Nas entrelinhas
Luiz Carlos Azedo: Eles estão voltando
“Os dois grandes eixos de discussão no Congresso são o apoio às reformas, principalmente a da Previdência, e o fortalecimento da Câmara e do Senado”
As articulações para ocupação de espaços nas Mesas do Congresso e nas comissões permanentes da Câmara e do Senado já estão em pleno andamento. Há políticos veteranos que sobreviveram ao tsunami eleitoral, novatos que nunca exerceram um mandato e alguns que estão voltando ao Congresso ou participavam de legislativos estaduais e municipais. Nenhum dos 513 deputados e 81 senadores é bobo. Não existe essa categoria no parlamento, como dizia Ulysses Guimarães. Os dois grandes eixos de discussão no Congresso são o apoio às reformas que serão encaminhadas pelo governo, principalmente a da Previdência; e o fortalecimento da Câmara e do Senado, que vêm de eleições nas quais ficou patente o descolamento de ambos da sociedade. A relação dos políticos com o Executivo e o Judiciário será balizada pela eleição das Mesas da Câmara e do Senado.
Vamos às reformas. São quatro as mais importantes, mas a da Previdência é uma espécie de Rubicão para o governo Bolsonaro, sem a qual a economia não deslanchará. A dificuldade do governo não é de natureza técnica, a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, sabe o que precisa fazer. O problema é político. A base governista é muito heterogênea e foi articulada a partir de frentes parlamentares com interesses específicos, como as do agronegócio, dos evangélicos e da bala. É mais fácil atrair setores da oposição para a reforma da Previdência, por exemplo, do que a bancada da bala, formada majoritariamente por policiais e militares que não querem abrir mão de seus privilégios. Além disso, a alta burocracia está mobilizada e faz um lobby poderoso, encabeçado por magistrados e procuradores.
A segunda reforma mais importante e difícil é a tributária. A resistência é inercial, alguém já disse que imposto bom é imposto velho. Mas a carga tributária e a burocracia são brutais, como sustenta o presidente Jair Bolsonaro. Com a tecnologia ficou muito fácil arrecadar, mas cada vez mais difícil, financeiramente, pagar. Há um clamor na sociedade, principalmente na economia formal, a favor da redução de impostos. Talvez seja a reforma mais popular entre agentes econômicos, principalmente empreendedores e assalariados. O problema é o pacto federativo, entre a União, que arrecada muito mais e gasta muito pior, e os estados e municípios, os entes federados. O nó górdio da reforma é o Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS), arrecadado na origem; a maioria dos estados quer que seja recolhido no destino, como já acontece com o combustível, mas os estados produtores são muito mais poderosos do que os consumidores. O governo não sabe ainda como desatar esse nó.
Casa de enforcado
A questão do combate à corrupção e à criminalidade é a terceira reforma, cuja formulação está a cargo do ministro da Justiça, Sérgio Moro. A Lava-Jato teve um papel decisivo na eleição, mas também é um trauma para políticos, principalmente os que sobreviveram. Endurecer ainda mais o jogo em relação ao caixa dois eleitoral e à improbidade administrativa é como falar de corda em casa de enforcado, no caso, o Congresso. E, depois do caso Queiroz, o senador Flávio Bolsonaro(PSL-RJ) é primeiro da fila do cadafalso. Mas, em contrapartida, o endurecimento das penas para crimes como latrocínio, feminicídio e tráfico de drogas é barbada. Soa como música para a maioria dos parlamentares, que também não são tão resistentes à flexibilização do porte de armas, tema favorito da chamada Bancada da Bala e do próprio presidente da República.
A quarta questão, na verdade, é uma contrarreforma. Trata-se da questão dos costumes e do Estado laico, em torno da qual se dará um grande embate entre os setores conservadores que serviram de vanguarda para a campanha de Bolsonaro e as forças derrotadas na eleição, que buscam refúgio nessa pauta. É uma agenda que envolve a questão dos direitos humanos e dos direitos civis, em conexão direta com o mundo da cultura e da educação. Embora sejam temas que não tratam diretamente das relações de poder entre os políticos, essa agenda é a que tem mais conexão com a sociedade civil e suas agências, com forte repercussão no Congresso. Outra agenda emergente é a ambiental, em evidência novamente por causa da tragédia de Brumadinho (MG). É uma agenda de resistência, que tem muito a ver com a centralidade econômica da produção de commodities de minérios e agrícolas, hoje o polo mais dinâmico da nossa economia.
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Luiz Carlos Azedo: Viver é muito perigoso
“Enquanto Bolsonaro se recupera da cirurgia, o país acompanha comovido o trabalho de resgate dos corpos das vítima de Brumadinho, na esperança de eventuais sobreviventes”
Foi bem-sucedida cirurgia à qual foi submetido ontem o presidente Jair Bolsonaro, para retirar a bolsa de colostomia e religar o trânsito intestinal. Segundo a Presidência, “o presidente possuía em razão das outras duas cirurgias uma quantidade muito grande de aderências. E essas aderências exigiram do corpo médico uma verdadeira obra de arte em relação à cirurgia”. A operação durou oito horas, mais do que o dobro do previsto. Foi mais complexa do que se imaginava.
Enquanto Bolsonaro se recupera da cirurgia, a vida segue seu perigoso curso, como diria o jagunço Riobaldo, personagem de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. O país acompanha comovido o trabalho de resgate dos corpos das vítimas, na esperança de eventuais sobreviventes, do rompimento da represa de rejeitos de minérios de Brumadinho, na Grande Belo Horizonte. Essa é a nossa maior tragédia humana do gênero, que já contabiliza mais de 60 mortos e quase três centenas de pessoas desaparecidas. Foi muito mais grave do que a de Mariana, ocorrida há três anos e dois meses, cujo impacto ambiental no Rio Doce foi maior do que o atual, que transformou num rio de lama de minério o Córrego do Feijão, afluente do Rio Paraopeba, que deságua no São Francisco.
Equipes de resgate do Corpo de Bombeiros e da Defesa Civil do governo de Minas foram reforçadas por tropa especializada de militares israelenses, enquanto efetivos e equipamentos do Exército, disponíveis em Juiz de Fora e Belo Horizonte, não foram mobilizados ainda, aparentemente por entraves burocráticos. É muita tolice criticar a presença dos israelenses, que têm equipes treinadas para resgates em escombros. Embora nunca tenham passado por uma situação igual no seu país, os especialistas israelenses também se destacaram no México, socorrendo vítimas de terremotos.
Há muito mais do que marketing político na operação. Israel quer estreitar relações com o Brasil e vender sua alta tecnologia. Há empresas brasileiras que também desejam fazer isso, mas foram desconsideradas pela Vale, que optou por economizar naquilo que não deveria, principalmente depois da tragédia de Mariana. Como se sabe, metade da Samarco, empresa responsável pela tragédia de Mariana, é da Vale que, por sua vez, também não assume a responsabilidade pelo que aconteceu em Brumadinho. Não devemos demonizar a mineração, mas isso não significa passar a mão na cabeça da diretoria da Vale, cujo presidente, se fosse japonês, já teria feito harariqui.
Meio ambiente
O governo federal também está sendo obrigado a rever suas posições em relação à questão das licenças e fiscalização ambientais, como fez com o Acordo de Paris. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, faz malabarismos conceituais para explicar a mudança de posição em relação aos controles dos órgãos ambientais. A demonização do Ibama e o ICMBio, discurso fácil até agora, está diante do outro lado da moeda das licenças ambientais. A diferença é que em outras áreas, que o ministro chama de baixo risco, populações ribeirinhas e indígenas são afetadas sem a mesma letalidade, como no caso de Belo Monte. Mas o drama humano também existe, com o desenraizamento, a favelização, o banditismo e a prostituição.
“Viver é muito perigo, seu moço!”A frase antológica do jagunço mineiro é verdadeira. Vale para as tragédias e para a política. Em menos de 30 dias, o novo governo do país está de cara com essa realidade. Rapidamente está descobrindo que boa parte dos problemas que enfrenta não decorre de ideologias, mas da realidade objetiva e das contingências do nosso desenvolvimento. Por isso, são muito importantes os projetos e estratégias; há problemas que não se resolvem na canetada, mas no esforço continuado e na mobilização permanente do Estado, dos agentes econômicos e da sociedade. Isso não se consegue com bravatas e frases de efeito, requer a construção de amplos consensos e a participação dos demais atores políticos.
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Luiz Carlos Azedo: O paciente
Bolsonaro quer abreviar o período de repouso, após cirurgia de retirada de colostomia, o que não é recomendado pelos médicos; pretende montar um “gabinete presidencial” no próprio hospital
Inspirado no livro de investigação médica O paciente (Editora Cultura), do historiador Luís Mir, o filme de Sérgio Rezende sobre a morte de Tancredo Neves, o presidente da República que não chegou a tomar posse na redemocratização do país, é uma boa pedida para o fim de semana. Mostra o que não deve ser feito com um paciente quando ele é o mandatário da nação. Isto é, dar mais relevo às contingências políticas e ao seu papel na História do que ao tratamento médico adequado para a enfermidade que o acomete.
É óbvio que a referência ao filme decorre do fato de que o presidente Jair Bolsonaro será internado hoje, no Hospital Alberto Einstein, em São Paulo, para ser operado amanhã bem cedo. O objetivo é a retirada da bolsa de colostomia implantada devido à complexa cirurgia pela qual passou em setembro, depois de ser esfaqueado durante ato de campanha eleitoral em Juiz de Fora. O episódio dramático comoveu o país e teve um papel decisivo na eleição. A cirurgia está programada desde dezembro, quando deveria ter sido realizada. Durante dois dias, o vice-presidente, Hamilton Mourão, assumirá o comando do Palácio do Planalto. Sua interinidade durante a recente viagem de Bolsonaro a Davos, na Suíça, mostrou que está muito à vontade no cargo.
Bolsonaro goza de excelente situação clínica. Tem demonstrado até grande vigor físico, apesar das limitações impostas pelo colostomia, haja vista a sua carregada agenda presidencial. Segundo o porta-voz da Presidência, general Otávio Rego Barros, após a cirurgia, “os médicos indicam e iluminam a necessidade de restrito descanso de 48 horas”. Mourão já anunciou que deverá comandar uma reunião do conselho de governo na próxima terça-feira, no Palácio do Planalto. Bolsonaro viaja acompanhado da primeira-dama, Michelle, do ministro Augusto Heleno (GSI) e do próprio Rêgo Barros. Vai direto do aeroporto para o hospital.
Bolsonaro e seus assessores mais próximos tentaram abreviar o período de repouso absoluto, o que não é recomendado pelos médicos, e ainda pretendem montar um “gabinete presidencial” no próprio hospital. Ao contrário de Tancredo, que escondeu a doença enquanto pôde, Bolsonaro sempre tratou com transparência a sua real situação de saúde. Além disso, o contexto é completamente diferente: Tancredo se elegeu num colégio eleitoral, desafiando o regime militar; Bolsonaro foi vítima de uma tentativa de homicídio em plena campanha eleitoral, por muito pouco não morreu, e foi eleito pelo voto direto.
Caso Tancredo
O filme, como o livro de Mir, é pedagógico. O drama de Tancredo começou três dias antes da posse, quando sua saúde se tornou muito frágil e a capacidade de sobreviver até a cerimônia de posse ficou ameaçada. Othon Bastos faz uma interpretação esplendorosa, com a grande atriz Esther Góes no papel da primeira-dama Risoleta. Os atores Otávio Müller, Leonardo Medeiros, Eucir de Souza e Paulo Betti interpretam a confusa equipe médica, que se deixa pressionar pelos políticos, pela fogueira de vaidades e pelo estrelismo individual.
A grande contradição exposta no filme é o tratamento dado ao Tancredo paciente versus o dedicado ao Tancredo presidente, dois pesos e duas medidas que fazem a diferença. O Paciente denuncia erros de diagnóstico, picuinhas e muito ego à margem da ética profissional. Instala-se uma tremenda crise no centro cirúrgico, com desfecho trágico. Nada a ver com a condução dada ao caso de Bolsonaro até agora, com destaque para a equipe médica da Santa Casa de Juiz de Fora, que o salvou da morte. Os médicos dizem que o período de recuperação deve durar dez dias. A Presidência montou uma estrutura em São Paulo para que Bolsonaro receba seus ministros e possa “estabelecer governo efetivo e eficaz”, a partir do terceiro dia de pós-operatório. É aí que está o problema: o mais sensato seria Mourão permanecer como presidente interino até a alta hospitalar. Durante a viagem a Davos, o vice-presidente provou que pode exercer a interinidade sem provocar abalos sísmicos no governo.
Renan e Simone
Líder do MDB, Simone Tebet (MS) conta apenas com os votos dos senadores Jarbas Vasconcelos (PE) e Dario Berger (SC) na sua bancada, de um total de 13 senadores, para disputar a Presidência do Senado. Os demais estão com o senador Renan Calheiros (MDB-AL), que ainda dissimula o jogo, mas é candidatíssimo ao cargo, pela quinta vez. Simone anunciou, porém, que pretende disputar o comando da Casa mesmo que seu nome não seja apoiado pela maioria dos emedebistas. Dos 54 senadores recém-eleitos — de um total de 81 —, apenas 14 são novatos; os demais são políticos escolados. Além de Renan e Simone, Álvaro Dias (Pode-PR), Ângelo Coronel (PSD-BA), Davi Alcolumbre (DEM-AP), Esperidião Amin (PP-SC), Major Olímpio (PSL-SP) e Tasso Jereissati (PSDB-CE) sonham com o comando da Casa. Hoje, Renan teria mais de 45 votos entre os pares. Para enfrentá-lo e reverter a situação, a oposição teria que chegar a um candidato único. A aposta do chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, é Davi Alcolumbre, não é Simone. Meteu a mão nessa cumbuca como um macaco novo.
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Luiz Carlos Azedo: Falta combinar com os russos
“O folclore futebolístico tem tudo a ver com a situação da Venezuela. A ofensiva de Trump e Bolsonaro esbarrou na aliança de Maduro com o presidente russo Vladimir Putin”
Na Copa do Mundo de 1958, na Suécia, o técnico Vicente Feola, em preleção antológica, explicou na prancheta a tática para derrotar a seleção da antiga União Soviética: Nilton Santos lançaria a bola da esquerda do meio de campo para a direita do ataque, nos pés de Garrincha, que driblaria três adversários e cruzaria para Mazola cabecear na grande área. Com ingenuidade ou ironia, não se sabe, o anjo das pernas tortas perguntou: “Seu Feola, o senhor combinou com os russos?”
O folclore futebolístico tem tudo a ver com a situação atual da Venezuela. A ofensiva diplomática protagonizada pelo presidente norte-americano Donald Trump e pelo presidente Jair Bolsonaro contra Nicolás Maduro — que denunciou a autoproclamação do líder do Legislativo, Juan Guaidó, como presidente interino do país como um “golpe de Estado” –, esbarrou na resistência do ministro da Defesa venezuelano, Vladimir Padrino, ao lado da cúpula militar das Forças Armadas do seu país. Mas também na aliança de Maduro com o presidente russo Vladimir Putin, liderando uma coalizão de oito países, o que transformou a Venezuela no epicentro de uma disputa semelhante àquela que ocorre entre potências mundiais no Oriente Médio.
Além da Rússia, Cuba, México, Bolívia, Nicarágua, Turquia, China e Irã apoiam o regime chavista, enquanto Guaidó é reconhecido como presidente interino pelos seguintes países: Estados Unidos, Brasil, Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Guatemala, Honduras, Panamá, Paraguai, Peru e Reino Unido. A União Europeia assumiu uma posição intermediária: a defesa da realização de eleições livres na Venezuela. A crise prossegue sob muita tensão, a qualquer momento pode haver emprego da força por parte dos militares contra a oposição, com o fechamento da Assembleia Nacional e prisão de Guaidó, além de outros líderes oposicionistas. Fala-se em divisão nas Forças Armadas, mas o pronunciamento sinaliza apoio da cúpula militar ao regime.
O presidente Nicolás Maduro, na verdade, é um fantoche da cúpula militar, que controla a maior parte do governo e praticamente todas as empresas estatais. Como o regime não tem mais nenhuma sustentação política da sociedade e a Assembleia Nacional tem mais respaldo popular do que o governo, vive-se uma situação de dualidade de poderes, que pode ter desdobramento trágico, porque o governo perdeu controle da economia, mas não o poder de coerção sobre a sociedade. A repressão política na Venezuela é muito violenta, protagonizada pela Guarda Nacional e pela milícia bolivariana armada, a tropa de choque de Maduro.
Intervenção
Os Estados Unidos solicitaram uma reunião do Conselho de Segurança da ONU para tratar do assunto, logo após o presidente Donald Trump falar que examina todas as possibilidades de intervenção na crise venezuelana, inclusive militar. Maduro ontem mandou fechar a embaixada da Venezuela nos EUA e vai expulsar os diplomatas norte=americanos, o que aumenta a escalada de tensão. Não foi à toa que o presidente em exercício Hamilton Mourão, ontem, descartou a participação do Brasil em qualquer intervenção militar. O envolvimento brasileiro na crise venezuelana é uma ruptura com a tradição do Itamaraty, que costuma operar nos bastidores para saídas negociadas durante as crises nos países vizinhos. Ontem, o Itamaraty anunciou que somente o chanceler Ernesto Araujo falará sobre o tema. O ministro defende o alinhamento automático com Trump e outros falcões da política internacional.
O apoio aberto da Rússia ao regime de Maduro, com quem tem intensa cooperação militar, não deve ser subestimado, embora a situação geopolítica da Venezuela seja completamente diferente da situação, por exemplo, da Síria, onde Putin conseguiu garantir a sobrevivência do regime de Bashar al-Assad, o ditador sírio que se recusou a deixar o poder e os ex-presidentes Bush e Obama tentaram derrubar. Hoje, os Estados Unidos estão se retirando da Síria e os russos continuam por lá, com sua base naval. Na Venezuela, não existe base militar da Rússia, apenas blindados e aviões de caça de fabricação russa.
Em termos militares, o Brasil tem as Forças Armadas mais numerosas da região, contando com 366 mil militares da Força Aérea, Marinha e Exército. A Venezuela fica um pouco atrás, com 365 mil efetivos. O México (267 mil) e a Colômbia (265 mil) seguem de perto; depois, vêm Argentina (79 mil), Peru (78 mil), Chile (67 mil), República Dominicana (58 mil), Equador (41 mil), Bolívia (34 mil), El Salvador (24 mil), Uruguai (22 mil), Guatemala (18 mil), Paraguai (16 mil) e Honduras (15 mil militares). Proporcionalmente, porém, a Venezuela fica no primeiro lugar da lista, com 118 militares por 100 mil habitantes. O Uruguai, fica em segundo, com 65. O Brasil tem apenas 18 militares por cada 100 mil habitantes. Trocando em miúdos, ninguém com juízo apostaria numa guerra com a Venezuela, nem Maduro está em condições de uma iniciativa dessa ordem, mesmo em relação à Guiana. Aí, sim, daria pretexto para uma intervenção militar dos Estados Unidos.
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Luiz Carlos Azedo: Dualidade de poderes
“Grandes manifestações populares, apesar de toda repressão policial e a violência das milícias chavistas, demonstram que a sociedade venezuelana já não aceita o governo de Maduro”
O presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, Juan Guaidó, que é o líder da oposição, se declarou ontem presidente interino do país, diante de gigantesca manifestação popular em Caracas: “Na condição de presidente da Assembleia Nacional, ante Deus, a Venezuela, em respeito a meus colegas deputados, juro assumir formalmente as competências do Executivo nacional como presidente interino da Venezuela. Para conseguir o fim da usurpação, um governo de transição e ter eleições livres.”
Guaidó foi imediatamente reconhecido presidente por Estados Unidos, Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Guatemala, além do Brasil. O Itamaraty emitiu uma nota oficial na qual “reconhece o Senhor Juan Guaidó como presidente encarregado da Venezuela”, além de anunciar que “apoiará política e economicamente o processo de transição para que a democracia e a paz social voltem”. O presidente Nicolás Maduro, considerado um ditador pelo Grupo de Lima e pelos Estados Unidos, porém, não pretende deixar o cargo: “Aqui não se rende ninguém, aqui não foge ninguém. Aqui vamos à carga. Aqui vamos ao combate. E aqui vamos à vitória da paz, da vida, da democracia”. Maduro acusa o presidente Donald Trump de liderar um complô contra o regime chavista e rompeu relações com os Estados Unidos, dando um prazo de 72 horas para os diplomatas norte-americanos deixarem a Venezuela.
A tragédia social venezuelana, com a emigração em massa, já vem de alguns anos. A fome fez os venezuelanos perderem, em média, 11 quilos no ano passado. Já são 12 trimestres seguidos de recessão. Entre 2013 e 2017, o PIB venezuelano teve queda de 37%. O Fundo Monetário Internacional prevê que caia mais 15% neste ano. Com a hiperinflação, essa é uma linha de força da crise contra a qual Maduro nada pode fazer. O colapso do modelo de capitalismo de Estado venezuelano, mesmo com tanto petróleo, não pode ser superado sem um consenso social e político em torno de reformas de caráter liberal na economia. A linha adotada por Maduro, na direção de aprofundar a socialização do país, não tem respaldo político na sociedade nem pode se sustentar apenas no apoio da Rússia, da China e de Cuba.
Os artifícios usados por Maduro para se perpetuar no poder, fraudando eleições, aparentemente se esgotaram. Um sinal de sua fraqueza é o fato de que até agora não conseguiu fechar a Assembleia Nacional, que desafia seu poder. As grandes manifestações populares, apesar de toda repressão policial e a violência das milícias chavistas, demonstram que a sociedade já não aceita o governo de Maduro. Pela sua própria natureza, tal situação não pode ser estável. A sociedade necessita de uma nova concentração de poder, que pode se dar por duas vias: a renúncia de Maduro e um pacto com os militares para transitar à democracia, ou o fechamento da Assembleia Nacional e a implantação de uma ditadura aberta, com prisões em massa. Os militares bolivarianos apoiam Maduro porque controlam a maioria dos ministérios e das empresas estatais.
Mudança de postura
O modelo clássico de dualidade de poderes é a Revolução Inglesa (1625-1688) do século XVII, na qual o poder real, apoiado pelos aristocratas e bispos, se opunha à burguesia e aos fidalgos das províncias reunidos no Parlamento presbiteriano londrino. A longa luta entre esses dois polos de poder resultou numa guerra civil, numa ditadura e numa revolução democrática. Enquanto Londres e Oxford rivalizavam como centro de poder, surgiu uma terceira força, o Exército de Cromwell, que estabeleceu uma ditadura pretoriana. Com sua morte, nova dualidade de poderes se estabeleceu. Carlos II (1660 – 1685) foi proclamado rei da Inglaterra com poderes limitados. O parlamento se dividiu em dois grupos: os Whigs, que eram contra o rei e ligados à burguesia, e os Tories, defensores feudais e ligados à antiga aristocracia.
Com a morte de Carlos II, seu irmão Jaime II assumiu o governo, mas quis restaurar o absolutismo e o catolicismo, e acabou com o habeas corpus, proteção à prisão sem motivo legal. O parlamento não tolerou esse comportamento e convocou Maria Stuart, filha de Jaime II e esposa de Guilherme de Orange, para ser a rainha. Essa foi a Revolução Gloriosa. Guilherme se tornou rei e assinou a Declaração dos Direitos, que concedia amplos poderes ao Parlamento e vigora até hoje. Ao longo da história, esse tipo de dualidade de poderes se repetiu em vários países, em momentos diferentes, como na Revolução Francesa (1789-1799) e na Revolução Russa (1917-1921).
Ninguém sabe ainda o que vai acontecer com a Venezuela, mas a sua situação política se alterou radicalmente com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder. Maduro perdeu seu principal aliado no subcontinente, o Brasil, bem antes disso, com o impeachment de Dilma Rousseff. O governo de Michel Temer já havia tomado distância regulamentar de Maduro, mas não havia assumido uma postura de alinhamento automático com os Estados Unidos nem o apoio escancarado à oposição venezuelana, embora as pressões norte-americanas para uma postura mais agressiva já existissem, a ponto de o Departamento de Estado pedir ao governo brasileiro que mandasse tropas para a Guiana, temendo uma invasão do Exército venezuelano no país vizinho, em razão de uma disputa de fronteiras.
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Luiz Carlos Azedo: Seis minutos
“Bolsonaro procurou desfazer a repercussão internacional negativa gerada por decisões recentes de seu governo sobre o meio ambiente”
O esperado discurso do presidente Jair Bolsonaro em Davos, na Suíça, para um seleto grupo de empresários e políticos, foi uma espécie de copo pela metade, gelado. De um lado, sinalizou o que investidores gostariam de ouvir em termos de direção a ser seguida pelo país; de outro, decepcionou-os por não apresentar propostas concretas de reformas, o que deixou uma impressão de superficialidade. Bolsonaro poderia ter roubado a cena em Davos, diante da ausência de peso-pesados da política mundial, como os presidentes Donald Trump (EUA), Xi Jinping (China), Emmanuel Macron (França), Vladimir Putin (Rússia) e os primeiros-ministros Theresa May (Reino Unido) e Ram Nath Kovind (Índia).
A opção pelo feijão com arroz não deixa de ser positiva, se levarmos em conta, por exemplo, a política externa anunciada no discurso de posse do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, cuja presença no Fórum Econômico Mundial foi ofuscada pelos ministros Paulo Guedes (Economia) e Sérgio Moro (Justiça). Bolsonaro leu um discurso no qual falou de segurança, preservação ambiental e desenvolvimento, redução de impostos, respeito aos contratos, privatizações, ajuste fiscal, reforma da Organização Mundial de Comércio (OMC).
Para não deixar de lado a retórica da campanha eleitoral, o presidente brasileiro criticou o bolivarianismo e defendeu a propriedade privada, a família e os “verdadeiros direitos humanos”. Anunciou a meta bastante exequível de colocar o Brasil entre os 50 melhores países para se investir e a necessidade de educação voltada aos desafios da “quarta revolução industrial”. Apenas três líderes do chamado G7 participarão da reunião de Davos: o primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe; a chanceler alemã, Angela Merkel; e o premiê italiano, Giuseppe Conte.
Bolsonaro procurou desfazer a repercussão internacional negativa gerada por decisões recentes de seu governo sobre o meio ambiente. Durante o discurso, enfatizou que o Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente e que o governo quer compatibilizar preservação e biodiversidade com avanço econômico. Disse que a agricultura ocupa somente 9% do território brasileiro, e a pecuária, menos de 20%. “Hoje, 30% do Brasil são florestas. Então, nós damos, sim, exemplo para o mundo. O que pudermos aperfeiçoar, o faremos. Nós pretendemos estar sintonizados com o mundo na busca da diminuição de CO2 e na preservação do meio ambiente”, declarou, após ser questionado pelo fundador e presidente do Fórum, Klaus Schwab. Depois, em reunião com investidores, confirmou que o Brasil permanecerá no Acordo de Paris sobre o clima. Além de destacar a intenção de ampliar a abertura comercial e a integração à economia mundial, Bolsonaro ressaltou a intenção de combater a corrupção, frisando o papel nesse sentido do ex-juiz Sergio Moro, no Ministério da Justiça.
Relações perigosas
No Brasil, porém, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente da República, está na frigideira, por causa do ex-assessor Fabrício Queiroz. Raimunda Veras Magalhães, mãe do ex-capitão do Bope Adriano Magalhães da Nóbrega, aparece em relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) como uma das pessoas que fizeram depósitos para o ex-motorista do então deputado estadual. Ela depositou R$ 4,6 mil na conta de Fabrício, de um salário líquido de R$ 5.124,62 na Alerj.
A mãe de Adriano foi assessora da liderança do Partido Progressista (PP), ao qual Flávio Bolsonaro era filiado. Ela deixou o cargo quando o deputado se filiou ao PSC. Em 29 de junho de 2016, Raimunda voltou à Alerj, desta vez no gabinete de Flávio, sendo exonerada somente em novembro do ano passado. A mulher de Adriano, Danielle Mendonça da Costa da Nóbrega, também trabalhou no gabinete de Flávio Bolsonaro na Alerj, com o mesmo salário da sogra.
O problema é o ex-capitão do Bope, que está foragido. Uma força-tarefa do Ministério Público e da Polícia Civil do Rio de Janeiro prendeu ontem cinco suspeitos de integrar uma milícia envolvida em grilagem de terra. Entre eles, estão um major da PM e um tenente reformado, além de Adriano. Mais oito pessoas são procuradas, duas estão entre os suspeitos do caso Marielle Franco, a vereadora do Psol assassinada no Rio de Janeiro no ano passado, e seu assessor Anderson Gomes.
As investigações se baseiam em escutas telefônicas e relatos recebidos pelo Disque Denúncia. Segundo a promotora Simone Sibilio, coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), algumas pessoas presas também integram o “escritório do crime”, grupo de assassinos de aluguel investigado pela morte de Marielle Franco e Anderson Gomes. “A gente não descarta a participação no crime de Marielle Franco, mas não podemos afirmar isso neste momento. Essa operação não visou prender pessoas relacionadas ao crime da Marielle e Anderson. Se chegarmos à conclusão de que eles têm participação, aí, vamos trabalhar no inquérito relativo a esse crime”, afirmou Simone.
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Luiz Carlos Azedo: A confiança no Brasil
“Bolsonaro procura reposicionar o governo brasileiro no exterior. Não é uma tarefa fácil”
O presidente Jair Bolsonaro, ontem, em Davos, numa entrevista quebra-queixo para jornalistas brasileiros, disse que sua passagem pelo Fórum Econômico Mundial tem objetivo de restabelecer a confiança dos agentes econômicos no Brasil. “Queremos mostrar, via nossos ministros, que o Brasil está tomando medidas para que o mundo restabeleça a confiança em nós, que os negócios voltem a florescer entre o Brasil e o mundo, sem o viés ideológico, que nós podemos ser um país seguro para investimentos. E, em especial, a questão do agronegócio, que é muito importante para nós, é a nossa commodity mais cara. Queremos ampliar esse tipo de comércio.”
O discurso de Bolsonaro foi discutido por sua equipe de governo, representada em Davos pelos ministros Sérgio Moro (Justiça e Segurança Pública), Ernesto Araújo (Relações Exteriores), Paulo Guedes (Economia), Gustavo Bebianno (Secretaria-Geral da Presidência) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional). O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, também integra a comitiva para Davos, enquanto o irmão senador, Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), continua ardendo na fogueira do caso Queiroz aqui no Brasil. O Fórum Econômico Mundial começa hoje e vai até sexta-feira, com previsão de uma redução de crescimento mundial, segundo anunciou a diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde.
Os indicadores de crescimento de 2018 apontam para uma retração da economia mundial, que pode resultar numa grande recessão se suas causas não forem revertidas. Disputas comerciais entre as maiores economias do mundo, dívidas e eventos climáticos extremos (olha o aquecimento global aí, gente!) são alguns dos principais riscos previstos. A China teve seu pior índice de crescimento em 28 anos: no ano passado, a expansão do PIB chinês foi de apenas 6,6%; em 2019, será de 6,3%. A expansão induzida pelos incentivos fiscais nos Estados Unidos está se esgotando: a taxa de crescimento do PIB será de 2,5% em 2019 e apenas 2%, em 2020. Na Europa, a projeção é de uma expansão de 2% em 2019. Para 2019 e 2020, o crescimento global previsto pela ONU é de 3%, abaixo da taxa de 3,1% em 2018.
Trauma
É nesse cenário de “preocupações sobre a sustentabilidade do crescimento econômico global diante dos crescentes desafios financeiros, sociais e ambientais”, segundo o secretário-geral da ONU, Antonio Guterrez, que Bolsonaro procura reposicionar o governo brasileiro no exterior. Não é uma tarefa fácil, uma vez que a imagem do Brasil nunca esteve tão desgastada. Desde a crise do governo Dilma, com a narrativa do golpe, o PT faz uma campanha no exterior no sentido de desacreditar a democracia brasileira, com relativo êxito junto à imprensa internacional e a formadores de opinião. Mesmo com uma vitória por ampla margem também no exterior, a eleição de Bolsonaro corroborou a tese, que é falsa. O Brasil vive num regime democrático, ainda que o novo governo seja conservador e com forte presença dos militares.
O trauma do impeachment foi neutralizado pela estabilização da economia, com o governo Michel Temer, mas o fantasma da corrupção política permaneceu. Para os agentes econômicos, o novo governo sinalizou mudanças no sentido do combate à corrupção e da segurança jurídica, simbolizadas pela presença do ex-juiz da Operação Lava-Jato Sérgio Moro no Ministério da Justiça, e de uma guinada ultraliberal na economia, protagonizada pelo ministro Paulo Guedes. O problema é que não se muda uma imagem do dia para a noite, apenas com discursos. O que os investidores querem saber é se o governo vai enxugar a máquina pública, e o Congresso, aprovar a reforma da Previdência.
Nesse sentido, o vice-presidente Hamilton Mourão, o primeiro general a ocupar a Presidência desde a saída do presidente João Batista Figueiredo, em 1985, deu uma ajuda a Bolsonaro em Davos, ao anunciar que os militares terão de cortar na carne com a reforma da Previdência, aumentando o tempo de contribuição de 30 para 35 anos. Até novembro de 2018, o deficit no sistema de aposentadorias e pensões dos militares chegou a R$ 40 bilhões, um aumento de quase 13% em relação ao mesmo período de 2017. O presidente em exercício também falou sobre o caso Queiroz, comentando o envolvimento do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ). Mourão pôs panos quentes no assunto: “Acho que, para o governo, não chega nele, apesar do sobrenome e do senador. Agora, o senador é que está exposto na mídia realmente, e o Flávio é uma pessoa muito boa, eu gosto muito dele”.
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Luiz Carlos Azedo: A montanha mágica
“A luta dentro do governo se parece com a disputa entre o humanista e enciclopedista Lodovico Settembrini e o jesuíta totalitário Leo Naphta, personagens de Thomas Mann”
Interessante a analogia feita por um dileto amigo, Arlindo Fernandes, entre a viagem do presidente Jair Bolsonaro a Davos, acompanhado do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do chanceler Ernesto Araujo, e o famoso romance do escritor alemão Thomas Mann que empresta o título à coluna, cuja história se passa exatamente naquela cidade dos Alpes, na Suíça. Segundo ele, a luta instalada dentro do governo, assunto sobre o qual conversávamos, se parece muito com a disputa entre dois personagens do romance, o humanista e enciclopedista Lodovico Settembrini e o jesuíta totalitário Leo Naphta, que protagonizam um choque entre ideias liberais e conservadoras junto ao jovem engenheiro naval alemão Hans Castorp.
Mann começou a escrever A montanha mágica em 1912, quando sua mulher Katharina Mann (Katia) foi internada num sanatório de Davos, para se curar de uma tuberculose. Três anos depois, indeciso sobre os rumos do romance, interrompeu a obra. Havia apoiado a Primeira Guerra Mundial, porque seria “a guerra para terminar todas as guerras”, e estava em conflito com o próprio irmão Heinrich, também escritor, em relação ao papel da Alemanha e à própria guerra. Thomas defendia uma Alemanha unificada, poderosa e zelosa de sua cultura; o irmão desprezava o provincianismo autoritário e acrítico dos alemães à época. Após a guerra, Thomas Mann termina de escrever seu romance, já com uma visão mais crítica sobre tudo o que havia ocorrido; mais tarde, se posicionaria contra a II Guerra Mundial e a própria Alemanha. O romance também reflete esse embate de ideias com o irmão.
O Sanatório Internacional de Berghof é um estabelecimento fictício, vizinho à antiga e luxuosa casa de Repouso Schatzalp, que inspirou o escritor alemão e, por isso, costuma receber levas de leitores-turistas fascinados com o livro. Virou hotel em 1954, como o Waldhotel, o antigo Waldsanatorium, onde Katia Mann, mulher de Thomas Mann, se internou em 1912. A visita que o romancista fez à esposa por três meses o inspirou a escrever. Personagem principal do romance, Hans Castorp é um jovem alemão com os seus 20 anos, prestes a ter uma carreira naval em Hamburgo, sua cidade natal, que viaja para visitar seu primo tuberculoso Joachim Ziemssen, num sanatório em Davos.
Durante sua longa permanência, conhece personagens que representam um microcosmo do pensamento do pré-guerra na Europa. Além de Setembrini e Naphta, a hedonista Mynher Peerperkorn e Madame Chauchat, por quem se apaixona. Após sete anos, antes de ir para a guerra para morrer como um soldado anônimo, Castorp descobre a arte, a cultura, a política, a fragilidade humana e o amor; o tempo, a música, o nacionalismo, as questões sociais e as mudanças. Todas as ideias do século XX estão presentes no romance, que é considerado uma “obra de formação”.
Onde está a analogia? O italiano Lodovico Settembrini representa o humanismo e o iluminismo, atribui o progresso humano à ciência, defende a democracia liberal e acredita no livre-arbítrio. Leo Naphta, cristão novo, interrompeu os estudos teológicos na Companhia de Jesus por causa da tuberculose, mas vê a fé como o sentido da vida e das ações. Defende os atos sangrentos cometidos pela Igreja ao longo da história, vê na ciência e nas explicações racionais os horrores das rebeliões liberais, como a Revolução Francesa.
Disputa política
De certa forma, essas duas tendências estão representadas no governo Bolsonaro, por alguns de seus integrantes: a primeira, pelos ministros Paulo Guedes (Economia), Sérgio Moro (Justiça), Osmar Terra (Cidadania), Teresa Cristina (Agricultura), principalmente; a segunda, por Ernesto Araujo (Relações Exteriores), Ricardo Velez-Rodriguez (Educação) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), sobretudo. O predomínio de uma ou outra no governo dependerá muito do papel dos militares e da cabeça de Bolsonaro, no exercício da Presidência da República.
A viagem a Davos pode fazer bem a Bolsonaro, pois lá serão debatidas ideias novas para uma situação de crise da ordem de liberal, num mundo que passa por grandes transformações tecnológicas e um enorme desajuste econômico e social entre as nações mais avançadas, as emergentes e as que foram deixadas para trás. O grande sanatório geral descrito por Thomas Mann em seu romance parece estar de volta à política mundial, com sinais trocados.
A partir de quarta-feira, 2.340 pessoas de 89 países, que compõem a elite econômica e política mundial, estarão confinadas num centro de conferências, cercadas de neve e seguranças por todos os lados, durante cinco dias, até o dia 29. A guinada ultraliberal do Brasil na economia desperta interesse, o antiglobalismo da nova política externa, um grande espanto. As estrelas do encontro serão a Índia, cujo avanço econômico retira da miséria milhões de cidadãos por ano; e a China, que assumiu a linha de frente da globalização. O presidente norte-americano Donald Trump, com a crista baixa por causa da crise com o Congresso norte-americano, não vai a Davos nem mandará representantes; a primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May, balançando no cargo por causa do Brexit, também cancelou a participação.
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Luiz Carlos Azedo: O caso Queiroz
“O STF não é um terreno confortável de disputa para os enrolados. Foi-se a época em que o foro privilegiado era uma garantia de impunidade”
Ródion Ramanovich Raskolnikov é um ex-estudante que vive na miséria, em minúsculo apartamento em São Petersburgo. Acredita que está destinado a grandes ações, mas a miséria o impede de atingir todo o seu potencial. Por essa razão, conclui que nada seria moralmente errado se o objetivo fosse nobre. Isso o leva a matar uma velha que empresta a juros altíssimos e maltrata a sua irmã mais nova. Após assassinar a mulher, Raskolnikov entra em crise existencial, tem delírios febris.
Porfiry Petrovich, um dos responsáveis pela investigação do assassinato, confronta Raskolnikov diversas vezes, nunca revelando se ele é ou não suspeito do crime. A tensão abala ainda mais o comportamento do eex-studante, o que leva Porfiry a acusá-lo informalmente. Mesmo sem provas concretas contra ele, atormentado pelos remorsos, Raskolnikov acaba confessando. O protagonista de Crime e Castigo, o grande romance do escritor e jornalista russo Fiódor Dostoiévski, publicado em 1866 (ou seja, não tem nada a ver com “marxismo cultural”), é um arquétipo perseguido por todos os grandes autores de romances policiais. O livro é um grande ensaio filosófico, psicológico e social. Dostoiévski explora o lado psicológico e existencial de seus personagens de forma excepcional, no contexto de uma Rússia autocrática, moralista e culturalmente atrasada.
Anulação de provas
O caso do ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz é dostoievskiano. Amigo da família Bolsonaro, era homem de confiança do senador eleito Flávio Bolsonaro (PSC), ex-deputado estadual fluminense. Ninguém sabe exatamente o que ele fez, além das declarações estapafúrdias para explicar sua movimentação financeira e a dancinha no hospital em que se internou para tratar de um câncer no intestino na virada do ano. Seu jogo de gato e rato com o Ministério Público seria apenas mais uma chicana de bons advogados para protelar o trabalho da Justiça. E inspiração para piadas, máscaras e fantasias que divertem os foliões no carnaval carioca.
Ontem, porém, o caso Queiroz ganhou uma dimensão surpreendente. O ministro do STF Luiz Fux determinou a suspensão das investigações sobre Fabrício, atendendo pedido de Flávio Bolsonaro, que não é investigado. A decisão não significa a suspensão permanente da investigação ou a definição sobre em qual instância o processo deverá tramitar. Apenas interrompe a investigação, até que o ministro Marco Aurélio Mello analise o caso e decida se será aplicada a regra do foro privilegiado.
Em maio do ano passado, o STF decidiu restringir as regras do foro privilegiado. Após a decisão, passam a ser julgados pelo Supremo apenas deputados federais e senadores suspeitos de atos praticados durante o mandato e por crimes que tenham relação com o cargo. Ou seja, com base na jurisprudência vigente, a investigação contra o ex-assessor não obrigaria que o processo tramitasse no STF.
Queiroz é investigado pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro depois que o Coaf identificou movimentações financeiras consideradas atípicas em suas contas. No pedido, Flávio Bolsonaro também quer anular essas investigações, com o argumento de que as informações colhidas pelo Coaf estariam protegidas pelo sigilo bancário e fiscal e só poderiam ser obtidas pelo Ministério Público com base em decisão judicial. Sua ação aparentemente tem o objetivo de blindar Queiroz, mas pode ser um tiro pela culatra.
Qualquer político com cancha em Brasília sabe que o STF não é um terreno confortável de disputa para os enrolados. Foi-se a época em que o foro privilegiado era uma garantia de impunidade, não é um passeio pela longa Avenida Nevsky. Ao contrário, as últimas legislaturas foram generosas em situações nas quais o Congresso teve suas atribuições invadidas e seus caciques se viram de joelhos perante o Supremo. O ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (MDB-RJ), por exemplo, foi afastado do cargo e está preso até hoje. Também não é um bom cartão de visitas para quem está chegando ao Senado, principalmente em meio a disputas pelo poder, porque significa uma vaga na bancada dos políticos reféns dos próprios colegas por questões de natureza ética.
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Luiz Carlos Azedo: Meia-volta, volver!
“A Argentina é o terceiro parceiro comercial do Brasil, atrás da China e dos Estados Unidos, mas é principal parceiro para a nossa indústria”
O encontro do presidente Jair Bolsonaro com o presidente da Argentina, Mauricio Macri, serviu para reposicionar o novo governo em relação ao Mercosul. Foi uma espécie de “meia-volta, volver!”, depois das declarações do ministro da Economia, Paulo Guedes, logo após as eleições, de que as relações comerciais do Brasil com os vizinhos do Cone Sul não eram uma prioridade. Guedes chegou a contextualizar o comentário de maneira a desdizer seu significado, mas foi preciso o encontro de ontem para que as coisas ficassem realmente mais claras, principalmente para os vizinhos. Bolsonaro e Macri acertaram trabalhar conjuntamente para fortalecer o bloco sul-americano. O ministro Paulo Guedes, nas conversas com os argentinos, procurou desfazer a imagem de que estava de costas para o Mercosul. A Argentina é o terceiro parceiro comercial do Brasil, atrás da China e dos Estados Unidos, mas é principal parceiro para a nossa indústria.
Isso significa que tudo ficará como dantes? Não, diplomatas do Brasil e Argentina discutiram mudanças nas regras do Mercosul que proíbem os países-membros de negociarem separadamente acordos de livre comércio com outros países. No caso brasileiro, Bolsonaro quer enxugar os encargos do Mercosul, reduzir tarifas e burocracia. Abre-se a possibilidade de avanços nas conversas com a União Europeia. Além disso, Paraguai e o Uruguai desejam fazer seus acordos bilaterais. O patinho feio do Mercosul é a Venezuela, que foi outro assunto abordado no encontro. Nesse caso, a afinação entre Bolsonaro e Macri é total: ambos pretendem endurecer o jogo ainda mais com o presidente do país vizinho, Nicolás Maduro, que assumiu novo mandato de seis anos e é considerado um ditador pela maioria dos países do continente.
Macri foi o mais enfático nos ataques a Maduro. Ressaltou que Argentina e Brasil reconhecem apenas a Assembleia Nacional da Venezuela, que é comandada pela oposição e considera Maduro um usurpador. “Reafirmamos nossa condenação à ditadura de Nicolás Maduro. Não aceitamos esse escárnio com a democracia, e, menos ainda, a tentativa de vitimização de quem na verdade é o algoz”, disse Macri. Bolsonaro foi mais comedido em relação a Maduro, mas reiterou que Brasil e Argentina jogarão juntos no caso da Venezuela: “Nossa cooperação na questão da Venezuela é o exemplo mais claro do momento. As conversas de hoje (ontem) com o presidente Macri só fazem reforçar minha convicção de que o relacionamento entre Brasil e Argentina seguirá avançando no rumo certo: o rumo da democracia, da liberdade, da segurança e do desenvolvimento”, disse.
Recessão
O fato de o Brasil e a Argentina terem governos ultraliberais tem um peso específico no continente, mas há uma variável imponderável: ao contrário de Bolsonaro, que acabou de assumir o governo, Macri está terminando seu mandato, em meio a um tremendo fracasso econômico. Os preços na Argentina subiram 2,6% em dezembro, com inflação anual de 2018 em 47,6%, a maior desde 1991. A meta de inflação de 23% em 2019, já considerada muito alta, dificilmente será alcançada, num ano de eleições presidenciais, nas quais Macri ainda pretende disputar a reeleição.
Com os preços descontrolados, o Banco Central argentino fez um ajuste duríssimo, com juros de até 70% e retirada de pesos do mercado. O dólar estabilizou em 37 pesos, mas a economia está em recessão: 2,5% em 2018; previsão de 2%, em 2019. Macri terá dificuldades para manter esse ajuste, quando nada porque os salários sofreram uma perda de poder de compra próxima a 10%, a maior desde 2002. Até o FMI prevê dificuldades para manter o ajuste, cujas projeções apontam que somente em 2024 os argentinos conseguirão recuperar o nível de vida de 2017. Será difícil para Macri resistir às pressões dos sindicatos por aumentos de salários e manter o acordo feito com o FMI.
À deriva
A propósito, a Inglaterra nunca esteve tão à deriva. Conservadores britânicos e unionistas da Irlanda do Norte salvaram a primeira-ministra Theresa May, derrotando por apenas 19 votos a moção de desconfiança apresentada pelos trabalhistas para evitar que o líder da oposição, Jeremy Corbyn, a substituísse, depois de a maioria esmagadora do parlamento do Reino Unido ter rejeitado o acordo de saída da União Europeia. O Brexit continua um salto no escuro, porque a primeira-ministra ainda não tem um plano B.
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Luiz Carlos Azedo: Um rolé em Davos
“A guinada ultraliberal do Brasil dividirá os holofotes com o Brexit, que está num beco sem saída, com a decisão do parlamento britânico contra acordo de saída da Inglaterra da União Europeia”
O presidente Jair Bolsonaro somente baterá o martelo sobre a proposta de reforma da Previdência da sua equipe econômica depois de reunião do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, de 22 a 25 de janeiro. “Moldar a Arquitetura Global na Era da Quarta Revolução Industrial” é o tema do encontro, ou seja, a antítese do que propõe o novo chanceler brasileiro Ernesto Araújo, que é antiglobalista, para a nossa política externa. Durante cinco dias, 3.000 representantes das elites políticas e empresariais do planeta, incluindo 65 chefes de Estado e de governo, debaterão os problemas da atualidade. Bolsonaro estará no centro das atenções mundiais, ainda mais depois que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou que não irá ao encontro.
A guinada ultraliberal do Brasil seria a novidade da reunião, mas terá que dividir os holofotes com o Brexit do Reino Unido, que está num beco sem saída, com a decisão acachapante de ontem do parlamento britânico contra acordo de saída da Inglaterra da União Europeia negociado pela primeira-ministra Theresa May. Criado em 1707, o mais antigo e poderoso corpo legislativo do mundo rejeitou o plano por 432 votos contra e 202 a favor. A primeira-ministra não tem um Plano B, porém, pelas regras do jogo, terá três dias para apresentá-lo.
Até lá, pode não sobreviver no cargo. O líder do Partido Trabalhista, Jeremy Corbyn, anunciou uma moção de desconfiança contra a premiê, que pode ser aprovada ainda hoje. Em dezembro, por muito pouco, May não foi derrubada por uma moção de desconfiança do seu próprio partido, o Conservador. A decisão de sair da União Europeia foi tomada em plebiscito pelos britânicos, numa derrota catastrófica dos trabalhistas, mas na hora de implementá-la, os problemas começaram a se agigantar . Até alguns parlamentares conservadores já defendem um novo plebiscito, para voltar atrás e enterrar o Brexit.
A política antiglobalista na Europa entrou em colapso antes mesmo de ser levada à prática. Uma saída sem acordo significa que as leis da União Europeia deixariam de ser válidas na Inglaterra de uma hora para outra, imaginem o caos na economia britânica e na vida das pessoas, a começar pela situação nos aeroportos e no Canal de Mancha. A União Europeia lamenta a situação, mas não afrouxa as exigências do acordo.
Um dos assuntos polêmicos é a fronteira entre a Irlanda e a Irlanda do Norte, que passa a ser a fronteira entre o Reino Unido e a UE dentro da ilha britânica. O Reino Unido e a Irlanda faziam parte de um mercado comum, a circulação de produtos e pessoas era livre entre os dois países. Com o Brexit, as duas Irlandas estarão sob regimes regulatórios diferentes, o que significa que mercadorias e pessoas teriam de ser checadas na fronteira. O acordo permitiria que a Irlanda do Norte continuasse alinhada a algumas regras aduaneiras da UE, para dispensar a necessidade de checagem na fronteira com a Irlanda, mas exigiria que alguns produtos vindos do restante do Reino Unido fossem submetidos a controles.
Os muros
Os britânicos que moram na UE e europeus que moram no Reino Unido poderiam continuar a trabalhar e a estudar onde tenham residência, além de poderem trazer consigo membros da sua família. Os dois lados teriam um prazo de 21 meses para acertarem um acordo quanto às trocas comerciais bilaterais. Finalmente, o Reino Unido teria de pagar até 39 bilhões de libras (cerca de R$ 190 bilhões) como compensação financeira à UE. O jogo duro é uma forma de defesa da ordem liberal mundial, que está em xeque por causa do Brexit e da política antiglobalista de Trump, com o recrudescimento do nacionalismo e do populismo em alguns países europeus.
Na sua primeira viagem internacional, Bolsonaro será acompanhado por Paulo Guedes (Economia), Sérgio Moro (Justiça) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores). Para o fundador do encontro, Klaus Schawab, há profunda instabilidade global. “Temos que definir uma nova abordagem da globalização, que é mais abrangente. A globalização produz vencedores e perdedores (…) Agora temos que cuidar dos perdedores, depois daqueles que foram deixados para trás”, avalia.
Trump despachará para Davos o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, o secretário do Tesouro dos EUA, Steven Mnuchin, e o secretário do Comércio dos EUA, Wilbur Ross. Como Tereza May, que também não deve ir a Davos, tropeçou nas próprias pernas, ao fazer da proposta de construção do muro na fronteira com o México o seu grande objetivo de governo. O Congresso não aprova e seu governo está paralisado.
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Luiz Carlos Azedo: A violência continua
“Findada essa novela do caso Battisti, o Brasil precisa encarar a sua própria realidade. A crise de segurança pública no Ceará continua, desafiando as autoridades, com dezenas de atentados”
Cesare Battisti ficará preso na Sardenha, uma ilha belíssima, num presídio de segurança máxima, cujas celas não permitem observar o horizonte no mar Mediterrâneo. É o fim de uma novela diplomática e jurídica, alimentada em razão de uma decisão equivocada do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que não aceitou o pedido de extradição feito pelo governo italiano e concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Por ironia, Lula acabou tendo de cumprir pena primeiro que o ex-terrorista italiano, condenado à prisão perpétua por quatro homicídios.
O refúgio político concedido a Battisti pelo então ministro da Justiça, Tarso Genro, foi o clímax da glamourização da luta armada pelo PT e por outros setores da esquerda brasileira durante sua passagem pelo poder. A conta chegou com a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência. Battisti praticou seus crimes quando a democracia italiana vivia uma grave crise, que resultou no assassinato do primeiro-ministro Aldo Moro, o democrata-cristão que negociava um acordo que poderia levar os comunistas italianos liderados por Enrico Berlinguer a compartilhar o poder, o chamado “compromisso histórico”. Foi sequestrado e morto por militantes das Brigadas Vermelhas, organização terrorista de ultra-esquerda, como o partido ao qual Battisti dizia pertencer, Proletários Armados pelo Comunismo.
A chegada de Battisti à Itália, num voo direto de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, para Roma, foi comemorada pelos italianos como uma vitória da Justiça e da democracia. O primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, é um líder populista de direita, mas a extradição do ex-terrorista também era reivindicada por todos os seus antecessores. Trata-se de um inimigo público do Estado democrático italiano. Só aqui no Brasil, existem setores que acreditam na inocência do ex-terrorista. Evo Morales, por exemplo, o socialista indígena que preside a Bolívia, não caiu nessa. Despachou Battisti sem sequer abrir um processo de extradição.
Posse de armas
Findada essa novela, o Brasil precisa encarar a sua própria realidade. A crise de segurança pública no Ceará continua, desafiando as autoridades. O governador Camilo Santana reluta em fazer o que já deveria ter feito: solicitar uma operação de “garantia da lei e da ordem”, para que as Forças Armadas possam intervir no estado, considerado um “território vermelho” no Palácio do Planalto. Se o fizer, é óbvio que terá ajuda do presidente Jair Bolsonaro, mas isso significará também uma confissão de fracasso. Enquanto isso não acontece, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, é aconselhado a ir devagar com andor e não se expor na crise cearense. Ou seja, quem pariu Mateus que o embale!
Bolsonaro deve assinar hoje o decreto que flexibiliza a posse de arma pelos cidadãos, com prioridade para os moradores de regiões rurais e comerciantes que desejarem reforçar a própria segurança em seus estabelecimentos. A medida é uma promessa de campanha e, do ponto de vista político, significa uma entrega. Mas não é isso que vai resolver a crise nos presídios, da qual o caso do Ceará é apenas a ponta de um iceberg. O recado dos chefões do tráfico de drogas é de que não vão aceitar suas transferências para presídios federais de segurança máxima sem retaliação. O crime organizado no Brasil é comandado de dentro das prisões. Todos os governadores assumiram prometendo resolver o problema endurecendo as condições carcerárias, mas já mudaram de assunto e estão voltando atrás, por causa da crise cearense.
Com o tempo, veremos as consequências da facilitação da posse de arma do ponto de vista da violência, principalmente no trânsito, nos bares e nas brigas de casais; de igual maneira, a estratégia de endurecimento das penas, outra política que está para ser anunciada, que tem como gargalo a superlotação dos presídios. Uma coisa é certa: o combate ao crime organizado exigirá respostas positivas do novo governo. O ministro Sérgio Moro está na berlinda. Uma das dificuldades é a situação do próprio sistema de segurança pública. Vejam o Rio de Janeiro: boa parte do trabalho realizado pelos interventores militares foi por água abaixo depois que o governador Wilson Witzel (PSC) separou em duas a Secretaria de Segurança Pública, elevando o status do comandante da Polícia Militar e do chefe de polícia.
O trabalho de racionalização e integração do sistema de segurança novamente foi subordinado aos interesses corporativos. O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) continua sem solução. O atentado sofrido, domingo, pela deputada Marta Rocha (PDT), delegada de carreira e ex-chee de polícia fluminense, merece muita atenção. A polícia investiga o caso como possível tentativa de latrocínio, mas havia uma denúncia de que um atentado seria praticado contra a parlamentar, que somente não morreu porque providenciou a compra de um carro blindado. Não se fala mais em milícias no Rio de Janeiro, é corda em casa de enforcado.
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