Nas entrelinhas
Luiz Carlos Azedo: A volta do Lula lá
Setores do governo consideram uma disputa com Lula o cenário ideal para a reeleição de Bolsonaro; na oposição, muitos veem como a melhor opção para derrotá-lo
A quebra de sigilo das conversas privadas entre o então juiz federal Sergio Moro e os procuradores da Lava-Jato é tóxica, porque mostra que, supostamente, na instrução do processo contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no caso do triplex de Guarujá e outras investigações, teria havido conluio entre o Ministério Público e a Justiça. Advogados criminalistas sabem que essa relação promíscua entre a acusação e o juiz é muito mais frequente do que a sociedade imagina, mas, nem por isso, deixa de ser um vício de origem nos processos. Quando são comprovadas, obviamente, geram nulidades nos tribunais. A decisão de tornar públicas as conversas foi do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, notoriamente ligado a Lula, que o indicou para a Corte, porém, o teor das conversas geraram espanto e perplexidade.
Como já era de se esperar, os advogados de Lula querem usar o material para derrubar a condenação do petista, com o argumento de sempre: Moro teria atuado de forma parcial nos processos e orientou as ações do Ministério Público, com objetivo de remover o ex-presidente da República da disputa eleitoral de 2018. A anulação do processo, porém, não é assim tão fácil. Uma preliminar será a discussão sobre a competência de Lewandowski para atuar nesse caso. Os advogados de Moro argumentam que caberia ao ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato no Supremo, decidir sobre a matéria. Alegam que o fato de Lewandowski ser relator do caso que deu acesso a Lula aos acordos de leniência firmado pela Odebrecht não justifica a liminar em favor da quebra de sigilo.
Moro questiona a veracidade das mensagens atribuídas a ele, ou seja, sustenta que essas provas são ilícitas. Alega que podem ter sido adulteradas ou forjadas antes da Operação Spoofing da Polícia Federal, que apreendeu as gravações. De fato, não existe ainda comprovação da veracidade das gravações. “As perícias ali realizadas apenas confirmam que as mensagens foram objeto de busca e apreensão nos computadores dos hackers, mas não há demonstração de que não foram corrompidas após terem sido roubadas dos celulares dos procuradores da República”, diz a ação.
Segundo Moro, as mensagens não permitem concluir que Lula não é culpado dos crimes pelos quais foi condenado nem que o Ministério Público ou o juiz sonegaram provas da inocência do ex-presidente. O ex-magistrado tenta justificar as conversas com os procuradores como uma interação normal entre juiz, procuradores e advogados. “O juiz perguntar ao procurador se ele tem elementos para denunciar é meramente um cuidado retórico para advertir ao Ministério Público de que não deve oferecer acusações levianas, isso para proteger o acusado e não para prejudicá-lo”, alega a defesa de Moro.
“Macedada”
As 50 páginas de transcrições seriam mais do que constrangedoras para o ex-ministro da Justiça, porque, supostamente, deixam evidentes suas intenções de apoiar a candidatura de Jair Bolsonaro. Após as eleições, Moro aceitou o convite de Bolsonaro para integrar sua equipe ministerial. Como Lula acabou excluído do processo eleitoral, em razão da condenação, é óbvio que o caso da quebra de sigilo por Lewandowski chegará ao plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) com ares de julgamento político, e não criminal.
Não vou entrar no mérito da Operação Lava-Jato, apenas recomendo os livros dos colegas Vladimir Neto (Lava-Jato), Malu Gaspar (A Organização) e Letícia Duarte (Vaza Jato). A delação premiada da Odebrecht foi uma bomba de fragmentação que atingiu todo o sistema político, aprofundando a crise de representação dos partidos e levantando uma onda antissistema que levou Bolsonaro ao poder. Promoveu um grande expurgo político, mas a roda girou, e os sobreviventes, agora, montaram uma operação de cerco e aniquilamento da Lava-Jato, na qual o presidente Bolsonaro vem tendo um papel muito importante. A anulação da condenação de Lula seria o coroamento desse processo.
Nos bastidores de Brasília, sabe-se que há setores do governo que consideram uma disputa eleitoral com Lula o cenário ideal para a reeleição de Bolsonaro; na oposição, muitos veem a situação com sinal trocado: a melhor opção para derrotá-lo. Outros acreditam que Bolsonaro prepara um golpe. A anulação da condenação seria uma espécie de nova “Macedada”. Em 1936, José Macedo Soares, ministro da Justiça, decidiu libertar 300 comunistas presos em razão da chamada Intentona de 1935. Sem essa “anistia”, a fraude do Plano Cohn (supostas diretrizes da Internacional Comunista para uma nova insurreição no Brasil), que serviu de pretexto para o golpe do Estado Novo, em 1937, teria menos credibilidade ainda. O documento foi forjado pelo então major Mourão Filho, que mais tarde, como general, seria um dos líderes do golpe militar de 1964.
Luiz Carlos Azedo: A dura travessia
“A ampla coalizão de centro-direita, formada por Arthur Lira (PP), sinaliza o campo de alianças de Bolsonaro”
Será dura a travessia da oposição até as eleições de 2022, principalmente para as forças do chamado centro democrático. Isso ficou evidente após as vitórias de Rodrigo Pacheco (DEM-MG), no Senado, e Arthur Lira (PP-AL), na Câmara. No primeiro caso, houve uma composição entre o candidato governista e os principais partidos de oposição — PSDB, PT e PDT —, que mitigou a vitória de Jair Bolsonaro e foi, sobretudo, uma conquista do DEM. O novo presidente do Congresso passou a ser a principal referência do país para estabilidade institucional. No segundo caso, a vitória do presidente da República foi inequívoca e sua aproximação com o PP — partido do qual já fez parte — pode levá-lo a escolher essa legenda para disputar a reeleição.
A volta de Bolsonaro ao PP faz todo sentido, uma vez que o projeto de construção de seu próprio partido, o Aliança pelo Brasil, não foi adiante. O Partido Progressista, presidido pelo senador Ciro Nogueira (PI), é herdeiro direto da antiga Arena e do PDS, tendo incorporado os antigos Partido Democrata Cristão (PDC) e Partido Progressista, de quem herdou o nome atual. Entre os quadros da legenda estão veteranos personagens da política nacional: Paulo Maluf, Francisco Dornelles, Esperidião e Ângela Amin, Raimundo Colombo, Delfim Netto, Celso Russomano, Pratini de Moraes, Afonso Celso Pastore, Blairo Magri, Ricardo Barros e Aguinaldo Ribeiro, além dos atuais prefeitos de Rio Branco (AC)), Tião Bocolon, e João Pessoa (PB), Cícero Lucena. A filiação de Bolsonaro ao PP, caso se confirme, reorganizará sua base eleitoral a partir da centro-direita, retirando-o do isolamento em que estava ao protagonizar a formação de um partido de extrema-direita.
A ampla coalizão de centro-direita formada por Arthur Lira na Câmara sinaliza o campo de alianças de Bolsonaro na disputa eleitoral de 2022 e põe no telhado a proposta de impeachment. A própria postura de Bolsonaro, ontem, ao comparecer ao Congresso, para abertura dos trabalhos legislativos, revela um presidente que já não se comporta como fera acuada. Ao mesmo tempo, os discursos de Pacheco, principalmente, e até mesmo de Lira, apontam para um processo de muita disputa e negociação para aprovação das reformas e certa dificuldade de passagem da agenda reacionária do presidente da República, principalmente em relação aos costumes e aos direitos humanos, porque a resistência será grande.
Alternativas
Quem está se colocando como fiel da balança do processo político é o DEM, sob comando de um político baiano de grande linhagem, o ex-prefeito de Salvador (BA) ACM Neto, e a liderança parlamentar do senador Pacheco, uma espécie de “neopesssedista” mineiro. O reposicionamento do DEM, que tem dois ministros importantes no governo, Tereza Cristina, da Agricultura, e Onyx Lorenzoni, da Cidadania, porém, representou o sacrifício da liderança do ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (RJ), que foi atropelado por seus pares. Sabe-se que ACM fez acordo com o PP e com Bolsonaro para a legenda manter o comando do Senado, mas os termos são desconhecidos, ainda, em relação a outros interesses. Com certeza, mira a ocupação de mais um ministério na Esplanada e o apoio a ACM Neto na disputa pelo governo da Bahia, mas isso carece de futura comprovação pelos fatos.
Estrategicamente, a posição do DEM no processo político abre três grandes possibilidades: adesão ao projeto de reeleição de Bolsonaro; lançamento de uma candidatura própria, no caso o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta, muito ligado ao governador de Goiás, Ronaldo Caiado; e o apoio à candidatura do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), em troca de compromisso com a reeleição do seu vice, Rodrigo Garcia, a grande liderança paulista do DEM. É aí que a truculência com que Maia foi abandonado pela cúpula do DEM cria problemas. Qual a garantia que Doria teria, após a desincompatibilização, do apoio do DEM à sua candidatura a presidente da República?
O mesmo raciocínio vale para o apresentador Luciano Huck, sempre relacionado como uma possível alternativa de candidatura própria pela cúpula do DEM. As conversas com a legenda, após ACM Neto tirar o tapete de Rodrigo Maia, perderam qualquer credibilidade. Em contrapartida, a crise no PSDB também se aprofunda. O que houve na Câmara revela que o deputado Aécio Neves (MG) se tornou uma eminência parda no Congresso, operando com desenvoltura, a partir da bancada mineira, também no Senado. Sua queda de braço é com o governador paulista.
Não será fácil para ninguém a caminhada pelo centro do espectro político em direção à Presidência da República. Quem é da política sabe que isso nunca foi um passeio pelo Eixo Monumental. Ontem, a coordenador nacional da Rede, Pedro Ivo, desmentiu especulações de que estaria havendo articulações para a formação de um novo partido sob medida para o apresentador Luciano Huck, reunindo sua legenda, o Cidadania, o PV, o grupo de Rodrigo Maia e a ala do PSDB ligada ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Entretanto, não descartou o eventual apoio à candidatura. Disse que, primeiro, o apresentador precisa transitar para a vida pública, ou seja, a política propriamente dita. É o xis da questão: uma candidatura à Presidência não se improvisa, é uma complexa construção política.
Luiz Carlos Azedo: A grande jabuticaba
Enquanto o Palácio do Planalto avança na sua “guerra de posições”, a oposição se baratina numa “guerra de movimentos”, cujo objetivo é atalhar o poder com o impeachment
Uma das dificuldades para a compreensão da situação política brasileira é definir o caráter do governo Bolsonaro. O fato de ser um governo com características bonapartistas, ou seja, controlado por militares e que se coloca acima das classes sociais — numa ordem democrática, porém, é uma grande jabuticaba. Historicamente, governos bonapartistas são uma espécie de antessala do fascismo e só existem em regimes autoritários. Não é o nosso caso, o que faz da situação uma espécie de esquizofrenia política.
O fato de o presidente Jair Bolsonaro exaltar o antigo regime militar e, frequentemente, tomar decisões ou ter atitudes que revelam um viés profundamente autoritário, reforça em muitos setores da sociedade e, principalmente, nos partidos de oposição, o temor de que trabalhe dia e noite para resolver essa contradição subvertendo as regras do jogo democrático. Em qual direção? No rumo de uma espécie de “ditadura do Executivo”, na qual seu poder subjugasse o Legislativo, o Judiciário, o Ministério Público, os demais entes federados e os meios de comunicação. A legitimidade da centralização e verticalização do poder seria dada pelo fato de que foi eleito, ou seja, seria esse o desejo da maioria dos eleitores.
Há países cujos governos foram eleitos, mas seus chefes de Estado operam de forma autoritária: Rússia, Turquia, Egito, Cingapura, Filipinas, Índia etc. Esse é um cardápio de opções institucionais bastante variado, mas todas confrontam a Constituição brasileira de 1988. Alguns desses países se destacam, na corrida mundial para reinventar o Estado, por alcançar padrões de modernização compatíveis com integração ao processo de globalização e a revolução tecnológica em curso. O caso de Cingapura é exemplar, porque tem um governo altamente eficiente e um regime de partido majoritário que servem de inspiração para os líderes chineses, que estudam seu modelo na escola de formação de quadros do Partido Comunista.
Esses temores da oposição em relação a Bolsonaro, num ambiente de agravamento da crise sanitária e recessão da economia, leva muitos a acreditar que o presidente da República aposta no caos para dar um golpe de Estado. Seu negacionismo em relação à pandemia da covid-19 e à eficácia das vacinas, a falta de empatia com as vítimas da pandemia, a subestimação de seu impacto nas atividades econômicas e a ausência de um programa claro de saída desta crise somam-se a atitudes e declarações políticas contra a urna eletrônica e suspeita, sem quaisquer fundamentos, de que teria havido fraude nas eleições de 2018. Isso reforça na oposição o sentimento de que é preciso afastar Bolsonaro do poder antes que seja tarde, quando nada porque já é grande o rol de fatos que podem ser caracterizados como crime de responsabilidade. Para esses setores, o impeachment é a melhor alternativa, ainda que isso signifique aumentar o tamanho da patente da jabuticaba, porque no lugar de Bolsonaro assumiria o general Hamilton Mourão, seu vice eleito.
Estratégias
Na política propriamente dita, porém, esse não parece ser o rumo verdadeiro do governo Bolsonaro. Houve uma mudança de estratégia muito significativa do primeiro para o segundo ano de governo, na qual a confrontação permanente com os demais Poderes, inclusive, com a mobilização de seus apoiadores mais radicais e truculentos, foi substituída por uma política de construção de uma base parlamentar robusta, que começou como uma atitude de resistência contra um eventual pedido de impeachment, mas acabou se transformando na articulação de uma base parlamentar majoritária no Congresso. A eleição de Rodrigo Pacheco (DEM-MG) como presidente do Senado e do deputado Arthur Lira (PP-AL), da Câmara, coroou esse trabalho de articulação política, cujos principais artífices foram os militares que ocupam o Palácio do Planalto, entre os quais o ministro Luiz Eduardo Ramos, secretário de Governo, e os líderes do Centrão, cujos partidos saíram bastante fortalecidos das eleições municipais.
Objetivamente, houve uma aposta do governo Bolsonaro na política. O Centrão existe desde a Constituinte, que, em alguns momentos, deu as cartas na Câmara, em outros, não. As vitórias acachapantes do DEM no Senado e do PP na Câmara, se olharmos para o resultado das eleições municipais, são frutos de uma mesma trajetória de acumulação de forças desses dois partidos, que miram as eleições de 2022. Mesmo que fomente uma militância armada, frequentando formatura nos quartéis e adulando corporações violentas, Bolsonaro ainda aposta na própria reeleição, o que pressupõe caminhar no leito da ordem democrática. Mesmo que o cenário não lhe seja tão fácil, em razão dos desgastes que vem sofrendo, até agora todas as pesquisas apontam sua presença no segundo turno das eleições presidenciais.
Enquanto o Palácio do Planalto avança na sua “guerra de posições”, a oposição se baratina numa “guerra de movimentos”, cujo objetivo é atalhar o poder com o impeachment, como se isso fosse possível sem o apoio do Centrão e o doce constrangimento do vice-presidente Hamilton Mourão e dos militares que, hoje, controlam o governo. As dificuldades de êxito dessa estratégia, melhor dizer, desse taticismo, foram demonstradas nas eleições da Câmara, onde a oposição sofreu uma derrota acachapante. O impeachment é um julgamento político, no qual não bastam os crimes de responsabilidade, há que se ter uma correlação de forças sociais (mobilização popular) e políticas (maioria parlamentar) favorável. Não existe uma coisa nem outra. O leito natural da alternância de poder é a eleição. Melhor faria a oposição se definisse logo seus candidatos a presidente da República.
Luiz Carlos Azedo: Jogo jogado no Congresso
É sensato fazer uma aposta de que a atuação do novo presidente do Congresso será um fator de equilíbrio na relação entre os três Poderes
O senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), conforme se previa, foi eleito de forma consagradora para a Presidência do Senado e, por conseguinte, do Congresso. Recebeu 57 votos, contra 21 na senadora Simone Tebet (MDB-MS), que desafiou o candidato governista. O placar dilatado deve-se ao fato de que contou com o apoio do presidente Jair Bolsonaro e de uma ampla aliança, que incorporou os partidos governistas e, também, PT, PDT e Rede. Simone Tebet perdeu competitividade quando a bancada do MDB resolveu não apoiá-la.
Apesar de ter nascido em Porto Velho (RO), Rodrigo Pacheco foi criado em Minas e fez a sua carreira política no estado. Tem todas as características de um político liberal mineiro, sendo hábil articulador e muito moderado no discurso. Não foi à toa que citou o presidente Juscelino Kubitscheck, um político pessedista conciliador e, ao mesmo tempo, inovador. Nessa perspectiva, seu discurso, logo após a eleição, foi irretocável, porque tratou de todos os temas da atualidade — pandemia, crise econômica, reformas, ética etc. —, com equilíbrio e objetividade, tendo reafirmado seu compromisso com o Estado democrático de direito.
O clima da eleição de Pacheco no Senado foi completamente diferente do que aconteceu na eleição de Davi Alcolumbre, cuja disputa com Renan Calheiros (MDB-AL) foi duríssima, com ataques pesados de ambos os lados. Após a eleição, o novo presidente da Casa tratou a candidata derrotada com muita deferência, na tentativa de evitar sequelas no relacionamento político entre ambos e o grupo de senadores que Simone Tebet representou. É sensato fazer uma aposta de que a atuação do novo presidente do Congresso será um fator de equilíbrio na relação entre os três Poderes.
A propósito: neste começo de ano, Rodrigo Pacheco promoveu a reedição, pelo Senado, do livro de Pedro Aleixo sobre a “imunidade parlamentar”, lançado em 1961. É uma obra rara hoje em dia, em se tratando de um parlamentar, pela qualidade do trabalho jurídico. Um dos cardeais da antiga UDN, o político mineiro era um conservador. Foi vice-presidente da República no governo Costa e Silva. No prefácio da edição, Pacheco faz referência à noite de 13 de dezembro de 1968, quando os membros do Conselho de Segurança do regime militar se reuniram no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, a pedido do então presidente Artur da Costa e Silva. Na pauta, estava a decretação do Ato Institucional Número 5, que deu início ao período mais autoritário da história recente do Brasil.
Aleixo não tinha virado vice-presidente por acaso — apoiara o golpe contra João Goulart quatro anos antes, assim como fizeram outros civis da elite política e econômica do país, entre os quais, o próprio Juscelino e Ulysses Guimarães, que mais tarde, como presidente do MDB, viria a ser o grande líder da oposição. No entanto, o vice civil sabia o que o ato representaria e, naquela noite, votou contra sua decretação. Foi o único dos 23 membros do conselho a fazê-lo. No ano seguinte, quando deveria assumir o lugar de Costa e Silva, que havia morrido, foi impedido de tomar posse pelas Forças Armadas. Não voltou mais à política.
Câmara
Escrevo antes da eleição da Mesa da Câmara, cuja votação avançou pela noite, mantendo-se o favoritismo do candidato do Centrão, Arthur Lira (PP-AL), apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro. As articulações que antecederam a eleição revelaram uma profunda divisão no DEM e no PSDB. Em ambos os casos, os articuladores do Palácio do Planalto e do Centrão acenaram com cargos, verbas e financiamentos para fraturar os dois partidos. O pano de fundo é o projeto de reeleição de Bolsonaro e eventuais candidaturas de oposição.
No primeiro caso, a cúpula do partido decidiu liberar a bancada, cuja maioria apoia Lira, embora o atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), tenha sido o grande artífice da candidatura do postulante do MDB, Baleia Rossi (SP). O presidente da legenda, ACM Neto, evitou que a bancada formalizasse o apoio a Lira, mas foi o principal articulador da aliança com o candidato governista, como contrapartida pelo apoio do PP a Rodrigo Pacheco no Senado. O desgaste de Maia é tão grande que o político fluminense pode deixar o DEM.
Em tempo: Lira venceu no primeiro turno, com 302 votos, muito próximo dos 308 (2/3 dos votos) necessários para aprovar emendas constitucionais. Baleia teve 145 votos, dos 276 das bancadas que o apoiaram formalmente. O primeiro ato de Lira foi implodir o bloco de oposição, anulando o registro feito por Rodrigo Maia, alegando perda de prazo.
Luiz Carlos Azedo: Rede de intrigas
O que parecia impensável, passou a ser uma possibilidade, diante do descalabro na saúde: uma aliança entre os partidos de esquerda e o general Mourão contra Bolsonaro
A moral da história não tem muito a ver com o longa-metragem que empresta o título à coluna, por sinal, uma excelente dica para a tarde deste domingo, em tempos de distanciamento social. Lançado em 1976, o filme de Sidney Lumet é uma dura crítica aos meios de comunicação, principalmente a tevê, que arrebatou quatro Oscar: Ator (Peter Finch, entregue de forma póstuma), Atriz (Faye Dunaway), Atriz Coadjuvante (Beatrice Straight) e Roteiro (Paddy Chayefsky). A trama de Rede de Intrigas é uma pequena obra-prima:
Com baixos índices de audiência, o âncora do programa de notícias da rede UBS, Howard Beale (Peter Finch), surta e aparece na televisão afirmando que cometerá suicídio dentro de uma semana, em pleno horário nobre. Seu produtor entra em pânico com a atitude do amigo, acreditando que sua carreira e a de Howard estariam encerradas. Entretanto, o colapso do âncora acaba dando mais audiência ao programa. A ambiciosa diretora de tevê Diana Christensen (Faye Dunaway) e o executivo Frank Hackett (Robert Duvall) não estão nem aí para o surto do apresentador, só querem saber de faturar com o sucesso de público.
Rede de Intrigas se passa logo após a Guerra do Vietnã e o escândalo de Watergate, que levou Richard Nixon à renúncia. É um ambiente de muito ceticismo em relação à política e às instituições norte-americanas. Neste cenário, o sisudo âncora Howard Beale se transforma num jornalista sem papas na língua, que não tolera a situação e assume o papel de porta-voz da opinião pública. Controlar o desequilibrado Howard Beale, porém, será bem mais difícil do que qualquer um poderia pensar.
Na política brasileira, a intriga da hora é o estresse entre o presidente Jair Bolsonaro e seu vice, general Hamilton Mourão, provocado por inconfidências de um assessor parlamentar, que acabou demitido. Desde o episódio das “rachadinhas” (devolução de parte dos salários dos assessores para o parlamentar que os nomeou) da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, no qual estão envolvidos o senador Flávio Bolsonaro (PR-RJ), seu filho, e a primeira-dama Michele, Bolsonaro está convencido de que o vice sonha com a cadeira de presidente da República. Demitiu dois ministros, logo após o escândalo vir à tona, por acreditar numa conspiração para apeá-lo do cargo: o ex-secretário-geral da Presidência Gustavo Bebianno, já falecido, e o ex-secretário de Governo Carlos Alberto Santos Cruz, um general reformado — respeitadíssimo na caserna, por sua atuação em missões da ONU no Haiti e no Congo —, que hoje lhe faz uma oposição implacável.
Patente é documento
A crise sanitária e a recessão econômica, que Bolsonaro tenta mitigar no gogó falando barbaridades, jogaram os indicadores de aprovação do governo para baixo e estão desgastando a imagem do presidente da República de forma muito acelerada. O número de mortes provocado pela covid-19 e a indignação da população com o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) em Manaus, além de desmoralizar os militares à frente do Ministério da Saúde, sob comando do general Eduardo Pazuello, embalaram a agitação a favor do impeachment de Bolsonaro. O que parecia impensável, passou a ser uma possibilidade, diante do descalabro na saúde: uma aliança entre os partidos de esquerda e o general Mourão, homem sabidamente de direita. Com essa, Bolsonaro não contava.
A escolha de Mourão como vice teve por objetivo evitar que a oposição derrotada nas urnas em 2018 embarcasse na canoa do impeachment. A narrativa de que o impeachment de Dilma Rousseff fora um golpe liderado pelo vice Michael Temer, com apoio dos militares, dividia oposição. Mas não é que o impeachment passou a ser o centro da tática tanto da esquerda como dos movimentos cívicos que foram pra rua contra a “presidenta” petista. Bolsonaro trabalha para consolidar sua blindagem no Congresso, com a eleição do senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e do deputado Arthur Lira (PP-AL) à Presidência do Senado e da Câmara, respectivamente. É jogo jogado, mas isso não significa corpo fechado.
Mesmo que Bolsonaro obtenha uma vitória consagradora na “guerra de posições” para se manter no poder, isso não altera certas características de seu governo nem do Congresso. A maioria formada para apoiá-lo, tanto na Câmara como no Senado, foi obra silenciosa dos militares que controlam o governo, sobretudo do ministro Luiz Ramos, secretário de Governo, e das velhas raposas políticas do Centrão, entre as quais o senador Ciro Nogueira (PI), presidente do PP, e os ex-deputados Valdemar Costa Neto (SP), do PL, e Roberto Jefferson (RJ)), do PTB, e o ex-prefeito Gilberto Kassab (SP), do PSD, com maior ou menor estridência.
São políticos que já apoiaram e abandonaram todos os governos. Por sua vez, os militares têm uma cultura de troca de guarda, ou seja, rodízio nos comandos, que foi uma das características do regime militar. Bolsonaro tem razão ao ver em Mourão uma ameaça. O vice é “imexível” e está preparado para assumir seu lugar em caso de necessidade, com apoio do Centrão e dos militares, caso a popularidade do presidente continue desabando e o impeachment realmente ganhe as ruas, financiado por setores empresariais descontentes com os rumos da economia. Além disso, num governo de características bonapartistas, patente é documento.
Luiz Carlos Azedo: Só falta chamar de Cristiana
Os caciques do MDB “cristianizaram” a senadora Simone Tebet (MS), que se lançou candidata avulsa à Presidência do Senado, sem o apoio formal da bancada
Mineiro de Sabará, Cristiano Monteiro Machado foi prefeito de Belo Horizonte no final da década de 1920. Partidário da Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder, conquistou uma cadeira na Assembleia Nacional Constituinte em 1933. Renunciou ao mandato em 1936, para ser secretário de Educação e Saúde Pública de Minas Gerais, no governo de Benedito Valadares. Deixou o cargo no início de novembro de 1945, em decorrência da deposição de Getúlio Vargas (29/10/1945) e do consequente fim do governo Valadares. Filiado ao recém-fundado Partido Social Democrático (PSD), foi eleito deputado à Constituinte de 1946.
Em 15 de maio de 1950, Cristiano Machado foi lançado candidato à Presidência da República pelo PSD nas eleições que se realizariam em outubro. Entretanto, a ala getulista do PSD do Rio Grande do Sul era favorável à indicação de Nereu Ramos e se recusou a aceitar Cristiano como candidato. Logo depois, membros do Partido Social Progressista (PSP), de Ademar de Barros, comunicaram ao PSD que não apoiariam Cristiano. A candidatura de Getúlio Vargas, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), já estava sendo articulada e viria a ser apoiada por Ademar. Mesmo com o PSD dividido, Cristiano foi aclamado na convenção nacional do partido. Coube ao Partido Republicano (PR) indicar Altino Arantes para a vice-presidência. Cristiano ainda fez uma aliança com Hugo Borghi, candidato ao governo de São Paulo pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN).
Nas eleições de 3 de outubro de 1950, Cristiano Machado concorreu com o brigadeiro Eduardo Gomes (UDN) e Getúlio Vargas (PTB). Vargas teve uma vitória acachapante, inclusive, nos redutos eleitorais do PSD. A transferência dos votos de Cristiano para Vargas caracterizou um processo de esvaziamento eleitoral que ficou conhecido no jargão político como “cristianização”. Passou a ser uma marca registrada do MDB nas eleições para presidente da República, sempre que a legenda lançou candidato, com aconteceu com Ulyssses Guimarães (1989) e Orestes Quércia (1994).
Ontem, no Senado, os caciques do MDB “cristianizaram” a senadora Simone Tebet (MS), que se lançou candidata avulsa à Presidência da Casa, depois de perder o apoio formal da bancada. Pesaram na balança a maioria dos senadores do PSDB e do PT, que apoiam o candidato governista Rodrigo Pacheco (DEM-MG), numa articulação bem-sucedida do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), aliado incondicional do presidente Jair Bolsonaro. Havia uma expectativa de reversão desses apoios, o que equilibraria muito a disputa, mas isso não ocorreu.
Traições
Simone Tebet tentava virar dois votos do PSDB dos cinco que apoiam Pacheco, mais dois votos do PT e o voto do senador Cid Gomes (PDT). Se essa articulação prosperasse, haveria alguma chance de manter o apoio dos caciques da legenda. Os senadores Eduardo Gomes (TO), líder do governo no Congresso, Luiz do Carmo (GO), Márcio Bittar (AC) e Confúncio Mouro (RO) já estavam com o candidato do DEM. Os senadores Fernando Bezerra (PE), líder do governo no Senado; Eduardo Braga (AM), líder da bancada; Renan Calheiros (AL), Fernando Bezerra (PE), Jarbas Vasconcelos ((PE), Jader Barbalho (PA), Nilda Gondim (PB) e Veneziano Vital do Rego (PB) apoiavam Tebet. Entretanto, Dario Berger (SC), Marcelo Castro (PI) e Rose de Freitas (ES) ainda aguardavam as definições no PSDB e no PT.
Ao contrário da Câmara, que tem 513 deputados, as disputas no Senado são um jogo de cartas marcadas, que se decide de véspera, muitas vezes, em razão do número de senadores (81, três por unidade da Federação). Quando se consolida uma maioria, isso tem um efeito desestabilizador para quem está em desvantagem. Foi o que aconteceu com Tebet, com a decisão da bancada do MDB de não oficializar sua candidatura e liberar seus integrantes para votar como quiserem.
A ocupação de espaços na Mesa Diretora do Senado e a situação eleitoral nos estados também costumam ter um peso decisivo no posicionamento de cada senador. Por exemplo, Eduardo Gomes e Veneziano disputam a primeira vice-presidência do Senado, que ficará com o MDB, porque a bancada abriu mão de apoiar Simone Tebet. Por fim, os dados estão lançados. E é sempre bom levar em conta que a votação secreta dá “uma vontade danada de trair”, como dizia Tancredo Neves.
Luiz Carlos Azedo: O rolo compressor do Planalto
Ao subir o tom contra o presidente Jair Bolsonaro, Maia aposta numa separação mais nítida entre governistas e a oposição. Entretanto, isso estressa a bancada do DEM
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), estima os gastos do Palácio do Planalto para anabolizar a candidatura do deputado Arthur Lira (PP-AL) à Presidência da Casa em R$ 20 bilhões. É muita grana em emendas extraordinárias para um Orçamento já comprometido diante da dívida pública da União, que aumentou R$ 1 trilhão somente no ano passado. O toma lá dá cá é o abre-alas de uma guinada populista do governo para consolidar a base governista na Câmara e no Senado, num ambiente de queda de popularidade do presidente Jair Bolsonaro. A outra opção é não cumprir os acordos, o que também pode acontecer, porque Bolsonaro já deu mostras de que nem sempre honra os compromissos assumidos por seus articuladores políticos.
Às vésperas de deixar o comando da Câmara, Maia queima os navios com o Palácio do Planalto. Tem criticado, duramente, a interferência direta do presidente da República nas eleições da Mesa e está praticamente rompido com o presidente do DEM, o ex-prefeito de Salvador ACM Neto, que fechou com Lira, de olho na sua candidatura a governador da Bahia. O futuro de Maia é incerto, mas seus interlocutores estão convencidos de que o parlamentar fluminense pretende assumir uma posição de liderança no bloco de oposição ao governo. Especula-se até que esteja desembarcando do DEM. Parcela expressiva da sua bancada refuga o apoio ao deputado Baleia Rossi (MDB-SP), candidato de Maia ao comando da Câmara.
Rodrigo Maia teria sido convidado para assumir o comando da Casa Civil do governo de São Paulo, tornando-se o principal articulador da candidatura do governador João Doria (PSDB) à Presidência da República. Faz sentido, porque o presidente da Câmara assumiu um discurso liberal-democrata radical de oposição ao governo. Com isso, o bloco que lidera vem sofrendo sucessivas defecções em razão do trabalho de sapa dos articuladores do governo e seu candidato, Arthur Lira.
Ao subir o tom contra o presidente Jair Bolsonaro, Maia aposta numa separação mais nítida entre o bloco governista e a oposição. Entretanto, isso estressa a bancada. Lira se aproveita da situação e pressiona para que os deputados do DEM que o apoiam forcem a bancada a romper formalmente com Rossi, o que deixaria Maia pendurado no pincel. Uma situação como essa, praticamente, o empurraria para fora do DEM. Seria até meio desmoralizante, para quem já foi presidente da legenda. Lira já consolidou o apoio de 30 deputados do PSL, que, ontem, se encontraram com o presidente Jair Bolsonaro. Luciano Bivar (PE), presidente da legenda, também teria desembarcado da candidatura de Rossi.
Avulsos
Na guerra de informações sobre o comportamento das bancadas, a incógnita é a densidade dos demais candidatos, que podem levar a disputa entre Lira e Rossi para o segundo turno. Se forem somados todos os votos que os candidatos dizem ter, a Câmara teria muito mais do que 513 deputados. Os demais candidatos são:
Alexandre Frota (PSDB-SP): candidato avulso. Defende uma Câmara independente em relação ao Executivo e à abertura de processo de impeachment de Bolsonaro.
André Janones (Avante-MG): candidato avulso. Promete pautar a volta do auxílio emergencial. Cinco deputados apoiam publicamente sua candidatura, mas calcula que pode chegar a 10 parlamentares nas eleições, que serão realizadas com voto secreto.
Capitão Augusto (PL-SP): candidato avulso. Coordenador da Frente Parlamentar de Segurança Pública, conhecida como a bancada da bala, tem conversado com deputados de “bancadas vocacionadas”, como a evangélica.
Fábio Ramalho (MDB-MG): candidato avulso. Tem investido no contato individual com os parlamentares do baixo clero, em que transita muito bem. Defende a independência da Câmara. Marcel van Hattem (RS): candidato oficial do Novo, partido que conta com oito deputados. Aposta no diálogo e está empenhado em construir pontes com os parlamentares.
Luiz Erundina (PSol-SP): a legenda contesta a aliança dos partidos de esquerda com Baleia Rossi, mas a candidatura da ex-prefeita de São Paulo não unificou a bancada.
Luiz Carlos Azedo: A vacina dos camarotes
A política de saúde pública de Bolsonaro, por exemplo, é inspirada na Lei de Murici: “Cada um sabe de si”, a máxima do coronel Pedro Tamarindo na debandada da terceira campanha de Canudos
Uma das características da pandemia de coronavírus, que certamente será objeto de muitos estudos e pesquisas, é a desigualdade social escancarada que nos revela. A cortina foi rasgada pelo auxílio emergencial: a iniquidade chegava a 56 milhões de pessoas, dos quais 2,6 milhões em São Paulo e 1,6 milhão no Rio de Janeiro, cidades ícones do Sul Maravilha, segundo dados do Portal da Transparência de junho do ano passado. O número de “invisíveis” dependentes dos recursos governamentais ultrapassava meio milhão de pessoas em Salvador (762 mil), Fortaleza (747), Manaus (634 mil) e, pasmem, Brasília (562 mil). No time das 10 cidades com maior número de “flagelados” da crise sanitária, constavam, também, Belo Horizonte (494 mil), Belém (453 mil), Recife (420 mil) e Curitiba (339 mil).
Vejam bem, não estamos falando do Brasil profundo, mas das principais cidades brasileiras, que lideram o nosso desenvolvimento econômico e social, os principais polos da transição do Brasil rural para o urbano, na marcha forçada do nosso modelo nacional-desenvolvimentista. Esse processo melhorou a vida das pessoas da porta para dentro, principalmente da classe média. Entretanto, o crescimento acelerado das cidades deteriorou as condições urbanas e deixou ao abandono a vida banal das periferias e morros, degradando a vida coletiva da porta para fora. Principalmente depois do Plano Real, a economia informal e o empreendedorismo mascararam a gravidade do problema, mitigado, ainda, pelo programa Bolsa família, até que veio a recessão provocada pela pandemia, que destruiu empregos e também provocou um “apagão” de capital.
A conta da pandemia, do ponto de vista fiscal, ainda vai chegar, mas ninguém mais pode ignorar a gravidade do problema social que o Brasil enfrenta, principalmente, as elites econômicas do país. As desigualdades se manifestam em todos os seus aspectos — econômico, social, cultural, étnico e de gênero — e não será a prorrogação do auxílio emergencial que resolverá o problema. É inviável uma política de renda mínima sem um projeto de desenvolvimento, sem política industrial e de comércio exterior, sem reforma tributária e administrativa, sem investimento em ciência e tecnologia, em habitação, transportes e, principalmente, educação. Acontece que, até agora, o governo federal pautou-se pela omissão ou o improviso nas políticas sociais.
Lei de Murici
Um retrospecto das declarações do presidente Jair Bolsonaro; do ministro da Economia, Paulo Guedes; e do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, mostra um governo errático na condução do país e focado apenas na preservação e fortalecimento do seu poder em relação ao Legislativo, ao Judiciário e aos demais entes federados. O sucesso do Palácio do Planalto nas disputas pelo controle das Mesas da Câmara e do Senado fixará o foco na “guerra de posições” para consolidar um governo bonapartista, que se pretende tutor da sociedade. O problema das desigualdades está fora de sua agenda. A crise sanitária mostra isso. Uma política de transferência de renda com objetivo apenas eleitoral não será sustentável.
A política de saúde pública de Bolsonaro, por exemplo, é inspirada na Lei de Murici: “Cada um sabe de si”, a máxima do coronel Pedro Tamarindo na debandada da terceira campanha de Canudos. O presidente da República sempre se colocou ao lado dos que não querem se vacinar, mesmo depois de os principais líderes mundiais darem o exemplo se vacinando. É o principal responsável pelo desmantelo do Ministério da Saúde na condução da política epidemiológica. Agora, Bolsonaro resolveu defender a compra e a distribuição de vacinas por empresas privadas, entre elas, a Petrobras e a Vale, para imunizar seus funcionários, furando a fila do Programa Nacional de Imunização, para manter a atividade da economia. A doação de metade das vacinas para o Sistema Único de Saúde (SUS) legitimaria o privilégio. Teremos a vacina dos camarotes, para usar uma expressão do meu xará Luiz Carlos Rocha, advogado de Curitiba, enquanto a “pipoca” espera a vez nas filas do SUS, devido ao descaso e às trapalhadas do general Pazuello na Saúde.
Acontece que a Lei de Murici pode ser a senha para um desastre anunciado, como na retirada de Canudos. Tudo começou quando o sanguinário coronel Moreira Cezar, no dia 3 de fevereiro de 1897, mudou subitamente de ideia e optou pelo ataque imediato, em vez do cerco a Canudos. O arraial foi duramente castigado pela artilharia. As forças do Exército conseguiram invadir o arraial e conquistar algumas casas. Foram, contudo, obrigadas a recuar, devido à pouca munição. Após cerca de cinco horas de combate, Moreira César foi mortalmente ferido no ventre, quando se preparava para ir à frente de batalha incentivar a tropa.
O comando foi transferido ao coronel Pedro Tamarindo, que decidiu recuar, após sete horas de combate. Moreira César agonizou 12 horas, ordenando que Canudos fosse, uma vez mais, atacado. Em reunião de oficiais, porém, fora decidida a retirada, dado o grande número de feridos, numa marcha de 200 quilômetros até Queimada. Atacada incessantemente pelos jagunços, a tropa debandou. Tamarindo foi morto no Córrego dos Angicos. Seu corpo foi deixado no campo de batalha. Acabou empalado num galho de angico pelos jagunços. A primeira favela do Rio de Janeiro foi formada pelos soldados desmobilizados após a Guerra de Canudos.
Luiz Carlos Azedo: Pazuello em Manaus
O ministro do STF Ricardo Lewandowski autorizou a abertura de inquérito para investigar a conduta do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, na crise sanitária no Amazonas, onde o SUS entrou em colapso
Em tempos de quarentenas e isolamento social, o filme Operação Final é um dos mais populares da Netflix. Narra o sequestro do criminoso nazista Adolf Eichmann (Ben Kingsley, em interpretação magistral), na Argentina, para submetê-lo a julgamento em Jerusalém pelos crimes que cometeu na Segunda Guerra Mundial. Os principais líderes nazistas, como Adolf Hitler, evitaram a Justiça por meio do suicídio, mas o responsável pelos campos de concentração conseguiu escapar e vivia escondido, até ser identificado e localizado por causa das suas ligações com a extrema direita argentina.
Fugitivo, Eichmann era imaginado como um sujeito brutal e sanguinário, mas o julgamento mostrou outro tipo de personalidade: um burocrata militar (tenente-coronel das SS), cujo objetivo central era vencer na vida a todo custo, incapaz de refletir sobre as consequências de suas ações. Eichmann era o gestor de um conjunto de instruções voltadas à destruição dos judeus. Cumpria ordens para dar cabo dos objetivos genocidas do movimento nacional-socialista alemão, fundado e chefiado por Hitler. Era o mais comum dos homens, educado, inteligente e afirmava que, particularmente, não era antissemita. Era apenas um servidor público cumpridor das leis.
Eichmann foi um dos responsáveis pelo transporte dos prisioneiros judeus para os campos de concentração. Ele cuidava da logística que levaria milhões de pessoas aos mais diversos tipos de torturas e à morte. Entretanto, via sua função como sendo apenas parte do sistema, como se estivesse meramente cumprindo ordens, executando corretamente suas tarefas, sem levar em consideração o que realmente significava sua parte no esquema nazista. Ele era um de muitos do mesmo tipo, indiferente ao sofrimento alheio, com frieza e incapacidade de comiseração.
A filósofa judia-alemã Hannah Arendt acompanhou o julgamento e escreveu um livro (Eichmann em Jerusalém) no qual caracterizou a atuação do oficial nazista como a banalização do mal: “O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram, e ainda são, terrível e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas instituições, e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que (…) esse era um novo tipo de criminoso, efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado”, escreveu. O filme Hannah Arendt — Ideias que chocaram o mundo conta muito bem essa história.
Inquérito
Ontem, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski autorizou a abertura de inquérito para investigar a conduta do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, na crise de saúde do Amazonas, que entrou em colapso, com superlotação dos leitos hospitalares e desabastecimento de oxigênio. Em depoimento do ministro à Polícia Federal, em data a ser marcada, ele terá que apresentar informações sobre as ações efetivamente adotadas em relação ao estado da saúde pública de Manaus. Lewandowski definiu prazo inicial de 60 dias para a investigações da Procuradoria-Geral da República (PGR) serem concluídas.
O caso foi enviado a Lewandowski pela vice-presidente do STF, Rosa Weber, à frente do plantão judiciário durante o recesso, porque o ministro é o relator de outros processos ligados à pandemia. O pedido de inquérito foi feito pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, com base em uma representação do partido Cidadania e em informações apresentadas pelo próprio ministro Pazuello, além de apuração preliminar dos procuradores federais que atuam na área de Saúde. O ministro soube do colapso iminente do Sistema Único de Saúde (SUS) em Manaus em dezembro, mas só tomou providências efetivas em janeiro. Dezenas de pessoas morreram por falta de oxigênio, enquanto o Ministério da Saúde insistia em prescrever cloroquina para conter a crise sanitária.
Nem de longe as mortes causadas pela pandemia no Brasil, apesar de toda a incúria e falta de empatia do presidente Jair Bolsonaro, se comparam aos horrores do Holocausto. Entretanto, a “banalidade” com que são tratadas é um espanto. O comportamento é o mesmo apontado por Arendt na descrição de Eichmann: alguém que não conseguia perceber a realidade, não se colocava no lugar de outra pessoa, porque internalizou que o que estava fazendo era o correto. Eichmann cumpria ordens sem questionar o certo e o errado, dessa forma tornou-se um dos maiores criminosos de guerra. Bolsonaro manda, Pazuello obedece e, com isso, se tornou o pior ministro da Saúde da nossa história.
Luiz Carlos Azedo: Sobre atalhos e eleições
A eventual vitória de Bolsonaro na disputa pelas Mesas do Congresso lhe dará fôlego para salvar o mandato, mas não será o bastante, caso sua popularidade continue desabando
O Conselheiro Acácio, criação do escritor português Eça de Queiróz (1840-1900) no romance Primo Basílio, com passar do tempo, acabou se tornando maior do que o protagonista que empresta o nome ao livro e os demais personagens, por seu pedantismo e suas obviedades. A expressão “acaciano”, inspirada em suas platitudes e redundâncias, virou até adjetivo na língua portuguesa. Eça descreve-o de forma caricatural: “Alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo, ia-se alargando até a calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto. Tingia os cabelos, que de uma orelha à outra lhe faziam colar para trás da nuca; e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, maior brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos cantos da boca. Era muito pálido; nunca tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha no queixo e as orelhas muito grandes, muito despegadas do crânio”.
O que humanizou e fez do Conselheiro um personagem maior e universal foram seu falso moralismo (vivia amancebado com a criada), o burocratismo (adorava carimbos, despachos, fichas e relatórios que para nada serviam) e a bajulação (toda vez que o nome do Rei era pronunciado, erguia-se um pouco da cadeira). Como uma espécie de Barão de Itararé (Apparício Torelly) às avessas, suas frases de efeito tornaram-se famosas, como “a saúde é um bem que só apreciamos quando nos foge”. Tudo para ele era cercado de pompa: “Que maior prazer, meu Jorge, que passar assim as horas entre amigos, de reconhecida ilustração, discutir as questões mais importantes, e ver travada uma conversação erudita…? Parecem excelentes os ovos”.
Conselheiros como ele pululam nos palácios e seus gabinetes. Muita gente gosta desse tipo de colaborador, que dá razão ao chefe em tudo. O presidente Jair Bolsonaro não foge à regra, mas — quanta ironia —, como diria o Conselheiro Acácio, “as consequências vêm depois”. É o que está acontecendo, agora, com a pandemia da covid-19 no Brasil, cuja segunda onda é uma realidade dramática e, tudo indica, está se somando à “quarta onda” a que se refere o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, que seriam os efeitos psicológicos das mortes, do desemprego, dos confinamentos e das desesperanças. A diferença é que o general imaginava um desespero individual, que até poderia levar ao aumento dos suicídios, ou a saques e depredações espontâneos, mas que poderiam provocar uma convulsão social.
Impeachment
Pazuello não contava, porém, com o desgaste provocado pelo negacionismo de Bolsonaro e uma resposta política da oposição. É o que estamos vendo agora, com manifestações de protestos se sucedendo com força: panelaços nas janelas e memes nas redes sociais; e as carreatas, como as de ontem e de hoje, pedindo “vacinas já” e o impeachment do presidente da República, que desabou nas pesquisas. Quaisquer que sejam os resultados das eleições das Mesas da Câmara e do Senado, mesmo que vençam os candidatos apoiados por Bolsonaro — Arthur Lira (PP-AL), na Câmara, e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), no Senado —, os políticos governistas também sentiram o cheiro de animal ferido na floresta. A fatura a pagar será alta. Nos casos de vitória de Baleia Rossi (MDB-SP) e/ou Simone Tebet (MDB-MS), principalmente a do primeiro, a agenda de costumes e institucional de Bolsonaro estará definitivamente interditada. As pautas do Congresso serão a crise sanitária, a recessão, a inflação, o desemprego, a renda e o fracasso do governo.
O Brasil já viu esse filme duas vezes, nos governos Collor e Dilma, o primeiro, por causa da inflação, o segundo, em decorrência da recessão, ambos temperados por escândalos de corrupção. Nos dois casos, as insatisfações desaguaram no impeachment. No de Collor, o clamor das ruas foi liderado pelo PT, mas o realinhamento das forças políticas resultou na eleição de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). No de Dilma, o PSDB trabalhou para apeá-la desde o primeiro dia no cargo. Quando chegaram as eleições, deu Bolsonaro. As circunstâncias do impeachment são crime de responsabilidade e grande insatisfação popular, além da vontade de a oposição atalhar o processo de alternância de poder. Entretanto, o perfil do vice-presidente é dado pelas alianças que viabilizaram a eleição do presidente defenestrado. Itamar era aliado de Collor; Michel Temer, de Dilma. O primeiro não podia se candidatar, o segundo foi inviabilizado por denúncias quando ensaiava a reeleição.
A eventual vitória de Bolsonaro na disputa pelas Mesas do Congresso lhe dará fôlego para salvar o mandato, mas não será o bastante, caso sua popularidade continue desabando. Sua força no Congresso resulta da ação de uma espécie de “subgoverno”, que sempre manteve boas relações no Senado e na Câmara, formado por alguns ministros e o grupo de militares que hoje controla o Palácio do Planalto. São aliados que também podem derivar para o impeachment, se perceberem uma debacle iminente, com o país ladeira abaixo, pois estariam mais bem servidos com o vice Hamilton Mourão, um general de quatro estrelas, um potencial “salvador da pátria” embalado nas casernas e pelo povo nas ruas. E o que viria depois? Ninguém sabe, 2022 já está em aberto.
Luiz Carlos Azedo: Esquenta a disputa no Congresso
Tanto na Câmara quanto no Senado, Bolsonaro aposta alto e joga pesado, para garantir a sua governabilidade e, também, para avançar na sua agenda de reeleição
O PSL deixou, ontem, o bloco de apoio ao deputado Baleia Rossi (MDB-SP), candidato a presidente da Câmara, apoiado por Rodrigo Maia (DEM-RJ), atual ocupante do cargo, para adensar a candidatura do líder do Centrão, Arthur Lira (AL), o candidato do presidente Jair Bolsonaro. A mudança se deu porque quatro parlamentares trocaram de lado, formando uma nova maioria na bancada, com 19 dos 36 deputados.
Foi a mais bem-sucedida manobra de Lira para fortalecer sua candidatura estimulando as dissidências internas nos partidos que apoiam Baleia, que, até agora, vinha sendo pautada por declarações públicas. O presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE), que apoia Rossi, mantém uma queda de braço com o presidente Jair Bolsonaro, que deixou a legenda logo após tomar posse. O grupo dissidente do PSL chegou a apresentar uma lista com 32 assinaturas pedindo a saída do bloco de Baleia, mas dela constavam as assinaturas de 17 deputados bolsonaristas suspensos pelo partido em razão de divergências com Bivar e que não poderiam ser contabilizados.
Com isso, a candidatura de Lira passa a contar com o apoio de 10 bancadas, que somam, atualmente, 232 deputados: PSL, PL, PP, PSD, Republicanos, PTB, PROS, PSC, Avante e Patriota. Permanecem no bloco de Baleia as bancadas de 11 partidos: PT, MDB, PSDB, PSB, DEM, PDT, Cidadania, PCdoB, PV, Rede e Solidariedade, que também trocou de lado, deixando o Centrão. Com isso, essas bancadas totalizam 236 parlamentares. O problema é que essa contabilidade formal não reflete os acordos de bastidores, que são individuais.
O deputado Fábio Ramalho (MDB-MG), candidato avulso, que conta com apoio no baixo clero da Câmara, tem se queixado das pressões do Palácio do Planalto para que seus aliados declarem voto a favor de Lira. A polarização complica muito a situação, também, para a candidata do PSol, Luiza Erundina (SP). Marcelo Freixo (RJ) e mais quatro dos 11 integrantes da bancada defenderam o apoio à “frente ampla” liderada por Baleia Rossi.
A candidatura de Lira sempre manteve vantagem em relação a Baleia, mas o agravamento da crise sanitária e a queda da popularidade do presidente Bolsonaro contribuíram para embaralhar a disputa. Em contrapartida, a campanha do impeachment iniciada pela oposição está sendo explorada por Lira, para obter mais apoio do Palácio do Planalto, o que se traduz em mais verbas e cargos, além de retaliações, no caso daqueles que tinham boas relações com o governo, mas são aliados de Baleia.
Senado
A disputa no Senado também está ficando acirrada, porque a radicalização política está colocando em xeque a aliança da bancada do PT com o candidato apoiado pelo governo, Rodrigo Pacheco (DEM-RJ). Suas declarações em apoio a Bolsonaro e contra o impeachment colocaram uma saia justa em líderes históricos do PT, como Jaques Wagner (BA), Humberto Costa (PE), Paulo Paim (RS) e Paulo Rocha (PA), que estão sendo bombardeados nas redes sociais pelos militantes petistas por causa das alianças com os bolsonaristas.
Além disso, velhos cardeais da Casa estão operando para fortalecer a candidata do MDB, Simone Tebet (MS). José Serra pressiona os senadores do PSDB que apoiam Pacheco, liderados por Izalci Lucas (DF), enquanto o tucano Tasso Jereissati (CE) tenta atrair o PDT, a partir de suas relações com Cid Gomes (CE). No MDB, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) desembarcou em Brasília para evitar a “cristianização” de Tebet por senadores emedebistas. O gesto é emblemático, porque Tebet não apoiou a candidatura de Renan contra Alcolumbre. Além disso, os caciques da legenda esperavam apoio do Palácio do Planalto à candidatura do líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (PE), o que não ocorreu.
Tanto na Câmara quanto no Senado, o Palácio do Planalto aposta alto e joga pesado, não apenas para garantir a governabilidade do presidente Jair Bolsonaro, mas, também, para avançar na sua agenda de reeleição. O ministro da Economia, Paulo Guedes, diz que a vitória dos aliados do governo permitirá que envie para o Congresso sua proposta de reforma tributária, cujo eixo é a criação de um imposto sobre operações financeiras. Essa proposta seria acompanhada do projeto de Renda Cidadã, que substituiria o Bolsa Família e, em tese, garantiria apoio popular para a reeleição de Bolsonaro.
Luiz Carlos Azedo: O vento das mudanças
Ao mesmo tempo em que complicou a vida de Bolsonaro, a vitória de Biden deu gás para a oposição, que aposta no impeachment, principalmente depois do colapso da Saúde no Amazonas
Caiu a ficha no Palácio do Planalto de que o vento mudou de rumo, com a posse do presidente Joe Biden, ontem, já anunciando mudanças fundamentais na política externa norte-americana e a volta da Casa Branca ao eixo da democracia e do “sonho americano”. Rapidinho, o presidente Jair Bolsonaro enviou uma longa carta ao presidente dos Estados Unidos, sugerindo o seu próprio reposicionamento em relação ao democrata, para manter a parceria estratégica, enquanto o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, em videoconferência — a reboque do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ)—, pedia ao embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, para interceder em favor da liberação dos insumos de que precisamos para produzir as vacinas contra a covid-19. Nada como um dia atrás do outro.
A mudança na política externa dos Estados Unidos não acabou com a soberba no Itamaraty. O embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Nestor Forster, por exemplo, ao comentar a troca de ocupantes da Casa Branca, disse que Biden precisa entender a mudança que houve no Brasil com a eleição de Bolsonaro, um país muito diferente daquele que conhecera quando era vice-presidente de Barack Obama. Ora, o novo presidente dos Estados Unidos sabe muito bem o que aconteceu, pois conhece o nosso país. Bolsonaro, o tempo todo, foi uma espécie de espelho de Donald Trump.
Ao mesmo tempo em que complicou a vida de Bolsonaro, a vitória de Biden deu gás para a oposição, que resolveu apostar no impeachment do presidente brasileiro, principalmente depois do colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) no Amazonas. Os partidos de esquerda estão convocando carreatas para o próximo sábado, com o objetivo de protestar contra o governo, devido à falta de vacinas. A crise sanitária agravou-se com a segunda onda da pandemia do novo coronavírus, e Bolsonaro está sendo responsabilizado por causa de seu reiterado negacionismo, em relação à gravidade da doença, à importância do uso de máscaras e do distanciamento social, além da necessidade de vacinação em massa da população.
Chapa quente
Os mesmos movimentos cívicos que embalaram a campanha do impeachment da presidente Dilma Rousseff — MBL, Vem pra Rua, Agora, Acontece etc — também começam a se mobilizar nas redes sociais e a convocar manifestações contra o governo. Os humores da sociedade estão mudando, conforme demonstram as pesquisas de opinião, mas isso não significa que a oposição tenha força suficiente para viabilizar o impeachment. A pandemia tira o povo das ruas, e o Congresso dá sinais de que os aliados de Bolsonaro vão levar a melhor na disputa pelas Mesas da Câmara e do Senado. Enquanto a oposição tenta promover uma “guerra de movimento”, Bolsonaro procura avançar na “guerra de posições”, movendo mundos e fundos, isto é, cargos e verbas, para eleger Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) às presidências da Câmara e do Senado, respectivamente. Caso tenha êxito, o seu impeachment, dificilmente, descerá do telhado.
Docemente constrangido, o vice-presidente Hamilton Mourão ataca a oposição — “deixem o Bolsonaro trabalhar, pô”—, ao mesmo tempo em que não perde uma oportunidade para marcar uma posição diferenciada em relação ao meio ambiente, à vacina e a outros temas nos quais o presidente da República vai na contramão da opinião pública. É um jogo muito sutil, porque o general lida com a desconfiança do clã Bolsonaro desde quando estourou o escândalo das rachadinhas da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, envolvendo o senador Flávio Bolsonaro (PR-RJ) e a primeira-dama Michele Bolsonaro, que receberam dinheiro do ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz. Militares descontentes veem em Mourão uma alternativa, caso o governo Bolsonaro leve o país ao desastre.
No xadrez da “guerra de posições”, depois da definição do Congresso, Bolsonaro deverá mover mais uma peça: a indicação do substituto do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, que se aposentará em 12 de julho. As articulações para a vaga já estão em curso. O candidato mais ativo é o procurador-geral da República, Augusto Aras. Na terça-feira, a propósito das representações da oposição contra Bolsonaro, por causa da crise sanitária, Aras soltou uma nota estranhíssima, falando que a calamidade pública era a antessala do “estado de defesa”, sabidamente uma situação que confere poderes extraordinários ao presidente da República. A nota gerou perplexidade e críticas públicas de seis subprocuradores-gerais da República, ou seja, da maioria do Conselho Superior do Ministério Público.