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RPD | Martin Cezar Feijó: O Multiartista de calças brancas

Pianista, compositor, poeta, escritor, cantor, cineasta, ator (rádio, televisão e cinema), produtor musical, artista plástico, Sérgio Ricardo viveu intensamente seu tempo histórico e fez muito pela cultura brasileira

João Mansur Lutfi nasceu no dia 18 de junho de 1933, na cidade de Marília, interior do Estado de São Paulo. E morreu aos 88 anos de idade no dia 23 de julho de 2020, na cidade do Rio Janeiro, depois de um longo período internado, inicialmente por Covid-19, da qual se curou, mas faleceu por problemas cardíacos, conforme noticiou a imprensa.

Foi pianista, compositor, poeta, escritor, cantor, cineasta, ator (rádio, televisão e cinema), produtor musical, artista plástico. Como dizia, só não aprendeu balé. E foi conhecido pelo nome artístico que adotou ainda moço, por sugestão de um diretor de televisão: Sérgio Ricardo. Um artista que fez muito pela cultura brasileira a partir da década de 1950, principalmente nos anos 60. Um período fértil e criativo, em que o Brasil se revelava muito inteligente na pertinente definição de Roberto Schwarz, diferente da atualidade, em que o país parece dominado pela boçalidade.

Filho de um sírio emigrado, Abdalla Lufti, que chegou no Brasil em 1926, e de uma brasileira filha de árabes, Maria Mansur, que nasceu em 1912. Era uma família musical, cantavam em casa músicas populares árabes, e Abdalla tocava alaúde. Todos os irmãos estudaram música ou se dedicaram às artes, como o caso de Dib Lutfi, um dos maiores diretores de fotografia da história do cinema brasileiro.

Aos 8 anos de idade, João Lufti foi matriculado no Conservatório Cecília, em Marília, para aprender piano, o que foi decisivo em toda sua vida. Com 17 anos, foi morar com um tio, que era proprietário de uma rádio, na cidade de São Vicente (ZYH-3, Rádio Cultura São Vicente), onde não só aprendeu tudo sobre rádio, mas também adquiriu conhecimento de música popular brasileira, que foi fundamental em sua trajetória.

Após uma temporada na Baixada Santista, mudou-se para o Rio de Janeiro, para morar com outro tio e preparar terreno para toda a família se mudar. No Rio, trabalhou na rádio Vera Cruz como locutor, depois na TV Tupi como ator.

Nesta época, foi-lhe sugerido adotar um nome artístico. Optou por Sérgio Ricardo, com o qual entrou para história da cultura brasileira. Na TV Rio, apresentou programas musicais e teve contatos com Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal, o que lhe abriu as portas para um movimento musical nascente, a Bossa Nova. Como pianista, substituiu Tom Jobim na noite carioca. Tocando piano e cantando na noite, ficou conhecido no meio musical.

Em 1957, gravou seu primeiro disco (78 RPM), com as canções “Vai, Jangada”, de Newton Castro e Geraldo Serafim, e “Sou Igual a Você”, de Nazareno de Brito e Alcyr Pires.

Mas foi com “Bossa Romântica de Sérgio Ricardo”, em 1959, que demonstrou afinidades musicais com o novo estilo. O período era de grande efervescência cultural e o inquieto artista aspirava também o cinema.

A melhor maneira de seguir uma carreira coerente e multifacetada é acompanhar o próprio roteiro realizado por Sérgio Ricardo ao comemorar seus 85 anos de vida, em 2018. Foi um show com apoio do Canal Brasil, gravado em Niterói, no teatro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFF). Deste magnífico show – Cinema na música de Sérgio Ricardo – resultou um produto dirigido por Paulo Henrique Fontenelle 2019), hoje disponível na plataforma Now e nos formatos CD e DVD, lançados pela Biscoito Fino.

O show foi o último trabalho apresentado pelo artista, com a participação de seus filhos Marina Lutfi, idealizadora do projeto, Adriana Lutfi e João Gurgel. Com um time formado por maestros na percussão (Diego Zangado) e baixo (Giordano Gasperin). Contou ainda com as participações de Dori Caymmi, João Bosco, Alceu Valença e Geraldo Azevedo.

As músicas acompanham cenas dos filmes em que Sérgio Ricardo teve importante participação, como diretor – “O menino de calças brancas” (1961), “Esse mundo é meu” (1964), “Juliana do Amor Perdido” (1969)) e “A noite do espantalho” (1972) –, ou compositor – “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) e “Terra em Transe” (1967), os dois de Glauber Rocha.

Em depoimento a publicação em fascículos da Editora Abril, lançada nas bancas em vinil na década de 70 do século passado, volume 37, dedicado à obra de Sérgio Ricardo, o amigo de longa data, Ziraldo, assim o definiu: “Sérgio não estourou em termos de massa. Certamente jamais irá estourar. Não que sua música seja elaborada demais, sofisticada ou impenetrável; o mistério é outro. Sua honestidade consigo mesmo chega a exageros que o definem como dos seres humanos mais puros e de melhor caráter que eu já conheci em minha vida. Seu pavor à mentira, à mistificação, ao engano e à hipocrisia criaram em sua volta uma certa impenetrabilidade que é a sua forma de se defender do mundo.”

Sérgio Ricardo, um artista que viveu intensamente seu tempo histórico. Coerente em busca de uma dignidade, como o menino de calças brancas, que buscava superar os limites da pobreza sonhando e realizando. Enfrentando vaias com coragem e solidário a todos que buscaram uma cultura brasileira inteligente, diversificada e bela, mesmo que nem sempre tendo o reconhecimento que merecia, mas que a História o fará.

Referências

CONTIER, Arnaldo Daraya. “Sérgio Ricardo - Modernidade e engajamento político na canção”, in: Comunistas brasileiros: cultura política e produção cultural. Marcos Napolitano, Rodrigo Czajka, Rodrigo Patto Sá Motta (organizadores). Belo Horizonte: UFMG, 2013, pp. 339-358.

HAGMEYER, Rafael, SARAIVA, Daniel Lopes (organizadores). “Esse mundo é meu: as artes de Sérgio Ricardo”. Curitiba: Appris, 2018.

NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil. “A vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985). Ensaio histórico”. São Paulo: Intermeios: USP – Programa de Pós-graduação em História Social, 2017.

Martin Cezar Feijó é historiador e professor titular-doutor na Facom da Faap (Fundação Armando Álvares Penteado).


Cacá Diegues: Gente é para brilhar

Caetano é uma hipótese de Brasil que gostaríamos que fosse a verdadeira

Para muitos brasileiros, o sol se levanta no fim da tarde. Mas não por preguiça ou enfado da vida, mas porque é essa a hora em que ferve a panela de uma cabeça privilegiada que só pensa em nós. Não por caridade, mas por saber que a solidariedade é a única forma de amor que não implica em propriedade do outro. E assim amamos e somos livres. Tudo o que ele faz, escreve, diz e canta está sempre assinalado por essa ideia, à qual ele parece dedicar vida e obra. Caetano Veloso é uma hipótese de Brasil que todos nós gostaríamos que fosse a verdadeira.

Caetano é um homem de muitos amigos, sem nenhum confidente especial. Não por falta de confiança, mas porque seus segredos estão por aí, a boca larga e pequena, nas letras de suas canções, no que ele diz e escreve. A poesia de Caetano não é nunca molenga, elegias ao que não importa. Ela é sempre o resultado de uma mente em chamas, amorosa e combativa, que não se deixa iludir pelo lugar-comum, mesmo que unanimemente vitorioso. Ele quer sempre saber se o contrário não é melhor. Ou não.

Às vezes, quando penso em Caetano, penso em conversas que já tive com Renata Magalhães (uma das produtoras de seu filme), Antonio Cicero (grande poeta, amigo do peito) ou Susana de Moraes (ela faria 80 anos, no último dia 5, vizinha leonina de Caetano), seus amigos e eventuais colaboradores. Os três adoram a hipótese de que o Brasil seja um ser cultural de caminhos contraditórios e radicais.

Quando é moderno, o Brasil pode ser a vanguarda experimental do mundo. Como foi com Tiradentes, um herói barroco do iluminismo que acordava a humanidade; ou Santos Dumont, que se recusou a registrar a invenção do avião, pois devia pertencer a todo mundo; ou Oscar Niemeyer, para quem Brasília era a concretização em concreto de um modo de viver, em que todos somos iguais. Mas, quando fica para trás, o Brasil é capaz de recuar à mais selvagem Idade da Pedra, produzindo os mais nefastos e bárbaros costumes, além de líderes equivalentes. Caetano foi sempre um dos primeiros, sem nunca resistir a tentar convencer os segundos, já que tudo pode mudar um dia.

Com todo o respeito aos outros admiráveis artistas e intelectuais do movimento, Caetano é seu líder ilustrado, o generoso criador maior do Tropicalismo, praticando-o radicalmente e promovendo-o em que missão estiver. Foi sua obra que o tornou o último estágio do nosso Modernismo, a conclusão de uma operação nacional de criação tão bem-sucedida, a melhor em nossa história, indo de Castro Alves a Roberto Carlos, dos Andrades de 22 aos irmãos Campos do concretismo, de Sousândrade a Leminski, de Villa a Tom.

Tudo isso com extrema consciência (e, às vezes, um certo pesar), como fica claro nesse trecho de seu livro de memórias “Verdade tropical”, de 1997, sobre a canção “Tropicália”, batizada pelo produtor do Cinema Novo, Luiz Carlos Barreto: “Brasília, sem ser nomeada, seria o centro da canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao nosso ridículo”.

Conheci Caetano Veloso no início de 1966, às vésperas do carnaval, no Mercado Modelo de Salvador. Éramos um grupo de cinema que estava na Bahia para participar de um festival, numa época em que os festivais ainda eram raros.

Lá para as tantas, já de madrugada, chegou ao restaurante um menino com um violão embaixo do braço, parecendo muito mais moço do que sua verdadeira idade. Alguém na mesa o conhecia, ele acabou sentando conosco. Mas só se manifestou quando a conversa girou em torno da eterna disputa, então na moda, sobre raízes culturais. Alguns dos nossos nacionalistas do cinema arrasavam com a Jovem Guarda, quando Caetano pegou seu violão e cantou “Quero que vá tudo pro inferno”, num andamento mais lento, mais rebuscado, cheio de descobertas inesperadas. O silêncio se impôs na mesa e ele repetiu a canção muitas vezes. Quando terminou, eu estava aos prantos.

Caetano Veloso nunca mais saiu de minha vida, mesmo quando parecia não estarmos de acordo. Sexta-feira passada, ele fez 78 anos de idade e espero que, para nosso bem, ainda viva o dobro disso. Que nos lembre sempre de que gente é pra brilhar e não pra morrer de fome.


RPD || Henrique Brandão: Aldir, nunca haverá outro igual

Nos versos de Aldir Blanc havia um sentimento vitalista de malícia, ironia, crítica social e de imagens brilhantes. Vítima da Covid-19, ele deixa mais de cem canções gravadas e uma música inédita

O que dizer de Aldir Blanc em um momento de profunda tristeza como esse? O bardo da Muda, na expressão de seu amigo Eduardo Goldemberg, merece todas as homenagens e elogios do mundo, pelo grande poeta, letrista e cronista que foi. Como compositor, é dos maiores que a MPB já teve. Um monstro, gênio da palavra.

Todos nós somos “reféns” de Aldir. Quem nunca sambou um samba seu? Quem nunca dançou, com a ponta torturante de um band-aid no calcanhar e embalado por uísque com guaraná, um bolero dele? O cara não era profeta, longe disso. No entanto, quem há de discordar que seus versos em “Querelas do Brasil”, música do distante ano de 1978, em parceria com Maurício Tapajós, haveriam de soar tão atuais quando dizem que “O Brazil não merece o Brasil / O Brazil,tá matando o Brasil”?

Aldir morreu de Covid-19, mas sua saúde, assim como a do país que ele tanto amava, foi sendo solapada pela tristeza galopante, com a velocidade de uma brigada de cavalaria, na descrença de que um horizonte mais generoso ainda fosse possível. O país preconizado por atual presidente psicopata, com sua perspectiva cada vez mais autoritária, está muito aquém do Brasil tão amado e cantado pelo poeta.

O Aldir mais conhecido de todos é o letrista de sucessos maravilhosos, tanto na parceria com João Bosco como com músicos do talento de Guinga, Moacyr Luz e Cristóvão Bastos, entre outros, responsável por sucessos que qualquer um assobia fácil pelas ruas, entoa nas mesas dos bares ou ouve com frequência nas rodas de samba. É aquela música que o cidadão comum conhece, canta inteira, mas, muitas vezes, nem sabe quem é o autor. Isso é privilégio de poucos, reservado somente aos maiores, escolhidos a dedo pelo que o destino lhe reservou. Coisa de Caymmi, Luiz Gonzaga, Noel, Vinícius...

Mas tem um outro Aldir, menos conhecido do público, que é tão talentoso quanto o letrista. É o cronista. Sua verve foi exercida, inicialmente, no Pasquim, semanário de humor de saudosa memória, onde jornalistas e colaboradores do quilate de Jaguar, Millôr, Ziraldo, Sergio Cabral, Ivan Lessa e Sergio Augusto esculachavam a ditadura. A colaboração profícua rendeu seu primeiro livro, Rua dos Artistas e Arredores, reunião das crônicas publicadas no tabloide. A primeira edição é de 1978.

A Rua dos Artistas, com este belo nome, fica em Vila Isabel. Aldir morou nela quando garoto, na casa dos avós. Fez daquele microcosmo do subúrbio carioca, a partir de suas lembranças e de sua perspicaz imaginação, crônicas que dialogam com o mundo, esteja você no Rio, Pequim ou Budapeste. Relendo-as, é impossível conter o riso. Os dramas, casos, personagens e apelidos de cada um, que vivem na fictícia, porém muito real, comunidade “vilaisabetana”, misturam grosseria, poesia e generosidade, na proporção exata que só Aldir sabia dosar. Como cronista, assim como letrista, também foi dos grandes, no nível de João do Rio, Lima Barreto, Sergio Porto.

Além do livro, as crônicas geraram um filhote. Foi do nome de um dos personagens de Aldir, o Esmeraldo “Simpatia é Quase Amor”, que, em 1994, leitor de seu livro, sugeri a um grupo de amigos o nome para um bloco de carnaval que pretendíamos fundar. Aldir acabou virando o patrono do bloco. Como era de seu feitio, sempre se esquivou das nossas inúmeras tentativas de homenageá-lo. Participou de alguns desfiles, sempre discretamente. Chegava sem avisar e ia para o meio da bateria tocar seu tamborim. Quando o descobríamos já era tarde, o bloco estava na rua.

Desde então, há 36 carnavais que, sob a benção de Aldir, o “Simpatia” desfila pela orla de Ipanema. Por ocasião do aniversário de 15 anos, gravamos um CD com todos os sambas cantados em nossos cortejos. Dessa vez, fruto de sua benevolência, quem prestou homenagem ao bloco foi o Aldir, ao gravar um depoimento que abre o CD. Diz ele: “O bloco da minha mocidade foi o ‘Bafo da Onça’, de saudosa memória, do Catumbi, Estácio e adjacências. Mas nem mesmo o ‘Bafo’, com suas rainhas e princesas de polução noturna, me deu emoção tão forte como o ‘Simpatia é Quase Amor’. Criei em livro o ‘Simpatia’ para proteger a identidade de um primo do subúrbio (...). É bonito ver um primo da Zona Norte virar bloco na Zona Sul. Com este gesto simpático, saiu ganhando São Sebastião do Rio de Janeiro. No ‘Simpatia’, onde minhas filhas saíram pequenas, hoje, 15 anos depois, desfilam meus netos”. Esse depoimento enche a todos nós, fundadores e foliões do bloco, de imenso orgulho.

Segue em paz, Aldir.

 * Henrique Brandão é jornalista e fundador do bloco “Simpatia é Quase Amor”.

 Aforismas do gênio Aldir (alguns do Rua dos Artista e Arredores, Mórula, 2016).

“Se você está pensando que o tijucano é um estado de espírito, aqui ó! O tijucano é um estado de sítio”

“Alto funcionário da Polícia Federal lembra a seus subordinados em Brasília: o piso é a prova de fogo, o preso, não”

‘Na inauguração do novo Distrito Policial, coube ao delegado dar o pontapé inicial”

“No Hipódromo da Gávea, um garanhão traçou uma égua, depois de uma... informação de cocheira”

“No Jardim Zoológico, o avestruz concretista, depois de uma bimbada, suspira: Pô, Ema...”

“Eu nunca marco derrota do meu time na Loteria. Me sinto um traidor”

“O amor tanto se mete a edredon, que acaba velha colcha de retalhos”

“Querido diário, hoje foi um dia incrível. Nem te conto”


‘Bach fez nosso planeta soar de outra maneira’, escreve Ivan Alves Filho na Política Democrática de dezembro

Historiador diz, em artigo publicado na revista da FAP, que músico alemão era ‘homem de luta’

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“Johann Sebastian Bach é, para muitos, o maior nome da música em todos os tempos. Mestre do contraponto, o músico alemão fez nosso planeta soar de outra maneira”. A análise é do historiador Ivan Alves Filho, em artigo de sua autoria publicado na revista Política Democrática online de dezembro. Todos os conteúdos da revista podem ser acessados, gratuitamente, pelo site da FAP (Fundação Astrojildo Pereira).

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De acordo com o historiador, Bach era um fervoroso protestante, originário de uma família de músicos. “Religião e arte faziam parte do seu corpo, como sangue e ossos”, afirma. “A darmos crédito a um depoimento, a tocar órgão, Bach corria sobre os pedais como se seus pés tivessem asas, fazendo o instrumento ressoar de tal maneira que quase se diria ouvir uma tempestade”, acrescenta.

Bach, segundo Ivan, era “um homem de luta”. “O Duque de Weimar chegou a mandar prendê-lo, porque o músico insistia em deixar a cidade em busca de melhores condições de trabalho. Obstinado, Bach não cedeu às pressões do Duque e ainda concebeu, na prisão, o Peque no Livro do Órgão”, lembra.

Ivan diz que, toda vez que ouve algo de Johann Sebastian Bach, firma a convicção de que sua música - de tão tensa, retorcida, obcecada até - não cabe completamente nos limites das notas musicais. “Na verdade, Bach nos remete a um som que extrapola ou atropela tudo”, afirma.

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Revista Política Democrática || Ivan Alves Filho: Johann Sebastian Bach

Johann Sebastian Bach é, para muitos, o maior nome da música em todos os tempos. Mestre do contraponto, o músico alemão fez nosso planeta soar de outra maneira

A pequena cidade de Eisenach teve um papel singular no desenvolvimento da civilização ocidental moderna. Nas suas cercanias, mais exatamente no Castelo de Wartburg, Martinho Lutero traduziu a Bíblia Sagrada para a língua alemã, tornando praticamente irreversível a Reforma protestante. E os partidários de Marx e Engels fundaram ali, em 1869, o Partido Social Democrata da Alemanha. Mais: na acanhada cidadezinha cercada de encantadoras florestas, nasceu Johann Sebastian Bach, para muitos, o maior nome da música em todos os tempos. Ninguém ou nada vem ao mundo em Eisenach impunemente, pelo visto.

Bach, um fervoroso protestante, era originário de uma família de músicos. Religião e arte faziam parte do seu corpo, como sangue e ossos. A darmos crédito a um depoimento, ao tocar órgão, Bach "corria sobre os pedais como se seus pés tivessem asas, fazendo o instrumento ressoar de tal maneira que quase se diria ouvir uma tempestade".

Bach era um homem de luta. O Duque de Weimar chegou a mandar prendê-lo, porque o músico insistia em deixar a cidade em busca de melhores condições de trabalho. Obstinado, Bach não cedeu às pressões do Duque e ainda concebeu, na prisão, o Pequeno livro do órgão.

Toda vez que ouço algo de Johann Sebastian Bach, firmo a convicção de que sua música – de tão tensa, retorcida, obcecada até – não cabe completamente nos limites das notas musicais. Na verdade, Bach nos remete a um som que extrapola ou atropela tudo que conhecemos em matéria de escala ou métrica. Talvez resida aí a principal característica do estilo barroco, o qual ocupa todos os espaços possíveis da superfície musical. Ou o barroco não é um exagero, algo que transborda sempre?

Cantatas – e penso em Magnificat e na Cantata dos camponeses. Motetos – e me recordo de Jesus, minha alegria. Obras corais – e não tenho como deixar de lembrar da Paixão segundo São Mateus. Fugas – e não há como deixar de rememorar a impressionante A arte da fuga. Tocatas – e não se pode esquecer o comentário de Mendelsohn diante da Tocata e fuga em fá maior, "que soava como se fizesse a igreja desmoronar". Além de missas, sonatas, variações, suítes e incontáveis prelúdios. Pois Johann Sebastian Bach abordou praticamente todos os gêneros musicais de seu tempo.

Contudo, acredito que o Bach concertista tenha sido o que deixou marcas mais profundas na história da música ocidental. Um exemplo apenas (ou melhor: seis...) corrobora o que digo: os monumentais Concertos de Brandemburgo. Os Concertos têm por base os instrumentos de sopro. Orquestrados, são muitas vezes tensos e conflitantes entre eles.

São seis concertos, eu lembrava mais acima – ou um verdadeiro festival de contrapontos e espantosa energia sonora. Ao mesmo tempo erudito e popular. Técnico e emotivo. Alegre e triste. Suave e enérgico. Cândido e explosivo. Alternando período longo e período curto. E – nunca é demais lembrar – contrapontísico ao extremo. Unificando tudo. Sonoridades italianas, alemãs, francesas, inglesas. Bach fazia uma música de uma época de contrastes, de Reforma e Contrarreforma, e, por isso, mesmo contraditória, rica. E bela, muito bela.

Bach combinava o recurso aos contrapontos no stilo antico com as formas orquestrais mais modernas de sua época, conforme salientou certa vez Helmut Rilling, maestro e organizador de suas obras completas. Contrapontos esses que lembram estranhamente o jazz e seu estilo sincopado. Talvez resida nessa relativa atemporalidade uma boa parte do fascínio que Bach exerce ainda hoje sobre nós.