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Sérgio Paulo Rouanet | Foto: reproduçãp/GloboNews

Morre, no Rio, Sergio Paulo Rouanet, diplomata autor da lei que beneficia a cultura no Brasil

Raoni Alves e Daniel Silveira, g1 Rio*

Morreu, neste domingo (3), no Rio de Janeiro, aos 88 anos, o diplomata e ex-ministro da Cultura Sergio Paulo Rouanet, autor da Lei de Incentivo à Cultura no Brasil. Ele deixou a mulher, a filósofa alemã Barbara Freitag, e três filhos - Marcelo, Luiz Paulo e Adriana.

A informação foi confirmada pelo Instituto Rouanet, fundada por ele e a mulher, Barbara Freitag. Segundo a instituição, ele foi vítima do avanço da síndrome de Parkinson.

Sergio Paulo Rouanet morre aos 88 anos no Rio de Janeiro
Foto: reprodução/g1

"É com muito pesar e muita tristeza que informamos o falecimento do Embaixador e intelectual Sergio Paulo Rouanet, hoje pela manhã do dia 3 de julho. Rouanet batalhava contra o Parkinson, mas se dedicou até o final da vida à defesa da cultura, da liberdade de expressão, da razão, e dos direitos humanos. O Instituto carregará e ampliará seu grande legado para futuras gerações", dizia a nota do instituto.

“Diplomata, filósofo, professor universitário, tradutor e ensaísta brasileiro”. Assim é descrito o criador da lei brasileira de incentivos fiscais à cultura que por 27 anos levou o seu nome. A Lei Rouanet foi criada por ele durante o governo de Fernando Collor e modificada, quase três décadas depois, pelo presidente Jair Bolsonaro.

Sérgio Paulo Rouanet nasceu no Rio em 23 de fevereiro de 1934, filho de Paulo Luís Rouanet e Hebe Cunha Rouanet. Viveu quase nove décadas, dedicando a maior parte de sua trajetória à área acadêmica e, sobretudo, à cultura.

"Rouanet foi um dos grandes intelectuais do país", destacou a Academia Brasileira de Letras (ABL), em nota de pesar pela sua morte.

Rouanet tinha 20 anos quando, em 1954, estreou no jornalismo cultural, colaborando com um artigo semanal para o jornal Suplemento Literário. Quase 40 anos depois, em 1992, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Era o oitavo ocupante da Cadeira nº 13, na sucessão de Francisco de Assis Barbosa, tendo sido recebido pelo acadêmico Antonio Houaiss.

Ao longo de sua carreira, Rouanet assinou artigos para prestigiadas revistas brasileiras e internacionais. Coordenou a série de livros “Correspondência de Machado de Assis”, editada pela ABL. Por suas traduções de livros de Walter Benjamin, ganhou a Medalha Goethe. É autor dos livros “O homem é o discurso - Arqueologia de Michel Foucault”, “Imaginário e dominação”, “Itinerários freudianos em Walter Benjamin”, “Teoria crítica e psicanálise”, “A razão cativa”, “Riso e melancolia”, entre outros.

Trajetória acadêmica e diplomática

A primeira formação de Rouanet foi pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Aos 21 anos, formou-se no curso de preparação à carreira de diplomata do Instituto Rio Branco. Em universidades dos EUA fez pós-graduações em economia, filosofia e ciência política, área na qual veio a doutorar-se pela Universidade de São Paulo (USP).

A carreira diplomática começou, no Brasil, em 1957. Logo depois foi para os Estados Unidos, onde estagiou na Organização dos Estados Americanos (OEA), serviu na embaixada brasileira em Washington e atuou na Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque.

Já na década de 1970 foi transferido para a Suíça, onde chegou ao posto de cônsul-geral, em Zurique. No final dos anos 1980 foi nomeado embaixador da Dinamarca, cargo que ocupou por quatro anos, até ser chamado de volta ao Brasil para se tornar ministro de Cultura do então presidente Fernando Collor.

Pai da Lei de Incentivo à Cultura

Foi Sérgio Paulo Rouanet o autor da Lei de Incentivo Fiscais à Cultura, promulgada por Collor em 1991, que autoriza produtores a buscarem investimento privado para financiar iniciativas culturais. Em troca, as empresas podem abater parcela do valor investido no Imposto de Renda.

Na campanha eleitoral de 2018, o então candidato a presidente Jair Bolsonaro defendeu mudanças na lei, afirmando que "ninguém é contra a cultura", mas que a Lei Rouanet teria de ser "revista" caso ele fosse eleito. E assim o fez.

Em abril de 2019 a Lei Rouanet foi alterada pelo governo de Jair Bolsonaro – passou a se chamar Lei de Incentivo à Cultura e sofreu um corte drástico no limite para captação de recursos – de R$ 60 milhões para apenas R$ 1 milhão por projeto.

Depois de deixar o governo, Rouanet fez parte do Consulado Geral do Brasil em Berlim, como Cônsul Geral, entre 1993 e 1996.

*Texto publicado originalmente no g1


Eliane Brum: A marcha dos mortos

Mais de 100.000 vítimas do Governo Bolsonaro e somos covardes ao ponto de normalizar um crime contra a humanidade que é feito em nosso nome

Queria começar dizendo do meu horror por estar escrevendo esse texto sobre os 100.000 mortos enquanto algumas centenas deles estão vivos e lutando pela vida. Todos nós já sabemos que chegaremos aos 100.000 mortos. E este é o horror. E ultrapassaremos os 100.000 mortos, e este é o horror. E não sabemos em quantos milhares de mortos chegaremos, porque não há nenhum controle no Brasil sobre a disseminação da covid-19. Eu ainda sentiria horror se estivesse lidando apenas com a fatalidade de um vírus. Mas tenho convicção de que não é disso que se trata. Uma convicção baseada em fatos, como deve ter uma jornalista que emite sua opinião. Uma convicção fundada em acompanhamento do Diário Oficial da União e da comunicação do Governo. Meu horror é infinitamente maior justamente porque testemunhamos um genocídio praticado por Jair Bolsonaro e todos os funcionários ― fardados ou não, peito estrelado ou não ― que têm poder de decisão. Meu horror é por escrever sabendo que chegaremos aos 100.000 mortos e perceber que não encontramos força para barrar o genocídio e ainda não encontramos gente suficiente ― no Brasil e no mundo ― para se somar à luta para barrar um crime contra a humanidade.

Eu peço perdão aos mortos por nossa fraqueza como povo. Eu peço perdão em nome dos juristas e dos intelectuais que preferem não, porque, afinal, Bolsonaro seria só incompetente ― e não um matador deliberado e sistemático. Alguns ainda fazem bochecho com a palavra “banalização”, denunciando que se estaria vulgarizando o termo, sem perceber que são eles que banalizam mais de 1.000 mortes por dia. Eu peço perdão em nome da parcela dos jornalistas que prefere ser “imparcial” diante de um massacre, como se a suposta imparcialidade fosse justificativa para sua omissão como ser humano. Eu peço perdão em nome daqueles que aprovam Bolsonaro porque recebem 600 reais por mês do Governo, porque conheço muitas pessoas em situação de pobreza que exigem seus direitos de serem assistidas pelo Estado numa situação de emergência, mas não compactuam com a morte do outro. Eu peço perdão em nome daqueles que acreditam ser suficiente colocar seu nome em abaixo-assinado enquanto os mortos se enfileiram. Eu peço perdão por essa porção das elites intelectuais voluntariamente pueril em política e destituída de coragem pessoal para assumir seu papel histórico de barrar o extermínio. Eu peço perdão por por essa parcela pusilânime da população que, com as mais variadas desculpas, delega ao outro a tarefa de enfrentar o mais difícil. Eu peço perdão em meu próprio nome por não ser capaz de fazer o mínimo suficiente.

Todos os dias eu acordo e durmo pensando qual é o papel de uma jornalista, de uma cidadã, de uma pessoa humana quando testemunha um genocídio e me horrorizo porque já não sei o que fazer, porque há pelo menos quatro petições no Tribunal Penal Internacional mas, diante da magnitude da destruição, ainda é pequeno o movimento de mobilização em torno das denúncias. Ainda são muito poucos usando seu espaço para dar nome ao horror. E então, mais uma vez, eu peço perdão para o que não tem perdão.

Eu peço perdão a você, grande Aritana, cacique do Xingu, por sua voz de tantas línguas ter sido silenciada porque Bolsonaro deixou a floresta aberta aos agentes do vírus, muitos deles atendendo pelo nome de grileiros e garimpeiros ― e fez isso com o apoio dos generais de sua corte, herdeiros de uma ditadura que matou mais de 8 mil indígenas ― impunemente. Eu peço perdão porque tantos brancos acham que negar medidas emergenciais e até mesmo água potável aos indígenas na pandemia, como o Governo fez, é “incompetência” ou “fracasso da política de enfrentamento à covid-19”. Eu peço perdão a você, seu Bié, Manoel da Cruz Coelho da Silva, quilombola de Frechal, no Maranhão, porque gente demais acha que morrer mais pretos que brancos é “normal”. Eu peço perdão a você, Tia Uia, Clarivaldina Oliveira da Costa, quilombola da Rasa, no Rio de Janeiro, porque depois de tantos séculos de luta para existir num país fundado sobre os corpos dos escravos, você morreu por racismo. Eu peço perdão a você, Carlilo Floriano Rodrigues, que criou sete filhos com tanto carinho, e caminhou com coragem mesmo sem uma perna. Eu peço perdão a você, Alayde Antônia Rossignolli Abate, que não se desgrudava de seu cachorro de nome Paçoca. Eu peço perdão a você, Roosevelt Guimarães Soares, que enquanto viveu acordava as três horas da madrugada para vender melancia na feira. Eu peço perdão a você, Delcides Maria Oliveira, que na infância enganou a fome com colheradas de café mas não conseguiu vencer a indiferença do Governo diante dos mortos pela covid-19. Eu peço perdão a você, adolescente Yanomami morto aos 15 anos e enterrado em terra estranha como se coisa fosse.

Eu peço perdão a todos os 100.000, cada um com seu nome, sua história, seus desejos, suas fraquezas, seus sonhos e seus amores. Seus gestos que o crime imobilizou. Peço perdão aos Inumeráveis que foram convertidos em estatística e aos Vagalumes que tiveram sua luz apagada pela indiferença de Bolsonaro diante de suas vidas. “E daí?”, disse o genocida, quando eram 5 mil mortos pela “gripezinha”.

Eu peço perdão pela vida interrompida pela fome de morte daquele que disse, na última quinta-feira, diante da proximidade dos 100.000 brasileiros mortos: “Vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”. Eu peço perdão porque Bolsonaro só pode ser presidente porque há milhões iguais a ele, com a mesma indiferença pela vida do outro, andando sem máscara para que você morra sem ar.

Eu peço perdão por aqueles que foram enterrados em covas sem nome. Eu peço perdão por aqueles que foram enterrados em caixas de papel porque faltou caixão. Eu peço perdão por aqueles que sofreram a indignidade de começarem a se decompor em casa porque não havia serviço público para buscar seus corpos, submetendo suas pessoas queridas à tortura de sentir aversão pelo cheiro de quem amavam. Eu peço perdão a você, bebê Yanomami, que foi sepultado longe da sua terra e do seu mundo, sem o lamento de seus pais, sem as homenagens de seu povo, e portanto, não terá paz nem deixará os vivos em paz.

Eu peço perdão a todos aqueles que não foram chorados na sepultura, aos enterrados por um coveiro que os desconhecia, submetendo seus vivos ao flagelo de não se despedir e portanto não fazer luto. Eu peço perdão aos coveiros submetidos à brutalidade do Estado. Eu peço perdão aos profissionais da saúde que arriscam sua vida dia após dia e são agredidos nas ruas por incitação do presidente da República. Eu peço perdão ao bebê Xavante que, ao morrer, contaminou parte do seu povo que não recebeu nenhuma orientação para se proteger de mais um vírus. Eu peço perdão aos indígenas que, por viverem na cidade, tiveram suas identidades arrancadas pelo mesmo Estado que os expulsou de suas terras. Como suas mortes não são computadas como aquilo que são ― indígenas ― são mortos uma segunda vez. Eu peço perdão por permitirmos que gente seja tratada como coisa e por nos coisificar ao normalizar o extermínio.

Eu peço perdão não porque tenho “culpa cristã”, como já fui “acusada” em outros momentos. Eu peço perdão porque tenho “responsabilidade coletiva”, porque sou responsável pelo que fizeram e pelo que fazem no meu e no seu nome. Bolsonaro está perpetrando um genocídio em nosso nome quando substitui profissionais da saúde experientes em epidemias por militares inexperientes em saúde, está perpetrando um genocídio em nosso nome quando distribui cloroquina e hidroxicloroquina até mesmo para povos indígenas, medicamentos cuja ineficácia para combater a covid-19 já foi cientificamente comprovada, assim como seus riscos. Está perpetrando um genocídio em nosso nome quando retém os recursos destinados ao enfrentamento da pandemia enquanto faltam até mesmo sedativos nos hospitais para aplacar a dor das vítimas. Está perpetrando um genocídio em nosso nome quando veta medidas de segurança e estimula que as pessoas vão às ruas sem máscaras. É possível seguir empilhando atos de Bolsonaro que comprovam sua intenção de matar. E também de deixar morrer, o que é uma outra forma de matar, já que um governante tem a responsabilidade constitucional de proteger a população do país que governa.

Eu peço perdão. E digo também que, ainda que sejamos poucos, resistiremos. Os povos que estão sendo massacrados, como os indígenas, estão produzindo suas próprias estatísticas e seus memoriais. É a maneira de reconhecer a vida dos que morreram e lhes dar a dignidade da verdade na morte. Diante de crimes contra a humanidade, os obituários ganharam o significado da resistência. Contar a história e as histórias tornou-se insurgência – para que os mortos possam viver como memória e seus assassinos não escapem da justiça. Resistimos contando os mortos em mais de um sentido ― como estatística confiável, como identidade reconhecida, como história contada. Nos insurgimos fazendo viviários dos que foram mortos, porque diante das ações e das omissões de Bolsonaro e de seu Governo, morrer de covid-19 não é morte morrida, é morte matada.

Nós, os que Bolsonaro e seu Governo ainda não conseguiram matar, lembraremos e faremos lembrar. E, quando morrermos, nossos filhos lembrarão. E quando nossos filhos morrerem, nossos netos lembrarão.

Caro Jair Bolsonaro, caros generais, caros civis envolvidos nos crimes contra a humanidade relacionados à covid-19: eu espero que vocês sejam assombrados pelos 100.000 mortos. Eu espero que um dia alguém faça um filme da marcha dos mortos à Brasília, marcando a volta do realismo fantástico em nosso continente, já que a realidade que vocês impuseram nos roubou até mesmo a possibilidade da fantasia. Então, liderados pelo grande Aritana, que carregará em seus braços os corpos mortos dos bebês Yanomami insepultos, 100.000 dedos apontarão para seus rostos. Vocês poderão, talvez, escapar dos tribunais. Não escaparão da memória.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


El País: “O Brasil não cumpriu o dever de pôr a ditadura em pauta. Há um pacto para não constranger os militares”

Eugênia Gonzaga, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, diz que hierarquia do presidente em relação às Forças Armadas poderia facilitar a demanda das famílias dos desaparecidos

Por Marina Rossi, do El País

No aniversário de 50 anos do Ato Institucional número 5 (AI-5, de 13 de dezembro de 1968), considerado o ato mais duro dos 17 instituídos durante a ditadura militar brasileira, a procuradora Eugênia Gonzaga, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, faz questão de pontuar os poucos mas importantes - avanços na pauta dos desaparecidos políticos. Dentre elas, a identificação das ossadas de dois militantes dados como desaparecidos, que ela considera "a melhor notícia do ano".

A procuradora é uma das que assina um manifesto que intelectuais, lideranças de movimentos sociais e profissionais de diversas áreas lançam para marcar os 50 anos do AI-5 nesta quinta, em São Paulo. "A garantia das liberdades, dos direitos humanos individuais e sociais, do livre exercício da cidadania nos une, para além de eventuais diferenças e nuances ideológicas ou político-partidárias. Enfatizamos nosso compromisso com a pluralidade e a diversidade cultural, de crenças e de comportamento da sociedade brasileira. Conclamamos os democratas a se unirem para manter as liberdades duramente conquistadas ao longo das últimas três décadas", diz o texto.

Leia os principais trechos da entrevista, concedida por telefone:

Pergunta. Nesta semana, completam-se quatro anos que a Comissão Nacional da Verdade entregou as 29 recomendações para prevenir as violações dos direitos humanos no Brasil. Em que situação estão essas recomendações?

Resposta. Uma das recomendações foi a responsabilização dos agentes da ditadura. Isso recai sobre o Ministério Público Federal que montou grupos de trabalho e instaurou inquéritos. Os resultados foram pequenos, primeiro porque os réus e testemunhas em sua maioria estão mortos e, em segundo lugar, porque o Judiciário não está cumprindo essa recomendação. O Judiciário ainda é a favor de que a Lei da Anistia [promulgada pelo presidente João Batista Figueiredo, em 197, que concede anistia a todos os que cometeram crimes políticos entre 1961 e 1979] seja aplicada em qualquer caso. Também por isso, o tema da responsabilização dos agentes da ditadura está no Supremo, parado, desde 2011 e não se tem previsão de entrar na pauta.

P. O Judiciário entende que muitos dos crimes ocorridos na ditadura já prescreveram. Como reverter isso?

R. São duas coisas diferentes. No caso dos desaparecimentos forçados, é considerado um crime que não se esgota enquanto os corpos não forem encontrados, então não há prescrição. Mas no caso da responsabilização dos agentes da ditadura, o principal motivo de estar segurando [esse julgamento] é essa interpretação da Lei da Anistia. Na verdade, existe um pacto para não se constranger os militares.

P. E quais são as chances do Governo Bolsonaro, cuja cúpula é toda formada por militares, avançar nessas recomendações?

R. O Brasil demonstra que não cumpriu seus deveres. Deveria ter feito muito mais espaços de memória, colocado esse tema em pauta sempre. A questão das buscas dos corpos foram incipientes, sempre foram esforços individuais, dos próprios familiares. O Brasil nunca tomou nenhuma atitude que colocasse em xeque as Forças Armadas. Um dos argumentos [para a morosidade nos processos] é que os documentos foram destruídos, mas a resposta para isso é que é possível fazer a reconstituição dos documentos, e, na realidade, nunca houve uma ordem para tal.

P. Mas então quais são as chances de que agora esse tema avance?

R. Pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que existe desde 1995, fizemos recentemente em Brasília um encontro de familiares para analisar esse aspecto [do encontro saiu da Carta de Brasília, que reitera, dentre outras coisas, a necessidade de implementação das recomendações da Comissão Nacional da Verdade]. A nossa reivindicação prossegue e é pela localização dos corpos. E esse novo Governo, se quiser e se tiver algum tipo de interesse em fazer alguma diferença nessa pauta, é o que mais tem condições em termos de hierarquia em relação às Forças Armadas. A questão da entrega dos corpos [dos desaparecidos às famílias], além de se dar um encerramento digno, ainda que simbólico, é um tema defendido em qualquer religião. Vamos levar essa pauta à ministra indicada [dos Direitos Humanos, Damares Alves], ao ministro da Justiça [Sergio Moro] e ao presidente da República. Essa pauta sempre teve muito pouco apoio dos diversos governos. Fernando Henrique Cardoso fez a lei que criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, em 1995, mas desde então, o orçamento é praticamente inexistente para essa comissão. Na era dos governos de esquerda [Lula e Dilma], por uma questão de estratégia, preferiram tocar outras pautas e deixar essa mais de lado. Houve algumas iniciativas, alguns avanços, mas a revelação [de identidades das vítimas] e o encontro de corpos foi incipiente. Tivemos duas identificações neste ano das ossadas de Perus e uma delas foi emblemática porque era um militante do Rio que veio parar na vala de Perus, o que mostra a integração dos esforços entre os Estados. [A comissão anunciou no último dia 3 a identificação do corpo do bancário e sindicalista Aluísio Palhano Pedreira Ferreira. Ele fora incluído em 2014 na lista de mais de 400 desaparecidos políticos elaborada pela Comissão Nacional da Verdade].

P. Quais outras ações estão avançando?

R. Entregamos 11 atestados para retificação das causas da morte e estamos encaminhando mais 20 pedidos. Essas pessoas não tinham sequer atestado de morte, então começamos pedindo pelos atestados. Tivemos na primeira certidão completamente retificada, que é do diplomata José Jobim [a causa da morte foi retificada em setembro deste ano, passando a constar em seu atestado de óbito como resultante da perseguição política durante a ditadura militar].

P. Apesar desses avanços, muitas das recomendações feitas pela Comissão da Verdade não só foram esquecidas, como algumas legislações que tem ecos considerados ligados à ditadura surgiram nesse meio tempo, como a criação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), a volta da Justiça Militar como foro para julgar soldados que cometam homicídios e os casos de arbitrariedade da Polícia Militar….

R. Sim, houve um retrocesso. Um deles é em relação à recomendação da desmilitarização das polícias. Não significa que não é para existir Polícia Militar, mas que não existam essas práticas militares. E o que vemos é um caminho contrário. Por exemplo, chamar uma investigação de uma operação, que é uma prática militarizada, representa condenação por antecipação. E passou a ser usada em grande escala, de forma até banal. Outra coisa é que, de acordo com a Constituição, os municípios podem ter suas guardas civis, que não precisam necessariamente ser armadas, seguir práticas de hierarquia como ocorre nas Forças Armadas. E o que vemos é o contrário. Temos centenas de polícias e todas são militarizadas. Na verdade, o caminho deveria ser o contrário. A própria intervenção federal [no Rio de Janeiro e agora em Roraima] e a GLO, são tipos de enfrentamentos com as Forças Armadas que lembram os períodos de guerra e são absolutamente contrários às práticas humanitárias.

P. Como criar mecanismos que de fato possam ser seguidos e respeitados?

R. A identificação das ossadas de Aluísio Palhano e de Casemiro [Dimas Antônio Casemiro teve suas ossadas identificadas em fevereiro. Elas também estavam na vala de Perus] foram as melhores notícias do ano. As retificações de atestados que estão em curso e a Carta de Brasília que os familiares reiteraram, mesmo no atual cenário, levanta a bandeira pela igualdade e democracia. Acho que foi um ato corajoso de ir até Brasília, muitas das pessoas já são idosas, e foram até lá para dizer: continuaremos aqui com a nossa bandeira “onde estão os desaparecidos?”. Independentemente da ideologia, não há justificativa alguma para o governo desaparecer com corpos. O país não vai demorar tanto para se dar conta que esses tipos de práticas não são em benefício de ninguém. No passado, as pessoas não tinham informações, não sabiam exatamente o que estava acontecendo. Hoje, com as redes sociais, espero que as pessoas tenham mais discernimento em relação aos perigos e que as próximas eleições não tendem a repetir esse resultado truculento que vimos agora.