de interferências entre Poderes”, sustenta o presidente do STF.
Regras do jogo
Toffoli esclareceu que o sigilo também faz parte das regras do jogo democrático, ao contrário do senso comum: “Por se tratar de ato de condução interna dos trabalhos, ou seja, interna corporis, o sigilo dessa espécie de votação, também no âmbito do Poder Judiciário, se realiza sem necessidade de que os votos sejam publicamente declarados”. Trocando em miúdos, ao reestabelecer o paradigma da independência e harmonia entre os Poderes, sinalizou que o Supremo faz um movimento de reaproximação com o Congresso, ante a ameaça de uma hipertrofia da relação com o Executivo. Há uma grande diferença entre um governo desgastado por denúncias que é formado a partir de um processo de impeachment, como o de Michel Temer, e o novo governo de Jair Bolsonaro, recém-eleito, hegemonizado por generais do Exército e predisposto a governar por decretos e medidas provisórias.
Nesse aspecto, as mesas do Congresso terão um papel decisivo, a da Câmara por ser o ponto de partida para a aprovação dos projetos do Executivo; a do Senado, por ser a Casa revisora, com importante papel em assuntos de Estado e federativos, como a indicação de ministros de tribunais superiores, integrantes de agências reguladoras, autoridades monetárias e diplomatas. Há um jogo de bastidor entre os Poderes, no qual a bola já está rolando.
Renan entrou em campo discretamente, embora diga que não decidiu ainda se será candidato. Na verdade, já tem maioria de votos, mas somente assumirá essa condição no fim do mês, quando a bancada do MDB no Senado formalizar seu apoio. A senadora Simone Tebet (MDB-MT) também pleiteia indicação. A oposição mais forte a Renan vem dos senadores Tasso Jereissati (PSDB-CE) e Esperidião Amin(PP-SC), que defendem a remoção do MDB do comando da Casa. No Senado, a maior bancada quase sempre ocupa a Presidência, mas o critério da proporcionalidade para a composição da Mesa e das comissões, como na Câmara, não impede o surgimento de candidaturas de oposição.
Troca de comando
Amanhã, o general Eduardo Vilas Boas passará o comando do Exército para o general Leal Pujol, o mais antigo, encerrando o ciclo de transição de comando das Forças Armadas. Na cerimônia desta quarta, o almirante Ilques Barbosa Junior assumiu a Marinha no lugar do também almirante Eduardo Leal Ferreira. Na sexta passada, o brigadeiro Antonio Carlos Moretti Bermudez assumiu o cargo de Comandante da Força Aérea Brasileira (FAB), no lugar do brigadeiro Nivaldo Luiz Rossato. Bolsonaro foi a todas as trocas de comando. Na de ontem, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, defendeu o regime previdenciário diferenciado dos militares. Essa parece ser uma posição consolidada no governo.
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Luiz Carlos Azedo: Enrolar o paraquedas
“Os índios não abrem mão de sua identidade étnica e cultural; os sem-terra não querem deixar o campo; os imigrantes chegam para fugir de situação muito pior”
O presidente Jair Bolsonaro já aterrissou, mas ainda enrola o paraquedas. A segunda reunião ministerial que realizou ontem não concluiu o plano de trabalho para os primeiros 100 dias de governo, nem mesmo um programa minimalista, com começo, meio e fim, que possa servir de base para que a sociedade saiba o que ele realmente pretende fazer. O governo está diante de uma equação já anunciada por alguns analistas, mas que não é fácil: precisa anunciar medidas que mantenham sua tropa aguerrida e unida, porém está diante de uma realidade que não comporta soluções simplistas como as promessas da campanha eleitoral.
Por exemplo, depois da reunião de ontem, o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, anunciou que o governo prepara um decreto para flexibilizar a posse de arma, segundo o princípio da legítima defesa. É uma bandeira de campanha de Bolsonaro que tem amplo respaldo popular, mas isso não significa a liberação do porte de arma para os cidadãos. A diferença entre uma coisa e outra é abissal. Sem entrar no mérito da questão, a medida contrasta com a realidade. Apresentada como antídoto à violência urbana, qualquer um que acompanhe o noticiário policial sabe que o problema é muito mais grave. Basta olhar para a crise de segurança em curso no Ceará, que pôs de ponta-cabeça a relação governo versus oposição. O presidente da República gostaria de jogar o problema no colo do governador Camilo Santana (PT), mas teve de sair em seu socorro; o petista foi obrigado a pedir ajuda ao governo federal e deixar de lado a oposição incondicional que vinha mantendo.
A propósito, essa crise do Ceará pode se generalizar. Os governadores recém-eleitos anunciam que vão endurecer o jogo com os chefões do tráfico de drogas, porém, sem antes estudar as condições para fazê-lo com eficiência e sem os efeitos colaterais. O governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), passando em vista as tropas da Polícia Militar, anunciou que os bandidos vão ter de mudar de Goiás, porque a barra lá vai pesar. No Rio de Janeiro, o governador Wilson Witzel (PSC) reiterou sua política de abate de criminosos (“Não ande de fuzil, você vai morrer”), no entanto, já começou a contabilizar policiais militares mortos durante a sua gestão. Até o governador João Doria (PSDB) endureceu a fala contra os chefões que controlam os presídios do estado.
Vulneráveis
Bem mais fácil até agora tem sido a adoção de medidas contra os índios, os sem-terra e os imigrantes. Bolsonaro resolveu rever a demarcação de terras indígenas e suspendeu os processos de reforma agrária; pediu aos diplomatas brasileiros que comuniquem à Organização das Nações Unidas (ONU) que o Brasil saiu do Pacto Global para a Migração, ao qual o país havia aderido em dezembro, no fim do governo Michel Temer. São medidas compatíveis com as promessas de campanha. Como são grupos minoritários e muitos vulneráveis, que precisam de certa proteção do Estado, logo começarão os efeitos colaterais, principalmente a violência no campo, ainda mais com a liberação da posse de armas.
Os Sertões, de Euclides da Cunha, foi livro de cabeceira dos integrantes do movimento tenentista. Relata o maior vexame pelo qual já passou o Exército brasileiro, bem como o maior massacre de civis que já protagonizou. O livro Abusado, de Caco Barcelos, que relata a vida de um traficante no Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro, permite um paralelo entre duas situações de absurda iniquidade social, uma rural e outra urbana, com um viés antropológico comum: a condição humana. É aí que está o xis do problema. Os índios sobrevivem porque não abrem mão de sua identidade étnica e cultural; os sem-terra existem porque não querem deixar o campo; os imigrantes chegam para fugir de situação muito pior do que a que enfrentarão por aqui. Não há como resolver esses problemas sem eliminar suas causas, simples assim.
E a Previdência? Não há um só integrante do governo que não diga que essa é a prioridade da gestão Bolsonaro. Onde está a dificuldade? A resistência não vem da grande massa de trabalhadores do setor privado, mesmo que a idade mínima seja elevada para 65 anos. A resistência vem das corporações do Estado, principalmente dos estratos mais elevados, que não querem abrir mão de privilégios e tem o poder de paralisar o governo. Não é à toa que Bolsonaro recuou de graça em relação à idade mínima, perdendo assim um trunfo para a negociação no Congresso. Procuradores, magistrados, militares, policiais, auditores-fiscais, as chamadas carreiras típicas de Estado são contra a idade mínima e a paridade entre os dois sistemas, essa é a verdade. Por isso, a proposta de reforma de Previdência de Paulo Guedes pode morrer na praia. O que deve vingar é a negociada por Michel Temer. Ainda assim, mitigada.
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Luiz Carlos Azedo: A blindagem de Guedes
“Em meio ao zunzunzum de que Guedes havia ameaçado se demitir do cargo, Bolsonaro e seu ministro acertaram os ponteiros. Aparentemente, a equipe econômica foi finalmente blindada”
Uma das razões do sucesso do Plano Real foi a blindagem da equipe econômica comandada por Pedro Malan, mesmo levando-se em conta que o presidente Itamar Franco tinha suas idiossincrasias e, vez por outra, metia a colher nos assuntos econômicos. A maior delas, sem dúvida, foi a volta do fusquinha (Volkswagen), que havia saído de linha. À época, em contraposição à importação de carros liberada pelo seu antecessor, o presidente Collor de Mello, que renunciou ao mandato para evitar o impeachment, Itamar jogou uma boia para a indústria automobilística, que sofria a concorrência até dos carros russos, e lançou a proposta de criação do carro popular. O fusca foi relançado com pompa e circunstância, mas era um produto obsoleto e antieconômico, que sobreviveu apenas mais alguns anos.
A intervenção de Itamar Franco na economia, porém, esbarrou na blindagem da equipe econômica após Fernando Henrique Cardoso assumir o Ministério da Fazenda. Seus antecessores (Gustavo Krauser, Paulo Haddad e Eliseu Rezende) haviam fracassado nos esforços para acabar com a hiperinflação. FHC montou a mais brilhante e bem-sucedida equipe econômica desde a redemocratização, com um perfil predominantemente social-liberal, sob o comando de Malan, seu futuro ministro da Economia. Acabou eleito presidente da República no primeiro turno.
No primeiro mandato de FHC, com Gustavo Franco à frente do Banco Central, depois de um período de ajuste fiscal e monetário, marcado pela paridade do real com o dólar, a estabilização da economia finalmente encontrou seu eixo no famoso “tripé” da política monetária, que é adotado até hoje: “equilíbrio fiscal, meta de inflação e câmbio flutuante”. Essa política monetária também garantiu o sucesso do primeiro mandato do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No segundo mandato de Lula, porém, houve a crise do mercado financeiro norte-americano e uma forte retração da economia mundial, o que levou à guinada expansionista e intervencionista na economia, principalmente no governo Dilma, que resultou na maior recessão de nossa história e gerou uma massa de desempregados de 14 milhões de pessoas.
“Politizar a economia”, para usar uma expressão do senador Cristovam Buarque (PPS-DF), não é uma ideia boa para quem está no governo; entretanto, é uma estratégia muito utilizada pela oposição. Ideologizar a economia também pode dar ruim, como se diz. Todas as crises de governo que resultaram em rupturas políticas (impeachments de Collor e Dilma, por exemplo) ou mesmo institucional (Revolução de 1930 e o golpe militar de 1964) ocorreram durante crises econômicas profundas.
Bancos públicos
De certa forma, a nova equipe econômica tem um perfil essencialmente técnico, mas as narrativas sobre a política econômica do presidente Jair Bolsonaro e do seu ministro da Economia, Paulo Guedes, ainda não estão em sintonia fina e têm um forte viés ideológico. Na semana passada, declarações precipitadas de Bolsonaro anunciando medidas financeiras e tributárias em desacordo com os planos da sua equipe econômica geraram inquietação no mercado. O episódio levou a desmentidos oficiais inéditos do chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (é normal presidente desmentir subalternos; ministro desmentir presidente é novidade). No fim de semana, em meio ao zunzunzum de que Guedes havia ameaçado se demitir do cargo, Bolsonaro e seu ministro acertaram os ponteiros. Aparentemente, a equipe econômica foi finalmente blindada.
Ontem, Paulo Guedes falou pela primeira vez, depois de ter cancelado as entrevistas programadas para sexta-feira passada. Durante cerimônia de posse dos novos presidentes do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Joaquim Levy; do Banco do Brasil, Rubem Novaes; e da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, reafirmou a orientação ultraliberal que pretende imprimir à economia: “O dirigismo econômico corrompeu a política brasileira e travou o crescimento da economia. O mercado brasileiro de crédito também está estatizado e sofreu intervenções extremamente danosas para o país”.
Guedes denunciou o nosso velho pacto patrimonialista: “A máquina de crédito do Estado sofreu desvirtuamento. Perderam-se os bancos públicos por meio de uma aliança perversa de piratas privados, democratas corruptos e algumas criaturas do pântano político”. Segundo ele, houve erros em gestões anteriores do BNDES, quando o banco emprestou a juros baixos para as empresas mais ricas, conhecidas como “campeãs nacionais”, ou investiu dinheiro em projetos de pouco retorno. Realizada no Palácio do Planalto, a solenidade serviu para Jair Bolsonaro reiterar a confiança na equipe econômica e prometer mais transparência nos bancos públicos: “Todos os nossos atos terão de ser abertos ao público, e o que ocorreu no passado também. Não podemos admitir que, em qualquer uma dessas instituições, tenha qualquer cláusula de confidencialidade pretérita”.
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Luiz Carlos Azedo: O menino da Rua do Cupim
“A ministra Damares cumpre um duplo papel no governo: provoca a oposição em relação à identidade de gênero e sai em defesa da segurança das crianças e suas familias”
Damares Alves, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, já é uma estrela da nova equipe de governo de Jair Bolsonaro. Pastora evangélica, roubou a cena entre os seus pares ao afirmar, logo após a posse, para um grupo de apoiadores, que “menino veste azul e menina veste rosa”. Como quase tudo que acontece entre amigos, alguém gravou e vazou nas redes sociais a frase polêmica, que viralizou e levantou um debate sobre identidade de gênero muito maior do que aquele que ela própria pretendia.
A oposição e a imprensa atravessaram a rua para escorregar na casca de banana. Apontada pela mídia como patinha feia da equipe ministerial, Damares deu a volta por cima durante entrevista à GloboNews, na qual driblou os craques do jornalismo político da emissora com respostas que miravam os eleitores de Bolsonaro e não os seus interlocutores. Falou o que eles gostariam de ouvir. Não foi à toa, portanto, que o escritor, dramaturgo e jornalista Aguinaldo Silva disparou no Twitter: “Venderam a ministra Damares como uma espécie de “maluquete xiita” e ontem ela provou que na verdade é outra coisa: uma mulher conservadora, sim. Mas sensata, convencida do que diz, preparadíssima e disposta a fortalecer os vínculos na célula mater da sociedade, que é a família.”
O novelista sabe das coisas, é um premiado campeão de audiência no horário nobre da tevê brasileira e mais do que um observador arguto da revolução dos costumes sociais e políticos no Brasil, que já dura meio século. É um protagonista dessa revolução, ao lado de outros autores. Damares reagiu às críticas que recebeu com o argumento que repete à exaustão: “Fiz uma metáfora contra a ideologia de gênero, mas meninos e meninas podem vestir azul, rosa, colorido, enfim, da forma que se sentirem melhores.” Garantiu que não haverá retrocesso em termos de direitos adquiridos, em matéria de identidade de gênero. E partiu para a ofensiva num tema que explica muita coisa na eleição de Bolsonaro e que a oposição ainda não captou: a defesa das crianças e da família como instituição.
Ao contrário do que muitos imaginam, Damares não é só a pastora evangélica e assessora parlamentar que deu uma rasteira no chefe, o ex-senador Magno Malta, e virou ministra em seu lugar. É uma militante reconhecida do movimento em defesa das crianças que sofrem de depressão e outros distúrbios psicológicos, que têm impactado os altíssimos indicadores de suicídio e automutilação entre pré-adolescentes e adolescentes no Brasil. “Pobre, gay, mulato e abençoado”, Aguinaldo Silva, o menino da Rua do Cupim, no Recife, sacou que a ministra sabe o que está fazendo.
Em 1954, aos 11 anos, Aguinaldo Silva mudou com a família da Cidade de Carpina para a capital pernambucana. Trouxe na memória afetiva boa parte da matéria-prima de suas novelas, de Tieta ao Sétimo Guardião. No bairro dos Aflitos, viveu o drama de menino pobre que aos 11 anos era “esquisito” e passou a ser chamado de “frango” aos 13 anos. “Foram muito difíceis aqueles anos que passei na Rua do Cupim, tendo que ouvir todo tipo de acusações e insultos…, mas eles foram também muito prazerosos. Pois, na casa ao lado da minha, morava uma família de crentes cujo chefe tinha uma portentosa biblioteca da qual sua filha, Glyce, de vez em quando sacava um livro e me emprestava. Li “Madame Bovary” aos 13 anos e chorei feito um louco por causa de Ema, pois achei que, em sua loucura, ela estava certíssima… E felizmente ainda acho isso até hoje.”
Identidade de gênero
Aguinaldo já escreveu mais de 100 mil páginas de livros, novelas, séries, minisséries, peças de teatro, crônicas, artigos e reportagens, sem contar os textos do seu blog, no qual faz uma espécie de striptease da sua vida intelectual: “Aos 75 anos, escrevo todos os santos dias, sem falhar carnaval, Natal, ano-novo ou qualquer feriado. Não preciso fazer como o general Coriolano, da tragédia de Shakespeare, e ir à praça pública mostrar minhas muitas cicatrizes. Minhas 14 novelas e meus 16 livros estão aí para isso”.
A chamada pauta identitária de gênero virou uma armadilha política. Serviu para que o PT saísse do isolamento após os escândalos de corrupção que protagonizou no poder e o impeachment de Dilma Rousseff. O movimento “#EleNão” foi uma ponte com as manifestações de gênero e deu sustentação à campanha de Fernando Haddad, principalmente depois da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Entretanto, como no caso de Hillary Clinton, nas eleições norte-americanas, é uma agenda progressista, mas ideologicamente minoritária na sociedade. Espertamente, foi associada por Bolsonaro à desagregação da família, uma tragédia para os mais pobres, principalmente numa conjuntura de desemprego em massa.
Damares cumpre um duplo papel no governo: de um lado, espicaça a oposição em relação a um tema no qual a opinião pública ainda é conservadora e, majoritariamente, está ao lado de Bolsonaro; de outro, se propõe a enfrentar um problema que as políticas públicas oficiais, segmentadas, não deram conta de resolver. A atenção dada a gestantes, idosos e crianças, por exemplo, é estanque e não cuida da segurança da família como um todo. Quando fala em virar esse jogo, Damares sabe que é música para os eleitores do capitão. A estratégia de penetração dos pastores evangélicos nas comunidades pobres do país é focada exatamente nisso. Hoje, é uma experiência exitosa de trabalho social, religioso e político, que comeu o mingau eleitoral pelas beiradas.
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Luiz Carlos Azedo: O poder civil e os jabutis
“As exonerações em massa na Casa Civil, que tendem a se reproduzir em outras pastas, eram esperadas. Os cargos comissionados serão ocupados por quem venceu as eleições”
O sucesso de Jair Bolsonaro depende muito mais do poder civil do que do grupo de militares que cercam o presidente da República. Para ser mais claro, a médio e longo prazos, não é a retórica ideológica nem o esculacho da oposição que garantirão esse êxito, mas o desempenho dos ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Justiça, Sérgio Moro. Os generais terão um papel importante, principalmente para o governo não sair do próprio eixo, como parece acontecer no Itamaraty, mas isso dependerá também de suas concepções de gestão. Vamos por partes.
Paulo Guedes encontra uma casa arrumada do ponto de vista financeiro, não foi à toa que trouxe importantes integrantes da equipe econômica anterior para o time que montou, ainda que o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, ontem, tenha levantado dúvidas sobre a movimentação financeira do governo no último mês. Na máquina federal, a correria para fazer empenhos e efetuar pagamentos em atraso no último mês do ano fiscal é normal. O problema do governo é outro: o deficit fiscal. Não há possibilidade de retomar o crescimento e enfrentar o desemprego em massa sem a reforma da Previdência.
Ninguém se iluda, há um alinhamento político favorável ao sucesso da nova equipe econômica. Como defendeu Guedes, o “projeto liberal democrata” de Bolsonaro não vive o dilema de quem pega o violino com a mão esquerda e toca com a direita. “A aliança de centro-direita, entre conservadores, em princípios e costumes, e liberais na economia”, como definiu Guedes, é robusta, porque conta com o apoio da maioria da população. Enfrentará resistência das corporações, inclusive militar, mas o maior perigo é a recidiva do patrimonialismo dos que vivem à custa das rendas e benesses do Estado. Eles aparecem onde menos se espera.
Abrir a economia, privatizar as estatais, controlar gastos, reformar o Estado, desregulamentar, simplificar e reduzir impostos e descentralizar os recursos para estados e municípios não são um “estelionato eleitoral”. O governo foi eleito com essa pauta. Se vai dar certo é outra história, mas, desta vez, as chances realmente são maiores. E as políticas sociais? Bolsonaro somente prometeu prioridade para o ensino fundamental e a saúde das crianças, o resto vai jogar no colo dos estados e municípios. É a receita da Escola de Chicago, aplicada na Alemanha, no Japão e no Chile. No fim da guerra, com seus países em ruínas, alemães e japoneses estavam comendo ratos; no Chile de Pinochet, era chumbo mesmo. No Brasil, num cenário completamente diferente, o sucesso do projeto será um novo “case”.
Corrupção e violência
A outra perna do poder civil está no Ministério da Justiça, que nunca concentrou tanto poder e instrumentos de atuação como agora. Combate à corrupção e ao crime organizado são bandeiras de Bolsonaro sob a responsabilidade de Sérgio Moro, que também encontrou a casa arrumada, em particular, o recém-criado Sistema Unificado de Segurança Pública. Como levou para sua equipe os principais parceiros da Operação Lava-Jato, Moro também partirá de um patamar mais elevado no combate à corrupção.
A estratégia de endurecimento das penas e a política de liberação da compra de armas pelos cidadãos, condizentes com o discurso de Bolsonaro, garantem amplo apoio popular ao novo governo, mas têm eficácia duvidosa quanto aos presídios e às mortes violentas. Há estudos realizados no Brasil e, principalmente, nos Estados Unidos sobre isso. Na Califórnia, essa política fez explodirem a população carcerária e os gastos com manutenção de presídios. Em Nova York, ao contrário do que muitos imaginam, o que baixou os índices de violência foi a legalização do aborto, com a progressiva redução da população de risco, e não a política de “tolerância zero”.
E os militares? Essa é outra história. Se trabalharem com a centralização e a verticalização da gestão, como é da cultura mais tradicional de nossas Forças Armadas, de inspiração francesa e alemã, vão burocratizar e paralisar a administração. Ao contrário, se adotarem como método a coordenação e a cooperação, a grande influência norte-americana junto aos oficiais que integraram a Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália, durante a 2ª Guerra Mundial, vão ajudar o governo a melhorar sua performance administrativa e capacidade operacional.
Houve uma gritaria grande por causa das exonerações em massa na Casa Civil, que tende a se reproduzir em outras pastas, principalmente dos cargos comissionados. O ministro Onyx Lorenzoni justificou a decisão como uma necessidade de alinhamento com a nova política do governo. Os petistas já haviam sido desalojados com a saída da presidente Dilma Rousseff, exceto àqueles que aderem a qualquer governo. O estrilo da oposição não faz sentido, porque é até uma questão de respeito à vontade das urnas ocupar esses cargos com quem venceu as eleições. O ministro, porém, vai descobrir o que é um jabuti em cima da árvore. Como se sabe, jabuti não sobe em árvore, alguém pôs ele lá, como na velha fábula.
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Luiz Carlos Azedo: Ruptura sem diplomacia
“O alinhamento proposto por Bolsonaro é o eixo político representado pelo presidente dos EUA, Donald Trump, e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu”
O traço mais marcante da posse dos novos ministros ontem foi a cordial e diplomática transmissão de cargo entre os ministros que assumiram suas funções e a equipe do ex-presidente Michel Temer, mesmo em setores onde mudanças estruturais acabaram com ministérios importantes. O ex-ministro da Segurança Pública Raul Jungmann foi tratado com toda a deferência pelo novo ministro da Justiça, Sérgio Moro, assim como o ex-ministro Torquato Jardim. A exceção foi a sucessão no Itamaraty, onde o ex-chanceler Aloysio Nunes Ferreira fez um longo discurso em defesa das melhores tradições da diplomacia brasileira e foi calorosa e longamente aplaudido pelos diplomatas presentes, muito mais do que o novo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.
É muito raro o ministro que sai ser muito mais aplaudido do que o ministro que entra, ainda mais num ambiente cujo cerimonial é dos mais rigorosos e as disputas ocorrem com punhos de renda. Araújo, porém, foi corajoso. Num discurso no qual não conseguia esconder a tensão, misturou São João Batista com Renato Russo e pregou uma política externa missionária, anti-iluminista e antiglobalista, nacionalista e assumidamente de cunho religioso. “Não mergulhemos nessa piscina sem água que é a ordem global”. Segundo ele, o Itamaraty “existe para o Brasil e não para a ordem global”. O alinhamento proposto por Bolsonaro é o eixo político representado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Mesmo diante de uma plateia que aproveitou a solenidade para mandar um recado malcriado ao novo chanceler, Araújo não deixou nenhuma dúvida de que vai realmente chacoalhar o Itamaraty.
O problema da nova política externa, porém, não é a sintonia com o discurso de Bolsonaro, mas a necessidade de se posicionar estrategicamente em relação ao comércio exterior, à política nacional de defesa e ao contato com os vizinhos, num mundo no qual o eixo do comércio mundial se deslocou do Atlântico para o Pacífico. O Brasil não pode entrar de cabeça na guerra comercial dos Estados Unidos contra a China, que se transformou no nosso maior parceiro comercial, ainda mais sem ganhar nada em troca.
A propósito, a medida provisória do presidente Jair Bolsonaro publicada ontem no Diário Oficial respalda Araújo na guinada à direita na política externa brasileira. Mudar não somente o estilo, mas o eixo de atuação da nossa diplomacia. A MP altera trecho da lei que define o regime jurídico dos servidores do Serviço Exterior Brasileiro. Abriu espaço para que não diplomatas possam exercer chefia. A Lei nº 11.440, de 29 de dezembro de 2006, determinava que “o Serviço Exterior Brasileiro, essencial à execução da política exterior do Brasil, constitui-se do corpo de servidores, ocupantes de cargos de provimento efetivo, capacitados profissionalmente como agentes do Ministério das Relações Exteriores, no Brasil e no exterior, organizados em carreiras definidas e hierarquizadas”. O novo texto ressalva nomeações para “cargos em comissão e funções de chefia, incluídas as atribuições correspondentes, nos termos do disposto em ato do Poder Executivo.”
Congresso
Além disso, embora não dependa da medida provisória, pois o cargo é de livre nomeação da Presidência, essa mudança robusteceu as especulações de que um dos filhos do presidente da República, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), pode vir a ser nomeado o novo embaixador em Washington . Deputado mais votado do país, é um dos porta-vozes da nova política externa e esteve nos Estados Unidos logo após as eleições, para estreitar as relações do pai com o governo norte-americano, atropelando o Itamaraty. Além disso, foi um dos principais padrinhos da indicação de Araújo, alinhado às teses do filósofo Olavo de Carvalho, ideólogo da família Bolsonaro.
Eduardo Bolsonaro é homem de confronto e não de conciliação. No momento, não é indispensável na Câmara, pois o que predomina na relação do novo governo com a Casa é a composição. Ontem, o presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE), anunciou o apoio da bancada de seu partido à candidatura de Rodrigo Maia (DEM-RJ), adesão que praticamente consolida seu favoritismo, porque pode unificar a base governista e dividir a oposição. O adversário mais forte é o vice-presidente da Casa, Fábio Ramalho (MDB-MG), muito querido entre os colegas.
Tudo indica que o acordo foi uma operação casada muito além da garantia de que o PSL terá o controle da Comissão de Constituição e Justiça da Casa, uma vez que Bivar também anunciou a candidatura do senador Major Olímpio à Presidência do Senado. Com grande votação em São Paulo, pode vir a ter o apoio dos senadores do DEM e outros partidos da base do governo. Mesmo assim, o favorito na disputa pelo comando do Senado é Renan Calheiros (MDB-AL), que já presidiu a Casa por quatro vezes, mas até agora não admitiu sua candidatura. Renan não teme a disputa, teme uma liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio inviabilizando sua candidatura.
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Luiz Carlos Azedo: O governo da ordem
“Bolsonaro promete um governo comprometido com a meritocracia, a honestidade e a eficiência. É música para a maioria da sociedade”
Para não chover no molhado, direi que o momento mais simbólico da posse de Jair Bolsonaro foi aquele em que passou em revista a Guarda Presidencial, como comandante supremo das Forças Armadas, depois de jurar a Constituição. Foi o único instante em que não sorriu; com o cenho franzido, ao contrário, chorou. Como velho repórter, se tivesse oportunidade, perguntaria o que passou pela sua cabeça naquele primeiro e breve momento de “solidão do poder”. Bolsonaro sabe que jamais chegaria à Presidência a não ser pelo voto.
Como os generais de quatro estrelas Hamilton Mourão, seu vice-presidente, e Augusto Heleno, o novo chefe do Gabinete de Segurança Institucional, faz parte de uma geração que optou pela carreira militar quando o Exército ainda era a via de acesso ao Palácio do Planalto, mas teve essa ambição política frustrada pela redemocratização do país, em 1985. Sua indisciplina acabou abortando a carreira militar. A opção pela política, porém, demonstrou-se a alternativa acertada. Ninguém exerce seis mandatos na Câmara impunemente. Por caminhos tortuosos, o capitão reformado enxergou na escuridão e agora é o presidente da República, depois de 30 anos de vida política.
Não foi à toa, portanto, que fez um discurso mais conciliador e apelou aos antigos colegas durante a sessão de posse no Congresso. Deixou muito claro que conta com o apoio do parlamento para aprovar as reformas e viabilizar o seu governo. No decorrer deste mês, esse discurso terá que ganhar forma nas articulações para as Mesas da Câmara e do Senado. O grande divisor de águas de seu governo será a aprovação da reforma da Previdência, sem ela estará condenado a uma espécie de feijão com arroz neoliberal, restringindo a eficácia das medidas econômicas que estão sendo elaboradas pelo seu ministro da Fazenda, Paulo Guedes. Que ninguém se surpreenda se fizer uma composição de última hora em favor da reeleição de Rodrigo Maia, atual presidente da Câmara, que tem afinidades programáticas e regionais com Guedes.
Além do apoio maciço de militares e cristãos, como gosta de ressaltar o professor da UnB Elimar Pinheiro, sociólogo e cientista político, a vitória de Bolsonaro tem um ingrediente antropológico, que as análises políticas de seus adversários e muitos analistas demoraram a captar: o apoio das famílias como instituição. Numa sociedade em que a desagregação da família unicelular patriarcal se transformou numa tragédia social por causa do desemprego, do crime organizado e dos péssimos serviços de saúde e educação, esse fenômeno emergiu na campanha eleitoral como uma espécie de força popular subterrânea, mobilizada por católicos e evangélicos. O discurso contra a corrupção e a violência trouxe o apoio da classe média.
O muro caiu
“Podemos, eu, você e as nossas famílias, todos juntos, reestabelecer padrões éticos e morais que transformarão nosso Brasil”, conclamou Bolsonaro no discurso após a transmissão do cargo. Essa mobilização lhe dará meios de acuar um Congresso fragilizado pela Operação Lava-Jato: “A corrupção, os privilégios e as vantagens precisam acabar. Os favores politizados, partidarizados devem ficar no passado, para que o Governo e a economia sirvam de verdade a toda Nação”. Bolsonaro promete um governo comprometido com a meritocracia, a honestidade e a eficiência. É música para a maioria da sociedade.
“Me coloco diante de toda a nação, neste dia, como o dia em que o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”, bradou, para delírio de seus partidários. “Não podemos deixar que ideologias nefastas venham a dividir os brasileiros. Ideologias que destroem nossos valores e tradições, destroem nossas famílias, alicerce da nossa sociedade”. O Brasil nunca foi socialista, o nosso gigantismo estatal é uma herança do nacional- desenvolvimentismo de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e, sobretudo, dos governos militares. Isso é o que menos importa. Bolsonaro jogou no colo da oposição, principalmente do PT, cujo envolvimento com a corrupção desmoralizou toda a esquerda, o esgotamento histórico do modelo socialista e a crise da socialdemocracia, como se o Muro de Berlim estivesse caindo novamente. Funciona, a esquerda brasileira ainda acha que o muro só havia caído na cabeça dos militantes do antigo PCB.
“Temos o grande desafio de enfrentar os efeitos da crise econômica, do desemprego recorde, da ideologização de nossas crianças, do desvirtuamento dos direitos humanos, e da desconstrução da família. Vamos propor e implementar as reformas necessárias. Vamos ampliar infraestruturas, desburocratizar, simplificar, tirar a desconfiança e o peso do Governo sobre quem trabalha e quem produz”, promete.
Bolsonaro anuncia um governo da ordem: “Também é urgente acabar com a ideologia que defende bandidos e criminaliza policiais, que levou o Brasil a viver o aumento dos índices de violência e do poder do crime organizado, que tira vidas de inocentes, destrói famílias e leva a insegurança a todos os lugares. Nossa preocupação será com a segurança das pessoas de bem e a garantia do direito de propriedade e da legítima defesa, e o nosso compromisso é valorizar e dar respaldo ao trabalho de todas as forças de segurança”.
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Luiz Carlos Azedo: O lugar de Temer
“Bolsonaro servirá de segunda baliza para a avaliação do governo Temer. A primeira foi o desastroso governo de Dilma Rousseff.”
Para ser presidente eleito pelo voto direto é preciso grande dose de sorte numa conjuntura favorável, além da capacidade de catalisar os sentimentos mais profundos da maioria dos eleitores. Por isso, os políticos dizem que a Presidência é “destino”. Para ser o vice, não; a sorte e os votos vêm de carona. O mais importante é a capacidade de se articular politicamente com aquele que reúne essas condições e receber o apoio de seu próprio partido e das forças aliadas. Quanto menos quereres do titular, mais perigoso é o vice. O Brasil já teve 24 vice-presidentes da República, alguns deles chegaram a assumir em caráter permanente a Presidência. O último é o presidente Michel Temer, efetivado no cargo com o impeachment de Dilma Rousseff. Hoje, passará a faixa para o presidente eleito, Jair Bolsonaro, cujo vice é o general Hamilton Mourão, que herdará o “carma”.
Há vice-presidentes que deixaram seu nome na memória política do país. O primeiro foi Floriano Peixoto, o “marechal de ferro”. No dia da Proclamação da República, encarregado da segurança do ministério do Visconde de Ouro Preto, Floriano se recusou a atacar os revoltosos. Justificou sua insubordinação, respondendo ao próprio: “Sim, mas lá (no Paraguai) tínhamos em frente inimigos e aqui somos todos brasileiros!” Floriano Peixoto deu voz de prisão ao Visconde de Ouro Preto, gesto que viria a se repetir algumas vezes ao longo da República. Vice-presidente do Governo Provisório, foi eleito vice-presidente constitucional e assumiu a Presidência em 23 de novembro de 1891, com a renúncia do marechal Deodoro da Fonseca. Governou por decreto, como se fosse um ditador, recorrendo, por longo período, ao “estado de sítio”. Floriano inaugurou a política de culto à personalidade e o presidencialismo vertical na política republicana, mas passou o cargo ao sucessor eleito, o presidente Prudente de Moraes. Eleito em 1918, com Rodrigues Alves, que faleceu antes de tomar posse, Delfim Moreira exerceu a Presidência interinamente até a eleição de Epitácio Pessoa, no ano seguinte, voltando à vice-presidência. Outra transição pacífica.
As Constituições de 1934 e 1937, que davam mais poderes ao ditador Getúlio Vargas, extinguiram o cargo, que somente foi restaurado pela Constituição de 1946. Até a Emenda Constitucional 9, de 1964, do regime militar, o vice-presidente era eleito separadamente do presidente, da mesma forma como ocorria na Primeira República. O presidente João Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964, foi eleito vice-presidente da República duas vezes: a primeira, com Juscelino, em 1950, tendo mais voto do que ele; a segunda, com Jânio Quadros, nas eleições de 1960, graças à manobra dos sindicalistas paulistas, que lançaram a chapa Jan-Jan e “cristianizaram” o marechal Henrique Teixeira Lott, candidato do PTB. Com a espetacular e imprevisível renúncia de Jânio, Jango assumiu o governo, depois de uma crise na qual os militares ligados à UDN tentaram impedir sua posse. Acabou destituído pelos militares em 31 de março de 1964. O resto da história todos conhecem. Foram 20 anos de ditadura.
O tempo dirá
O presidente José Sarney também era vice; assumiu em razão da morte de Tancredo Neves, eleito por um colégio eleitoral, em 1985. Exerceu a Presidência por cinco anos, operou com sucesso a transição à democracia e nos deixou como legado a Constituição de 1988 e melhores indicadores sociais em todas as áreas, mas também a maior hiperinflação de nossa história. Coube a outro vice-presidente, Itamar Franco, que assumiu a Presidência após o impeachment de Collor de Mello, em 1992, enfrentar o problema. Para isso, depois de tentativas fracassadas, nomeou para o Ministério da Fazenda o senador Fernando Henrique Cardoso, seu chanceler, que montou uma equipe econômica chefiada pelo economista Pedro Malan. O Plano Real, criado para acabar com a hiperinflação, com nova troca de moeda e contenção de gastos, foi um sucesso, o que acabou garantindo a eleição de FHC à Presidência por duas vezes, ambas com apoio de Itamar.
Voltando ao ponto de partida: só o tempo dirá o lugar exato do presidente Michel Temer na História. Ao contrário da narrativa do golpe, Temer assumiu a Presidência por um imperativo constitucional, em razão de um impeachment aprovado pelo Senado, sob a presidência do ministro Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Vice-presidente por duas vezes eleito na chapa da petista, recebeu o governo completamente em colapso, aparelhado pelo PT e aliados, com a Petrobras no fundo do poço, por causa do escândalo do “petrolão”. O país estava mergulhado na maior recessão de sua história, com 14 milhões de desempregados; e os principais partidos, na mira da Operação Lava-Jato e desmoralizados pelo envolvimento com a corrupção. Temer montou uma boa equipe econômica, chefiada por Henrique Meirelles, adotou critérios de excelência e mérito no comando das estatais, aprovou limites para expansão de gastos, fez a reforma trabalhista. Assim, conseguiu domar a inflação, reduzir os juros e repor a economia nos trilhos do crescimento, ainda que em marcha lenta e sem resolver o problema de 12 milhões de desempregados.
Não é pouca coisa. Entretanto, duas denúncias de corrupção da Lava-Jato, com base na delação premiada do empresário Joesley Batista, embora rejeitadas pelo Congresso, jogaram sua reputação na lona e deixaram a reforma da Previdência em segundo plano. Sem maniqueísmo, Temer passará a faixa presidencial para Jair Bolsonaro com a espada da Justiça sobre a cabeça, mas com a elegância de um democrata que cumpriu seu dever. Podemos dizer que um novo ciclo será aberto. O sucesso ou não do governo Bolsonaro servirá de segunda baliza para a avaliação do governo Temer. A primeira foi o desastroso governo de Dilma Rousseff.
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Luiz Carlos Azedo: Quem é quem no governo
‘A muvuca será protagonizada pelos núcleos político e ideológico, que são os principais eixos da articulação com o Congresso e a sociedade’
Concluída a formação de sua equipe de governo, a chave para que o presidente eleito Jair Bolsonaro consiga implementar as medidas mais importantes do seu programa, a começar pelo ajuste fiscal e a reforma da Previdência, é a sua relação com o Congresso. Até agora, sustentou a promessa de não ceder ao toma lá, dá cá, loteando a Esplanada dos Ministérios entre os partidos que o apoiam, mas não conseguiu ainda viabilizar candidaturas robustas para o comando do Senado e da Câmara. A conversa de que não vai interferir na disputa é lorota: se tiver força, viabilizará aliados de confiança no comando do Congresso.
Bolsonaro montou um governo com cinco eixos: o militar, o econômico, o político, o ideológico e o técnico. Por enquanto, quem dá as cartas na administração são a troica de generais Augusto Heleno (GSI), na foto acima, Carlos dos Santos Cruz (Secretaria de Governo) e Fernando de Azevedo e Silva (Defesa); na equipe econômica formada pelo ministro da Fazenda, Paulo Guedes, destacam-se o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, o presidente do BNDES, Joaquim Levy, e o presidente da Petrobras, Roberto Castelo Branco, todos muito bem blindados na política. No núcleo técnico, o superministro da Justiça, Sérgio Moro; o ministro de Minas e Energia, Bento Costa e Lima, e o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, os dois últimos, militares.
A muvuca no governo será protagonizada pelos núcleos político e ideológico, que são os principais eixos da articulação com a política e a sociedade, e dos problemas com o Congresso. No núcleo político, o ministro da Casa Civil, que coordena a transição, ainda não conseguiu formar uma base suficientemente robusta e coesa para aprovar o ajuste fiscal e a reforma da Previdência. Os ministros do Desenvolvimento Social, Osmar Terra (PMDB-RS); da Agricultura, Tereza Cristina (DEM-MT); e da Saúde, Luiz Mandeta (DEM-MS); têm amplo apoio político no Congresso à frente das respectivas pastas, mas são porta-vozes de interesses segmentados e/ou corporativistas. Além disso, não darão muito pitaco na relação com o Congresso, a cargo de Lorenzoni e do general Santos Cruz.
O grande balacobaco é a pauta ideológica do governo, na qual as estrelas serão os ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e o ministro da Educação, Ricardo Velez Rodrigues. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, condenado por improbidade administrativa, já foi abatido na pista. Ambos são pautados pelo filósofo Olavo de Carvalho e pelos filhos de Jair Bolsonaro, principalmente o deputado federal eleito por São Paulo com a maior votação do país, Eduardo Bolsonaro. Flávio Bolsonaro, senador eleito pelo Rio de Janeiro, teve que baixar a bola por causa do escândalo protagonizado por seu ex-assessor Fabrício Queiroz, que mantinha uma caixinha fabulosa no seu gabinete parlamentar na Assembleia Legislativa fluminense. Vivíssimo, Queiroz tomou chá de sumiço, já faltou a dois depoimentos e ninguém sabe por onde anda.
Combustão
Do ponto de vista eleitoral, a pauta ideológica do governo Bolsonaro mira o PT como inimigo principal. É extremamente conservadora do ponto de vista dos costumes, mas continua sendo uma pauta identitária, com sinal trocado. A pauta do país são a violência, o desemprego e a saúde pública, a infraestrutura e o ajuste fiscal, principalmente, temas sobre os quais o governo precisará dar respostas objetivas. Nesse aspecto, a relação com o Congresso é fundamental. A pauta ideológica tem combustão espontânea no parlamento, mas o mesmo não acontece com as demais tarefas do governo. As raposas políticas que sobreviveram ao tsunami eleitoral de outubro passado sabem disso, entre as quais, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que sonha com a reeleição, e o ex-presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), que está costeando o alambrado para voltar ao comando do Congresso.
Um capítulo à parte no jogo político são os três filhos de Bolsonaro, Eduardo, Flávio e Carlos, que cuida da comunicação, que terão protagonismo político imprevisível. Até agora, não desceram do palanque eleitoral e volta e meia criam constrangimentos para o pai, mas nem por isso perderam a condição de interlocutores diretos do presidente da República. A bancada do PSL também vai dar trabalho, porque chega com muita gana de dar as cartas no Congresso, o que naturalmente não é fácil para quem ainda está arrumando a mudança.
Bolsonaro montou um governo em bases inéditas, sem compartilhar o poder com os partidos. Está à sombra das Forças Armadas, em razão da forte presença militar no Palácio do Planalto. Não está claro se gerenciará o governo pela demanda da sociedade, o que depende muito do desempenho dos ministros das atividades-fim, ou se adotará uma estrutura vertical, na qual os ministros da área meio, sobretudo os militares, funcionarão como correias de transmissão. Uma coisa, porém, é certa: continuará se relacionando diretamente com seus eleitores pelas redes sociais, e se digladiará com a imprensa sempre que for criticado.
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Luiz Carlos Azedo: O “poder moderador”
“A grande imprensa e o Ministério Público emulam com o Supremo como “contrapeso” aos poderes Executivo e Legislativo”
Quando tentou revogar por liminar a jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) que determina a execução imediata de pena após condenação em segunda instância, o ministro Marco Aurélio Mello, com toda a sua experiência, colocou em xeque o presidente da Corte, Dias Toffoli, que se viu obrigado a sustar a liminar tão logo isso foi solicitado pelo Ministério Público Federal (MPF). A decisão representaria a libertação imediata do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de mais 169 mil presos, entre os quais outros notórios autores de crimes de colarinho branco e alguns milhares de estupradores e assassinos.
Era meio óbvio que a liminar monocrática, no último dia antes do recesso do judiciário, iria provocar uma comoção popular e grande estresse político. A repercussão foi tanta que a questão chegou a entrar na pauta da reunião do Alto Comando do Exército, que já estava agendada. Esse não é um assunto sobre o qual cabe aos militares deliberar, mas os desdobramentos políticos e sociais possíveis, ao se imaginar o circo que seria armado em torno da libertação de Lula e seu deslocamento até São Bernardo do Campo, em São Paulo, não poderiam ser subestimados. Seria o primeiro ato da campanha eleitoral de 2022, iniciada antes mesmo de o presidente eleito tomar posse. Fora do poder, Lula não sabe fazer outra coisa.
Digamos que o papel de “poder moderador” que o STF avocou para si, a partir do princípio de que é o guardião da Constituição de 1988, provavelmente entraria em colapso, tamanha a escalada da tensão entre os poderes, ainda mais às vésperas da posse do novo presidente da República, Jair Bolsonaro, e diante do fato de que Marco Aurélio, em outra decisão, também invadiu as atribuições do Senado. O ministro do STF determinou que eleição do presidente do Senado seja feita com voto aberto, quando o regimento daquela Casa diz que o voto deve ser secreto, exatamente para impedir a interferência de outros poderes.
No Brasil, com suas peculiaridades políticas, o “poder moderador” é uma herança do Império. Foi incorporado à Constituição de 1824 por Dom Pedro I, inspirado no esquema clássico de separação de poderes. Montesquieu, que os dividiu em Executivo, Legislativo e Judiciário, mas acrescentou mais um: o poder real. Na França, o modelo parlamentarista inglês, no qual o rei não governa, nunca foi adotado. Nas monarquias constitucionais, em tese, o soberano deveria moderar as disputas entre os poderes, buscando a conciliação; na prática, o que acontecia era exatamente o contrário.
“Quarto Poder”
Em 1889, com a proclamação da República, o Poder Moderador foi extinto no Brasil, mas na prática seu papel passou a ser exercido pelos militares, o que provocou uma sucessão infindável de crises políticas. Desde a questão militar, após a Guerra do Paraguai, na década de 1890, até 1988, quando foi promulgada a atual Constituição, militares e políticos se digladiaram em vários momentos (1889, 1920, 1930, 1935, 1937, 1845, 1954, 1958, 1962, 1964, 1968, 1985), com episódios dramáticos. Os militares sempre se acharam moralmente superiores aos políticos civis, porque se consideram os “salvadores da pátria”; e os políticos sempre temeram os militares, porque atuaram na política com a força das armas na maioria das vezes. As exceções foram as eleições de Floriano Peixoto (1891), Hermes da Fonseca (1910) e Eurico Gaspar Dutra (1946), que chegaram ao poder pelo voto e, depois, passaram a Presidência para civis igualmente eleitos: Prudente de Moraes (1898), Venceslau Brás (1914) e Getúlio Vargas (1951), respectivamente.
No Estado democrático de direito, o papel das Forças Armadas como garantidor da lei e da ordem é subordinado inteiramente aos demais poderes. É o que acontece nas democracias ocidentais. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte funciona como guardiã dos direitos dos cidadãos, tendo por base o “Bill of Rights” (Carta de Direitos), como são chamadas as dez primeiras emendas da Constituição, que oferecem proteções específicas de liberdade individual, religiosa e de justiça, além de restringir os poderes do governo, com a grande imprensa americana no papel de “Quarto Poder”. Essa expressão tem origem na tradição liberal britânica, na qual o papel da imprensa é servir aos propósitos dos cidadãos contra os abusos de poder. Para cumprir esse papel, é necessário que a imprensa adote uma postura independente em relação aos grupos dominantes.
Aqui no nosso país, após a redemocratização, a grande imprensa e o Ministério Público, muitas vezes em dobradinha, passaram a reivindicar e disputar esse papel de “Quarto Poder”, emulando com o Supremo Tribunal Federal como “contrapeso” aos poderes Executivo e Legislativo, principalmente em relação aos costumes políticos e à gestão dos recursos públicos. Essa tensão, própria dos regimes democráticos, porém, com o novo protagonismo das redes sociais, chegou ao ápice com a Operação Lava-Jato e a crise dos partidos políticos tradicionais no país. A eleição de Jair Bolsonaro, de certa forma, vira uma página desse processo, mas abre outra: a volta dos militares ao poder político, pelo voto. De quem será o papel de “poder moderador”?
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