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João Gabriel de Lima: Um país com três desastres aéreos por dia

É fundamental que o Brasil da inteligência suplante o Brasil da ignorância

A tragédia brasileira na gestão da pandemia atingiu, nesta semana, um número macabro: 250 mil mortes. Enterramos o equivalente a três Maracanãs lotados. Tal cifra poderia ser evitada? Há meses a ciência diz que só há duas maneiras de controlar uma pandemia: vacinação em massa (que, infelizmente, vai demorar) ou isolamento social. Em Portugal, onde vivo, o auge do coronavírus foi em meados de janeiro. O país tinha os piores números da Europa – 300 mortes por dia e risco de colapso da saúde pública. O governo decretou quarentena. Na quinta-feira 25, foram registradas 49 mortes – a ciência funciona. Na mesma data, o Brasil contabilizou 1.582 óbitos, o equivalente às vítimas três desastres aéreos num único dia. 

A tragédia brasileira, no entanto, poderia ser ainda pior. Em artigo publicado no Estadão, o economista Pedro Nery lembrou que o México, governado por uma esquerda negacionista, apresenta uma taxa de 1.400 óbitos por covid por milhão de habitante, a maior da América Latina. Segundo estudos citados por Nery, uma das razões do desastre mexicano é a inexistência de algo equivalente a um auxílio emergencial. Os mexicanos vulneráveis foram obrigados a sair de casa para batalhar o sustento, expondo-se ao vírus mortal. 

O Executivo brasileiro também é negacionista, mas o Congresso, com o apoio de 163 organizações da sociedade civil – em movimento registrado nesta coluna – colocou de pé o auxílio emergencial. O benefício permitiu que vários cidadãos brasileiros se protegessem do vírus ficando em casa. 

A proeza mostra o impacto de curto prazo de uma política pública bem desenhada. No longo prazo, o impacto pode ser muito maior. O mesmo México que reagiu tão mal à pandemia foi, no passado, referência em transferência de renda. Estudos mostram que o programa Prospera gerou oportunidades para uma geração inteira, livrando-a da indigência. Criadas na mesma época, políticas brasileiras similares, implantadas nos governos Fernando Henrique e Lula, começam a despertar o interesse dos acadêmicos. 

Os novos estudos sobre programas de transferência de renda no Brasil miram justamente os efeitos de longo prazo. O economista Naercio Menezes, professor do Insper e personagem do mini-podcast da semana, defende uma reforma do Bolsa Família que privilegie famílias com crianças de zero a seis anos. Segundo suas contas, o uso de instrumentos já existentes – o cadastro e o aplicativo – permitirão otimizar os recursos do benefício. Sem rombo no orçamento público, famílias brasileiras poderão receber até R$ 800 por criança pequena, garantindo o desenvolvimento delas – e seu futuro – na fase mais crítica.

Os estudos de Naercio e outros especialistas já municiam congressistas brasileiros, como a senadora Eliziane Gama, do Cidadania. Os projetos de transferência de renda da deputada Tabata Amaral (PDT) e do senador Tasso Jereissati (PSDB) têm igualmente a virtude de olhar para o futuro.  

Confirma-se mais uma vez o clichê dos “dois brasis”. Um é o do populismo e do descaso, responsável pela tragédia da pandemia. O outro é o da universidade cheia de boas ideias e dos gestores capazes de implantá-las – a ponto de alguns de nossos programas sociais tornarem-se referência internacional. É fundamental que o Brasil da inteligência suplante o Brasil da ignorância. A alternativa é enterrar, todos os dias, o equivalente às vítimas de três desastres aéreos. 


Sérgio Augusto: Vacinas, valores e velórios

Não teríamos mais do que 8 mil óbitos até o fim da pandemia, mas atingimos a marca de 250 mil

Já estava me preparando para ser vacinado quando as vacinas acabaram. Foi aí que descobrimos que, na estupefaciente gestão do general Placebo no Ministério da Saúde, a vacinação é regida por dois calendários, como o tempo já foi em priscas eras. Pelo calendário juliano, quando há vacinas disponíveis, e pelo calendário gregoriano, quando elas acabam e ainda não têm data para chegar. Daí a máxima romana “sine vaccinus, sine die”, cunhada antes da invenção da primeira vacina. 

E assim as vacinações no Rio foram jogadas para as calendas. Ainda bem que para as calendas romanas, não para as gregas. Será que nas calendas de março saberemos quando, pelo calendário gregoriano, levaremos nossa redentora picada? 

Pior do que essa espera, possivelmente passageira, e as justificadas incertezas relativas à segunda dose foi tomar conhecimento das descaradas mentiras sobre a performance de Bolsonaro durante a pandemia que a ministra Damares e o chanceler Ernesto Araújo tentaram vender na ONU. Ficaram só na tentativa porque ninguém lá fora acredita mais em nada que diga, faça ou prometa fazer de bom o ogro que nos governa, exaspera, envergonha, e concentrou no extermínio seu mais eficaz programa de corte de gastos na Previdência. 

Não menos desalentadora foi a constatação de que a Bolsa de Valores se sensibiliza muito mais com uma troca no comando da Petrobrás pelo presidente da República que seus investidores ajudaram a eleger do que com as ininterruptas e recordistas altas na contagem de mortos e infectados pela covid, no País. Não teríamos mais do que 8 mil óbitos até o fim da pandemia, basofiou o capitão negacionista em abril do ano passado. Atingimos a marca de 250 mil mortos esta semana; 50 mil só nos últimos 48 dias – e vacinamos apenas 3% da população.

Se alguma coisa o presidente sabe fazer, e bem, é mentir e tirar o dele da reta. “Não sou coveiro”; “Não sou profeta”; “Não compro seringas”. Pilatos ao menos lavava as mãos. O capitão nem sequer usa máscara.

A fulminante queima de ações da BR também veio corroborar a teoria de que a matança em curso, se não faz parte de um maquiavélico projeto político e econômico do bolsonarismo, como a aniquilação da cultura e da educação, desmoralizou em definitivo o chavão de que “as nossas instituições estão funcionando”. Se estivessem, ou pelo menos o STF estivesse, a pleno vapor, o nosso Napoleão de hospício já estaria na ilha de Elba da nossa imaginação. 

Verdade que o ministro Alexandre de Moraes se tem comportado com o destemor que seu cargo exige, mas Dias Toffoli, Luiz Fux e Gilmar Mendes, conforme salientou na terça-feira o comentarista político Bernardo de Mello e Franco, facilitaram o serviço para a chicana que culminou com a anulação das quebras de sigilo bancário e fiscal de Flávio Bolsonaro, no inquérito das rachadinhas. Toffoli e Fux travaram a investigação por cinco meses, e Mendes abriu a gaiola para Fabrício Queiroz, o factótum da familícia. 

Comprado o Legislativo, cooptadas e neutralizadas as Forças Armadas mediante cargos, subsídios, promessas, leite condensado e claque em formaturas de cadetes, pergunto: quais instituições ainda funcionam normalmente nestas bandas? 

Por encarnar e afiançar a “ultima ratio” de qualquer país que as possua, as Forças Armadas (sim, mais de dez nações sobrevivem sem o seu concurso) deveriam preservar-se de aventuras como foram os golpes de que participaram desde a Proclamação da República. O que pretendia impedir a posse de Juscelino Kubitschek, em 1955, foi só uma (ou a) exceção à regra justamente porque um oficial do Exército, o marechal Henrique Teixeira Lott, e sua excalibur da legalidade melaram a tempo a conjura udenista. 

Quando vejo, leio ou ouço alguém lamentar a escassez ou mesmo ausência, hoje, de políticos e outros figurões civis de alto nível, sempre me vem à lembrança a figura do marechal. Com ele, nenhum golpista tirava farofa. Que reação lhe provocaria um confesso autogolpista como Bolsonaro? Que atitude teria face à fascistoide ameaça do general Villas-Boas ao STF, em abril de 2018? 

O ator, humorista e cronista Gregório Duvivier desenvolveu uma tese que, em outras cabeças, inclusive na minha, já andou caraminholando. Ao contrário do que se pensa, o presidente não protege e prestigia além da conta os seus ex-colegas de farda, notadamente os da arma em que fez carreira, o Exército, mas, na verdade, os rebaixa e desmoraliza. Ao lhes dar emprego e funções que exigem especial capacitação, expõe-lhes a incompetência e engorda as desconfianças de que suas nomeações são menos frutos de uma ineludível promiscuidade corporativista do que das limitações sociais impostas pela vida em caserna. Azar nosso se o capitão só se dá com milicos. 

Para Duvivier, Bolsonaro está se vingando do coronel que o humilhou, reprovando-o por sua “falta de lógica, racionalidade e equilíbrio”, de outro oficial que condenou sua “excessiva ambição em realizar-se financeiramente” e, acrescento eu, do general Ernesto Geisel, que o considerava “um mau militar”. 

Não sei se concordo com a hipótese de que nem décadas de propaganda antimilitar da esquerda causaram mais estrago na imagem do Exército do que a sanha empregatícia do presidente, mas é possível que sim. Já a suspeita de que só agora, com meio século de atraso, o capitão cumpre uma missão que lhe teria sido delegada pelo capitão Carlos Lamarca, não é, como toda blague, para ser levada a sério. É para rir.

Ria, enquanto o golpe não vem. 

*É jornalista e escritor, autor de ‘Esse mundo é um pandeiro’


El País: Pandemia varre as pequenas cidades do interior levando dor e a busca desesperada por um leito de UTI

Com apenas 28.000 habitantes, Coromandel , no Triângulo Mineiro, registrou em fevereiro duas vezes mais mortes por covid-19 do que no ano passado todo, sobrecarregando leitos de internação de cidades vizinhas maiores. Cenário se repete pelo país, que já tem 17 capitais com UTIs superlotadas

Nilson Braz e Beatriz Jucá, El País

A enfermeira aposentada Luiza Telma da Silva, de 69 anos, sentiu a respiração pesar pela covid-19 justo quando sua cidade encontrava a fase mais dura da pandemia. Coromandel ―um município com pouco menos de 28.000 habitantes localizado no Triângulo Mineiro― registrou somente neste mês de fevereiro duas vezes mais mortes causadas pelo coronavírus do que no resto da pandemia toda: dez pessoas faleceram entre maio de 2020 e janeiro deste ano, enquanto o número de mortes somente nas três primeiras semanas de fevereiro de 2021 chegou a 23. Sem leitos de UTI, a cidade depende historicamente de transferência para outras cidades de referência, em um fluxo que ganhou maior complexidade durante a crise sanitária, quando as cidades maiores também começaram a colapsar. Em 10 de fevereiro, Telma amanheceu com dificuldade pra respirar. Sentia-se fraca, e seus familiares decidiram levá-la ao pronto-socorro. Ela foi então internada e passou a receber suporte ventilatório com oxigênio enquanto esperava por um leito de terapia intensiva. Não deu tempo. Acabou morrendo no mesmo dia, no hospital onde trabalhou durante 10 anos.

Até o fim de janeiro, a cidade do Triângulo Mineiro, contava 473 casos de covid-19. Três semanas depois, o número já era quase três vezes maior, com 1.274 casos. O crescimento acelerado levou o sistema de saúde local ao colapso, já que nem mesmo os leitos de enfermaria da cidade estavam sendo suficientes. Em média, cerca de seis pacientes são transferidos todos os dias a cidades maiores ―como Belo Horizonte, Uberaba, Uberlândia, Divinópolis e Montes Claros― para receber assistência. São desde casos mais graves até aqueles que precisam apenas de atenção especializada ou exames. O problema é que parte dessas cidades, como Uberlândia, por exemplo, também já chegou a um esgotamento em suas redes de saúde. Praticamente já não há mais leitos. Lá, 81 pessoas estão à espera de uma vaga de UTI em hospitais públicos e privados. O Governo de Minas Gerais precisou organizar uma força-tarefa para transferir os pacientes a cidades ainda mais distantes, como a capital Belo Horizonte, que fica a mais de 500 quilômetros de Coromandel.

agravamento da pandemia tem pressionado sistemas de saúde em várias regiões do país. Segundo dados da Fiocruz, publicados pela Folha de S.Paulo, 17 capitais já estão com ao menos 80% de seus leitos de UTI ocupados. Mas, diferentemente do que aconteceu no ápice da crise no ano passado ―que atingiu principalmente as capitais―, agora a interiorização da covid-19 tem levado também cidades médias e pequenas ao colapso. O problema já se repete em várias partes do país. No Rio Grande do Sul, a turística Gramado foi a primeira a identificar a presença da nova variante brasileira do coronavírus e está à beira do colapso. Com leitos hospitalares superlotados, as autoridades municipais colocaram até carro de som nas ruas para alertar sobre a necessidade de manter o distanciamento social. São várias as capitais brasileiras, em todas as regiões, que têm visto a demanda por hospitalizações crescer devido à covid-19. Fortaleza, Salvador e João Pessoa, por exemplo, aumentaram as restrições e determinaram toque de recolher.

Em São Paulo, a pandemia também tem se agravado. A capital bateu o recorde de internações em UTI desde o começo da crise sanitária e afirmou, na última quarta-feira, que se as taxas de internação continuarem a crescer na atual proporção, já não haverá leitos disponíveis no Estado no final do mês que vem. Na última segunda-feira (22), haviam 6.410 pacientes em leitos de terapia intensiva enquanto o recorde na primeira onda foi de 6.257 internados, em julho. Em cidades do interior, como Araraquara, Jaú e Valinhos, a situação também é crítica ―Jaú já tem casos confirmados da nova variante do coronavírus, potencialmente mais transmissível. A estratégia nestes locais tem sido utilizar UPAs (unidades de pronto-atendimento para casos mais leves) para estabilização de pacientes, solicitação de transferências ao Estado e a abertura de novos leitos. Mas com a demanda alta, as novas vagas também são ocupadas rapidamente.

Medidas mais restritivas para frear internações

Na porta do pronto socorro de Coromandel, o pequeno município do Triângulo Mineiro, tem se intensificado a movimentação de pessoas que chegam a esperar horas para tentar informações de seus familiares ou um fazer um aceno a eles antes da remoção para outras cidades. Sob um sol forte, no último fim de semana Daniela Machado Moreira aguardava a transferência da mãe, Maria Aparecida Machado da Silva, de 64 anos, que estava internada há mais de uma semana e seria levada para Uberaba. Daniela contou ao EL PAÍS que todo o atendimento na cidade está comprometido e que só conseguiu ter ideia da gravidade do caso da mãe depois de providenciar, pela rede particular, uma radiografia que apontou um comprometimento de 50% dos pulmões.

“Eles [os médicos] falaram que vão transferir só por segurança, porque lá tem mais condições de fazer mais exames. Mas a gente fica com o coração na mão, porque a gente sabe que essa doença é assim, na mesma hora que está bom, não está. É imprevisível”, afirma Daniela. Ela diz que a família tentava seguir com rigor os cuidados preventivos contra o coronavírus, especialmente porque Maria Aparecida é idosa, e Daniela está tratando um câncer. “Eu não moro com ela. Quando ela começou a ter sintomas, foi no dia da minha terceira [sessão de] quimioterapia. Depois que testou positivo ela ficou dentro de casa. A gente só chegava na varanda, levava comida, só de longe ou por chamada de vídeo”, conta. “Abraço e beijo desde que começou a pandemia a gente não está fazendo. Pensando em preservar ela, porque tem mais de 60 anos”.

Em Coromandel quase todo mundo se conhece, ainda que seja de vista. Por isso a dor da perda e a aflição pelas internações são sentidas por todos. Daniela amparava e era amparada pelos três filhos e pela neta de outros dois pacientes internados: o casal Maria das Dores Vieira Gonçalves, de 70 anos, e Célio Gonçalves, de 71. Só a esposa seria transferida naquele dia, para Belo Horizonte, porque estava dependendo muito do oxigênio e poderia ter o estado agravado. Maria das Dores ainda tomou o cuidado de pedir que não comunicassem o marido para não preocupá-lo. “Nesses casos que envolve saturação de oxigênio não se pode sentir muitas emoções. A gente nem queria que eles se encontrassem aqui no pronto-socorro. Eles têm uma ligação muito forte, são casados há mais de 50 anos”, contou o Célio Rodrigo Gonçalves, um dos filhos do casal, ainda emocionado pelo breve encontro com a mãe antes da transferência.

Maria das Dores e Maria Aparecida são duas das dez pessoas transferidas da cidade em 21 de fevereiro. Nove de Coromandel e uma de Monte Carmelo, cidade que fica a pouco mais de 50 quilômetros de distância, e que precisou da ajuda da cidade vizinha para transferir um paciente por não ter um aeroporto. Na semana passada, o prefeito de Monte Carmelo, Paulo Rocha, chegou a fazer um apelo nas redes sociais pedindo a doação de cilindros de oxigênio vazios, já que os equipamentos disponíveis já não dão conta. A cidade, de 48.000 habitantes, está com uma demanda pelo insumo 10 vezes maior por conta da pandemia, segundo o gestor. E também tem transferido pacientes a cidades como a vizinha Uberaba e a já distante Belo Horizonte pela falta de leitos. O cenário é dramático: o único hospital da cidade para o tratamento da covid-19 mantém a ocupação total dos 16 leitos de UTI que dispõe há cerca de um mês.

Coromandel limitou as atividades comerciais no dia 16 de fevereiro por conta do agravamento da pandemia. “Eu nunca vi isso aqui em Coromandel”, diz Sebastiana Joana da Costa, de 91 anos, pelas grades do portão da garagem de casa. Se a pandemia já vinha mudando a rotina da cidade há um ano, nas últimas semanas estas alterações ganharam novos contornos. Barreiras sanitárias foram posicionadas pela administração municipal nos quatro acessos à cidade. Ali, servidores da saúde e policiais militares param os veículos para aferir a temperatura dos motoristas e passageiros. Pessoas que apresentam febre são orientadas a procurar o pronto-socorro e as orientações como o uso da máscara e o distanciamento social são reforçadas. A situação da cidade motivou a visita do secretário estadual de saúde de Minas Gerais, Carlos Eduardo Amaral, que anunciou reforços de um médico intensivista, um infectologista, um enfermeiro, um técnico em enfermagem e um fisioterapeuta para auxiliar os profissionais locais.

Perto dali, uma cidade maior, Uberlândia, também sente forte pressão sobre seu sistema de saúde. No município de quase 700.000 habitantes, 81 pessoas aguardam na fila de espera por um leito de UTI. O assessor técnico da rede de urgência e emergência de Uberlândia, Clauber Lourenço, diz que, no ano passado, houve um pico de infecções mais concentrado em Uberlândia. Agora, a pandemia tem se agravado em toda a região. “Uberlândia está no centro de entroncamento que tem os dois maiores atacadistas do Brasil. Temos uma circulação de pessoas de todo o país, desde caminhoneiros, passageiros de avião, por causa do posicionamento geográfico. Isso prolifera não só o vírus, como até mesmo o risco de termos outras cepas”, diz. Ele também ressalta que o fluxo migratório para a cidade tem um papel forte na pressão sobre o sistema de saúde. “Pessoas procuram os nossos pronto atendimentos. A gente não pode negar o atendimento por não serem de Uberlândia. O atendimento de urgência e emergência tem que ser dado, isso sobrecarregou o nosso sistema”, diz.

Uberlândia ultrapassou 1.000 mortes por covid-19 na última terça-feira (23) e a prefeitura decretou luto oficial de três dias. A cidade tem uma média de 450 novos casos diariamente. O recorde de mortes em um único dia foi de 19 pessoas na última segunda-feira, 22 de fevereiro. Com esses números, a prefeitura optou por decretar toque de recolher das 20h às 5h, a proibição da venda de bebidas alcoólicas em tempo integral por pelo menos 15 dias e a construção de um hospital de campanha nos espaços vazios do Hospital Municipal de Uberlândia. Nada disso alcançou Aveline Roberta Sousa Macedo Veloso, de 34 anos. Ela havia testado positivo para a covid-19 em 6 de fevereiro e, segundo o tio Elias Peres de Macedo, estava sendo acompanhada em casa por falta de leito para internação —Lourenço, assessor técnico da rede de saúde da cidade, justifica que a decisão sobre a internação de pacientes com síndrome respiratória aguda grave é clínica e cabe ao médico. No dia 18, ainda em casa, ela foi encontrada morta. “Não tem essa de ser só com gente com comorbidade, de idade. Chega para todo mundo. E não se consegue internação, ficam protelando, indicam medicamentos sem comprovação nenhuma. Acaba nisso, infelizmente”.


Eliane Brum: O que significa cuidar de um filho numa pandemia?

O sofrimento das crianças na emergência da covid-19 deve levar os pais a responder à pergunta mais importante para a próxima geração — e agir

O menino é filho único e tem oito anos. Logo nas primeiras semanas da pandemia, ele elegeu dois bichos de pelúcia para serem seus parceiros. Quando jogava videogame, colocava um dos bonecos ao lado, com um controle no colo, como se estivessem brincando juntos. Os amigos seguiam com ele dividindo as atividades do dia. O menino fantasiava outros meninos para enfrentar a falta atroz de outras crianças. Uma mãe me conta, por tela, que seu bebê nasceu na pandemia e logo completará um ano sem nunca ter visto uma outra criança. Já começa a andar e a balbuciar algumas tentativas de palavras sem jamais ter encontrado ou tocado em outro bebê. Que tipo de efeito isso terá sobre a sua vida? E se a pandemia durar mais um ano?, ela pergunta, mas sem a esperança de uma resposta. Outra menina pede: “Mãe, me dá uma criança?”.

A pandemia forjou uma realidade de crianças sem crianças. Ainda não conhecemos totalmente os efeitos que essa experiência radical pode ter sobre quem estreia na vida. Também não sabemos quando esse cotidiano será superado, já que são muitas as variáveis: do tempo para completar a vacinação ao impacto das novas cepas que já começaram a circular. Negar a emergência sociossanitária, como alguns estão fazendo, é a pior escolha possível. Como os adultos de sua vida lidam com essa pandemia será um exemplo que marcará profundamente a formação de cada criança, porque todos os desafios e as escolhas éticas fundamentais de uma vida humana estão colocados nesse acontecimento. Pode faltar criança para brincar, mas não pode faltar ética para formar.

“Faltar” criança para conviver é um dado da realidade em uma pandemia. É duro, mas há que se lidar com ele. Faltar ética ao escolher como enfrentar a crise pode ser mais complicado e ter efeitos mais longos. As crianças estão observando o que os pais fazem com ainda maior atenção porque também elas sentem nos ossos a emergência. As lições do agora serão para toda a vida.

O que significa cuidar de uma filha ou filho numa pandemia? Ou o que significa cuidar da próxima geração numa emergência global de saúde pública, já que somos todos pais daquelas e daqueles que assumirão a responsabilidade por esse mundo nas próximas décadas? Essa questão vale para todos os adultos em qualquer país do mundo, mas no Brasil ela ganha contornos muito mais dramáticos.

Onde estamos metidos

O primeiro passo é entender onde estamos metidos. A ampla disseminação da ideia de que estamos vivendo algo surpreendente e inesperado, que teria pegado a todos de surpresa, é falsa. A ocorrência de pandemias não é novidade para Governos e instituições. Se foi, é por incompetência e irresponsabilidade. E também por essa praga que se pode chamar de síndrome do curto prazo, que é a escolha de governar com medidas de visibilidade imediata, porque têm mais impacto para as ambições do governante nas próximas eleições, do que com planejamento de longo prazo, cujos benefícios ultrapassam o mandato porque visam ao bem comum.

Quem acompanha o tema da saúde pública e as comunicações da Organização Mundial da Saúde sabe que o surgimento de mais uma pandemia era previsto. Assim como o fato de que as pandemias se tornarão mais frequentes, devido à emergência climática (causa e efeito da destruição de habitats de espécies) e à ampla circulação de pessoas e de mercadorias em um mundo globalizado. São o que o microbiologista francês Philippe Sansonetti, do Collége de France, chama de “doenças do antropoceno”: “as doenças que estão principalmente, senão exclusivamente, ligadas ao fato de os humanos terem dominado o planeta e ao impacto que estão causando sobre a Terra”.

Há protocolos para enfrentar pandemias preparados muitos anos antes do primeiro caso de coronavírus em Wuhan. Diretrizes de enfrentamento foram criadas principalmente a partir de 2003, com a emergência da SARS (síndrome aguda respiratória grave). Até mesmo o Banco Mundial oferece há anos uma linha de crédito para os países enfrentarem pandemias. Em 2017, por exemplo, lançou títulos especializados com o objetivo de garantir apoio financeiro ao Pandemic Emergency Financing Facility (PEF), um mecanismo criado para financiar países em desenvolvimento que enfrentam o risco de uma pandemia.

A surpresa pode ser para os cidadãos, que não receberam toda informação que deveriam ou se recusaram a acreditar na que receberam, caso da emergência climática que as lideranças indígenas alertam há décadas e os cientistas também. Mas não deveria ser surpresa para os Governos. E, se foi, é preciso entender o porquê e apurar responsabilidades.

É importante compreender também que a gestão pública da pandemia tem sido muito desigual. O Lowy Institute, um centro de estudos e debates da Austrália, publicou no final de janeiro uma pesquisa em que analisou os dados e a atuação de 98 países. O estudo mostrou o Brasil com a nota mais baixa na condução da pandemia (4,3) e a Nova Zelândia com a nota mais alta (94,4). É razoável supor que uma criança brasileira sofrerá muito mais impacto com a pandemia do que uma criança neozelandesa ou de países em que o Governo usou o conhecimento científico e especializado disponível para enfrentar a emergência sanitária.

Liderar o ranking de má gestão pública da pandemia, como é o caso do Brasil, tem consequências evidentes. A pior delas está exposta diariamente nas covas abertas para abrigar os mortos: atualmente, mais de 1.000 por dia, e quase 230.000 no total. Embora o Brasil seja o segundo país em número de mortes, essa tragédia é a realidade de vários países, e está intimamente conectada com a incompetência na condução do enfrentamento da covid-19. A má gestão é ainda mais evidente em países como o Brasil e a Inglaterra, que possuem sistemas públicos de saúde que, apesar de sucateados pelos Governos neoliberais, ainda assim são um exemplo para o mundo. No Brasil, o SUS não foi apenas sucateado, mas atacado pelo vírus do subinvestimento crônico desde o seu nascimento.

Diferentemente de outros países com evidente má gestão da crise sociossanitária, o Brasil se tornou um caso único, que entrará para os livros de história da pandemia de covid-19. O Governo Bolsonaro não ganhou o título de pior gestor por incompetência, mas por ter colocado em prática uma “estratégia institucional de propagação do vírus”. A partir da análise de 3.049 normas federais, um estudo da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e da Conectas Direitos Humanos, divulgado no último dia 21 pelo EL PAÍS, comprovou a ação deliberada do Governo para a propagação do vírus, com o objetivo de acelerar o contágio da população para poder retomar as atividades econômicas.

Um grupo de entidades religiosas, entre elas a CNBB e a Fundação Luterana de Diaconia, fizeram uma denúncia baseada no estudo junto ao Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos na semana passada. Relacionadas à covid-19, há pelo menos três comunicações por genocídio e outros crimes contra a humanidade cometidos por Bolsonaro e membros do Governo no Tribunal Penal Internacional. Outras devem chegar, tornando a hashtag #BolsonaroEmHaia cada vez mais forte.

Pelo menos mais um pedido de impeachment, esse dos professores da Faculdade de Direito da USP, a mais prestigiosa do país, baseou-se no estudo para somar-se nesta semana aos mais de 60 que já desembarcaram no Congresso. Como é sabido, Bolsonaro “comprou” a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado, estratégicos para decidir a abertura de um processo de impeachment. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, o presidente que se elegeu mentindo que era “contra a corrupção” beneficiou 285 parlamentares com 3 bilhões reais de dinheiro extra em troca de votos. Nosso dinheiro, é importante lembrar.

“festa da vitória” de Arthur Lira (Progressistas), o novo presidente da Câmara, denunciado duas vezes por corrupção passiva e organização criminosa, reuniu 300 pessoas no mesmo espaço físico quando mais de 1.000 famílias por dia choram seus mortos. Como nomear o ato de um parlamentar, eleito presidente da Câmara graças à troca de dinheiro público por votos, troca feita pelo presidente da República para impedir a abertura do seu processo de impeachment, comemorar o escárnio dessa vitória reunindo 300 pessoas no mesmo espaço, a luxuosa mansão de um empresário denunciado por fraude, quando o Brasil soma quase 230.000 mortos por um vírus transmitido por proximidade física?

Às voltas com um Governo que comprovadamente recusou a oferta de testes e de vacinas em 2020 e, em 2021, ainda não conseguiu garantir um cronograma confiável de vacinação, a sociedade e as instituições têm pouca energia e recursos para debater e enfrentar as consequências da pandemia. Quando se acompanha a linha do tempo dos atos de Bolsonaro para disseminar o vírus e das reações do Judiciário, do Legislativo e da sociedade a esses atos, torna-se evidente que quase todos os esforços no Brasil têm sido investidos em bloquear ou neutralizar o boicote sistemático do Governo ao enfrentamento da pandemia.

Grande parte da energia da sociedade e das instituições está sendo gasta na redução de danos dos atos de Bolsonaro e de seus ministros contra a saúde pública. Isso significa que Bolsonaro se tornou um vírus que não só ajuda a disseminar o transmissor da covid-19, como também suga toda a capacidade de combate do sistema imunológico da sociedade. Não há como combater dois vírus ao mesmo tempo. A resposta para neutralizar o vírus Bolsonaro é óbvia e foi prevista na Constituição.

O que um adulto faz numa situação dessas?

Essa é a situação. E é com ela que nós, os adultos, precisamos lidar, para cuidar das futuras gerações.

Quando o presidente da República é comprovadamente o principal propagador do vírus, todas as pessoas precisam se posicionar e lutar para barrar o que alguns dos juristas mais respeitáveis do Brasil têm definido como crimes contra a humanidade. Votar é apenas uma pequena parte dos deveres de um cidadão numa democracia. Omitir-se diante de uma política de extermínio que já sepultou quase 230.000 brasileiros, ciente de que uma parte dessas mortes poderia ter sido evitada se as medidas corretas de prevenção e de enfrentamento tivessem sido tomadas, é a pior lição que se pode dar a um filho. É ensinar que, diante de uma ameaça, devemos nos deixar matar.

As crianças mais velhas já confrontam o pai ou a mãe ou ambos: o que é que você vai fazer? Em caso de alguns adolescentes, essa pergunta é jogada como desafio e em tom de afronta. Mas, prestando um pouco mais de atenção, é possível escutar o medo. O que está nas entrelinhas é: como você vai me cuidar?

Ao contrário de muitos países, especialmente na Europa, o Brasil nunca fez lockdown. A palavra em inglês, que já entrou no vocabulário da covid-19, significa “confinamento”. Significa fechar mesmo, não fazer de conta, como fazem a maioria dos Estados e dos municípios do país, ao submeter-se à pressão de empresários e comerciantes que nada entendem de saúde pública. Possivelmente, também não entendem de economia, já que há vários estudos sérios, feitos por gente séria, que mostram que o melhor para a economia é controlar a pandemia.

Se os governantes, aqueles que têm autoridade e responsabilidade de executar as políticas de saúde pública, preferem se submeter àqueles que financiam suas campanhas políticas em vez de cumprir sua obrigação constitucional de defender o conjunto da população, é necessário pensar melhor no voto da próxima eleição. Enquanto isso, adultos responsáveis tomam todas as medidas necessárias à prevenção a que têm acesso —isolamento e higiene e, caso sejam obrigados a sair, máscara e distanciamento.

Se um pai ou mãe não é capaz de mostrar ao seu filho ou filha, por palavras, mas principalmente pelo exemplo, que sua escolha individual deve ser tomada não em função de seus próprios interesses, comodidade ou privilégios, mas no interesse do coletivo e especialmente dos mais frágeis, que tipo de pai ou mãe ou que tipo de pessoa é você?

Aqueles que não podem promover seu próprio isolamento, porque estão submetidos à vontade dos empregadores ou porque trabalham em serviços essenciais, devem pressionar seus sindicatos e outras representações, quando elas existem, somando-se à parcela da sociedade que luta por medidas efetivas de combate à covid-19. E todos devem lutar para que os mais pobres, a maioria deles negros, que são também proporcionalmente os que mais morrem por covid-19, a maioria na informalidade, recebam auxílio emergencial.

Segundo o economista Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV), o fim do pagamento do auxílio emergencial pode condenar uma parcela entre 10% e 15% da população brasileira a viver em pobreza extrema, dobrando o número de miseráveis no país. Isso significa que entre 21 milhões e 31 milhões de pessoas podem já estar passando fome. Campanhas para alimentar os famintos que se espalham por todo o país já se iniciaram promovidas pela sociedade civil organizada nessa nova onda de covid-19.

Quem individualmente menos precisa de ajuda é quem mais tem obrigação de lutar pelo coletivo.

Abrir ou fechar as escolas, eis a falsa questão

Se a premissa do debate sobre as escolas numa pandemia é uma oposição entre saúde e educação ou entre sociedade e professores ou ainda entre prevenção da pandemia e prevenção da saúde mental das crianças, o debate já começa muito, mas muito torto, e não pode terminar em nada bom. Infelizmente, é o que tem acontecido em várias instâncias.

frase “não podemos continuar mais um ano com as escolas fechadas” é equivocada. As escolhas de saúde pública, assim como as da vida, não são apenas uma questão de vontade, mas de responsabilidade e de estratégia. O que não podemos é continuar mais um ano com um presidente que dissemina o vírus, o que não podemos é continuar mais um ano com uma das polícias que mais matam no mundo, o que não podemos é continuar mais um ano com criminosos destruindo impunemente a Amazônia. Essas são situações criadas pela sociedade que estão matando a sociedade e que podem e devem ser mudadas por ela.

A pandemia exige estratégias diferentes para que possa ser controlada e, enquanto não for, mate o menos possível. Podemos e devemos reduzir seu impacto com medidas de prevenção da doença e garantia de vacinação, assim como devemos encontrar mecanismos de proteção dos mais pobres para que não morram por fome. Parte dessas medidas de saúde pública, porém, podem depender sim de manter os prédios das escolas fechados. A questão é que prédios fechados não deveriam significar escolas fechadas. Quando significam é porque há um problema com o entendimento do que é uma escola.

A experiência da pandemia mostrou algo à sociedade e aos adultos. Como tem sido dito por pesquisadores do tema da infância, como a psicanalista Ilana Katz, doutora pela Faculdade de Educação da USP, foram as crianças que apontaram o quanto a escola é essencial. “O debate precisou atravessar a simplificação do ‘abre e fecha a escola’, desimplicado das suas consequências territoriais, para considerar, com seriedade, a função da escola”, diz Katz. “Foi preciso dimensionar o seu lugar social e a importância de sua tarefa como agenciadora da cultura e da vida com todos os outros. Isso se colocou na forma de ausência e saudade no cotidiano das crianças e das suas famílias e tornou evidente onde, como e para o quê uma escola faz falta. Como consequência, apresentou a possibilidade de ampliação da compreensão da função da escola, sua centralidade no laço social e sua condição de serviço essencial”.

De certo modo, aconteceu com a escola pública o mesmo que aconteceu com o SUS. Era considerado imprestável por parte da sociedade até a pandemia mostrar que, apesar de terrivelmente sucateado nos últimos anos, o SUS é um trunfo precioso. Não fosse o sistema de saúde pública, o Brasil estaria numa situação ainda mais dramática. Já com a escola pública, poucos se importavam para além do discurso sem ação. Professores sempre mal pagos, escolas sem equipamentos, prédios depredados, alguns dos piores índices de aprendizado do mundo, crianças há anos na escola sem conseguir se alfabetizar, índices alarmantes de evasão e a tal da “normalidade” seguia.

Nos anos que antecederam o Governo Bolsonaro, a educação foi atacada pelo programa ideológico que se autodenominou Escola Sem Partido, mas mostrou-se escola com o pior partido, sofreu bullying por supostamente ser um “antro de esquerdopatas”, professores foram perseguidos e humilhados por ativistas de extrema direita e suas milícias digitais. Para piorar, o Governo Bolsonaro encontrou —propositalmente— a pior sequência de nulidades para colocar à frente do Ministério da Educação, páreo apenas para o atual ministro da Saúde, o general da ativa Eduardo Pazuello.

Ao mesmo tempo, o Governo tenta retroceder alguns séculos de avanço civilizatório e colocar a família como uma totalidade que não precisa da sociedade, defendendo bobagens como o homeschooling (escola em casa), porque a família se bastaria. Não qualquer família, claro, mas a “certa”, aquela “de homem e de mulher”, de preferência o primeiro vestido de azul e a segunda de rosa. “Tudo pela família, tudo feito em casa, tudo protegido. Protegido de mundo, do outro, de alteridade”, comenta Katz.

E então a pandemia botou as crianças e os adolescentes em casa e, bem, o óbvio ficou óbvio para (quase) todos: não se faz educação sozinho nem entre quatro paredes. E, mais uma obviedade: é muito difícil ser professor. Nunca tantos pais exaustos perceberam o quanto os professores ganham pouco e recebem pouco apoio para fazer o seu trabalho. Pelo pior acontecimento, alguns pilares da democracia finalmente ficaram claros para (quase) todos: saúde e escola são essenciais.

A questão é o que se faz com o que se descobre. Uma parte importante do debate sobre a escola não é sobre a escola, mas sobre onde os pais vão colocar os filhos para poder trabalhar —ou, em alguns casos, para ter paz. Essa também é uma questão válida, mas não é a principal. “A escola não existe para resolver um problema dos adultos, ela existe para permitir que crianças sejam educadas num espaço de diversidade de experiências, e então possam se tornar pessoas responsáveis pela sua comunidade e capazes de desenvolver seus potenciais para a criação e a manutenção do comum”, diz Katz.

Assim, a questão de abrir ou não os prédios, que são apenas parte do que uma escola deve ser, é uma fração dessa conversa. Se a escola é essencial, então é passada a hora de realmente tratar a escola como essencial —e aí não estamos falando de prédios apenas, mas de toda a comunidade escolar, a começar pelos professores e funcionários. Se a escola é essencial então é preciso tratá-la como essencial —e não, mais uma vez, rearranjar o desarranjo. Numa pandemia, tratar a escola como essencial é determinar que é um serviço essencial e, portanto, professores e funcionários devem ser colocados na frente da fila de vacinação. Até agora, os professores não foram vacinados. E, sem medidas práticas, qualquer conversa é pura demagogia. Ou pior, é escolher o corpo do outro para que seja sacrificado. Sempre o do outro, claro.

É preciso se perguntar de forma mais profunda, comprometida e honesta do que tem sido feito: abrir as escolas para quê? Para que elas continuem sucateadas, negligenciadas, aviltadas? Obrigar os professores e os funcionários a trabalhar numa pandemia, fazendo apenas o mínimo (ou no máximo o mínimo) para protegê-los, da mesma forma que os obrigam a ensinar sem condições para ensinar? Esse é um momento terrível, mas é também um momento de possibilidades. Tanto no que se refere ao destino que a sociedade dará à descoberta de que o SUS é algo precioso, que precisa ser urgentemente fortalecido, quanto ao destino que se dará à descoberta de que a escola é essencial, para muito além do que antes era percebido no cotidiano.

Entre tanto material de qualidade produzido sobre esse tema, reproduzo aqui um trecho do manifesto Ocupar Escolas, Proteger Pessoas, Recriar a Educação, assinado por várias organizações ligadas à educação e à saúde:

“A pandemia desagregou o sistema educativo e a discussão sobre sua reorganização mantém-se no dilema da volta ou não às aulas presenciais. Um problema complexo, com vários níveis, dimensões e interfaces, foi simplificado como se fosse uma simples escolha dual: abrir escolas ou manter suspensas suas atividades. Pior, a suposta dicotomia rede pública e privada, utilizada com frequência para sustentar a desvalorização do que é público estatal, é falaciosa mesmo se tocarmos exclusivamente na questão da infraestrutura. É preciso construir caminhos para superar o negacionismo e os falsos dilemas no campo da Educação.

É necessário questionar desde logo o termo retorno. Não é possível retornar na vida, é preciso seguir e refazer, reinventar, recriar. As vivências desse período podem ensejar aprendizagens, a vida na pandemia se faz de acontecimentos que devem ser trazidos para as construções curriculares que acontecem no chão da escola, mesmo que agora em espaços virtuais. Não se trata de cumprir currículos ou repor saberes escolares, mas de fazer do processo vivido durante a pandemia uma oportunidade de troca de saberes e experiências, momentos de fortalecimento de laços pessoais e sociais. Momentos de resistência criativa e solidariedade com as comunidades escolares.

Nesse aspecto, são necessárias políticas de inclusão digital específicas para os estudantes que necessitem, com fornecimento de equipamentos e acesso à internet para atividades educacionais. Reabrir e ocupar os espaços institucionais da educação implica, enfim, questionar se, como sociedade, estamos satisfeitos/as com o modelo de escola que concebemos, construímos e reproduzimos ou se, ao contrário, vale a pena lutar para rever o que é a escola e, com isso, recriar a educação”.

Há um ponto levantado pelo manifesto que me parece crucial para botar rumo no debate: não há mesmo retorno possível. Se a escola, essa que é feita de gente viva e diversa, for reaberta nos parâmetros de antes da pandemia, como mero depósito dos filhos dos mais pobres, para que os pais possam exercer seus trabalhos precarizados e agora também se arriscarem a ser contaminados; ou então como commoditybusiness, instrumento de reprodução de privilégios, no caso das escolas privadas de elite, mais uma oportunidade histórica será perdida.

Diante da tragédia, mais uma vez teremos escolhido o pior como sociedade. Já se a escola for investida, com investimento de recursos e com investimento de tempo de todos os envolvidos, convertida em prioridade real, ela estará aberta mesmo que os prédios fiquem fechados (ou voltem a ser fechados) até os profissionais de educação serem vacinados e as autoridades sociossanitárias tiverem convicção de que é seguro abri-los.

O que as crianças podem ensinar aos adultos?

O menino que abre esse texto fez dos bonecos de pelúcia suas crianças imaginárias. Ao observarem sua fabulação, os pais procuraram outros pais da escola para criar um encontro regular pelas telas do game Minecraft. Ao se juntarem, o que as crianças construíram? Uma escola. Deram a ela o mesmo nome da sua. Um dia resolveram jogar também com monstros. Antes, porém, garantiram a fortificação da escola para que ela pudesse sobreviver ao ataque.

Essa cena não expressa apenas amor, mas cuidado. Crianças confinadas se juntando para cuidar da escola da forma que lhes é possível. E, cuidando da escola, cuidam uns dos outros, porque juntos, apesar do isolamento físico.

Essa história tão bonita e tão simbólica foi contada pela psicanalista Luciana Pires. Especialista em psicanálise com crianças e adolescentes pela Tavistock Clinic, de Londres, e doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, ela tem refletido sobre as brincadeiras da quarentena. Instigada pelas construções que seus pacientes vêm produzindo durante o isolamento (e pelo quanto ela tem aprendido com eles), Luciana Pires e o Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientae fizeram um chamado para que famílias, escolas e profissionais de saúde relatassem o que ela tem chamado de “brincário”.

As crianças inventaram mundos e se inventaram no mundo nessa pandemia. “No caminho da fantasia de movimentos, uma vez que estamos privados deles, um garoto de cinco anos passou dias falando e desenhando sobre o movimento da água nos canos da casa e finalmente para a rua. E, na mais franca brincadeira de realização de desejo, outro menino construiu um controle remoto de um drone com o qual viaja para todos os lugares que deseja”, conta a psicanalista. Outro garoto, esse com seis anos, passou os primeiros dias da quarentena construindo e brincando de Arca de Noé. Sonhava em salvar a todos do “dilúvio” que se apresentava, agora com o nome de covid-19.

O mais surpreendente é um fenômeno que une crianças de partes muito diferentes do planeta: elas estão criando casa dentro de casa. Tendas e barracas de todos os tipos, com os materiais disponíveis, de lençóis a pedaços de tecido, de caixas a sobras de madeira, embaixo de mesas, no canto de sofás, na esquina do corredor, em lugares possíveis e também impossíveis, meninas e meninos nunca construíram tanto como nessa pandemia. Um dos garotos inventou uma cabana no meio da sala e de lá pede tele-entrega. Logo, sentiu necessidade de aumentar a casa e construiu mais um cômodo, expandindo seu mundo dentro do mundo.

O que as crianças fazem lá dentro? “Nossas casas não são mais as mesmas e definitivamente ganharam novos contornos e sentidos. As casas precisam então ser repensadas e re-representadas a partir das brincadeiras”, diz a psicanalista. “Essas cabanas também permitem que se crie um ‘fora da casa’, um campo externo. Delimitam um espaço de dentro, deixando o resto de fora. Pois não só nos entocamos, mas passamos a fazer o que fazíamos fora de casa dentro: vamos à escola, trabalhamos, temos consultas médicas etc. Talvez as cabanas queiram recriar o íntimo dos lares no meio da casa invadida. Agora que a casa virou o mundo, a criança precisa ter uma casa no mundo.”

Como na fábula do menino que apontava que o rei estava nu, foram também as crianças que, nessa pandemia, apontaram que aquilo que os adultos chamavam de “normal” era bem precário. Num mundo que priorizou o indivíduo, nunca a rede fez tanta falta. De repente, a precariedade das relações e do cotidiano se revelou em todas as suas ausências. Como diz um ditado africano, para educar uma criança é preciso toda uma aldeia. Não basta a família, é preciso a escola. Não basta a escola, é preciso a comunidade. Só se faz gente junto com gente.

Também foram as crianças que apontaram que não seria possível rearranjar o mundo dentro de casa como se algo da dimensão do acontecimento de uma pandemia não exigisse lidar com as perdas e recriar o mundo. Com as suas possibilidades, juntando restos e retalhos do que vão encontrando, arrebanhando os bonecos, as crianças foram as primeiras a fazer a sua parte, inventando um mundo dentro da casa que virou mundo para serem capazes de viver com dentro e com fora. Agora, precisamos escutá-las, aprender com elas e criar um mundo em que elas possam viver. Porque, como diz uma adolescente chamada Greta Thunberg, “nossa casa está em chamas”. De dentro de suas cabanas fortificadas, o que as crianças nos perguntam é: e agora, o que vocês vão fazer?

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de ‘Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Folha de S. Paulo: Com Manaus sem oxigênio, Pazuello montou força-tarefa para disseminar cloroquina

Médicos que defendem remédios sem eficácia comprovada receberam convite do Ministério da Saúde

Em meio à falta de leitos e de oxigênio para pacientes com Covid-19 em Manaus, o Ministério da Saúde do governo Jair Bolsonaro montou e financiou força-tarefa de médicos defensores do que chamam de “tratamento precoce” da Covid-19 para visitarem Unidades Básicas de Saúde na capital amazônica.

Essa abordagem prega o uso de remédios incensados pelo governo federal, mas que estudos científicos dizem não ter eficácia contra o coronavírus, como cloroquina e ivermectina.

Segundo alguns dos envolvidos, eles não receberam pela participação, mas tiveram diárias de hotel e alimentação pagas pelo governo federal.

O Painel enviou três e-mails sobre o tema para o Ministério da Saúde ao longo de três dias, mas não obteve qualquer resposta. Entre outras questões, a coluna perguntou sobre o critério de escolha dos médicos, o valor gasto para realizar a empreitada e se há outras similares previstas.

A força-tarefa agiu na segunda-feira (11), um dia após o governador Wilson Lima (PSC) pedir socorro ao governo federal e a outros estados devido à falta de oxigênio no estado.[ x ]

Nesse dia, os médicos estavam na plateia quando Eduardo Pazuello (Saúde) subiu o tom na defesa desses medicamentos e disse não existir “outra saída”.

Médicos da força-tarefa do tratamento precoce posam para foto com Eduardo Pazuello (Saúde)
Médicos da força-tarefa do tratamento precoce posam para foto com Eduardo Pazuello (Saúde) - Reprodução/Instagram

Os médicos também deram palestras em defesa do tratamento precoce da Covid-19, que cientistas dizem não existir.

Na audiência estavam membros do Ministério da Saúde, entre eles Mayra Pinheiro, secretária da pasta que assinou ofício que pressionava a Prefeitura de Manaus a distribuir essas medicações sem eficácia aos seus pacientes.

Ela é a principal ponte da pasta de Pazuello com os defensores da hidroxicloroquina e da ivermectina. Mayra foi alçada aos holofotes em 2013 ao hostilizar em aeroporto os médicos cubanos que participavam de curso do programa Mais Médicos.

Esse ofício do Ministério da Saúde, revelado pelo Painel, classificava como “inadmissível” a não-utilização de medicações como o antimalárico cloroquina e o antiparasitário ivermectina para controlar a pandemia em Manaus.

Ofício enviado pelo Ministério da Saúde à Prefeitura de Manaus
Ofício enviado pelo Ministério da Saúde à Prefeitura de Manaus - Reprodução

O grupo da força-tarefa envolve aproximadamente dez médicos de diferentes especialidades (infectologistas, oncologista, dermatologista) e recebeu o apelido de “Missão Manaus”.

Eles passaram em Unidades Básicas de Saúde e falaram com profissionais da área, para os quais defenderam o uso de ivermectina e hidroxicloroquina, medicamento que já foi associado à arritmia cardíaca.

O ofício do Ministério da Saúde pedia permissão à prefeitura para que esses profissionais fizessem essa ronda pelas UBSs para que fosse “difundido e adotado o tratamento precoce como forma de diminuir o número de internamentos e óbitos decorrentes da doença".

O Painel obteve vídeo de uma dessas visitas (veja abaixo). Nele, a médica dermatologista Helen Brandão, de Goiás, exalta o exemplo de Porto Feliz (SP), onde o prefeito, Dr. Cássio (PTB), optou por adotar o uso de hidroxicloroquina e ivermectina.

A cidade desde então virou objeto da produção de fake news diversas, como as que dizem que 100% da população tomou hidroxicloroquina e que nenhuma pessoa morreu de Covid-19 na cidade depois de tomar a medicação.

“Ivermectina. O tratamento precoce era azitromicina, hidroxicloroquina, zinco, vitamina D. Lá eles davam até enoxaparina. Até enoxaparina tinha na unidade. Fizeram um trabalho muito bonito. E corticóide, dose alta. Só de fazer isso... A cidade tem 50 mil habitantes e até agora, do começo do Covid até agora, eles tem 20 óbitos, sendo que apenas um fez tratamento precoce, os outros 19 não fizeram. E esse paciente tinha muitas comorbidades. É um case de sucesso ou não é?”, diz Brandão a profissionais da UBS.

Procurada pela Folha, Brandão não comentou a missão, sugeriu que a reportagem contactasse o Ministério da Saúde, disse que a Folha não é um jornal sério e que não deveria ousar citar seu nome.

Ela escreveu em suas redes sociais que Raphael Câmara, secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde, mostrou em evento do qual participaram em Manaus que “deixar de atender o doente precocemente já virou caso de polícia e [de] punição ética aos médicos”. Procurada, a pasta não comentou a fala de Câmara.

Ela também publicou nas suas redes sociais um levantamento da quantidade de remédios que distribuíram em Manaus: 20 caixas de ivermectina com sessenta comprimidos, 40 caixas de hidroxicloroquina, 36 caixas de reuquinol (sulfato de hidroxicloroquina), 50 caixas de Clexane (anticoagulante), 63 caixas de enoxaparina (anticoagulante).

Ela também compartilhou mensagem que diz que em vez de se perguntarem sobre a falta de oxigênio para pacientes em Manaus, as pessoas deveriam questionar “quantos pacientes tiveram negado o acesso ao tratamento precoce, agravando a doença e obrigando suas internações”.

Esses médicos foram chamados a participar de evento com Eduardo Pazuello em Manaus também na segunda-feira (11). Foi nessa ocasião que o ministro disse que “não existe outra saída” para além dos remédios sem eficácia comprovada.

“Nós não estamos mais discutindo se esse profissional ou aquele concorda. Os conselhos federais e regionais já se posicionaram, são a favor do tratamento precoce, do diagnóstico clínico", afirmou.

Gonzalo Vecina Neto, médico sanitarista e professor da USP, diz ao Painel que a ação terá de ser usada no futuro “para demonstrar cabalmente que o Ministério da Saúde abandonou sua tarefa de salvar vidas e passou a espalhar crenças”.

“O uso dessas medicações só se justifica pela crença. Podiam levar também os feijõezinhos do pastor Valdemiro [Santiago]. Devem fazer o mesmo efeito”, completa.

Na terça-feira (12), Bolsonaro disse que havia enviado Pazuello a Manaus porque a cidade estava “um caos” e não fazia tratamento precoce. Ele disse que teve que “interferir”.

O médico Ricardo Ariel Zimerman, do Rio Grande do Sul, foi um dos chamados a participar da chamada “Missão Manaus” e foi convidado a dar uma palestra no mesmo evento, quando defendeu o “tratamento precoce”, assim como faria ao participar da ronda pelas UBSs.

Ele não quis falar com o Painel. Ao site da Prefeitura de Manaus, disse que reforçaram “o uso precoce, principalmente nos primeiros dias de sintomas, de medicações antivirais, de preferência em combinação, com várias alternativas que podem ser escolhidas para a prescrição”.

Médicos da "Missão Manaus" durante visita às UBSs de Manaus
Médicos da "Missão Manaus" durante visita às UBSs de Manaus - Prefeitura de Manaus

Outro dos membros do grupo, Gustavo Pasquarelli é diretor técnico da unidade da Baixada Santista do Instituto de Infectologia Emilio Ribas, do governo de São Paulo. Em suas redes sociais, ele compartilhou mensagem que diz: “ser contra Bolsonaro é um direito democrático seu. Ser contra a cloroquina é uma monstruosidade ideopata de quem acha moral politizar pandemias e capitalizar mortes”.

A secretaria de Saúde do governo João Doria (PSDB-SP) disse ao Painel, por telefone, que o Emilio Ribas não teve participação na viagem do médico, que foi custeada pelo Ministério da Saúde no período de férias do profissional.

A anestesiologista Luciana Cruz, de São Paulo, tem 50 mil seguidores nas redes sociais e é a mais conhecida do grupo de defensores do tratamento precoce.

Ela diz ao Painel que os médicos não receberam nada do Ministério da Saúde pela viagem a não ser as estadias e o valor de alimentação. Ela afirma que eles brincavam que estavam pagando para estar lá, pois deixaram seus consultórios para participarem da força-tarefa.

Cruz conta que o grupo foi pego de surpresa pelo convite e teve menos de 24h para se organizar e partir para Manaus. Nas malas, afirma, levou hidroxicloroquina e ivermectina.

“Dizer que o tratamento precoce é controverso é apenas uma narrativa. A gente já tem mais do que as evidências científicas e as experiências práticas. Para quem quiser, é muito claro. Muitos médicos nos procuram e quando têm acesso a essas informações eles ficam em choque”, afirma.

“Uma coisa era questionar o tratamento precoce no início do ano passado. Hoje em dia, não é mais questionável. Não tem mais por que ser questionável”, completa Cruz.

Ela diz ter receitado os medicamentos para sua família e para ela mesma. “Não perdi ninguém. Não acho que tenha sido coincidência todos os obesos e diabéticos que a gente tratou [não morreram]”.

“Não recebi um real para fazer o que fiz lá, que foi ir para as UBSs e expor… Eu sabia que estava indo para as UBSs e que havia suspeita de uma cepa mutante, confirmada no dia que fomos. Como confio no que eu defendo, fui com a profilaxia. Acredito no poder preventivo dessas medicações. Não sou nenhuma camicase, prezo muito pela minha vida, pela minha profissão, sou muito ética. Tomei as medicações e fui confiando nisso. Tanto a ivermectina quanto a hidroxicloroquina, fui tomando ambas as medicações”, conclui.


Agência Lupa: Em live no pior dia de Manaus, Bolsonaro mente sobre Covid no Brasil

Presidente e ministro da Saúde insistiram no tratamento precoce com hidroxicloroquina e questionaram uso de máscara; veja checagem da Lupa

Na quinta-feira (14), enquanto Manaus vivia crise com a falta de oxigênio nos hospitais, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) realizou uma transmissão ao vivo junto com o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Na live, os dois repetiram informações falsas sobre a doença, como a existência de um “tratamento precoce” contra a Covid-19.

Bolsonaro também chegou a dizer que há três vacinas em análise pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), mas foi corrigido pelo ministro. A agência vai se pronunciar no domingo (17) sobre dois imunizantes, produzidos pela Fiocruz e pelo Butantan.

A Lupa analisou algumas das declarações de Bolsonaro e do ministro, que foram procurados para comentar as checagens, mas não responderam até a publicação.

“Qual outro país do mundo disponibilizou o auxílio emergencial? Alguém lembra aí Argentina, Paraguai, Uruguai, Venezuela, México, Angola, Itália?”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

FALSO Pelo menos cinco —Argentina, Paraguai, Uruguai, Venezuela e Itália— dos sete países citados pelo presidente Jair Bolsonaro disponibilizaram um auxílio emergencial para sua população durante a pandemia similares ao brasileiro.

A Argentina criou o “Ingreso familiar de emergencia” em março de 2020, com valor de 10 mil pesos, pouco mais de R$ 600. No Paraguai, o programa Pytyvõ — ajudar, em guarani — ofereceu G. 548.210 (R$ 419). A Venezuela criou, em março, o #QuedateEnCasa, mas o governo não informa o valor mensal que cada beneficiário recebe.[ x ]

Na Itália, o “Bonus Covid” foi disponibilizado temporariamente de março a maio. Nos dois primeiros meses, era de € 600 (cerca de R$ 3.800) e no terceiro e último mês, passou para € 1.000 (cerca de R$ 6.000). No final de 2020, jornais brasileiros repercutiram um escândalo de corrupção envolvendo o bônus: cinco deputados receberam indevidamente o auxílio.

O Uruguai criou, em abril, o Fundo Coronavírus, a partir do corte de salários de servidores públicos. Segundo o governo, o fundo usou cerca de US$ 625 milhões em 2020 em medidas de combate ao coronavírus. Desse montante, US$ 120 milhões foram para abonos de famílias e cestas básicas.


“O PSOL entrou com uma ação na Justiça de Porto Alegre para que o município não entregue o kit de tratamento precoce para os portadores de Covid-19”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

VERDADEIRO No dia 12 de janeiro, a bancada de vereadores do PSOL de Porto Alegre ingressou com uma ação, endereçada à Vara da Fazenda Pública, pedindo que a prefeitura da cidade “se abstenha de distribuir, utilizar e/ou adquirir medicamentos de eficácia não comprovada, especialmente a ivermectina e a hidroxicloroquina, para utilização na rede pública de saúde do Município de Porto Alegre”.

Em 4 de janeiro, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), flexibilizou as medidas restritivas de combate à pandemia e determinou a disponibilização de “tratamento precoce” contra a Covid-19 à população. O termo é usado por negacionistas científicos para se referir a medicamentos como hidroxicloroquina ou ivermectina, que não têm eficácia no tratamento contra o novo coronavírus.

Na manhã de quinta-feira (14), em encontro com apoiadores, o presidente citou a mesma ação, mas se confundiu, afirmando que o PSOL havia entrado na Justiça proibindo todos os prefeitos do país de distribuírem medicamentos sem eficácia científica contra a Covid-19.


“O uso da máscara, o afastamento social, as medidas de isolamento (...), isso tudo nós temos muita dificuldade de encontrar o que deu certo e o que deu errado.”
Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, durante live com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

FALSO Pesquisa publicada em junho na revista The Lancet indicou que o uso de máscaras reduz o risco de infecção por Covid-19 em 85%. Pesquisadores canadenses revisaram 172 estudos observacionais sobre medidas protetivas realizados a partir das características do novo coronavírus e de outras doenças respiratórias, como a síndrome respiratória no Oriente Médio (Mers).

O estudo mostrou que as proteções hospitalares têm um grau maior de efetividade (96%), enquanto as máscaras caseiras eram consideradas 67% efetivas. Dessas, as que mais protegiam eram as que tinham duas ou mais camadas e quando corretamente ajustadas ao rosto.

Outras duas pesquisas, ambas publicadas na revista Nature, também confirmaram que medidas de isolamento social são eficazes em reduzir a disseminação do vírus. A primeira, publicada em junho por pesquisadores do Imperial College London, no Reino Unido, concluiu que essas “intervenções não farmacêuticas” evitaram 3,1 milhões de mortes em 11 países europeus na primeira onda da pandemia.

Outra, realizada por pesquisadores da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, concluiu que a implantação de medidas restritivas de locomoção reduziram a velocidade de contágio do vírus em seis países analisados.


“O tratamento precoce é preconizado pelos conselhos federais [...], se mostrou eficaz em todas as cidades e estados do Brasil”
Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, durante live com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

FALSO De acordo com instituições internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NHI, na sigla em inglês), não há, até o momento, medicamentos que comprovadamente reduzem o risco de infecção pela Covid-19.

No Brasil, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) não recomenda tratamento precoce com qualquer tipo de medicamento. “Os estudos clínicos randomizados com grupos de controle existentes até o momento não mostraram benefício e, além disso, alguns destes medicamentos podem causar efeitos colaterais”, diz a SBI, em comunicado no Twitter na quinta-feira (14).

Em parecer publicado em abril do ano passado, o Conselho Federal de Medicina (CFM) diz que não há evidências sólidas de efeito de medicamentos como a cloroquina ou hidroxicloroquina no combate à Covid-19. No entanto, “diante da excepcionalidade da situação”, o CFM diz ser possível a prescrição do medicamento em pacientes infectados com o vírus. A decisão, entretanto, deve ser conjunta, entre médico e paciente. O profissional fica obrigado a relatar ao doente “que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga” para o tratamento da Covid-19, explicando os efeitos colaterais possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso.

Diversos estudos publicados já comprovaram que não há eficácia da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. O Recovery Trial, coordenado pela Universidade de Oxford, suspendeu testes em junho com o remédio ao notar que ele não mostrou benefício no tratamento da doença. Em julho, foi a vez do Solidarity Trial, coordenado pela OMS, encerrar testes com a hidroxicloroquina. Um estudo brasileiro, publicado em novembro no periódico New England Journal of Medicine, também comprovou que a hidroxicloroquina é ineficaz no tratamento de casos leves e moderados da Covid-19.

Em setembro de 2020, a Escola de Medicina Perelman, da Universidade da Pensilvânia (EUA), testou o efeito profilático da hidroxicloroquina para aqueles que ainda não foram expostos à Covid-19. Os resultados mostraram que a ingestão diária da droga não reduziu o risco de infecção. A pesquisa foi publicada na Jama Internal Medicine e analisou 125 profissionais de saúde que atuam na linha de frente de combate ao novo coronavírus. Em agosto, um outro estudo clínico, publicado no The New England Journal of Medicine, mostrou que essa medicação, fornecida por quatro dias, não foi capaz de reduzir a taxa de infecção por Covid-19 nos 14 dias subsequentes ao seu uso, quando comparada com placebo.


“[O número de] Jovens entre 5 e 19 anos (...) sem comorbidade, que perderam a vida ano passado: 36. (...) É uma prova de que os jovens poderiam estar estudando [presencialmente]”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

INSUSTENTÁVEL O Ministério da Saúde não tornou públicas as informações de mortes por Covid-19 com o recorte de faixa etária e existência de comorbidades. Levantamento feito pelo G1 apontou que das 141 vítimas com até 19 anos que morreram de Covid-19 até o dia 26 de maio do ano passado, pelo menos 18 não tinham comorbidades. De acordo com dados do Poder 360, até 27 de junho de 2020, 380 pessoas com menos de 19 anos já haviam morrido no Brasil em função da doença ― no entanto, não há informações sobre comorbidades.

Mesmo que os números apresentados por Bolsonaro estivessem corretos, o que a Organização Mundial de Saúde (OMS) alerta é que os jovens, ainda que não desenvolvam a doença, podem transmiti-la para pessoas mais velhas e mais vulneráveis. O diretor da OMS para o Pacífico Ocidental, Takeshi Kasai, explicou que, justamente por serem muitas vezes assintomáticos ou apresentarem sintomas leves, os jovens acabam transmitindo a doença.

No entanto, a própria OMS afirmou em setembro que a volta às aulas deve ser prioridade no processo de reabertura das economias. O argumento é que escolas fechadas por muito tempo significa crianças mais expostas à violência física e emocional, vulneráveis ao trabalho infantil e a abusos, além de dificultar quebrar o ciclo da pobreza. A OMS divulgou um guia com recomendações para a volta às aulas.


“Tenho uns 40 processos de impeachment. Alguma acusação de corrupção? De improbidade? De abuso de autoridade? Não, não tem”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

FALSO Informações obtidas pela Lupa via Lei de Acesso à Informação (LAI) junto à Secretaria Geral da Mesa Diretora da Câmara mostram que até esta sexta-feira, 15 de janeiro, havia 55 pedidos de impeachment em tramitação contra o presidente. Vários desses pedidos referem ao Inquérito 4831, sobre suposta interferência de Bolsonaro na Polícia Federal. Neste inquérito, o presidente é investigado por tentativa de influenciar investigações feitas pela instituição.

Um dos pedidos de impeachment, por exemplo, foi apresentado pelo deputado federal Alessandro Molon (PSB-RJ) e outros congressistas em 29 de abril de 2020. O texto fala em “tentativa de interferência ilegal na Polícia Federal, obstrução de justiça, advocacia administrativa, coação no curso do processo”.

Outro pedido, apresentado pelo ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT) em 21 de maio, acusa Bolsonaro de utilizar “poderes inerentes ao cargo com o propósito reconhecido de concretizar a espúria obtenção de interesses de natureza pessoal, objetivando o resguardo de integrantes de sua família ante investigações policiais”, em referência ao Inquérito 4831.

O inquérito foi aberto no STF para apurar as acusações do ex-ministro da Justiça Sergio Moro de que o presidente da República tentou interferir na autonomia da PF para proteger familiares e aliados. Em novembro, o ministro Alexandre de Moraes prorrogou o inquérito por 60 dias, logo depois de o presidente ter informado que não iria depor no caso. Agora, o Supremo vai decidir se Bolsonaro pode depor por escrito ou se precisa comparecer pessoalmente para ser ouvido pelos investigadores. A decisão está marcada para 24 de fevereiro.


“Se fosse um remédio que não fizesse mal comprovadamente, não tivesse efeito colateral, nem assim, eu (...) ia obrigar a tomar aquele medicamento, quem dirá algo emergencial que não foi devidamente comprovado”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

CONTRADITÓRIO Durante a pandemia da Covid-19, Bolsonaro recomendou diversas vezes o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina como formas de tratamento contra o novo coronavírus. Contudo, essas drogas não têm eficácia comprovada para essa infecção e é comprovado que o paciente pode sofrer efeitos colaterais com o seu uso. Como explicado acima, há diversos estudos que mostram que esse remédio é ineficaz no tratamento contra o novo coronavírus.

Em nota, a Sociedade Brasileira de Arritmia Cardíacas (Sobrac) informou que a hidroxicloroquina pode ocasionar alterações cardíacas e pode ter tanto um efeito antiarrítmico quanto provocar o surgimento de arritmias graves. A bula do medicamento recomenda cautela para o seu uso em pacientes com disfunções hepáticas (do fígado) ou renais (dos rins), ou que estejam tomando medicamentos capazes de afetar esses órgãos. Além disso, o uso é contraindicado para grávidas e crianças menores de seis anos.


“Tem dado certo. A hidroxicloroquina, a azitromicina, ivermectina, a Anitta, zinco, vitamina D têm dado certo [no tratamento da Covid-19]
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

FALSO É falso que os medicamentos citados por Bolsonaro tenham efeito comprovado no tratamento da Covid-19. A Lupa já mostrou que o uso da cloroquina em pacientes internados com a doença não trouxe benefícios, como a redução na letalidade ou no tempo de internação. Além disso, efeitos colaterais como a arritmia cardíaca vêm sendo observados em muitas pesquisas, levando a Associação Médica Americana a emitir um comunicado pedindo que o uso da cloroquina fosse limitado a estudos clínicos e dentro de hospitais, sob rigoroso controle.

azitromicina é um antibiótico que pode ser usado contra infecções bacterianas secundárias em casos de Covid-19, mas não atua diretamente contra o vírus causador da doença.

Também não existe comprovação científica que sustente a recomendação de ivermectina, uma medicação usada contra piolhos, como prevenção ou tratamento da Covid-19. A epidemiologista e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Ana Luiza Curi Hallal, explica que existe uma diferença entre o uso de medicamentos como a cloroquina e a ivermectina pré-exposição, ou seja, quando se toma para evitar contágio, e o uso como tratamento precoce, ou seja, por pessoas que tiveram contato com alguém que testou positivo para a doença e busca uma terapia para evitar que a infecção evolua para um quadro mais grave.

“Em ambos os casos, estudos mostraram que não existem vantagens em usar cloroquina ou ivermetcina. O conhecimento evoluiu ao longo dos últimos meses e as dúvidas que tínhamos lá em abril e maio não são as mesmas. Na época, os estudos estavam começando e hoje evidenciam que esses medicamentos não previnem a Covid-19 e nem fazem com que a doença evolua menos”, afirma.

Como explicado pela Lupa, a ivermectina passou a ser disseminada como possível tratamento da doença depois que um estudo, publicado na Antiviral Research, indicou que a droga foi capaz de inibir a replicação do Sars-CoV-2 in vitro. Apesar disso, a OMS excluiu a ivermectina do projeto Estudo Solidariedade, uma iniciativa co-patrocinada para encontrar um tratamento efetivo para COVID-19, porque “estudos sobre ivermectina tinham um alto risco de viés, muito pouca certeza de evidências, e as evidências existentes eram insuficientes para se chegar a uma conclusão sobre benefícios e danos.”

Anitta é o nome comercial da nitazoxanida. Não há nenhum estudo publicado em revista científica que comprove a eficácia da ivermectina ou nitazoxanida contra Covid-19, assim como não há comprovação sobre o zinco ou a vitamina D.

Chico Marés , Ítalo Rômany , Marcela Duarte , Natália Leal e Nathália Afonso


Dorrit Harazim: A arte de viver

Parece que viramos a página: ficou escancarado em 2020 que, sem o outro, não somos nem seremos

Individualmente, nunca se saberá quem mais sofreu neste soturno ano de 2020. Coletivamente a resposta é fácil: foi a arte. Mas qual delas? Aquela que independe de qualquer genialidade ou talento específico para existir: a arte de viver. Para quem teve o privilégio de não estar entre as quase 2 milhões de pessoas levadas pela Covid, sobreviveu com medo, aceitou perdas, adequou-se ao vazio e ao silêncio, reinventou-se como pôde no confinamento abrupto. Sempre fomos moldáveis na arte de viver para conseguirmos sobreviver e dar sentido à espécie. 2020 quase nos tirou do prumo através de seu cortejo fúnebre. Mas parece que viramos a página: ficou escancarado que, sem o outro, não somos nem seremos.

Se viver é a maior das artes, a poesia vem logo atrás. Ela tem o poder de libertar as profundezas do possível, de restaurar zonas entumecidas. Ser alcançado por um poema de Armando Freitas Filho na hora certa é um choque transformador, libertador.

Em meio à clausura mundial de 2020, nada mais atual do que a meditação sobre a saga humana feita por John Donne 400 anos atrás. Donne, um dos maiores poetas de língua inglesa de todos os tempos, estava seriamente enfermo quando escreveu em prosa a “Meditação XVII” :

— Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo homem é parte de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai por quem os sinos dobram; eles dobram por vós.

Donne foi homem de fé. Fé absoluta em Deus e convicto de que a humanidade só avança se compartilhada. O escritor americano Ernest Hemingway foi o oposto: era ateu roxo, ímpio por opção e incréu pelo que vivenciou. O que não o impediu de recorrer a Donne para o preâmbulo e título de uma de suas obras mais famosas, “Por quem os sinos dobram” (1940), romance sobre o fracasso humano na Guerra Civil espanhola.

Outro poeta-monumento, o galês Dylan Thomas, ao ver o pai moribundo e sem amparo da fé, criou um poema de resistência. “Não entres nessa noite acolhedora com doçura/ Pois a velhice deveria arder e delirar ao fim do dia/ Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura...”, dizem os 19 versos que convidam a não nos dobrarmos pacificamente ao inevitável. “Do not go gentle into that good night”, publicado em 1951, tornou-se um tesouro da língua inglesa, uma ode à tenacidade do espírito humano. Vem muito a calhar neste início de 2021.

Difícil saber no que se agarrar. Se o otimismo é uma forma alienada de fé, e pessimismo é uma forma alienada de desespero, como defende um grande humanista dublê de psicólogo, resta a fé racional no espírito humano. Simone de Beauvoir descreveria essa fé como esperança, “contrapeso lúcido e musculoso ao otimismo cego... esperança de que a verdade possa ser usada”.

Tempos atrás, quando a espécie humana ainda procurava se reconciliar com as ruínas da Segunda Guerra, a NPR, sigla da rede de rádio pública dos EUA, convidou 80 famosos e anônimos a sintetizarem seu credo pessoal de como tocar a vida. As narrativas, porém, precisavam caber em 100 palavras, proposta radical para tempos em que o mundo não girava em torno de 140 caracteres. Entre os participantes, uma vendedora de enciclopédias de porta em porta e John Updike, uma ajudante hospitalar e Eleanor Roosevelt. Havia, sobretudo, Thomas Mann, Nobel de Literatura e autor do colossal romance “A montanha mágica”.

Mann começa constatando que, apesar de a vida ser possuída por uma tenacidade assombrosa, nossa presença sempre será condicional. “Somente por este motivo acredito que a vida tem um valor e charme vangloriados em excesso”, escreveu. Sua crença maior, e no que depositava maior valor, era justamente o caráter perecível dessa presença: “A transitoriedade é a própria alma da existência. Ela dá valor, dignidade, interesse à vida. A transitoriedade cria o tempo... E, ao menos potencialmente, o tempo é a dádiva suprema, a mais útil. Sem começo ou fim, nascimento ou morte, também o tempo inexiste”. Sobraria um nada estagnado.

A cada um sua arte de viver. Da recomendada por John Donne há séculos à entoada com urgência por Emicida, hoje vamos de “AmarElo”: “Tenho sangrado demais/ Tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri/ Mas esse ano eu não morro”.


Jamil Chade: 2020 - O ano das verdades inconvenientes

O ano forçou a suspensão de um cegueira coletiva e deliberada. Poderemos fechar os olhos de novo, mas não há mais como apagar do inconsciente as imagens de um mundo insustentável

Na Alemanha, quando fronteiras em março e abril foram fechadas para conter o vírus da covid-19, rapidamente se descobriu que a primavera não seria igual às demais. Os dias eram cada vez mais longos e o desabrochar das flores não poderia ser detido. Mas, no campos de legumes da maior economia da Europa, faltava uma peça fundamental: as mãos escuras e ásperas de imigrantes para colher alimentos.

Em poucos dias, o que era impensável se transformou em um realidade: a Lufthansa organizou voos especiais para ir às margens da Europa buscar justamente aquelas populações indesejadas por uma parcela dos alemães. Com as fronteiras fechadas e sem eles, não haveria o tradicional aspargos nos pratos.

2020 marcará nossa geração. Haverá um antes e um depois na história. Mas seja qual for a forma pela qual o futuro irá narrar os acontecimentos deste período, não restam dúvidas de que 2020 foi o ano de verdades inconvenientes.

Ainda nas primeiras semanas da pandemia, a notícia de que o médico responsável por detectar o vírus pela primeira vez e alertar as autoridades tinha morrido gerou uma comoção. Não por conta apenas de sua descoberta. Mas pelos relatos de que ele foi alvo de uma repressão policial chinesa ao tentar avisar ao mundo de que um novo vírus ameaçava a humanidade. A verdade inconveniente, em 2020, é que a censura de uma ditadura é real e mata.

À medida que o vírus se espalhava, governos travavam batalhas comerciais para garantir máscaras e respiradores. Governos como o de Angela Merkel chegaram a colocar barreiras para impedir a exportação, enquanto relatos e proliferavam de operações já em pistas de decolagem para desviar carregamentos.

Não foi muito diferente quando a vacina chegou. Países ricos esvaziaram as prateleiras, ficando com bilhões de doses e um volume suficiente para imunizar várias vezes suas populações. Enquanto isso, países pobres fazem filas humilhantes em busca de garantias de que pelo menos uma parte desses avanços na pesquisa cheguem às suas populações.

A verdade inconveniente de 2020 é de que a ciência não beneficia todos ao mesmo tempo. E, uma vez mais, as inovações chegam primeiro para Margarets, e não para Marias. Chegam para Steven ou John, e não para Severinos.

Também foi o ano em que uma parcela de economistas foi confrontado por uma dura realidade que minava um discurso bem ensaiado de que o liberalismo cego, a privatização inclusive de serviços básicos e o papel apenas regulador da administração pública eram sinais de avanço e modernidade. Diante do colapso da economia mundial e da crise, se escutava por ruas escuras, corredores higienizados e manchetes: onde está o Estado?

2020 foi o ano ainda em que ouvimos do FMI um apelo aos governos: gastem o que tiverem de gastar para socorrer suas populações. Aquele mesmo que passou décadas ensinando governos as belezas de austeridade. O que está em jogo não são apenas vidas humanas. Mas a estabilidade de um sistema.

Nas periferias dos EUA, nos bairros mais pobres das grandes cidades britânicas ou nas favelas no Brasil, o vírus matou mais. A análise da Kaiser Health News, por exemplo, revelou que os negros americanos de 65 a 74 anos morreram de covid-19 cinco vezes mais do que os brancos na mesma faixa etária.

Quando as escolas fecharam e estudantes foram instruídos a usar a Internet de casa, “descobriu-se” rapidamente que aquele instrumento revolucionário da web não era universal. Dois terços das crianças em idade escolar do mundo - ou 1,3 bilhão de crianças de 3 a 17 anos de idade - não têm conexão à Internet em suas casas, de acordo com um relatório da Unicef e da União Internacional de Telecomunicações.

A verdade inconveniente é que, em 2020, a Internet não é para todos. Não há um fosso entre diferentes grupos. Há um oceano de distância entre a porção conectada do mundo e aqueles que apenas sonham com um lápis.

Quando a OMS sugeriu que todos lavassem suas mãos na esperança de frear a pandemia, descobriu que 25% dos postos de saúde pelo mundo não contavam com água. Também se descobriu que milhões de pessoas viviam no fio de uma navalha e que qualquer abalo os jogaria de volta a uma pobreza profunda. A fome voltou e o futuro ficou mais distante.

Quando governos tentaram sair ao socorro de suas populações, se depararam com a constatação de que direitos, formalidades e redes de proteção se limitavam apenas a uma minoria privilegiada.

Em 2020, mais de 2 bilhões de trabalhadores atuam na informalidade. Ou seja, 62% de todos os que trabalham no mundo. Nos países de renda baixa, essa taxa chega a 90%.

Quando bares, hotéis e restaurantes fecharam na rica e sofisticada cidade de Genebra, das sombras surgiu uma fila inesperada e inconveniente de milhares de pessoas esperando pela entrega de sacos de comida por grupos de caridade. Eram os imigrantes que, escondidos em cozinhas, lavanderias e nos bastidores do luxo, garantiam que o sistema funcionasse.

E quando, já exaustas, sociedades receberam a notícia de que uma empresa alemã havia descoberto uma vacina com uma alta chance de eficácia, a verdade inconveniente é que, de fato, tal conquista havia sido atingida por um casal de imigrantes turcos. Teriam eles conseguido entrar hoje na Europa?

Guias foram elaborados por autoridades sobre como se despedir daqueles que amamos. Mas não existe guia para a falta de um abraço, de um ombro ou de uma mão que oferece um lenço. A verdade inconveniente é de que o luto faz parte da vida.

Em 2020, um espelho foi colocado diante do mundo. E, como uma realidade que não se pode ignorar, esse mundo não teve o poder de escolher apenas os reflexos que interessavam. A imagem que despontou era intransigente. Não tolerou manipulações. Sim, ali estavam a genialidade humana, a solidariedade e a beleza. Mas também verdades inconvenientes que preferiríamos não ver.

Elas nunca estiveram escondidas e 2020 forçou a suspensão de um cegueira coletiva e deliberada.

Poderemos optar por fechar os olhos de novo. E certamente muitos escolherão esse caminho em 2021. Mas, no silêncio envergonhado de alguns, no pesadelo de noites de calor ou na reflexão íntima de nossos destinos comuns, não há mais como apagar do inconsciente as imagens de um mundo insustentável.

*Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.


Bruno Boghossian: Bolsonaro pede que governo divulgue perigos de vacinas contra a Covid

Uso da máquina em campanha contra imunização aumenta responsabilidade por mortes na pandemia

Jair Bolsonaro trabalha para que o governo faça uma campanha oficial contra a vacinação do coronavírus. Em entrevista à Band, o presidente revelou ter pedido ao ministro da Saúde que comece "a mostrar o que seria a bula desse medicamento". Em vez de garantir um processo seguro, ele quer que as autoridades digam que a imunização é perigosa.

"Lá no meio dessa bula está escrito que a empresa não se responsabiliza por qualquer efeito colateral. Isso acende uma luz amarela. A gente começa a perguntar para o povo: você vai tomar essa vacina?", declarou.

Além de abastecer a desconfiança da população e alimentar teorias conspiratórias em discursos públicos, o presidente acionou também a máquina do governo em sua cruzada contra a imunização. Se alguém tinha dificuldades para enxergar a responsabilidade direta de Bolsonaro pelo morticínio na pandemia, não é preciso perder mais tempo.

Enquanto se empenha para desestimular a imunização, o presidente tenta empurrar medicamentos sem eficácia comprovada, como a cloroquina. "Eu não sou contra a vacina, mas sou plenamente favorável a esse tratamento preventivo que a gente tem no Brasil", afirmou, na entrevista desta terça-feira (15).

Bolsonaro também disse que o governo vai determinar que cada brasileiro assine um termo de responsabilidade ao receber o imunizante. Ele só não disse que é preciso fazer o mesmo para receber cloroquina. O texto alerta que o medicamento pode causar disfunção cardíaca e que não há provas de que ele funcione.

Quando a morte de um voluntário forçou a interrupção nos testes da Coronavac em São Paulo, o presidente comemorou: "Mais uma que Jair Bolsonaro ganha". Se as vacinas desenvolvidas até aqui se mostrarem seguras, cada cidadão que recusar o imunizante também poderá ser incluído em sua conta.

Desde agosto, o percentual de brasileiros que não querem se vacinar subiu de 9% para 22%. São 46 milhões de pessoas que podem sofrer com a doença ou espalhar o vírus.


Folha de S. Paulo: Maioria isenta Bolsonaro por mortes na pandemia, aponta Datafolha

Para 42% dos brasileiros, no entanto, condução da pandemia pelo presidente é ruim ou péssima

Thiago Amâncio, Folha de S. Paulo

As mais de 181 mil mortes registradas no Brasil pela Covid-19 não podem ser colocadas na conta do presidente da República, Jair Bolsonaro, na avaliação da maioria dos brasileiros, segundo pesquisa Datafolha.

Para 52% dos entrevistados, Bolsonaro não tem nenhuma culpa pelo total de mortos pelo novo coronavírus no Brasil. Outros 38% disseram crer que o presidente é um dos culpados, mas não o principal, e 8% afirmaram que ele é o principal culpado pelas mortes.

Em diversas ocasiões o presidente da República menosprezou a gravidade da pandemia da Covid-19, que já matou mais de 1,6 milhão de pessoas em todo o mundo.

A declaração mais famosa foi de que a doença seria apenas uma “gripezinha”, mas Bolsonaro acumulou outras pérolas, ao dizer, por exemplo, “e daí?” ou “eu não sou coveiro”, ao ser questionado sobre número de mortes.

Mais recentemente, chegou a dizer que o Brasil deveria “deixar de ser um país de maricas” e, apesar da nova alta de número de casos, disse que “estamos vivendo um finalzinho de pandemia”.

Mesmo assim, cresceu a parcela da população que isenta o presidente: eram 47% os que diziam que ele não tinha culpa nenhuma em pesquisa feita pelo Datafolha em agosto.

Embora a maioria da população isente Bolsonaro da responsabilidade pelas mortes, isso não quer dizer que o desempenho do chefe do Executivo é bem avaliado pela população brasileira.

Dos entrevistados, 42% avaliam como ruim ou péssima a atuação de Bolsonaro em relação à pandemia. Já 27% veem as ações do presidente como regulares, e 30% avaliam como ótimas ou boas.

Mulheres tendem a avaliar o desempenho do presidente na pandemia pior do que homens (47% delas consideram ruim ou péssimo, contra 35% deles), e há diferença grande entre mais ricos (55% avaliam mal) e escolarizados (57%), além de quem vive nas grandes cidades (onde 49% avaliam mal as ações do presidente, contra 36% no interior).

A maior parte dos entrevistados (53%) disse acreditar que o Brasil não fez o que era preciso para evitar as mais de 181 mil mortes pela Covid-19, enquanto se dividem igualmente o restante que pensa que nada que o país fizesse evitaria esse número (22%) e os que pensam que o Brasil tomou as atitudes necessárias para evitá-lo (22%).

A pesquisa Datafolha mostra também que está em baixa a avaliação do desempenho do Ministério da Saúde na condução da pandemia.

Hoje, 35% consideram o desempenho da pasta como ótimo ou bom. Esse número chegou a 76% em 3 de abril, quando o ministério era chefiado por Luiz Henrique Mandetta (DEM), médico e deputado federal que se contrapunha ao presidente ao defender medidas de distanciamento social e concedia entrevistas diariamente para divulgar dados e ações do governo.

Após uma série de atritos com Bolsonaro, que negava a gravidade da doença e que fez aparições públicas que provocavam aglomerações, Mandetta foi demitido em 16 de abril.

Assumiu, em seu lugar, outro médico, Nelson Teich. Datafolha de 27 de abril mostrava que 55% das pessoas avaliavam como bom ou ótimo o desempenho do Ministério da Saúde na época.

Menos de um mês após assumir o cargo, no meio de maio, Teich também deixou a pasta, após embates com o presidente, que queria incluir a recomendação da cloroquina para pacientes infectados com o vírus mesmo sem evidência científica da eficácia do medicamento.

Em seu lugar ficou, a princípio interinamente e depois efetivado, o secretário executivo da pasta, o general Eduardo Pazuello, sem formação médica e muito próximo do presidente. Sob a gestão do militar, a avaliação do desempenho do ministério da Saúde continuou em queda.

Pazuello tem protagonizado uma disputa com o governo de São Paulo, que anunciou importaçãoprodução e administração de vacinas contra a Covid-19 de forma independente do governo federal.

O ministro tem se contraposto ao governador João Doria (PSDB), que antagoniza com Bolsonaro e usa o plano de vacinação como principal arma política para uma candidatura à Presidência em 2022.

Pazuello ainda não apresentou à população um plano de vacinação, embora a imunização já tenha começado no Reino Unido e esteja prestes a iniciar nos Estados Unidos.

Em resposta a ações que tramitam no Supremo Tribunal Federal cobrando um plano federal, Pazuello encaminhou um documento à corte que não prevê data e estima vacinar apenas um terço do necessário. Enquanto o tribunal tornava público o documento, no sábado (12), o ministro tirou parte do dia para almoçar com o cantor sertanejo Zezé Di Camargo.

Após a divulgação do documento, pesquisadores que constam como autores do plano afirmaram que nem sequer chegaram a ver o texto.

O Datafolha mostra ainda que a avaliação que a população faz da atuação dos governadores é melhor que a do presidente —41% dos entrevistados considera o desempenho frente a pandemia como bom ou ótimo, e 30% considera ruim ou péssimo.

É no Sudeste onde a população avalia pior o governante —35% considera o desempenho do mandatário estadual durante a pandemia ótimo ou bom, enquanto 36% o considera ruim ou péssimo, e 29% diz ser regular. Já na região Sul, 52% consideram o desempenho do governador bom ou ótimo, enquanto apenas 19% o avaliam mal.

Por fim, o Datafolha também perguntou aos entrevistados sobre como veem o desempenho dos prefeitos de suas cidades na condução da pandemia: aprovados por 42% e reprovados por 30%.

A pesquisa Datafolha foi feita entre 8 e 10 de dezembro com 2.016 brasileiros adultos em todas as regiões e estados do país, por telefone, com ligações para aparelhos celulares (usados por 90% da população). A margem de erro é de dois pontos percentuais.


Ascânio Seleme: Crime sem perdão contra os brasileiros

Muitas das dezenas de milhares de mortes que vão ocorrer nos primeiros meses do ano que vem devem ser atribuídas às estúpidas diretrizes políticas de Bolsonaro

Morrerão 44.545 brasileiros de Covid nos meses de janeiro e fevereiro do ano que vem, mantida a média atual de 775 óbitos registrados em 24 horas. Muitas destas pessoas poderiam ser salvas se o governo de Jair Bolsonaro não fosse negacionista e, por consequência, deliberadamente ineficiente. O Ministério da Saúde anunciou que vai iniciar a vacinação no Brasil apenas em março, acrescentando que somente um terço dos brasileiros serão imunizados em 2021. Além disso, descartou três das quatro vacinas que foram testadas no Brasil.

Difícil dizer quantas exatamente, mas muitas das dezenas de milhares de mortes que vão ocorrer nos primeiros meses do ano que vem devem ser atribuídas às estúpidas diretrizes políticas de Bolsonaro, obedecidas cegamente pelo imprevidente ministro Eduardo Pazuello. Se a vacinação começar na verdade somente no final de março ou no início de abril, como informam fontes do Ministério da Saúde, o número de mortos até que se comece o processo de imunização vai passar dos 65 mil. O lamentável é que o mais provável seja mesmo o pior cenário, dada a estupenda inoperância governamental.

A Inglaterra começa a vacinação muito provavelmente antes do Natal. Outros países europeus iniciam o processo massivo de imunização na primeira semana de janeiro. Na Argentina, do “inimigo” Alberto Fernández, a vacinação começa na primeira quinzena de janeiro. Também México, Chile, Peru e Costa Rica, para ficar apenas aqui na nossa região, começam a vacinar suas populações entre o fim de dezembro e o início de janeiro de 2021. Todos estes países compraram a vacina do laboratório Pfizer, que o governo brasileiro se recusa a considerar alegando que a estocagem a temperaturas muito baixas é complicada. No Equador deve ser mais complicado que aqui, mas lá também as vacinas da Pfizer começarão a ser administradas em janeiro.

Além do negacionismo declarado de Jair Bolsonaro, seus subalternos dobram-se à sua orientação ou são demitidos, como foram Luiz Mandetta e Nelson Teich. Por isso, o ministro Pazuello, um general que temporariamente tirou a farda mas jamais conseguirá vestir um avental, fala e faz apenas o que seu chefe mandar. “Obedece quem tem juízo”, disse o desajuizado general que, indo pela cabeça do presidente, trabalha contra os interesses do seu ministério, contra a saúde pública, o que é crime. Na Anvisa, o presidente é outro militar, o almirante Antônio Barra Torres, que também bate continência para qualquer barbaridade que o capitão lhe disser.

Não foi por outra razão que a Anvisa tentou atrasar os testes da CoronaVac em São Paulo, em novembro. Jamais se justificaria a paralisação dos trabalhos em razão do suicídio cometido por uma das pessoas que estavam sendo testadas pelo Instituto Butantan. Mas foi o que a Anvisa fez. No final, foi um vexame protagonizado por um militar e dois subalternos curvados como ele. Na ocasião, o governador de São Paulo identificou corretamente o movimento como uma ação política do Planalto. Mas João Doria tinha desde então o antídoto para o caso de a má vontade da Anvisa perseverar e mais adiante ela se recusar a certificar a vacina, que já está em sua última fase de testes.

Desde meados de novembro, o governador já informava que se três agências estrangeiras do porte da Anvisa liberarem a vacina, ela pode ser usada em qualquer outro país por acordo global aprovado pela OMS. Medicamentos testados pela FDA americana, por exemplo, são importados pelo Brasil com prévia anuência da Anvisa, mesmo sem testagens ou estudos adicionais. Por isso, São Paulo vai ignorar a orientação do governo e iniciar a vacinação com a CoronaVac no estado ainda em janeiro, desafiou Doria na quinta-feira.

O problema é que Bolsonaro é um estorvo. Ele fará o que for preciso para sabotar a vacina de São Paulo, que terá 40 milhões de doses prontas para serem administradas até o dia 15 de janeiro. Evitar que São Paulo saia na frente é tudo o que o presidente negacionista mais deseja. Não estranhem se ele mandar a Polícia Federal ocupar o Instituto Butantan para impedir a produção ou a distribuição das vacinas. Seria um absurdo, claro. Bolsonaro não deve ser tão alucinado assim. O resultado seria catastrófico, e o crime imperdoável já cometido se agravaria e se tornaria doloso.

Seringas

Fabricantes dizem que vão precisar de sete meses para entregar as 200 milhões de seringas necessárias para imunizar os brasileiros. Fala sério. Aumentem a linha de produção em quatro turnos, façam novas fábricas, adaptem outras. Estamos em guerra. Logo depois do ataque japonês a Pearl Harbor, o presidente Franklin Roosevelt mandou que a indústria americana produzisse, em dois anos, 185 mil aviões, 120 mil tanques, 55 milhões de canhões antiaéreos e 18 milhões de toneladas de navios. Tudo foi produzido no prazo dado. Agora, claro, no caso das seringas é preciso haver a ordem, que até agora não foi dada pelo inoperante governo brasileiro.

Revalidando remédios

Um trabalho publicado em 2003 pela Escola de Medicina de Harvard informa que 90% dos remédios continuam sendo eficientes mesmo 15 anos depois de expiradas suas datas de validade. A questão virou assunto no Brasil quando descobriu-se que seis milhões de doses do teste para coronavírus, que foram abandonadas pelo ineficiente Ministério da Saúde em um galpão de São Paulo, têm data de validade até janeiro do ano que vem. Segundo a FDA, a seríssima similar da Anvisa nos EUA, excluídos o trinitrato de glicerina, a insulina e os antibióticos líquidos, a maioria dos medicamentos duram muito, mas muito mais do que estabelecido pelos laboratórios fabricantes.

Simplíssimo

O inacreditável presidente do Brasil produziu outra de suas costumeiras asneiras esta semana. Numa entrevista na terça explicou por que ainda não cumprimentou o presidente eleito dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden. “Teve muita fraude lá”, explicou o simplíssimo do alto da sabedoria que subtraiu do extraordinário ministro Ernesto Araújo.

Campeão de rachadinhas

O candidato de Bolsonaro para presidir a Câmara, deputado Arthur Lira, é um velho conhecido da Justiça. O indigitado é réu em processos por desvios de recursos públicos e enriquecimento ilícito, foi denunciado por lavagem de dinheiro na Lava-Jato e responde a ação no Supremo por violência doméstica. Não bastasse isso, o “Estadão” publicou na quinta-feira matéria do repórter Breno Pires relatando desvios de mais de R$ 1 milhão dos contracheques de funcionários do gabinete de Lira em Alagoas. Trata-se de um campeão de falcatruas no estado, o que não é pouca coisa em se tratando da terra de Fernando Collor e Renan Calheiros. Mas o deputado pode ficar tranquilo, Bolsonaro já mandou avisar que sua família considera que denúncias de rachadinha são sacanagem da imprensa. Sua excelência anunciou ainda que vai criar ministérios para trocar por votos em favor de Lira.

FLA incompetente

Era mito, era miragem, a famosa competência da diretoria do Flamengo. Em 2019, ao ganhar quase tudo, criou-se uma aura de infalibilidade em torno dos cartolas rubro-negros. Mas, bastou Jesus, Rafinha e Mari saírem para a verdade vir à tona. As contratações dos substitutos e reforços foram todas erradas. Na área administrativa, o novo departamento médico do clube fracassou. Além disso, os dirigentes do Flamengo flertaram com Bolsonaro e fizeram pouco caso do coronavírus. Foi um horror. Mas antes da casa cair, um deles acabou eleito vereador. Se depender do torcedor, terá um mandato só.

26 dias

Este é o prazo que falta para a gente não precisar mais falar ou pensar no bispo Marcelo Crivella. O carioca deve se sentir aliviado, como se acordasse de um pesadelo. Ou como se estivesse se levantando da cadeira do dentista depois de um demorado tratamento de canal. Isso não quer dizer que o Rio agora vai automaticamente voltar a dar certo. O voto de confiança que o carioca deu a Eduardo Paes foi carregado de cobranças. O prefeito eleito terá de comprovar sua capacidade de gerir situações emergenciais. O jovem secretariado indicado tem tudo para funcionar bem, mas não custa lembrar que 2021 não vem com a dinheirama pré-olímpica. De todo modo, só não precisar mais ouvir aquela vozinha de pastor de Crivella já é um ganho.

Banalidade

São cada vez mais corriqueiros os ataques armados em pequenas cidades brasileiras, como os de Criciúma e Cametá. Nenhuma dúvida, a violência no interior não tem mais medida, embora não surpreenda tanto os moradores das grandes cidades. No Rio, aqueles ataques foram comparados aos que sofremos cotidianamente por aqui. Foi Antonio Tabet quem notou primeiro: “A madrugada em Criciúma foi o que os cariocas chamam carinhosamente de quarta-feira à tarde na Tijuca”.

Herança

Na cidade maravilhosa, aliás, o tráfico segue os passos da milícia e do bicho e também começa a se transformar em capitanias hereditárias. Julia Fernandes, a filha do traficante Elias Maluco, foi presa quarta-feira pela Polícia Civil no estouro de uma boca de fumo. Outro filho do traficante, Diego Pereira da Silva, o Maluquinho, comandava o tráfico na favela do Dique, em Vigário Geral, até ser preso em fevereiro deste ano. Parece que outros filhotes do assassino de Tim Lopes já assumiram o lugar dos irmãos presos.


Ruy Castro: Mortos pela Covid na conta de Bolsonaro

O livro de Mandetta revela como o governo ignorou medidas que poderiam ter poupado vidas

O dia em que Jair Bolsonaro for levado a responder por seus atos —não se trata de se, mas quando—, o processo relativo ao seu anticombate à Covid-19 terá fartos elementos no livro "Um Paciente Chamado Brasil", do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Nele, entre relatos comprováveis por documentos e testemunhas, fica claro que, em fevereiro, Bolsonaro já sabia o que era preciso fazer para amenizar a disseminação do vírus e não quis fazer —ou fez o contrário.

No livro, com a reprodução até dos diálogos, Mandetta detalha a quem, quando, como e onde foram dados os alertas. Não foi só Bolsonaro quem ignorou a prevenção e sabotou medidas diante dos primeiros contágios e mortes. Por cumplicidade ideológica, ambições políticas ou vaidade pessoal, os paisanos e generais que o cercam deram-lhe o apoio que queria. Eles também terão seus lugares no banco dos réus.

No dia 27 de março, em reunião oficial, Mandetta comunicou ao general Braga Netto, chefe da Casa Civil, que, se a população fosse instruída a adotar medidas de distanciamento social e padrões rígidos de higiene e proteção, o Brasil teria de 60 mil a 80 mil mortos. Se não, eles chegariam a 180 mil. Bolsonaro, informado disso, preferiu acreditar em seu ex-ministro da Saúde, o sabujo Osmar Terra, que "calculou" 3.500 mortes.

Para Bolsonaro, as vítimas se limitariam a idosos, que "morreriam de qualquer jeito". Os outros seriam salvos pela cloroquina. E a quarentena era impensável, porque "poria a economia em risco" e, logo, seu governo. Foi apoiado por Paulo Guedes, ministro da Economia, e que, segundo Mandetta, só enxerga a si próprio. Guedes igualmente esquentará o banquinho no tribunal.

A 16 de abril, quando Mandetta foi demitido, o Brasil tinha 2.000 mortos por Covid. Hoje, passa dos 150 mil. Os 180 mil que Mandetta anteviu estão a caminho. E Bolsonaro diz que não são de sua conta.

O chefe da Casa Civil, Braga Netto, fala ao ex-ministro Luiz Henrique Mandetta em evento no Planalto no início de abril - Pedro Ladeira - 2.abr.2020/Folhapress

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.