MPF

As razões de Janot

Tudo é feito na vida segundo princípios, projetos, cálculos, intenções. Às vezes há planejamento rigoroso, projeções e avaliação criteriosa de ganhos e perdas, custo e benefício. Na maioria das vezes, porém, as coisas simplesmente acontecem. Ou por desígnios “misteriosos”, ou pela interveniência de fatores imprevistos ou por aquilo que deriva da ação de terceiros. O acaso existe. O mundo objetivo (as estruturas socioeconômicas) prega suas peças. A dinâmica institucional pesa, até porque costuma com frequência escapar do controle dos que dirigem as instituições.

Na política, a impressão é que todos carregam um plano claro na cabeça e fazem cálculos milimétricos para definir os passos a serem dados. Emprega-se essa imagem para se concluir que sempre há uma conspiração em marcha, que os políticos estão o tempo todo a tramar. Estão mesmo, mas nem sempre sabem disso ou têm clareza de onde querem chegar. São humanos. Acham-se acima do bem e do mal. Deixam-se contagiar pela cobiça, por vaidades e paixões, que cegam. Tropeçam. Falam coisas que não devem. Esquecem-se de combinar com os russos e de medir as consequências de suas escolhas.

Qual o propósito, por exemplo, do Procurador-Geral Rodrigo Janot? O que o tem movido nos últimos meses, com o vendaval provocado pelas delações de Joesley Batista?

Há quem diga que suas ações estão na base da crise que atingiu o coração do governo Temer e o imobiliza. Para esses críticos, Janot alimenta a turbulência e a confusão, ao submeter o presidente a uma denúncia repleta de ilações. O Procurador-Geral certamente seria capaz de jurar que nada é mais estranho a ele do que agir como um incendiário, que ele só está a defender a integridade da República e as máximas da Justiça. Mas os efeitos de suas decisões não desmentem a acusação que lhe tem sido feita.

Uma de suas motivações poderia ser a de equilibrar o jogo e mostrar que “todos” (políticos, partidos) são farinha do mesmo saco, estão igualados e irmanados na dedicação com que se entregam à corrupção e se refestelam na lama. Temer é Lula, Lula é Dilma, Dilma é Temer e Aécio, Loures é Temer e todos são Joesley. A delação da JBS deu-lhe uma oportunidade, e ele a aproveitou.

Outra seria dar um salvo-conduto a Lula, que apanhava sozinho num canto do ringue. Deixá-lo respirar um pouco e trocar socos com os adversários, lá pelo 5º round, para mostrar que resistirá até o fim da luta. Ajudar a Lula, neste momento, pode servir a mais de um propósito. Mostraria, por exemplo, isenção, recurso não desprezível no ambiente conturbado em que se vive.

Com o salvo-conduto em mãos, Lula voltou a falar contra a “perseguição” que estaria a sofrer, contra os “golpistas”, a Lava Jato e Temer. Passou a defender “diretas já” para ocultar seu desejo obscuro de que Temer fique no Planalto até 2018, sangrando por todos os poros. Nenhum gesto de grandeza, nenhuma conclamação à retomada da “normalidade” ou em defesa da democracia, nenhum pronunciamento destinado a mobilizar a população para defender a República e a Constituição. Saltitando no centro do ringue, o ex-presidente manteve-se sugando as energias do PT e da militância, momentaneamente iludida com a súbita recuperação do líder. Sem necessariamente planejar isso, Lula bloqueia a reformulação indispensável do PT e empurra boa parte da esquerda para o imobilismo.

Uma terceira razão é que Janot parece ter querido mostrar que tem bala na agulha e pode causar desconforto ao grupo de Temer, espalhando pregos e pedras pelo caminho presidencial. Flertou, assim, com a possibilidade de interferir na escolha de seu sucessor na PGR. Neste particular, a manobra não deu certo, o que não significa que não tenha sido tentada.

O jogo atual é complexo, complicado. Tem vários jogadores, regras cambiantes e muitos pedidos de tempo. Janot bate de um lado, Fachin e Marco Aurélio atiram de outro, o Legislativo cozinha em banho-maria ao passo que o Executivo faz o possível para subordinar os parlamentares. Todos, porém, brigam com todos, sem que haja uma lógica dominante. Os Poderes falam línguas diferentes e no interior de cada um deles há tudo, menos consenso ou dinâmicas colegiadas.

Janot integra uma ala do Judiciário e particularmente do Ministério Público. Não é Lava Jato, mas com ela comunga muitos ideais, como por exemplo o de encurralar os políticos e promover a “purificação” do país. À sua maneira, faz política em tempo integral, valendo-se dos ritos e da alegada imparcialidade da Justiça.

Janot não é Jano, mas no cargo que ocupa deveria sempre se guiar pelo deus romano, que tinha poder sobre os inícios e as mudanças, condição que o fazia dominar as portas, as passagens, as transições, o passado e o futuro (as duas faces de Jano). Ao não fazer isso, vai pondo mais lenha na fogueira que arde em Brasília, com o que imagina prolongar o desgaste de Temer e do sistema político.

Temer balança, mas não parece estar prestes a cair. A Lava Jato continua forte, mas não há garantias de que assim seguirá. Muitos são contra ela — contra sobretudo sua estratégia, sua ideologia moralizante e seus procedimentos —, na política, no Executivo, no Judiciário e até mesmo na opinião pública, em que pese a aparência de unanimidade que cerca a operação.

Enquanto isso, o desencanto cresce na população, que permanece na expectativa de que fatos novos apareçam e acendam uma luz no fim do túnel.


No Senado, Dodge defende lei de abuso de autoridade e admite rever provas

A CCJ do Senado realiza sabatina com a subprocuradora Raquel Dodge, indicada pelo presidente Michel Temer ao cargo de Procuradora Geral da República

REYNALDO TUROLLO JR.
TALITA FERNANDES
DE BRASÍLIA

No início da sabatina no Senado que analisa nesta quarta (12) sua indicação para comandar a PGR (Procuradoria-Geral da República), a subprocuradora-geral Raquel Dodge respondeu sobre temas espinhosos como delações, concessão de imunidade a delatores e supostos abusos da Lava Jato.

Ela se comprometeu com o combate à corrupção e defendeu, genericamente, a edição de uma lei que coíba abusos de autoridade. "A lei de abuso de autoridade vem no socorro da ideia de que, no regime democrático, freios e contrapesos são necessários, controles são necessários, inclusive sobre os órgãos de administração de Justiça", afirmou.

"Ninguém está imune a excessos, nenhuma instituição é imune a erros. E nessa perspectiva de que seja dada ampla autonomia para o exercício da função jurisdicional por juízes e membros do Ministério Público, mas contidos os excessos, é que vejo a importância de se aprovar uma lei que controle o abuso de autoridade", disse.

Um projeto de lei sobre o tema tramita no Senado e já foi duramente criticado pelo atual procurador-geral, Rodrigo Janot, cujo mandato termina em 17 de setembro. Para Janot, o projeto em curso visa intimidar membros do Ministério Público e do Judiciário.

Dodge, que faz oposição a Janot dentro da instituição, não comentou o projeto específico, mas sua fala pôde ser vista como um aceno aos parlamentares e uma abertura ao diálogo maior que a de Janot.

Questionada sobre um suposto "Estado policial", também afirmou que é comum que o Ministério Público revise as provas que ele próprio obteve caso detecte, no curso das ações penais, alguma ilegalidade.

"O grande compromisso do Ministério Público é agir sempre pautado na prova colhida de forma idônea e é preciso que zelemos sempre por esses princípios que são muito caros ao Estado democrático", disse.

"Devo dizer que não é incomum que um órgão do Ministério Público aponte a uma certa altura da ação penal que a prova é inidônea, que a prova é inválida. Esse é um dever que o Ministério Público tem, que é apresentar em juízo uma acusação sempre amparada na prova. Se há excessos, é o que deve ser sempre controlado, e o principal órgão de controle é o Judiciário."

COMBATE À CORRUPÇÃO
Ao responder às perguntas do senador Roberto Rocha (PSB-MA), relator de sua indicação na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), Dodge repetiu o principal mote de sua campanha para a PGR: "Ningúem acima da lei, e ninguém abaixo da lei", e comprometeu-se com o combate à corrupção.

"Manteremos esse trabalho de enfrentamento à corrupção aumentando, se necessário, as equipes que já o vêm desenvolvendo", disse. "Ao zelar pelo bom gasto do dinheiro público, o Ministério Público cumpre seu dever constitucional", afirmou.

Como vem dizendo publicamente, Dodge disse considerar a corrupção um mal em si que deve ser combatido para que os recursos sejam corretamente aplicados em saúde, educação, saneamento e outros serviços essenciais à população.

Dodge defendeu o instituto das delações premiadas para combater organizações criminosas. Questionada por Rocha sobre a concessão de imunidade penal a delatores, ela disse que há previsão legal. Porém, que é necessário que os criminosos reparem os prejuízos causados na esfera civil.

"Eu vejo a lei 12.850 [que regulamentou as delações, em 2013] como instrumento poderoso que facilita a investigação sobre organização criminosa. No entanto, o Congresso, na lei 12.850, impôs limites, vedações, seja no tocante àquilo que pode ser oferecido, seja no tocante à separação de jurisdição criminal e jurisdição civil", disse, referindo-se à necessidade de devolver o que foi desviado.

Tema polêmico, a imunidade penal foi concedida por Janot aos irmãos Batista, da JBS, em troca de informações que levaram a investigações sobre o presidente Michel Temer e o senador Aécio Neves (PSDB-MG), entre centenas de outros políticos citados. O acordo de delação é duramente criticado por vários políticos, incluindo o presidente.

Sobre o foro privilegiado para autoridades, Dodge disse que o assunto cabe ao Congresso e ao Supremo, e que ao Ministério Público só compete opinar.

"Encontra de minha parte muita simpatia a ideia de que todos os brasileiros sejam submetidos ao mesmo tipo de jurisdição. Compreendo que estamos caminhando dentro de um regime democrático para o amadurecimento das instituições e sempre verificando a pertinência de um instituto diante da realidade brasileira", disse.

A respeito de ter sido indicada por Temer apesar de ter ficado em segundo lugar na lista tríplice para o cargo, Dodge ponderou que a lista não é obrigatória e é uma "sugestão" dos membros da carreira ao presidente da República.

"Qualquer um dos três que figure na lista passou por rigoroso e severo critério dos procuradores da República", afirmou, e, por isso, tem legitimidade.

Acompanham a sabatina, na CCJ, os ex-procuradores-gerais da República Roberto Gurgel e Aristides Junqueira.

 


Dodge deve levar estilo rígido e reservado à Procuradoria

Bela Megale e Marina Dias, Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - Naquele fevereiro de 2010, Raquel Dodge entrou na sala do então procurador-geral da República, Roberto Gurgel, sem alarde. À época, a subprocuradora e responsável pela Operação Caixa de Pandora daria uma notícia inédita: pela primeira vez, um governador, José Roberto Arruda (DEM), do Distrito Federal, seria preso no exercício do cargo.

Para o chefe, Dodge disse que não havia alternativas. Detalhou cada elemento que baseou sua decisão e mostrou que o político tentava atrapalhar as investigações.

Acompanhada de Gurgel, levou pessoalmente o pedido ao Superior Tribunal de Justiça, que autorizou a prisão de Arruda em poucas horas. "Mesmo no momento tenso, em que pela primeira vez a gente pedia a prisão de um governador no cargo, ela estava absolutamente tranquila", contou Gurgel à Folha.

Obstinada, ambiciosa, disciplinada e discreta. É essa a imagem da primeira mulher que pode comandar, a partir de 17 de setembro, a PGR (Procuradoria-Geral da República), órgão máximo de acusação de operações como a Lava Jato. Nascida em Morrinhos (GO), Dodge, 55, é filha do procurador aposentado José Ferreira.

Indicada por Michel Temer para substituir Rodrigo Janot, Dodge chama a atenção pelo perfil antagônico ao do atual chefe dos procuradores, que se destaca pela informalidade e exibicionismo.

Procurada pela Folha, preferiu não se manifestar. A reportagem falou com 20 pessoas ligadas a ela.

Se aprovada pelo Senado, deve imprimir sua personalidade marcante na gestão do órgão, como vem sinalizando em seu périplo pelo Congresso em busca de votos.

Aos parlamentares, Dodge tem dito que agirá de forma mais reservada e tem evitado entrar nos debates sobre a disputa travada entre a classe política e os procuradores, que se tornou uma bandeira de Janot.

O discurso está agradando tanto aos senadores, incomodados com o que chamam de "espetacularização" das investigações, como aos colegas da categoria que são críticos ao procurador-geral.

"Ela continuará as ações contra corrupção, mas sem o estrelismo e vazamentos", disse o procurador recém-aposentado e ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão. Ele alerta, porém, que Dodge tem outra característica que a define e lhe rendeu desafetos entre os colegas: a ambição.

"O projeto pessoal dela sempre esteve à frente e ela atropela quem se coloca em seu caminho. Procuradores que trabalharam investigando violência durante a ditadura, por exemplo, se aborreceram porque ela se apropriou intelectualmente de várias ações desenvolvidas por eles", disse Aragão. "Essa atitude de acotovelar os outros gerou muitas incompreensões, mas isso não ofusca suas grandes virtudes", diz.

Dodge é também um "trator" na hora de trabalhar, conta o procurador Mário Lúcio Avelar. Nos anos 90, quando a conheceu, foi logo apresentado ao estilo da jovem investigadora: "Você vai conhecer a Raquel. Essa menina é um trator para trabalhar", disse a ele um colega.

Segundo amigos, o ritmo de Dodge não diminuiu nem mesmo quando engravidou e amamentou os filhos, Sophia e Eduardo.

Colegas se lembram da procuradora saindo de reuniões no Pará para tirar leite para a caçula. "Estávamos em Santarém, no encontro da 6ª Câmara do Ministério Público [responsável por temas sobre população indígena], e ela saía de tempos em tempos para tirar leite e congelar as garrafinhas. Quando voltou a Brasília, levou tudo", diz o procurador regional Domingos Savio da Silveira.

A dedicação à família é outra marca de Dodge. Fechada, porém, fala pouco de sua vida pessoal.

Na campanha para a PGR, foi colocada à prova. Perdeu para o câncer, em cerca de três meses, um de seus irmãos. A notícia veio no pior momento da disputa, quando seu nome foi associado a caciques do PMDB, como Renan Calheiros e José Sarney – o que sempre negou.

A rigidez se manteve em destaque. A procuradora não desmarcou agendas e seguiu a campanha que a deixou em segundo lugar na lista da ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República). Era só no fim do dia, quando os amigos mais próximos iam até seu gabinete, que ela conseguia desabafar e chorar um pouco.

O raro momento de baixar guarda aparece também quando o assunto são os filhos, que hoje estudam e moram nos EUA.

Mas nem quando fala deles a procuradora consegue descontrair entre amigos. Um dos mais íntimos costuma dizer que ela não deve nem saber como se gargalha.

Vida fora
Há mais de duas décadas, ela se casou com Bradley Dodge. Conheceram-se quando ela buscava um professor de inglês para prepará-la para o mestrado em Harvard, uma das mais conceituadas universidades americanas. Foi ele quem a ajudou com o idioma para ser aprovada.

Dodge teve como professor de direito o ex-ministro do STF Francisco Rezek, que a descreve como uma de suas melhores alunas. O título rendeu a ela um convite para trabalhar no Supremo.

A dedicação de Dodge é refletida também em seus hábitos de católica praticante.

Não perde nenhuma missa aos domingos. O marido, por sua vez, é mórmon.

A rotina dura e metódica já vem sendo temida pelos servidores que ficarão sob sua gestão a partir de setembro.

Na PGR, há quem diga que ela controla de horários de chegada e saída dos funcionários até o consumo de papel nos gabinetes.

 


Roberto Freire: Lula no banco dos réus

O recebimento, pelo juiz Sérgio Moro, da denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se torna réu pela segunda vez na Operação Lava Jato, agora pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, é um marco e pode representar um divisor de águas nas investigações do maior escândalo da história da República.

Segundo Moro, estão “presentes indícios suficientes de autoria e materialidade” para o acolhimento da denúncia contra Lula, a ex-primeira-dama Marisa Letícia, o presidente do Instituto Lula, Paulo Okamotto, e ex-dirigentes e executivos da OAS. O MPF aponta que o ex-presidente teria sido o beneficiário direto de quase R$ 4 milhões em propina paga pela empreiteira e proveniente de contratos da Petrobras. O dinheiro teria sido destinado à reforma de um tríplex no Guarujá (SP), além do transporte e armazenamento de bens pessoais de Lula após o encerramento de seu governo.

Ao fim e ao cabo, ao contrário do que alguns mais precipitados imaginavam, a denúncia formulada pelo MPF foi minuciosa e estritamente fundamentada em provas e indícios que permitiram aos procuradores, além de denunciar Lula por corrupção e lavagem de dinheiro, apontá-lo como o “comandante máximo” de uma engrenagem didaticamente batizada de “propinocracia”. Os investigadores concluíram, em suma, que o grande líder do PT teria chefiado a organização criminosa que assaltou a Petrobras nos últimos 13 anos.

O MPF não foi “midiático”, “espetaculoso” nem apelou à “pirotecnia”. É preciso compreender a dimensão do acontecimento político em curso: tratou-se de uma denúncia contra um ex-presidente da República, o que por si só justifica a decisão dos procuradores de explicar detalhadamente à sociedade o que se passava. A força-tarefa da Lava Jato não poderia apresentar a denúncia como algo de menor importância, simplesmente seguindo o protocolo-padrão. Como pano de fundo, afinal, há uma disputa que é também política e um embate no campo da comunicação – e é preciso enfrentá-lo sem que se deixe de seguir todos os ritos processuais e a legislação.

A presença de Lula no banco dos réus em Curitiba – ele também responde na Justiça Federal de Brasília pela suposta tentativa de obstruir as investigações da Lava Jato – passa a integrar aquilo que venho chamando de marcha da sensatez em curso no Brasil nos últimos meses. Entre as conquistas desse período, estão o impeachment de Dilma Rousseff por crimes de responsabilidade, a posse do presidente Michel Temer em respeito ao que determina a Constituição e a cassação de Eduardo Cunha pela Câmara dos Deputados.

Nesta caminhada em direção a um país mais ético, o Congresso ainda se debruçará sobre as dez medidas contra a corrupção apresentadas pelo MPF em forma de um projeto de lei que conta com o apoio dos brasileiros. É importante rechaçar qualquer tentativa de anista ao crime de caixa 2 eleitoral, como chegou a se especular em decorrência da desastrada tentativa de votação, pela Câmara, de um substitutivo ao PL 1210/2007 nesta semana. A tipificação penal do caixa 2 já consta daquele conjunto de medidas e certamente será votada. Não há, no horizonte, nenhuma perspectiva de aprovação de qualquer anistia.

Voltando a Lula, cabe a todos nós acompanharmos o desenrolar do inquérito que comprovará se a “alma mais honesta” do país – como o próprio chegou a se autodefinir recentemente – praticou os crimes de que é acusado. Os indícios e elementos presentes na peça acusatória aceita por Sérgio Moro são consistentes. Independentemente do desfecho do processo, os brasileiros têm muito a comemorar, especialmente quanto à vitalidade e o bom funcionamento de instituições como o Ministério Público, a Polícia Federal, o Poder Judiciário, além de uma imprensa livre e independente. Neste novo Brasil, felizmente, ninguém está acima da lei. Nem aquele que sempre se julgou inimputável, mas teve de descer do palanque direto para o banco dos réus. (Diário do Poder – 23/09/2016)

Roberto Freire é deputado federal por São Paulo e presidente nacional do PPS


Fonte: pps.org.br


Luiz Carlos Azedo: “Rouba, mas faz!”

O ex-presidente Lula e seus aliados acreditam que suas convicções estão acima do bem e do mal

Fui buscar na estante de casa, empoeirado, o velho Dicionário Universal de Citações, de Paulo Rónai, de 1985 (Editora Nova Fronteira). Minha curiosidade era saber se o famoso bordão “Rouba, mas faz!”, de Ademar de Barros, constava do verbete corrupção. Foi uma frustração, a citação mais recente era dos tempos do Império, nas Máximas do Marques de Maricá (1773-1848): “um povo corrompido não pode tolerar governo que não seja corruptor”.

Havia outras citações mais antigas: “Ah, se as propriedades e títulos e cargos/ Não fossem fruto da corrupção! E se as altas honrarias / Se adquirissem só pelo mérito de quem as detém / Quantos, então, não estariam hoje melhor do que estão? / Quantos, que comandam não estariam, entre os comandados?”, de Shakespeare (1564-1616), no Mercador de Veneza. “A corrupção do melhor é a pior das corrupções”, de São Gregório, o Grande (540-604), nas Considerações Morais. E “Em Roma tudo está à venda”, de Salústio (86?-35 a.C.), na Guerra de Jugurta.

Nenhuma delas se equipara à máxima de Ademar de Barros, uma síntese da velha tradição patrimonialista da política brasileira no regime republicano. Apadrinhado do chefe de polícia de Getúlio Vargas, Filinto Müller, foi nomeado interventor de São Paulo, em abril de 1938, logo após a implantação da ditadura do Estado Novo. Médico, cultivou a imagem de administrador competente, realizador de grandes obras públicas e político de preocupação social. Construiu as rodovias Anchieta, iniciada em 1939, e Anhanguera, em 1940, e do Hospital das Clínicas, que começou em 1938. O Aeroporto de Congonhas foi iniciado em 1936, mas passou como se fosse de sua iniciativa.

Denúncias de peculato e enriquecimento ilícito, porém, levaram Vargas a afastá-lo da interventoria em junho de 1941, mas as suspeitas não impediram que fosse eleito governador, em 1947, cargo que exerceu até 1951. Uma série de reportagens intitulada “O meu destino é o Catete”, de autoria do jornalista Paulo Duarte, tornou famoso o “rouba, mas faz!”, frase atribuída ao próprio Ademar. Em 1949, teria comprado em benefício próprio, com dinheiro público, 11 automóveis e 20 caminhões da General Motors. O Ministério Público abriu um processo e pediu sua prisão preventiva. Em março de 1956, Ademar foi condenado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo a dois anos de reclusão e perdeu os direitos políticos por cinco anos. Mas, em maio do mesmo ano, foi absolvido por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal.

Ética na política

Livre das denúncias, Ademar foi eleito prefeito de São Paulo em 1957. Em três eleições — prefeitura de São Paulo (1953), governo do estado (1955) e Presidência da República (1960) —, foi vencido por Jânio Quadros (1917-1992), seu maior rival político. Perdeu para Juscelino Kubitschek (1902-1976) na disputa pela Presidência, em 1955. Em 1962, finalmente, Ademar superou Jânio, que havia renunciado à Presidência, na eleição para o governo do estado. Em 1969, a ex-presidente Dilma Rousseff planejou e participou do roubo do cofre de Ademar de Barros, numa mansão de Santa Tereza, no Rio de Janeiro, onde vivia a ex-amante do político, Ana Capriglioni, uma ação armada da Var Palmares, organização guerrilheira liderada pelo ex-deputado Carlos Araújo, seu ex-marido.

É impossível não resgatar a memória de Ademar de Barros, em razão de um trecho do discurso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na quinta-feira em São Paulo, quando se defendeu das acusações dos procuradores da Operação Lava-Jato. “A profissão mais honesta que existe é a de político, sabe por quê? Porque, por mais ladrão que ele seja, de 4 em 4 anos, ele está suando e pedindo voto, o concursado não! O concursado faz a faculdade, passa num concurso e tem o seu emprego pelo resto da vida, sem precisar se preocupar”. A frase pode não ser digna do dicionário de Rónai, mas é uma pérola. Mostra uma concepção de governo na qual o Estado foi tomado de assalto e saqueado, verbalizada por quem ocupou a Presidência por 8 anos.

Lula quis agradar os políticos que querem acabar com a Operação Lava-Jato e anistiar todos os envolvidos no escândalo da Petrobras, mas essa esperteza choca os cidadãos e os servidores públicos concursados, principalmente a alta burocracia federal. Max Weber, em sua famosa palestra A política como vocação (Munique, em 1919), foi enfático ao destacar a tensão entre a ética da responsabilidade e a ética das convicções. A Operação Lava-Jato é uma síntese disso: enquanto auditores, corregedores, delegados, promotores e juízes zelam pela legitimidade dos meios empregados na política, o ex-presidente Lula e seus aliados acreditam que suas convicções estão acima do bem e do mal. (Correio Braziliense – 18/09/2016)


Fonte: pps.org.br