Naercio Menezes Filho

Naercio Menezes Filho: Mercado de trabalho na pandemia

A pandemia afetou o mercado de trabalho em vários países do mundo, mas a queda no emprego foi especialmente severa no Brasil. Enquanto a atividade econômica já voltou aos níveis de antes da pandemia, a taxa de desemprego continua bastante alta por aqui, assim como o número de pessoas que desistiu de procurar emprego. E os trabalhadores menos qualificados são os que estão sofrendo mais os efeitos da pandemia. Por que será que o emprego está demorando tanto a reagir? Qual a perspectiva futura para os trabalhadores jovens que não conseguiram completar o ensino médio?

A figura ao lado mostra índices de emprego medidos através da Pnad Contínua para os trabalhadores que completaram o ensino médio ou superior e também para os que só estudaram até o ensino fundamental ao longo de 2019 e 2020, na indústria, comércio e serviços. Podemos notar que as séries apresentaram um leve aumento ao longo do 2019. Mas, já no início da pandemia, no primeiro trimestre de 2020, o emprego dos trabalhadores menos qualificados começa a declinar acentuadamente, ao passo que entre os mais qualificados a queda é mais suave e concentrada no comércio e serviços.

Com o agravamento da pandemia, o emprego despencou entre os menos qualificados dos três setores, com cerca de 20% dos trabalhadores perdendo seu emprego. Já entre os trabalhadores com ensino médio completo ou superior, a queda foi de 7% no comércio e apenas 3% na indústria e serviços. Desde então, o emprego tem reagido lentamente para todos os grupos, mas enquanto os mais qualificados já atingiram o nível de emprego do início de 2019, os menos escolarizados permanecem 20% abaixo. A situação é especialmente grave entre os mais jovens que não completaram o ensino médio. Por que isso ocorreu?

Em primeiro lugar, devemos notar que esses efeitos fortes da pandemia no desemprego não estão acontecendo devido às políticas de distanciamento adotadas para conter a disseminação do vírus. O comportamento do emprego ao longo de 2020 foi bastante parecido nos locais que adotaram políticas de distanciamento mais rígidas logo no início da crise com relação aos que não as adotaram. Na verdade, esses efeitos decorrem em grande parte do receio das pessoas de saírem de casa e serem contaminadas pelo vírus.

A taxa de isolamento social em São Paulo, que antes da pandemia era de apenas 28%, atualmente está por volta de 40%. Assim, mesmo depois de 1 ano e 2 meses desde o início da crise, 12% das pessoas que costumavam sair de casa todos os dias para trabalhar ainda permanecem isoladas em casa. E essa taxa apresentou poucas variações ao longo da pandemia, independentemente das medidas de isolamento tomadas no Estado.

Junto com o isolamento, a pandemia provocou alterações na forma de trabalho e nos padrões de consumo. Quase 13% dos trabalhadores qualificados continuavam trabalhando de casa no final do ano passado, com poucas alterações nesta taxa ao longo da pandemia. Por outro lado, menos de 1% dos trabalhadores menos qualificados adotou o home office, pois trabalham em ocupações que não permitem o teletrabalho. Mas será que as pessoas que estão trabalhando de casa irão voltar a circular pelas ruas quando a pandemia acabar?

Há evidências de que grande parte delas não voltará mais ao trabalho presencial, mesmo após o fim da pandemia. Dados do Instituto de Pesquisa DataSenado (2020) mostram que entre aqueles adotaram o home office, 75% preferem que no futuro o trabalho permaneça dessa forma. E a grande maioria acha que a sua produtividade aumentou ou permaneceu igual com o teletrabalho, o mesmo acontecendo com a produtividade da empresa em que trabalham. Por fim, 70% afirmam que a adaptação ao home office foi fácil.

Acontece que, devido à alta concentração de renda no Brasil, os padrões de consumo da parcela mais rica da população têm muito impacto na geração de empregos dos menos qualificados. Os 10% mais ricos concentram cerca de 1/3 do consumo total no Brasil. Assim, mudanças de comportamento e no padrão de consumo dessa classe têm efeitos multiplicadores no emprego bem maiores do que mudanças nas classes média e baixa. Por exemplo, se as pessoas com maiores rendimentos permanecerem mesmo trabalhando de casa após a pandemia, deixarem de frequentar restaurantes em dias úteis e passarem a comprar comida e outros produtos pela internet, a recuperação dos empregos menos qualificados pode demorar muito para ocorrer, pois este tipo de compra não exige a presença de vendedores e garçons.

Em suma, apesar da retomada da atividade econômica, a taxa de ocupação continua baixa, especialmente entre os jovens e menos qualificados. Isso reflete uma persistência na taxa de isolamento social, facilitada pelo fato de que parcela relevante das pessoas com maiores rendimentos continua trabalhando de casa. Como estas pessoas são responsáveis por uma grande parcela do consumo agregado no Brasil, sua mudança no padrão de consumo tem grande efeito sobre o emprego nos setores de alimentos, vestuários, shoppings e viagens, que empregam uma grande parcela de trabalhadores não-qualificados. A renda desses trabalhadores, por sua vez, movimenta o comércio informal nas ruas.

Assim, se grande parte das pessoas com maior poder aquisitivo permanecer em home office após o final da crise, será difícil que o emprego dos jovens não qualificados retorne para os níveis de antes da pandemia, mesmo com a volta da circulação das pessoas nas ruas e nos shoppings nos finais de semana. E quanto mais tempo os jovens permanecerem desempregados, mais a sua trajetória profissional será afetada, diminuindo sua felicidade, produtividade e salários no futuro, empurrando-os para a criminalidade e aumentando a desigualdade de renda.

*Naercio Menezes Filho, é professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper, professor associado da FEA-USP e membro da Academia Brasileira de Ciências

Fonte:

Valor Econômico

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/mercado-de-trabalho-na-pandemia.ghtml


Naercio Menezes Filho: Pandemia, pobreza e política

Se todas as pessoas enquadradas receberem a renda emergencial a pobreza extrema seria praticamente eliminada

A pandemia da covid-19 está provocando várias mudanças em quase todos os países do mundo. Ela está afetando o modo de vida das pessoas, os empregos, os preços dos ativos, o funcionamento dos negócios, a pobreza e a desigualdade.

Essas transformações são especialmente difíceis para as famílias mais pobres, que estão no setor informal, não têm poupança e, portanto, precisam de rendimentos diários para poder sustentar suas famílias. O que poderá acontecer com as crianças nessas famílias? Será que o programa de renda básica emergencial será suficiente para protegê-las? Quais serão os efeitos dessa crise sobre a popularidade do presidente?

Vários estudos acadêmicos mostram que o estresse materno durante a gestação afeta o desenvolvimento dos bebês, diminuindo seu peso ao nascer e sua produtividade futura. Assim, a incerteza das mães com relação às suas condições econômicas para comprar comida e o receio de ficarem doentes já estão afetando as crianças que irão nascer esse ano, os “filhos do Coronavírus”.

Sabemos também que a velocidade do desenvolvimento cerebral é muito maior nos primeiros anos de vida do que nos demais períodos. Nessa fase, a criança precisa viver num ambiente tranquilo, mantendo interações saudáveis com seus pais. Mas a crise está fazendo com que muitas pessoas estressadas fiquem o tempo todo juntas, em casas muito pequenas. Isso pode provocar alterações no cérebro da criança que poderão fazer com que ela não desenvolva as habilidades necessárias para o aprendizado. Quantas famílias terão que passar por isso?

Um novo estudo mostra que cerca de 37 milhões de brasileiros trabalham em ocupações e setores vulneráveis ao distanciamento social, ou seja, extraem seus rendimentos diretamente de venda de produtos a pessoas, prestação de serviços ao público e a empresas em áreas urbanas. Esses setores empregam desproporcionalmente mais mulheres, negros, empregados sem carteira assinada e trabalhadores por conta própria, que ganham salários mais baixos e vivem em famílias mais pobres do que os trabalhadores nos demais setores.

Nossas simulações indicam que numa situação limite, em que todos os trabalhadores informais desses setores perdessem o emprego, a taxa de desemprego iria para 28%, a pobreza passaria de 17% para 23%, o Gini aumentaria de 0.55 para 0.59 e a renda domiciliar per capita cairia 8%. O Estado que mais sofreria nesse caso seria o Amapá, em que a pobreza aumentaria 12 pontos percentuais, pois tem a maior concentração de trabalhadores informais em setores vulneráveis.

Para atenuar os impactos do distanciamento social nas famílias, o Congresso aprovou, após pressão da sociedade civil, o programa de Renda Básica Emergencial, que está sendo implementado pelo governo federal. Esse programa atende as pessoas com mais de 18 anos de idade, que não estão empregadas no setor formal, não recebem aposentadoria, seguro-desemprego ou programa de transferência de renda e que têm renda mensal de até três salários mínimos (R$ 3.135). O benefício será pago por três meses para no máximo duas pessoas por domicílio.

Nossas simulações indicam que se esse benefício fosse transferido apenas para trabalhadores informais nos setores vulneráveis que perdessem o emprego e atendessem aos critérios do programa, ele atenderia 9 milhões de pessoas e a pobreza diminuiria de 23% para 19%. Além disso, a renda média e a desigualdade voltariam à situação pré-crise. Isso significa que se o benefício fosse concedido somente para os trabalhadores que perdessem o emprego no setor informal, atenuaria os efeitos da crise, supondo que todos conseguissem realmente receber o benefício.

Agora vamos supor que todas as pessoas que se enquadram nos critérios do programa (incluindo o limite de renda) recebam o benefício, mesmo aquelas que não tenham perdido emprego com a crise. Nesse caso, 32 milhões de brasileiros receberiam o auxílio. Como muitos dos novos beneficiados não estavam trabalhando mesmo antes da crise (e eram pobres), isso faria com a pobreza diminuísse, com relação à situação inicial sem crise, de 17% para apenas 6%. A pobreza extrema seria praticamente eliminada nesse caso. Isso mostra como um programa desse tipo já deveria ter sido implementado no Brasil.

Mas, na verdade, para muitos trabalhadores informais não há como averiguar o critério de renda, pois eles são “invisíveis” para o governo. Assim, o número de beneficiados deverá ser bem maior do que o público-alvo inicial do programa. Isso já era previsto, pois o mais importante agora é atenuar os efeitos da crise sobre as famílias mais pobres, ficando a questão de focalização para um segundo momento, se o programa continuar.

Assim, no caso em que todos os trabalhadores informais recebem o benefício, independentemente da sua renda, além de todos os que já se enquadravam nos critérios do programa, 52 milhões de pessoas são beneficiadas. Esse número está próximo do que deverá ocorrer na realidade. A redução adicional na pobreza nesse caso seria pequena com relação ao caso em que somente o público-alvo recebe o benefício. Assim, se o programa for mantido no futuro, deveríamos focalizar o benefício nos que mais precisam dele.

É interessante também especular sobre os efeitos políticos da crise e suas consequências. Antes da pandemia, o governo federal estava restringindo os gastos com o programa Bolsa Família, represando o número de beneficiários. Com a crise, houve forte pressão da sociedade civil e o Congresso acabou aprovando um programa de transferência de renda que em circunstâncias normais nunca teria sido aprovado, pois sofreria forte oposição do governo e de alguns setores da sociedade.

Mas, como o benefício foi implementado pelo governo federal, é possível que a avaliação do presidente até aumente entre os mais pobres. Vários estudos mostram que o programa Bolsa Família trouxe dividendos políticos, por exemplo. Tudo vai depender da duração do distanciamento social, dos efeitos da pandemia sobre a mortalidade por todo o país, da dimensão do desastre na economia e da duração do programa de renda emergencial. Mas o importante agora é salvar a vida das crianças mais pobres.

*Naercio Menezes Filho é professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper e professor associado da FEA-USP e membro da Academia Brasileira de Ciências.


Naercio Menezes Filho: A situação do mercado de trabalho

Os movimentos recentes não sinalizam melhora consistente e dificuldades devem prosseguir em 2020

A recuperação do mercado de trabalho tem sido decepcionante. A taxa de desemprego, que era de 6,5% no final em 2014, dobrou com a crise econômica e desde então vem se reduzindo lentamente, tendo atingido 11,8% no último trimestre. Quais são os grupos mais afetados pelo desemprego? Como o desemprego afeta a participação dos diferentes membros da família? Quais as perspectivas de redução do desemprego para o futuro?

Os grupos mais afetados pelo desemprego são os jovens e os que concluíram apenas o ensino fundamental completo, que tiveram aumentos de desemprego bem acima da média. Com relação aos jovens, sabemos que eles naturalmente têm desemprego mais alto, pois circulam muito entre empregos para experimentar, combinam estudo com trabalho e têm baixo conhecimento de matemática e habilidades socioemocionais, tais como resiliência e motivação, como mostra o seu desempenho ao longo da prova do Pisa. Como eles não permanecem muito tempo no emprego, seus empregadores investem pouco no seu treinamento e seus salários aumentam pouco com a experiência, o que reforça os incentivos para eles deixarem logo o emprego. Cria-se, assim, um círculo vicioso. Além disso, os jovens são os últimos a serem contratados com o fim da crise.

A taxa de desemprego entre as pessoas com ensino superior é bem mais baixa do que a média e o seu diferencial de salários com relação às pessoas que tem apenas o ensino médio continua bastante elevado (160%). Isso mostra que fazer ensino superior ainda é a melhor alternativa para se proteger do desemprego e ter salários mais altos, apesar do grande aumento do número de formados que houve recentemente no Brasil. Assim, é necessário aumentar ainda mais as matrículas no ensino superior no Brasil, especialmente nos cursos de exatas. Além disso, quem tem alguma pós-graduação ganha 80% a mais do que os graduados e esse diferencial cresce sem parar.

Com relação à composição familiar, é interessante notar o comportamento do cônjuge (esposa ou esposo) no mercado de trabalho. Sua taxa de participação tem aumentado desde o início da década, passando de 55% para 63% e aproximando-se da participação dos chefes de família, que declinou para 65%. Isso é evidência do chamado “efeito trabalhador adicional” que ocorre quando há um grande choque no mercado de trabalho que faz os chefes perderem o emprego. Esse efeito faz com que os cônjuges sejam responsáveis por uma parcela cada vez maior na renda familiar hoje em dia e atenua a queda na renda familiar per capita, que está hoje no mesmo nível de antes da crise.

A taxa de desemprego é o resultado líquido de dois fluxos principais: a porcentagem de pessoas que perde o emprego (demissões) e a porcentagem de pessoas que encontra emprego (admissões). As variações na taxa de desemprego no Brasil dependem mais do comportamento da taxa de admissões do que da taxa de separações, que varia bem menos ao longo do ciclo econômico.

A figura mostra o comportamento da taxa de admissões para os diferentes membros da família entre o segundo trimestre de 2012 e o mesmo período em 2019, usando dados da PNAD Contínua (IBGE), seguindo os mesmos indivíduos por dois trimestres consecutivos. Esses dados incluem também o setor informal e mostram um perfil mais fiel da renda e do desemprego nas famílias do que os dados do Caged, que retratam o setor formal apenas.

Em primeiro lugar, é interessante mostrar a diferença entre as taxas de admissões (saída do desemprego) dos diferentes grupos. A parcela que encontra emprego é bem maior entre os chefes de família, pois são eles (ou elas) os responsáveis, em última instância, por sustentar a família. A taxa de admissão entre os chefes estava em torno de 45% antes da crise, mas começou a cair fortemente a partir do segundo trimestre de 2015, até atingir 35% em 2017. A má notícia é que, após um período de estabilidade entre 2017 e 2018, a taxa de admissões voltou a declinar no último ano.

Os jovens também tiveram uma grande queda na taxa de saída do desemprego, de 35% em 2012 para 25% em 2016, permanecendo nesse nível desde então. Com relação aos cônjuges, a taxa permaneceu ao redor de 30% em todo o período, aumentando um pouco no período recente. Isso ocorreu porque os cônjuges aumentaram seu esforço para achar emprego para amortecer os efeitos da crise na renda familiar, como vimos acima. Assim, a parcela de cônjuges que sai do desemprego, que estava mais próxima da taxa dos jovens, se aproximou da taxa dos chefes. A taxa de transição dos cônjuges do emprego para a inatividade também declinou muito no período.

Com relação à taxa de entrada no desemprego, os números mostram um grande aumento entre os jovens na crise, de 5% para 9% entre 2014 e 2016. Depois de uma relativa estabilidade até 2012, a taxa voltou a aumentar no último ano. Entre chefes e cônjuges, a taxa de pessoas que perderam seus empregos também aumentou de 1,3% para 2,6% dos ocupados no mesmo período, permanecendo nesse nível desde então.

Outro ponto importante diz respeito à informalidade. Grande parte das pessoas que se mantiveram ocupadas durante a crise estão na informalidade ou trabalhando por conta própria (em aplicativos, por exemplo). A taxa de permanência no setor informal aumentou de 30% para 35%, enquanto a taxa de permanência no setor formal caiu de 39% para 35%. Ou seja, as pessoas que mais conseguem manter seus empregos hoje em dia são os que estão no setor informal. E também não há indicativos de melhora nessa situação no período recente.

Em suma, há muita heterogeneidade no comportamento do mercado de trabalho recente no Brasil. Os mais afetados são os chefes e os jovens, ao passo que os cônjuges aumentaram sua participação no mercado de trabalho e conseguiram manter a renda per capita média nas famílias remediadas, mas não nas mais pobres. Os movimentos recentes do mercado de trabalho não sinalizam uma melhora consistente, ou seja, as dificuldades devem continuar no ano que vem, infelizmente. Apesar disso, feliz ano novo para todos!

*Naercio Menezes Filho é professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper, professor associado da FEA-USP e membro da Academia Brasileira de Ciências.