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Fernando Gabeira: Pandemia e lição de casa
Já estamos um pouco cansados de falar da pandemia. Quem caiu, quem não caiu, amigo entubado, amigo extubado, CoronaVac, AstraZeneca, vozes abafadas pelas máscaras, CPIs, mentiras e gravações.
Mas a Humanidade tem de enfrentar seus erros e fazer a lição de casa, pois, nas condições de crise ambiental, novas pandemias podem nos atacar.
Um passo importante foi a comissão especial criada pela OMS, que divulgou seu relatório. Nele, o grupo liderado pela ex-primeira-ministra da Nova Zelândia Helen Clark aponta os erros da própria OMS, que perdeu um mês antes de decretar a emergência.
Governos locais — com seu negacionismo, isso conhecemos bem —também foram responsáveis por políticas destruidoras.
Em outras palavras, a tragédia que o mundo vive hoje poderia ter sido evitada. Comissões internacionais como essa são importantes para despertar uma nova consciência. No final da década dos 60, o Clube de Roma publicou um relatório de personalidades políticas alertando para a produção e o consumo insustentáveis. Isso foi um marco.
No meu entender, existe uma lição implícita na pandemia, já absorvida no século XIX por Humboldt. Ao escalar a montanha do vulcão Chimborazo, ele compreendeu algo que já estava amadurecendo em seu pensamento: os elementos da natureza são interligados, ela é uma rede viva e, portanto, vulnerável.
Lição semelhante pode ser transplantada para a política internacional num caso de pandemia. Estamos todos no mesmo barco. Ninguém estará a salvo enquanto todos não estiverem a salvo.
Daí meu apoio à quebra das patentes, mesmo sabendo que o efeito imediato da medida não é tão promissor quanto a distribuição de vacinas por países que têm mais do que necessitam para vacinar sua população.
Essa noção de interdependência deve ser levada também para o plano interno, em que, sem solidariedade, dificilmente atravessaremos a crise.
O governo brasileiro fez tudo errado. Negou a pandemia, resistiu à vacina e contribuiu para que tivéssemos um número absurdo de mortes.
Como se não bastasse isso, o desmatamento na Amazônia atinge números recordes, o Congresso acaba com as leis que definem o licenciamento ambiental.
O processo de destruição da natureza será mais acentuado no Brasil, sem falar no aumento da pobreza, por remarmos contra a corrente mundial que defende a sustentabilidade.
O governo e o Congresso não respeitam o alerta sobre uma exploração sustentável da natureza. E muito menos os conselhos para preservar vidas durante uma pandemia.
Simultaneamente, portanto, criam as bases de uma nova pandemia e estabelecem a política negacionista de um sacrifício humano ainda maior.
A única esperança, se isso merece o nome de esperança, é que não conseguirão destruir tudo nem matar todos os brasileiros até 2022.
É simples: ou deixam o poder, ou acabam com o Brasil.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/pandemia-e-licao-de-casa.html
O Globo: Orçamento paralelo de R$ 20 bilhões irriga órgãos dominados pelo Centrão
Natália Portinari, O Globo
BRASÍLIA — O “Orçamento paralelo” em emendas de R$ 20 bilhões em 2020, controlado por deputados e senadores governistas, foi direcionado para diversos órgãos chefiados por indicados do Centrão. O loteamento de cargos no governo federal permitiu que parlamentares tivessem ainda mais controle sobre o destino da verba indicada por eles.
A negociação foi operacionalizada através das emendas de relator, uma fatia do Orçamento usada para investimentos, obras e reforço para os caixas de municípios na área de saúde e educação. Governistas usaram a verba para irrigar suas bases eleitorais com verbas “extra”, além das emendas individuais de R$ 16 milhões a que cada um tem direito.
Os recursos que constituem o “Orçamento paralelo”, distribuído de forma desigual e sem transparência entre os parlamentares pela cúpula do Congresso em acordo com o governo federal, são provenientes das emendas de relator. O relator do Orçamento repassa informalmente as indicações de verbas de líderes partidários para a União, que depois autoriza os repasses dos ministérios demandados. É diferente de quando deputados e senadores indicam o destino de suas emendas parlamentares formalmente na peça orçamentária: eles têm direito a exatamente o mesmo valor, sejam da oposição ou governistas, e o Executivo é obrigado a fazer os pagamentos.
No Ministério da Educação, por exemplo, os valores empenhados (autorizados para pagamento) de emendas de relator chegam a R$ 2 bilhões. Deste valor, R$ 1,5 bilhão foi parar no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), cujo gestor, Marcelo Lopes da Ponte, é indicado do presidente do PP, o senador Ciro Nogueira (PP-PI). No órgão há ainda uma diretoria controlada por um quadro do PL, Garigham Amarante Pinto.
A maior parte das emendas de relator foi destinada ao Ministério do Desenvolvimento Regional: R$ 8 bilhões. Dessa quantia, pelo menos R$ 1,2 bilhão foi para a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba(Codevasf). Desde o fim de 2019, o órgão é chefiado por um indicado do deputado Elmar Nascimento (DEM-BA).
Líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) tem um aliado seu, Aurivalter Cordeiro, à frente da superintendência do órgão em Pernambuco. Ele fez uma indicação de R$ 175 milhões na autarquia, mais de dez vezes o valor de uma emenda individual no Congresso. A cidade de Petrolina (PE), administrada pelo filho de Bezerra, Miguel Coelho, assinou um convênio de R$ 46 milhões com o órgão para pavimentação e abastecimento de água no fim de 2020.
Como revelou o GLOBO, na Codevasf, mais de 90% da verba das emendas de relator foi indicada por aliados do governo Bolsonaro no Congresso. Nas superintendências regionais do órgão, além do indicado de Bezerra Coelho, há chefes apadrinhados pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), Hildo Rocha (MDB-MA) e Arthur Maia (DEM-BA).
Comandada pelo Centrão, a Codevasf atua prioritariamente em projetos na região do rio São Francisco. Sua área de abrangência, porém, foi ampliada pelo Congresso e vai hoje do Amapá a Minas Gerais. Inaugurado neste ano, o escritório do Amapá foi uma vitória de Davi Alcolumbre (DEM-AP), ex-presidente do Senado. Ele fez uma indicação de R$ 98 milhões em emendas de relator à Codevasf para seu estado, pedido atendido pelo órgão.
Procurado, Alcolumbre defendeu a indicação. “A instalação da companhia no meu estado mudará para sempre a rota de desenvolvimento local. Ter o Amapá na Codevasf significa mais desenvolvimento para o meu estado. Isto porque, assegurados por lei, vamos ter como aprimorar nossas condições socioambientais regionais e de bem-estar”, disse em nota.
Indicações por WhatsApp
As emendas de relator foram repartidas entre deputados e senadores pelos líderes partidários. Uma lista com a divisão foi enviada à Secretaria de Governo, que, por sua vez, repassou os pedidos aos ministérios e cuidou da liberação, concentrada no fim do ano.
— No ano passado, quem centralizou (a distribuição das emendas de relator) foi a própria Secretaria de Governo — diz o deputado Hildo Rocha.
Deputados e senadores ouvidos pelo GLOBO relatam que nem sempre há uma indicação formal das emendas de relator como a que ocorreu no Ministério do Desenvolvimento Regional. Em muitos casos os pedidos são feitos pelo WhatsApp ou em planilhas manejadas por assessores das quais não há registro. Por isso, não há transparência sobre a distribuição.
O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), também nas mãos do Centrão, recebeu R$ 225 milhões para assentamentos rurais. O presidente é Geraldo Melo Filho, indicado pelo ministro Onyx Lorenzoni (Secretaria-Geral da Presidência) e filiado ao DEM. Nas superintendências, há dezenas de indicações políticas. Os deputados Marx Beltrão (PSD-AL), Zé Silva (SD-MG) e Josimar de Maranhãozinho (PL-MA) já emplacaram chefes regionais.
Fonte:
O Globo
Correio Braziliense: ‘A ficha do brasileiro demorou a cair’, diz Marco Aurélio Mello
Por Ana Dubeux
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello enxerga uma espécie de delay coletivo do Brasil em relação à pandemia. “Custamos, em termos de Administração Pública, principalmente de poder central, a perceber a seriedade da pandemia… Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões”, diz, nesta entrevista.
Defensor do isolamento, ele acredita que a pandemia alerta sobre a necessidade de restabelecer valores caros à vida em sociedade. E preocupa-se: “A ficha do brasileiro demorou muito a cair. Constatamos, nessa fase difícil, que às vezes é preciso haver, inclusive, a atuação da polícia repressiva — a militar — para terminar com aglomerações de toda ordem. Isso é preocupante”.
Após mais de três décadas como ministro do STF e 42 anos de magistratura, Marco Aurélio está na antessala da aposentadoria, marcada para julho próximo. Mas avisa: “Não morrerei de tédio”. Não morre, nem nunca deixou ninguém morrer, é fato.
Ministro que nunca se furtou a declarações fortes e posicionamentos, ele afirma não ter arrependimentos e se declara um “estivador do direito”, referindo-se à carga de processos que hoje um ministro acumula. “Sou homem realizado e sempre me senti um servidor de meus semelhantes”. Pretende se dedicar agora à vida acadêmica.
Ser ministro do Supremo durante mais de 30 anos cansa? Do que se arrepende? Do que se orgulha?
Orgulho-me do Supremo que encontrei em 1990, quando, na gestão do ministro Néri da Silveira, tomei posse. Havia integrado o Ministério Público do Trabalho, o Tribunal Regional do Trabalho e o Tribunal Superior do Trabalho. Sempre decidi segundo ciência e consciência possuídas. Daí não haver qualquer arrependimento. Magistratura é opção de vida, e é preciso atuar sempre buscando o melhor, procurando conciliar o trinômio lei, direito e justiça, visando a entrega da prestação jurisdicional a tempo e modo. Sou homem realizado e sempre me senti um servidor de meus semelhantes. Atuo em colegiado julgador há 42 anos e completarei, em 13 de junho próximo, 31 no Supremo, com o sentimento do dever cívico cumprido. Continuarei na área acadêmica, na presidência do Instituto UniCeub de Altos Estudos. Estejam certos: não morrerei de tédio. O crescimento é infindável.
O senhor foi professor na Universidade de Brasília e no Ceub. Que lembranças tem desse contato com novas gerações?
A melhor lembrança possível, e sigo no mundo acadêmico. Estive ontem na Universidade de Brasília, continuo no UniCeub e palestrei diversas vezes nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), em São Paulo. O contato com as novas gerações é enriquecedor, no que se percebe mentes abertas.
Quais mudanças o senhor destacaria na Justiça brasileira desde 1990, quando foi escolhido para o Supremo?
Houve o aprimoramento da atuação da Justiça. O que ocorre, no Brasil, é que não se caminha, por exemplo, para solucionar conflito de interesse na mesa de negociações. O País conta com lei moderníssima sobre arbitragem, mas dificilmente se tem descompasso solucionado mediante a atuação de árbitros. O brasileiro somente acredita em uma solução, a solução ditada pelo Estado-juiz. Então, há a judicialização em massa, que acaba emperrando a máquina judiciária.
As demandas da sociedade ampliaram a necessidade de o Judiciário modernizar-se, principalmente diante da pandemia. Como o STF pode contribuir no esforço para reduzir os impactos sociais da covid-19?
O Supremo somente atua mediante provocação, buscando, no âmbito de competência inimaginável, muito grande, conciliar celeridade e conteúdo. O Tribunal, não me canso de repetir, é o guarda maior da Constituição Federal. A segurança jurídica pressupõe a observância irrestrita, por todos, do arcabouço normativo.
Como a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade?
É preciso haver avanço cultural. De qualquer forma, a pandemia implicou alerta quanto à necessidade de preservar valores caros à convivência. A sociedade sairá mais fortalecida dessa quadra.
É possível ter um olhar poético diante desse momento difícil? Como faz para aliviar a tensão?
Em primeiro lugar, julgo, integrando o Supremo, destinos e não papéis. Sempre busco – sei que é utopia – a perfeição. Não há tensão propriamente dita. Sou um juiz à antiga, trazendo processos para a residência. Vou ao Tribunal apenas nos dias de sessão. Aliás, ia ao Tribunal, porque, agora, quando se tem reunião de integrantes, ocorre mediante videoconferência. Como julgador, cuido muito da parte humanística. Por isso tenho sempre aberto um romance. Estou lendo obra de Hilary Mantel, sobre a Inglaterra da época de Henrique VIII, O Espelho e a Luz. Admiro muito essa escritora.
O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
Tenho presente, há mais de um ano, que a vacina maior é a revelada pelo isolamento. Então o mantenho, desde março de 2020, e vou tocando a vida, buscando deixar, no gabinete, o menor resíduo possível para o sucessor, considerada a aposentadoria que se avizinha, em 5 de julho do corrente ano.
Como ficam as grandes questões da humanidade no pós-pandemia?
Os homens públicos devem ter os olhos voltados ao bem-estar social. No caso do Brasil, precisa haver atenção ímpar com os menos afortunados, proporcionando-se educação, saúde e segurança pública.
O momento exige resiliência e ativismo solidário. Engajou-se pessoalmente em alguma atividade coletiva a distância?
Exige dedicação e a busca do resgate desse predicado que é a solidariedade. Não me sobra tempo para estar engajado em outra atividade, além da acadêmica e judicante. Costumo dizer que hoje não sou, ante a carga de processos, um operador do Direito, mas sim um estivador.
Que ensinamento este momento nos deixa?
O relativo à necessidade de respeito à natureza. Em pleno século XXI, o homem veio a perceber, com essa pandemia, a fragilidade e que deve cuidar da mãe terra.
O senhor vive em Brasília há mais de 30 anos, como “sentiu” a cidade neste ano de pandemia?
Aqui cheguei, em 1981. A ficha do brasileiro demorou muito a cair quanto ao momento vivenciado, quanto aos efeitos da pandemia. Constatamos, nessa fase difícil, que às vezes é preciso haver, inclusive, a atuação da polícia repressiva – a militar – para terminar com aglomerações de toda ordem. Isso é preocupante. A conscientização passa, de qualquer forma, por uma mudança na percepção da vida gregária, da vida em sociedade.
Como vê a perda de tantos brasileiros na pandemia? Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões? Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil?
Custamos, em termos de Administração Pública, principalmente de poder central, a perceber a seriedade da pandemia, os efeitos que poderia causar. Sempre é tempo de tomar decisões visando o melhor, considerados os brasileiros. Sim, os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões. Observa-se o que ocorreu em outros países, como a Inglaterra, em que medidas foram adotadas.
A importância da união em torno de um projeto suprapartidário, para mitigar os efeitos da pandemia nos próximos anos, é possível?
É possível desde que haja, como disse, conscientização, sobretudo dos homens públicos, e que não prevaleçam interesses isolados, momentâneos e que não levam ao bem-estar geral.
Fonte:
Correio Braziliense
Bruno Carazza: Nuvem de palavras
Descontados os intervalos, já se passaram 38 horas e 46 minutos de depoimentos desde que o senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apura as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia, convocou para se sentar à mesa a primeira testemunha: o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.
Desde então já foram realizadas seis oitivas de personagens que, em diferentes partes do roteiro, foram protagonistas ou coadjuvantes, vilões ou mocinhos, neste filme de terror que já teve mais de 435 mil vítimas.
Já subiram ao palco da CPI os ex-ministros da Saúde Mandetta (cuja audiência durou 7 horas e 20 minutos) e Nelson Teich (5 horas e 26 minutos), o atual responsável pela pasta Marcelo Queiroga (8 horas e 2 minutos), além do diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária Antônio Barra Torres (5 horas e 27 minutos), o ex-secretário de comunicação social do governo Fabio Wajngarten (7 horas e 17 minutos) e o gerente-geral da farmacêutica Pfizer na América Latina Carlos Murillo (5 horas e 14 minutos).
Ao se analisar a íntegra dos depoimentos de todos os convocados até agora, aqueles que gostariam de ver o presidente da República sendo encurralado desde as primeiras perguntas podem ter se decepcionado. Durante os depoimentos dos ministros da Saúde, o nome de Bolsonaro foi muito pouco mencionado – para ser mais exato, apenas quatro vezes (uma por Mandetta e Teich e duas por Queiroga).
À medida que a CPI começar a convocar testemunhas que tiveram envolvimento mais específico e direto com os diversos aspectos da gestão governamental da pandemia, o risco de exposição de Bolsonaro e de sua família começa a aumentar consideravelmente. Prova disso é o fato de que o sobrenome “Bolsonaro” foi citado 18 vezes por Fabio Wajngarten e mais oito vezes pelo executivo da Pfizer Carlos Murillo.
Na nuvem de palavras proferidas nos seis primeiros debates da CPI, podemos encontrar outra pista sobre o rumo que as investigações podem tomar. O tema da cloroquina teve 84 menções, a maioria concentrada nas respostas dos ministros da Saúde e do presidente da Anvisa. No entanto, o termo “vacina” e seus derivados foram utilizados 586 vezes, apresentando alta incidência em todos os testemunhos feitos, o que indica que esse é um assunto com um potencial explosivo muito maior para o governo.
Do outro lado da mesa, também podemos encontrar informações interessantes sobre o andamento dos trabalhos da Comissão. Tentando captar o tamanho da participação de cada membro da Comissão nos depoimentos, realizei um exercício bastante simples. Compilei a íntegra das notas taquigráficas de cada sessão da CPI disponível na página do Senado na internet e contabilizei o total de caracteres utilizados por cada parlamentar durante suas perguntas e comentários dirigidos aos depoentes.
Conforme pode ser visto no gráfico, o protagonismo é exercido pelo relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), seguido do presidente Aziz e do vice-presidente Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Até aí não há nada demais, visto que esses três postos têm prerrogativas regimentais para conduzir os trabalhos da comissão, o que justifica terem mais tempo e espaço para falar. Mas há alguns pontos interessantes a serem observados.
De acordo com a mesma métrica, a defesa de Bolsonaro vem sendo capitaneada por Marcos Rogério (DEM-RO) e Luis Carlos Heinze (PP-RS), enquanto Ciro Nogueira (PP-PI) tem uma das atuações mais apagadas da CPI. Com o governo atravessando um de seus piores momentos desde a posse, o relativo silêncio do poderoso cacique do Centrão vale mais do que mil palavras.
Do lado da oposição ao governo, uma das vozes mais críticas contra a gestão de Bolsonaro na pandemia ainda se mostra discreta na comissão. Tasso Jereissati (PSDB-CE) recentemente chegou a cogitar publicamente a possibilidade de concorrer à presidência em 2022. Ao não tomar para si os holofotes na CPI da Covid, contudo, o tucano dá margens a se pensar de que esse desejo talvez não seja tão forte assim.
Voltando à nuvem de palavras, as referências a “Manaus” e “oxigênio” apareceram somente em 53 ocasiões nas duas primeiras semanas de trabalhos da CPI, indicando que esse é um flanco que ainda foi pouco explorado, pelo menos por enquanto.
Mas se o general Pazuello tiver a coragem de encarar os senadores na próxima quarta (19/05), pode sair daí a palavra-chave para se começar a demonstrar a responsabilidade do governo neste morticínio.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Fonte:
Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/nuvem-de-palavras.ghtml
Celso Rocha de Barros: Vai ser homem, Pazuello?
A CPI da Covid está descobrindo evidências de um assassinato em massa. Segundo o depoimento do gerente-geral da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, Bolsonaro desprezou várias ofertas de vacinas da empresa. Na estimativa do epidemiologista Pedro Hallal, só essa decisão de Bolsonaro causou entre 5.000 e 25 mil mortes.
Só essa decisão: não estamos levando em conta os ataques de Bolsonaro à Coronavac, que é responsável por cerca de 80% das vacinas do Brasil; nem da adesão tardia e parcial ao consórcio Covax Facility (entramos comprando 10% de nossas necessidades, poderíamos ter pedido até 50%); nem das vacinas já aplicadas que podem perder eficácia porque o governo federal mandou estados e municípios gastarem as reservas de Coronavac que guardavam para a segunda dose, inflando assim o número de vacinados; nem de toda a sequência de crimes documentados de Bolsonaro durante a pandemia que não se relacionam a vacinas.
A verdade é que, não fossem os adversários, reais (Doria) ou imaginários (China), de Bolsonaro, o número de brasileiros vacinados seria próximo de zero. A OMS, organizadora do consórcio Covax, também foi alvo constante de ataques bolsonaristas.
Os depoimentos à CPI também vêm reforçando a impressão de que o negacionismo bolsonarista no combate à pandemia teve base ideológica. Segundo os depoimentos, extremistas como Carlos Bolsonaro e Filipe Martins participavam das reuniões com vendedores de vacina sem terem qualquer qualificação na área médica, em suas próprias especialidades ou em qualquer outro ramo da aventura humana. Se estavam ali, era para garantir a aposta na imunidade de rebanho, na guerra contra a China e contra os “globalistas” da OMS.
E além dos capangas e soldados rasos do “Consultório do Crime”, começam a aparecer os suspeitos de serem as fontes de dinheiro e assessoria técnica. O ex-ministro Mandetta já havia declarado que Bolsonaro parecia ignorar os conselhos da área técnica porque tinha um aconselhamento paralelo.
As atenções da CPI agora se viram para o empresário Carlos Wizard, que pode ter sido o chefe dessa rede, e para a médica Nise Yamaguchi. Segundo o depoimento do presidente da Anvisa, o almirante Barra Torres, Yamaguchi defendeu a proposta de mudar a bula de remédios para mentir que eles curavam Covid-19.
É bom lembrar: Bolsonaro mandou os trabalhadores para a morte com a ilusão de que os remédios falsos os manteriam seguros. Nunca acreditou, de fato, na eficácia da cloroquina. Em suas memórias, o ex-ministro Mandetta diz que “nunca houve na cabeça dele a preocupação da cloroquina como um caminho de saúde. A preocupação dele era sempre ‘vamos dar esse remédio porque com essa caixinha de cloroquina na mão os trabalhadores voltarão a produzir’”. (p.133).
A próxima grande atração da CPI será o general Pazuello, ministro da Saúde durante a maior parte da mortandade. Pazuello ficou famoso por cancelar uma compra de Coronavac a mando de Bolsonaro, dizendo que “um manda e o outro obedece”.Agora vai ter que decidir se acaba como bode expiatório da pandemia ou se conta para os senadores quem lhe deu ordem para deixar que centenas de milhares de brasileiros morressem sem vacina.E aí, Pazuello, vai ser homem?
Malu Gaspar: Disputa sobre dinheiro para combate à Covid pode prejudicar governo na CPI
O desfecho de um embate entre o Ministério da Economia e o Tribunal de Contas da União sobre as verbas repassadas pelo governo federal a estados e municípios para o combate da pandemia de Covid-19 em 2020 pode afetar o rumo da CPI da Covid no Senado. E por ironia, se a equipe econômica vencer a disputa, o governo de Jair Bolsonaro perde seu principal argumento de defesa na comissão.
A discussão se dá em torno dos R$ 79 bilhões extras que o governo repassou a estados e municípios como ajuda de emergência para o combate à Covid. O TCU entende que o dinheiro é federal e, por isso, tem de ser acompanhado pelos órgãos de controle de Brasília. Já a Secretaria do Tesouro do Ministério da Economia considera que, uma vez feito o repasse, a verba passa a ser dos estados, e portanto não cabe fiscalização, nem responsabilidade da União.
Na CPI, os governistas defendem justamente o contrário da equipe de Paulo Guedes: que a comissão tem que investigar também o uso do dinheiro repassado, uma vez que, por ter origem na União, há responsabilidade federal.
O argumento foi a forma que os partidários de Bolsonaro encontraram de incluir governadores e prefeitos na lista de investigados, já que o regimento do Senado diz que CPIs abertas na Casa não podem investigar estados.
A pendenga em torno de quem deve fiscalizar o dinheiro da pandemia começou em junho, quando a área técnica do tribunal de contas abriu uma representação para discutir a natureza jurídica dos repasses federais. Isso porque na corte se considerava que as leis que criaram as transferências não são claras sobre o assunto.
Àquela altura, o governo já havia transferido R$ 25 bilhões a governadores e prefeitos. Em dezembro, o plenário do TCU decidiu que a verba é federal. Mas a pedido do Ministério da Economia, a Advocacia-Geral da União recorreu, e o ministro relator, Benjamin Zymler, suspendeu seus efeitos para reavaliar o caso.
A decisão, portanto, está paralisada, sem data prevista para novo julgamento. E como ela está suspensa, neste momento vale a posição do Ministério da Economia, que diz que a responsabilidade pelo dinheiro é dos estados, não da União.
O imbróglio já provoca disputas nos estados, onde há dezenas investigações sobre desvios dos recursos. Num deles, Pernambuco, a prefeitura de Recife tenta derrubar a apuração do Ministério Público Federal argumentando justamente que fiscalizar o uso do dinheiro não é mais atribuição federal, e sim estadual.
A solução para o impasse depende do TCU, que vai precisar julgar em breve a quem pertence o dinheiro. Se não para orientar a CPI, pelo menos para resolver uma questão bastante prática.
Com a mudança de atribuição de federal para estadual, os R$ 79 bilhões deixaram de contar para o cálculo das receitas da União, que funcionam como parâmetro para os limites de gastos estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Dessa forma, as receitas do governo caíram 10% em dezembro passado, o que fez com que vários órgãos federais tivessem seus limites de gastos com pessoal estourados de uma hora para outra.
A questão terá que ser decidida, já que a partir de maio esses órgãos federais têm que mandar para o Tesouro relatórios de gestão. E se ficar comprovado que eles estão gastando mais do que o permitido, terão de cortar despesas, congelar promoções e concursos, por exemplo.
A pressão desses setores para que o Ministério da Economia assuma a responsabilidade sobre os recursos tende a aumentar. Do outro lado estarão os governos estaduais, que não gostariam de enfrentar a fiscalização do Ministério Público Federal e da própria CPI da Covid. Quem perde, em um caso ou em outro, é o governo Bolsonaro.
Se a tese da equipe econômica for vencedora, Bolsonaro terá mais problemas na CPI, já a convocação de governadores vai perder força. E se o TCU sair ganhando, quem perde é a equipe de Paulo Guedes.
Fonte:
O Globo
Demétrio Magnoli: Quem é a polícia do B?
“Tudo bandido!“, decretou Hamilton Mourão horas depois do massacre no Jacarezinho, em 6 de maio, quando indagado sobre 27 das 28 vítimas fatais. O vice-presidente só conhecia a identidade do policial morto. Os supostos criminosos não tinham sido processados, julgados ou condenados. A segunda maior autoridade do país oferecia seu amparo a execuções extrajudiciais.
Mais: classificando como “bandidos” as vítimas ainda não identificadas, dizia implicitamente que são criminosos os que residem ou simplesmente circulam pelo Jacarezinho. A frase, síntese da barbárie nacional, esclarece os protocolos ocultos de ação da polícia no Rio de Janeiro. Desde o fracasso da política das UPPs, restaurou-se o padrão de invasão de favelas em operações letais. O pressuposto é que as favelas são terra estrangeira e seus moradores, combatentes inimigos.
Exige-se a investigação da Operação Exceptis, cujo nome de batismo enviava uma mensagem voluntária de deboche ao STF e uma outra, involuntária, a todo o país: a polícia do Rio não reconhece as leis regulares, mas apenas suas próprias leis, de “exceção”. O que procurar, porém, na investigação?
A resposta depende da hipótese inicial. Se acreditamos que a polícia do Rio é um corpo armado que opera sem planejamento e sem protocolos, a investigação deveria restringir-se aos desvios em relação aos padrões normais de ação policial e terminar com a punição dos agentes culpados. Mas tudo indica que a polícia segue planejamento e protocolos bem definidos, embora ocultos.
Na cidade do Rio, quase 60% da superfície dos territórios controlados por grupos armados irregulares encontram-se sob o comando de milícias, ou seja, da polícia do B. Apenas 15% são controlados por facções do crime, enquanto 25% são áreas de parceria ou disputa. Contudo a imensa maioria das operações policiais incide sobre os territórios de facções. É coisa incomum a ação da polícia oficial nos territórios de milícias — e mais raros ainda, os eventos de choques entre policiais e milicianos. Não estaríamos diante de uma aliança tácita entre a polícia e as milícias para estender o controle territorial das segundas?
O Jacarezinho situa-se nas vizinhanças da Cidade da Polícia, base principal das chefias e unidades operacionais da Polícia Civil. A favela vive sob a maior facção criminosa do Rio, um grupo sanguinário que nunca faz parceria com as milícias. A facção concorrente, pelo contrário, não rejeita parcerias baseadas numa nítida divisão de trabalho: os traficantes cuidam da venda de drogas, enquanto os milicianos dedicam-se à extorsão de comerciantes e moradores. A seleção do Jacarezinho para a Operação Exceptis parece obedecer a uma lógica de negócios. Quem ganha com uma eventual troca de guarda na favela?
A estúpida “guerra às drogas” é o pano de fundo e o álibi, mas não a causa, do massacre mais recente. Polícia é política. Uma investigação verdadeira do banho de sangue teria que ir muito além da operação no Jacarezinho, em busca das conexões subterrâneas entre a polícia oficial e a polícia do B.
O prefeito Eduardo Paes oscilou entre a condenação à violência da polícia e a crítica às restrições impostas pelo STF às ações policiais. “Se a reação for tão radical quanto a operação de ontem, um ‘ah, então libera geral esse território aqui para fazerem o que quiserem’, nós vamos viver esse pêndulo terrível que vitimiza principalmente as pessoas que moram em comunidades.” O “pêndulo terrível”, porém, instalou-se há décadas, e o “libera geral” exprime a postura estatal diante das milícias.
Paes identifica corretamente “as pessoas que moram em comunidades” como as vítimas da crônica guerra suja no Rio. Contudo finge que a solução encontra-se em olhar para outro lado, isto é, voltar à estranha “normalidade” vigente na segunda maior metrópole do país. Se ele se preocupa com as vítimas, deve clamar por uma “reação radical”: a implantação do Estado de Direito no conjunto da cidade que administra. Para isso, antes de tudo, é preciso reconhecer que a polícia oficial já não se distingue da polícia do B.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/quem-e-policia-do-b.html
Carlos Pereira: A grama do vizinho é mais verde que a minha
O presidencialismo multipartidário requer, como condição sine qua non, o uso discricionário de moedas de troca pelo presidente. Essa não é uma opção moral do governante. É uma necessidade para que o jogo político alcance funcionalidade em um ambiente em que o partido do presidente não desfruta de maioria legislativa. Governos e sociedades que negam esse imperativo pagam custos mais altos de governabilidade.
Regimes parlamentaristas costumam ter partidos fortes, ideológicos e programáticos, capazes de ofertar suporte legislativo estável a um governo em troca da alocação de ministérios e outros espaços de poder a parceiros que façam parte da coalizão de governo.
Já presidencialismos multipartidários, como o brasileiro, não possuem partidos políticos programáticos. Aqui os partidos são ideologicamente amorfos. Os acordos na construção de maiorias legislativas não se dão em torno de princípios, ideologias ou agendas de políticas universais. Se dão em troca de acesso a poderes e recursos orçamentários necessários à implementação de políticas locais com a digital do parlamentar, que são cruciais para a sua sobrevivência eleitoral em um ambiente altamente competitivo.
Esse jogo causa pruridos morais a muitas pessoas no Brasil. Elas querem um sistema político que não possuem. Elas idealizam um sistema político asséptico que não existe. Sempre se lamentam, como se a grama do vizinho fosse mais verde que a sua.
Gerou perplexidade a informação de que o governo Bolsonaro estava fazendo uso de um suposto “orçamento secreto”, travestido da rubrica de “emendas de relator” (Rp 9), em troca de apoio no Congresso. Ao contrário das outras emendas (individuais, de bancada e de comissão), que teriam regras específicas quanto ao número, valores, destino e teria a sua execução obrigatória, as emendas de relator seriam distribuídas de forma sigilosa, conforme a conveniência política do governo e seu destino seria informalmente indicado pelo parlamentar.
A alocação de recurso proveniente de emendas sempre foi distribuída de forma desigual entre parlamentares. Existe ampla evidência na ciência política brasileira que mostra que o parlamentar que se comporta de forma congruente aos interesses do Executivo apresenta maiores chances de ver suas emendas executadas. Desta forma, não existe inovação do governo Bolsonaro em premiar desproporcionalmente aliados. O grande problema dessas emendas Rp 9 é que sua alocação e execução estão fora do alcance da sociedade e de órgãos de controle como o MP, TCU e CGU, dando margem a comportamentos desviantes, como o esquema de compra de tratores supostamente superfaturados, conhecido como “tratoraço da Codevasf”.
Mesmo que o presidencialismo multipartidário não possa prescindir de moedas de troca, isso não significa que elas tenham que ser ilegais ou dar margem a ilegalidades.
A execução impositiva das emendas individuais e coletivas, surgida a partir de erros sucessivos na gerência de coalizões, especialmente nos governos Dilma e Bolsonaro, fez com que o Executivo perdesse liquidez nas trocas políticas. Ficou restrito fundamentalmente a moedas menos flexíveis, como ministérios e cargos na burocracia. Era esperado, portanto, que o mercado político, cedo ou tarde, encontrasse novas moedas que destravassem as relações entre Executivo e Legislativo.
O jogo de Bolsonaro com o Legislativo fica ainda mais difícil porque, além de ter demorado para montar uma coalizão minoritária, o fez em condições de fragilidade. Ele perdeu o que tinha (discricionariedade na execução das emendas) e não quer gastar o que ainda tem, já que tem preferido alocar ministérios a quem não faz parte da coalizão ou quem não tem assento e nem voto no Congresso, como os amigos militares.
*Cientista Político e Professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE), Rio de Janeiro
Fonte:
O Estado de S. Paulo
Oscar Vilhena Vieira: A exceção como regra
Ao nomear como “Exceptis” a operação que invadiu a comunidade de Jacarezinho, na capital fluminense, na última quita feira (6), o governo já deixava claro que a lei não condicionaria a ação dos seus agentes, antecipando o que se converteu numa das maiores chacinas no do Estado do Rio de Janeiro nas últimas décadas.
O fato é que o ideal civilizatório de que todas as pessoas e, em especial, os agentes públicos (civis e militares) devem pautar as suas condutas pela legalidade jamais se consolidou no Brasil. Certamente, os dois regimes de exceção, fundados na ruptura da ordem constitucional, exercidos por meio do arbítrio e coroados pela impunidade daqueles que cometeram crimes contra a humanidade, não contribuíram para fortalecer, em nossa acidentada história republicana, a noção básica de império da lei.
A incompletude do estado de direito no Brasil transcende, porém, os regimes propriamente autoritários. A profunda e persistente desigualdade, o racismo estrutural e a forte hierarquização social têm se demonstrado obstáculos intransponíveis para que todas as pessoas sejam reconhecidas como sujeitos de direitos e, portanto, tratadas como igual respeito e consideração.
O que a imagem de corpos sempre pretos ensanguentados a cada nova chacina reforça é a realidade bruta de que a lei, nessas plagas, não é para todos. Que no Jacarezinho e nas demais periferias sociais brasileiras vigora um permanente estado de exceção. Que a “ordem” é determinada pelo arbítrio das milícias, do tráfego e, quando necessário, pelo arbítrio dos agentes do Estado.
Mais de três décadas de democracia não foram suficientes para pôr fim a um regime de exceção permanente que se impõe à grande parte da população. A perda de mais de 1 milhão de vidas, vitimadas por homicídios neste período, e a crueldade das experiências de comunidades dilaceradas pela violência, não foram suficientes para que governos democráticos levassem a cabo um plano de reformas das instituições de aplicação da lei, voltado a expandir o Estado de direito para todos os brasileiros.
Os poucos líderes que se propuseram modernizar as policias e o sistema de segurança e aplicação da lei criminal sucumbiram à resistência de interesses corporativos ilegítimos e políticos irresponsáveis, quando não coniventes ou mesmo beneficiários da deterioração do sistema de justiça criminal. O medo do crime abriu um amplo mercado para milícias e poder para maus policiais. Também rende votos para aqueles que oferecem uma solução rápida, fácil, mas, no entanto, incapaz de reduzir a criminalidade.
As políticas do “bandido bom é bandido morto”, da “Rota na rua”, dos “direitos humanos para humanos direitos” e de “armar o cidadão de bem”, que prevaleceram no Brasil nas últimas décadas, com amplo apoio da direita —como fez questão de deixar claro o general Mourão, ao legitimar a operação “Exceptis”— redundaram num retumbante fracasso. Com raras exceções, a constrangedora omissão de liberais e incompetência da esquerda também contribuíram para o fiasco na segurança pública.
A eleição de Bolsonaro e aliados armados, paradoxalmente, premiou justamente aqueles que mais têm contribuído para que a população se encontre refém da criminalidade e da violência de Estado.
A operação “Exceptis” não apenas afronta o Supremo Tribunal Federal, que impediu a realização de operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia, mas também deixa clara a indisposição de determinados setores do Estado brasileiro de se submeter ao império da lei.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2021/05/a-excecao-como-regra.shtml
Paulo Fábio Dantas Neto: Ciência e política, cem anos depois de Weber
O tema de hoje pode não interessar a muita gente. É provável que pessoas desistam de ler ou ouvir quando virem o “arriar das malas”. Além disso, eu já tratei dele aqui, de um outro modo, há dois meses, na coluna intitulada “Ciência e política, amantes do possível”. Desejava, então, enfatizar a inclinação prudencial ao realismo, comum às duas profissões. Hoje quero tratar é de possibilidades contemporâneas de cooperação entre as duas. Sei que é coisa árida. Desculpem, mas o Bahia perdeu um jogo importante. Hoje, qualquer tema, aos meus cuidados, ficaria árido.
Há pouco mais de um século, o intelectual alemão Max Weber proferiu duas conferências – “A ciência como vocação” (1917) e “A política como vocação” (1919), ensaios escritos separadamente, que, tomados em conjunto, sugeriram, a estudiosos das ciências sociais e das humanidades, um ponto nobre de reflexão. Embora enfrentado por Weber sob impacto dos desafios concretos da Europa daquela época, o tema dos vínculos entre ciência e política transcendeu aquele contexto. Nunca deixou de se destacar entre temas clássicos que conservam crucial atualidade, tanto para iniciados naqueles campos de estudos acadêmicos, como para governantes e cidadãos de todo o mundo. No contexto de uma pandemia, que põe todo o mundo entre parênteses, ele se renova e adquire uma relevância desconcertante.
Tudo bem, o par ciência/política é atual e relevante como tema. Mas qual o sentido de revisitar, especificamente, aquela memorável reflexão de Weber? O mundo não terá mudado bastante – e com ele as ciências e políticas plurais que nele se pratica – de modo tal que o ponto de Weber hoje pertence mais à história das ideias, deixando de ser relevante para a política em ato? Enfim, qualquer comentário sobre aquelas conferências pode parecer uma visita à História e à Filosofia Política talvez um pouco diletante para quem faz um esforço para compreender e opinar sobre a política de hoje e suas conexões atuais com a ciência.
Mantenho, intuitivamente, a crença na potência e atualidade da luz imanente às duas reflexões de Weber. Através delas pode-se ver ciência e política como campos distintos, mas não opostos, porque suas distinções não impedem – e sim sugerem – convergência e conciliação entre elas. Embora em alguns lugares, como em nosso país, uma política insana use um senso comum desesperado e infeliz para tentar desafiar o óbvio, a complementaridade e interdependência forte entre ciência e política hoje reforçam e conectam o ponto de Weber ao mundo real.
Como comentei no texto de março, em ambos os trabalhos, Weber chama de vocação a dedicação a uma profissão. E trata da tensão própria presente na adoção dessa atitude dedicada. De um lado, aceitação realista de um condicionamento social; de outro, aposta do sujeito individual numa possibilidade de ação com sentido de valor.
Prossigo me repetindo: a condição social é sempre o desencantado mundo moderno, fruto de um processo de racionalização de meios para o atingimento de fins. Já a possibilidade que se apresenta à pessoa vocacionada de cultivar valores através de uma profissão é a de escolher um modo de agir que conecte meio e fim a uma “causa”. A ciência e a política, tal como vistas por Weber, são (ou ainda podiam ser, há cem anos) espaços de ação por mobilização de valores, desde que no exercício dessas vocações a pessoa não se rebele contra o que há de inexorável na racionalização que também afeta as duas atividades.
Agora, repito coisas que disse em março, mas desdobro-as e vou além. Fato social e ato individual são facas com dois gumes. A racionalização é esquina entre emancipação e instrumentalização (é racional buscar direitos ou privilégios). Se a esquina for dobrada exacerbando instrumentalização, há redução e amesquinhamento da razão, que virtualmente chega à fronteira com a perversidade. Já a decisão do ator é, por vezes, tomada em esquinas entre autonomia (faço livremente o que posso querer) e despotismo (faço o que quero). Em contextos críticos, como o que vivemos com a pandemia, essas esquinas viraram mobília em nossos cercados. Quando eticamente animada, a razão gera decisões pelas quais readquire amplitude e grandeza. Mas corre risco de se tornar intolerante e dogmática, inspirando atitudes voluntaristas que paradoxalmente levam ao irracional ou, ao menos, à irrazoabilidade. Por exemplo, ficar em casa é racional, expor-se ao vírus por escolha não é. Mas acusar de irresponsável quem é obrigado a sair de casa, sem considerar o contexto dessa pessoa, é usar uma razão – licença aqui para lembrar Leandro Konder – quase enlouquecida.
Na ciência e na política persiste um dilema. O sujeito que pratica uma ou outra vive entre a resignação a uma estabilidade que pode parecer medíocre e depressiva (apego ideológico a uma verdade em matéria de ciência e a uma opinião fixa em matéria de política) e uma insegurança ansiosa diante do imprevisível. Esse dilema, em outras áreas de atividade humana, já foi resolvido em favor da chamada razão instrumental. Vale o objetivo. Se na ciência e na política o dilema entre o que pode e o que deve ser ainda existe, então o ponto de Weber, sobre as vocações, exposto nos textos das duas conferências, segue relevante. A pessoa que adota ciência ou política como vocação não escapa da condição de mover-se num fio de navalha.
Essas são balizas para ver diferenças e até contrastes entre as vocações da ciência e da política, sem criar abismo entre elas. Essa atitude permite especular que não é estranho um diálogo entre essas duas distintas vocações. Um diálogo que se tornou um imperativo civilizatório.
Weber salienta, na ciência, a influência “fora do comum” do acaso, que desafia qualquer valor. Um problema de ação coletiva, por exemplo, no corporativismo das seleções acadêmicas, que pode premiar arrivistas e medíocres. Seguindo seu raciocínio crítico podemos até nos espantar com o fato de haver tanto acertos como erros nessas seleções e não predomínio claro de erros.
O papel influente do acaso na ciência resultaria também de uma dupla exigência da carreira: ser cientista e professor. O critério da “sala cheia” condena a profissão aos ditames do acaso, do ponto de vista científico. Se de um lado a educação científica é uma “aristocracia espiritual”, de outro, a tarefa pedagógica mais difícil – e sem a qual o êxito na missão formativa não é pleno – é saber expor problemas científicos de um modo suficientemente claro para serem apreendidos por espíritos não preparados, embora bem dotados. Isto é um dom pessoal que não se confunde com os conhecimentos detidos pela pessoa. Só por coincidência reúnem-se, numa só pessoa, as duas aptidões. Por interpretação não autorizada do argumento do autor pode-se argumentar que, se queremos combinar ensino e pesquisa, resta apostar em instituições, mais que em compromissos ou talentos de indivíduos. Se reencarnado em nossa época, o espírito de Ortega Y Gasset certamente acharia que era feliz e não sabia, na sua encarnação anterior quando lamentava, antes de Weber, a ascensão dos “homens sem mister”.
Vamos para a política. É célebre a definição weberiana do Estado moderno. Prestemos atenção nela: “Instituto político de atividade contínua, cujo quadro administrativo mantém, com êxito, a pretensão de monopólio legítimo da coação para a ordem”. Prestemos atenção porque o caráter monopólico do poder estatal (que é geralmente lembrado) é tão relevante como o de ser um instituto racional e um empreendimento contínuo, coisa nem sempre valorizada. É a organização burocrática do estado moderno que controla os governantes que, por sua vez, para dirigirem o estado, expropriaram, lá atrás, na História, o poder de poderosos pré-políticos, senhores oligarcas e mandões de todo tipo. Assim, burocratas da política organizam a política como poder continuo, graças ao caráter compulsório da organização do Estado.
Importa tanto a história dessa profissionalização, quanto a de modos economicamente distintos, mas simultâneos, de praticar a política como vocação. Riqueza, por exemplo, segue valendo como atributos de políticos profissionais. Mas não é empecilho à profissionalização específica dos políticos, nem à difusão de novos modos de acesso de pessoas sem propriedade à liderança política, nem ao aperfeiçoamento do mercado de recompensas. Os cargos seguem sendo a forma mais moderna de prebenda e, por isso, a expressão mais ativa da luta dos partidos. Passado o intervalo totalitário vivido no coração da Europa há 80 anos essas difusões voltam a revelar os laços mundanos da democracia. Assim como na ciência, cientistas e professores complementam-se em instituições, para combinar grande e pequena política é preciso apostar em instituições mais que na qualidade individual, ou das elites dirigentes.
Voltemos, com Weber, à ciência. Nas condições “modernas”, a valorização na profissão científica “propriamente dita” está condicionada à especialização. Somente trabalhos de especialistas podem almejar valorização própria no mundo da ciência. Logo, quem não for capaz de usar antolhos e adotar uma exata e determinada ideia como sua razão de vida e salvação da alma deve ficar longe da profissão. Também por interpretação não autorizada, é possível dizer que o que hoje chamamos de multidisciplinaridade só pode se realizar com êxito por articulação de diferentes especialistas, no âmbito de uma instituição. Para propiciar êxito ao cientista individual, a multidisciplinaridade precisaria, ela própria, converter-se em disciplina especializada, reiterando a regra e renunciando à sua pretensão inovadora original.
Agora, de volta à política, mais uma vez. Nada mais atual do que a rejeição social da “política dos cargos”, mesmo da parte de quem não vê relação entre burocracia e integridade. A história da luta entre políticos destacados e funcionários administrativos é antiga e é luta por poder. São antigas também e em ziguezague as coalizões entre funcionários especializados e algum dos poderes diretamente políticos, na maioria das vezes com o Executivo, em menos vezes com o Legislativo. Assim se forma a experiência governamental de um país.
Mas esse campo da experiência está longe de se resumir a tradições e outras balizas historicamente assentadas. O treinamento na luta, de que nos fala Weber, é processo contínuo. Em cada contexto valem como balizas para a ação política tanto fatores (instituições, partidos, lideranças, teorias e práticas) já considerados pelo conhecimento da história, longínqua e recente, de cada lugar, como também fatores casuais, ou mesmo inéditos. Alguns irão se tornar longevas e com isso serão também incorporados a tradições. Outros vão se esgotar ali, naquele momento. Mas nada impede que esses efêmeros sejam mais decisivos num contexto crítico.
Vivemos num país que está passando de uma forma muito severa por essa lição sobre a efetividade do que Wanderley Guilherme dos Santos chamou de “mão invisível do caos”. Ela, essa mão invisível, é que pode, como não-razão que é, levar uma boa razão a se deixar enlouquecer pela pretensão de amputá-la. Numa busca dessa, antecipadamente fracassada, os super-racionais podem julgar inúteis as reflexões realistas de Weber, que nos lembra de que a distinção entre funcionários administrativos e funcionários políticos não é essencial. Nela não há o bem, nem o mal. Ela é uma implicação do treinamento na luta pelo poder.
A possibilidade, que hoje temos, de recorrer com êxito a funcionários da ciência como formuladores de políticas públicas é um recurso prudente quando a lógica da política in natura torna-se refém da face mais negativa do carisma. O ponto que Weber nos traz induz a celebrar como providencial a dependência recíproca entre política e ciência. É essa uma das âncoras práticas a partir da qual uma atitude política prudencial de novo tipo pode se amparar para conter a força recente que a atitude voluntarista adquiriu em nossas democracias.
A moderna organização dirigida por políticos profissionais pode retornar – e tem retornado – a viver nos parlamentos. Poderosas máquinas burocráticas seguem derivando da democracia e do voto de massas, mas deixam de subordinar parlamentares porque eles e os políticos profissionais deixaram de ser coisas diferentes. O papel relevante, político e eleitoral, da liderança democrática volta a mostrar que a prudência é uma face possível do carisma.
Chegamos à última estação da viagem a Weber. Trata-se das éticas da ciência e da política e aqui retorno, uma vez mais, à coluna de março. Nada poderia dizer sobre isso, nem em março nem agora, que substituísse as palavras do próprio. (…) toda obra científica “acabada” não tem outro sentido senão o de fazer surgir novas indagações. Portanto, ela pede que seja ‘ultrapassada’ e envelheça. Todo aquele que pretenda servir à ciência deve resignar-se a esse destino”
Por que ser cientista, se a produção é condenada ao envelhecimento? Weber evoca Tolstói, para dizer que perguntas sobre os sentidos da morte e da vida passaram a defrontar-se com a ideia moderna de progresso (ninguém mais morre “pleno de vida”). A mórbida realidade da nossa hora renova o sentido dessa vocação.
Agora sobre a ética da política, volto a citar: “A impossibilidade de uma ética única, extensiva à política, é tão real quanto a falsidade da afirmação de que a ética da política não possui nexos com qualquer outra ética”. As indicações para quem pretende vocacionar-se à política dirigem-se a uma determinada ética da responsabilidade, contraposta à ética das convicções, própria da fé dogmática. É muito vivo o contraste entre as duas orientações. Enquanto a da convicção sobre os últimos fins faz quem a segue julgar-se distinto da estupidez e da mesquinhez do mundo, a da responsabilidade manda dizer: “Eis-me aqui. Não posso fazer de outro modo”. Daí ser impossível agora, como em março, ignorar o parágrafo final de “A política como vocação”:
“A política é como a perfuração lenta de tábuas duras (…) somente quem tem a vocação da política terá certeza de não desmoronar quando o mundo, do seu ponto de vista, for demasiado estúpido e mesquinho para o que ele lhe deseja oferecer. Somente quem, frente a tudo isso, pode dizer “apesar de tudo!” tem a vocação para a política”
Quem acha – e também comentei isso na coluna de março – que essa oposição radical entre duas éticas que separam o político por vocação do apóstolo de uma fé serve também para distinguir a política da ciência surpreende-se ao não encontrar esse contraponto em “A ciência como vocação”. Se a ética da responsabilidade compete claramente ao político por vocação, não se constata, no texto sobre a ciência uma correspondência entre o profissional da ciência e a ética da convicção. A ambiguidade ética intrínseca à vida política infiltra-se no agir científico, impondo também ao cientista uma “negociação com demônios”. Sua ética também precisa ir além das suas convicções. Talvez não tanto quanto a da política – ou de modo diferente dela – a ética da ciência contrasta a fé dogmática.
Os valores perseguidos por uma e outra vocação são distintos. A verdade na ciência e a legitimidade na política não podem ser alcançadas através de idêntica conduta. Um político não produz ciência, nem se resolve no professor. Mas a distinção não impede a cooperação.
O carisma é a fonte da legitimidade propriamente política e como a política, é ambíguo. Pode conciliar os valores que defende com as regras que limitam sua ação e se for assim atua como energia revigoradora. Mas pode também mobilizar afetos para ameaçar essas próprias regras e nesse caso ser energia destruidora.
Na política, exortação à intervenção revitalizadora do carisma; na ciência, a pregação de uma paixão pela rotina. A paixão que leva à dedicação profissional a uma causa é um elo comum entre as distintas dinâmicas da ciência e da política no mundo moderno. Elo que permite a vocação ser cumprida com sentido crítico e inovador. Liame ético que, em vez de estagnar o sujeito em suas convicções, orienta-o a agir com responsabilidade, fazendo seus valores pessoais dialogarem com os limites institucionais e culturais da sua respectiva vocação.
Espero ter argumentado que quando comparamos, hoje, ciência e política, estamos, mais ainda do que há cem anos, diante de uma cooperação possível, que é exigência social da vida prática.
*Cientista político e professor da UFBA
Fonte:
Democracia Política e novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/05/paulo-fabio-dantas-neto-ciencia-e.html
Luiz Carlos Azedo: Lula, ser ou não ser
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva cogita não disputar a Presidência da República e participar da chapa do PT como vice, repetindo o estratagema peronista que elegeu o presidente Alberto Fernández na Argentina, tendo a ex-presidente Cristina Kirchner como vice. Nesse caso, o nome mais cotado para encabeçar a chapa seria o do jovem governador do Ceará, Camilo Santana, um engenheiro agrônomo que governa o estado desde 2014 e foi reeleito com facilidade. Supostamente, o acordo permitiria uma reaproximação com Ciro Gomes, cuja candidatura pelo PDT virou uma pedra no sapato de Lula, e também com o senador tucano Tasso Jereissati (PSDB-CE).
O assunto está sendo discutido pelo círculo mais próximo de aliados de Lula e já divide a cúpula petista. O ex-presidente tem revelado preocupação com o desgaste causado pela Operação Lava-Jato e pelo fato de que ainda está numa posição vulnerável, porque suas condenações foram anuladas, mas ainda não foi absolvido. Seu processo será retomado na Justiça Federal em Brasília, o que pode se tornar uma frente de erosão da sua candidatura. Além disso, está com 75 anos; caso fosse eleito, terminaria o mandato com 80 anos.
Para Lula, o mais importante é derrotar o presidente Jair Bolsonaro e garantir a volta do PT ao poder, não necessariamente, voltar a ser o presidente da República. Seus aliados mais próximos dizem que essa obsessão Lula não tem; se a tivesse, não teria apoiado a reeleição de Dilma Rousseff, embora, hoje, ele próprio admita que talvez tenha sido um grave erro. Outros petistas que poderiam encabeçar a chapa são o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad e o governador da Bahia, Rui Costa. Entretanto, segundo os defensores da candidatura de Lula a qualquer preço, ambos queimaram a largada quando o petista estava inelegível. Essa discussão, inclusive, teria desgastado a relação do senador Jaques Wagner (PT-BA), ex-governador da Bahia, com seu velho amigo Lula.
No entanto, Lula se movimenta para retirar o PT do isolamento e construir uma ampla base de alianças em nível nacional, procurando antigos aliados regionais. Na terça-feira, reuniu-se com os dirigentes do partido no Rio de Janeiro para discutir o apoio à candidatura do deputado federal Marcelo Freixo (PSol) ao governo fluminense, numa aliança que incluiria o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (DEM), e o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, que sempre teve boas relações com o PT. Maia está de malas prontas para deixar o DEM. O que pode inviabilizar essa aliança é a renúncia do atual governador, Claudio Castro(PSC), que não pretende disputar a reeleição. Nesse caso, o presidente da Assembleia Legislativa fluminense, André Siciliano (PT), picado pela mosca azul, assumiria o governo e disputaria a reeleição. Para Lula, o Rio de Janeiro é considerado decisivo para a derrota de Bolsonaro, pois foi um dos estados que lhe garantiram a eleição em 2018.
O outro estado considerado estratégico por Lula é Minas Gerais, onde o PT busca uma aliança com o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, tendo o ex- governador Fernando Pimentel no comando das articulações, a partir de suas relações com o ex-deputado Adalclever Lopes (MDB), secretário de Governo da Prefeitura de Belo Horizonte e ex-presidente da Assembleia Legislativa mineira, durante seu governo. A chave da aliança com o PSD, porém, é o apoio do ex-prefeito de São Paulo Gilberto Kassab. Para isso, o PT estaria disposto a apoiar a candidatura de Kalil ao governo de Minas ou mesmo lhe oferecer a vaga de vice-presidente, caso Lula seja mesmo o postulante do PT.
Cerco a Doria
Enquanto Lula alimenta sua dúvida hamletiana — ser ou não ser, eis a questão —, a candidatura do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), sofre um cerco dentro do partido. Ontem, o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio anunciou que pretende disputar as prévias da legenda, previstas para outubro. Na semana passada, foi o senador Tasso Jereissati, ex-governador do Ceará, que anunciou a mesma intenção. Enquanto isso, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, o primeiro a anunciar o desejo de disputar a vaga de candidato à Presidência do PSDB, ao se reunir com o presidente do Cidadania, Roberto Freire, e com o deputado Daniel Coelho (Cidadania-PE), começa a costear o alambrado, como dizem os gaúchos, para deixar a legenda e concorrer por outro partido.
Elio Gaspari: O caos de Bolsonaro
No Brasil, ao padecimento sanitário juntou-se um governo negacionista e caótico
Outro dia, o capitão perguntou:
— O que eu me preparo?
E respondeu:
— Não vou entrar em detalhes, um caos no Brasil.
Em março do ano passado, Bolsonaro reclamava da “histeria” diante do vírus, levantava o estandarte do Apocalipse, com uma frase que explica seu comportamento diante da pandemia:
— Vai ter um caos muito maior se a economia afundar. Se a economia afundar, afunda o Brasil. (...) Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo.
Entre as duas referências de Bolsonaro ao caos, morreram perto de 400 mil pessoas, e a população aguentou o tranco com sofrimento e paciência.
Todos os povos e governos sofrem com a pandemia. No Brasil, ao padecimento sanitário juntou-se um governo negacionista e caótico. Fritou três ministros da Saúde, combateu o distanciamento, menosprezou as máscaras e enalteceu as virtudes da cloroquina.
Uma coisa é um governo que se acautela diante do risco de um caos. (Nesse caso, os detalhes são bem-vindos.) Bem outra é apreciar o caos, até mesmo desejando-o.
Em apenas uma semana, o governo de Bolsonaro produziu alguns episódios sinalizadores de um governo que, até mesmo por inépcia, patrocina o caos.
O programa Pátria Solidária, aninhado no Palácio do Planalto com o objetivo de recolher doações para enfrentar a pandemia, gastou R$ 9,6 milhões para fazer propaganda de si e arrecadou R$ 5,89 milhões.
A Secretaria de Comunicação do Planalto não comentou a discrepância. Até há bem pouco tempo, ela era dirigida pelo doutor Fabio Wajngarten. Ele acabara de dar uma entrevista contando que, em setembro, tentou apresentar ao Ministério da Saúde uma proposta do laboratório Pfizer. Já haviam morrido 123 mil pessoas:
— Se o contrato da Pfizer tivesse sido assinado em setembro ou outubro, as vacinas teriam chegado no fim do ano passado. (...) Incompetência e ineficiência.
Dias depois, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello foi fotografado num shopping center de Manaus sem máscara, fazendo piada com a transgressão:
— Onde se compra isso?
O general estava nas redes, e seu sucessor, Marcelo Queiroga, de máscara, contava que faltavam vacinas para a segunda dose em alguns estados porque eles seguiram a recomendação do ministério de avançar sobre os estoques.
Bolsonaro sonhava com crises antes mesmo da pandemia. Com ela, transmutou-se num São Jorge cavalgando o cavalo branco para matar o dragão e salvar a princesa. Ela está lá, de máscara, e o dragão não apareceu. Os desconfortos que afligem o governo decorrem da armadura desconjuntada do Santo Guerreiro, de sua lança torta e de uma sela visivelmente desconfortável.
A marquetagem do Pátria Solidária, as revelações de Wajngarten, a conduta de Pazuello e a falta de vacinas refletem um caos que está no governo, não vem de fora dele.
A Subchefia de Articulação e Monitoramento da Casa Civil de Bolsonaro encaminhou a 13 ministérios uma pauta de 23 perguntas que poderão aparecer na CPI da Covid, pedindo pronta resposta.
Lê-las é um passeio pelo caos da desarticulação e da falta de gestão do governo. Algum membro da CPI bem que poderia devolvê-las, perguntando por que a curiosidade só surgiu agora.
Nas próximas quatro quartas-feiras, o signatário usufruirá o isolamento e o ócio, sempre pesquisando as virtudes da cloroquina.