Moro

Míriam Leitão: A decisão de Moro divide

Moro não virou político, mas estará em um governo que fez ameaças à democracia e tem em sua base partidos que ele condenou

A ida do juiz Sérgio Moro para o governo Jair Bolsonaro abre inúmeras dúvidas e polêmicas, mas não torna a Lava-Jato uma conspiração contra o PT. Ela tem serviços prestados ao país e atingiu políticos de diversos partidos. Moro, contudo, abriu o flanco para muitas críticas. Ele entra num governo que tem uma agenda que pode representar ameaça a direitos e garantias constitucionais e que governará com alguns dos partidos envolvidos em casos de corrupção.

O PT está dizendo que a ida de Moro é a prova final de que era tudo uma armação para tirar o ex-presidente Lula do rumo do Planalto e levá-lo para uma cela em Curitiba. Mas existem inúmeros fatos que mostram que a Lava-Lato é, e continua sendo, a mais bem sucedida operação anticorrupção do país. Ela condenou 130 pessoas, entre políticos, empresários e operadores, totalizando 1900 anos de prisão. Conseguiu recuperar R$ 12 bilhões. Puniu políticos do PMDB, do PSDB, e levou à prisão parlamentares de partidos que hoje estão indo para a base do governo Bolsonaro, como o PP. Expôs da forma mais explícita jamais vista os esquemas de corrupção dentro das empresas, como se pôde constatar na revelação da existência de um departamento dedicado à corrupção na Odebrecht. Não deixou nenhum pingo de dúvida de que diretores da Petrobras roubavam para si e para os partidos da base nos governos petistas.

O fato de o juiz Sérgio Moro virar ministro da Justiça não significa que ele “entrou na política”, como muita gente está interpretando. O cargo é técnico e pode ser exercido dessa forma ou ser ocupado por um político. Alguém ir para o governo não significa que virou um político. Inúmeras pessoas entram e saem e não viram políticos. O problema que Moro terá é com a agenda de Bolsonaro.

O presidente Bolsonaro, numa entrevista depois de eleito, reclamou de estar tendo que repetir sempre que vai respeitar a Constituição. “Parece que se não falasse isso (que respeitaria a Constituição) não seria um democrata. Você é obrigado a falar. Lamento ser obrigado a fazer isso e dizer que sou um democrata num sistema democrático.” É o caso de se pensar: por que será que perguntam? Porque ele deu sinais inequívocos em sentido contrário, ao fazer a apologia da ditadura, ao ter defendido tantas vezes soluções de força e ao ter seu filho, deputado Eduardo, dizendo que bastaria mandar um cabo e um soldado para fechar o Supremo. Nas primeiras entrevistas que concedeu após a campanha, ele reafirmou temores, como fez com as ameaças à “Folha de S. Paulo”. Moro colocou a carreira e a reputação dele em um governo que terá integrantes que já fizeram ameaça à democracia e um presidente recordista em declarações ofensivas às minorias.

Não foi outra a razão, a não ser esses temores, do tom e dos votos da sessão de quarta-feira do STF, presidida pelo próprio decano, Celso de Mello. Por nove a zero os ministros condenaram a ação policial nas universidades contra manifestações políticas. Um a um, os ministros enumeraram os direitos e garantias individuais, o compromisso com a liberdade de expressão, com a pluralidade de pensamento em ambiente acadêmico, com o respeito à Constituição. A ministra Cármen Lucia, no seu voto, invocou Ulysses Guimarães: “traidor da Constituição é traidor da Pátria”. Foram tão cristalinos os recados que é impossível não entendê-los como aviso prévio ao presidente eleito de que precisa desembarcar de algumas convicções se quiser bem governar.

Na Lava-Jato há também dúvidas sobre a decisão. O procurador Deltan Dallagnol apoia. Ele explicou, em postagem no Facebook, numa avaliação pessoal, que a decisão conseguiria consolidar os avanços, porque o combate à corrupção e ao crime organizado precisaria agora de leis mais favoráveis, como as que foram apresentadas no pacote das 10 Medidas, que ele levou ao presidente.

De fato, a Lava-Jato avançou muito, mas foi barrada em vários lugares. A Força-Tarefa de Curitiba mandou documentos para o Brasil inteiro e só houve avanço no Rio. Há muito trabalho ainda a fazer, mas em outras varas que não necessariamente a 13ª. A dúvida é o que acontecerá quando a Polícia Federal estiver investigando casos de corrupção no governo Bolsonaro? Eles podem acontecer. Moro sempre defendeu a autonomia dos órgãos de controle e da própria Polícia Federal. Espera-se que continue a fazê-lo no cargo de ministro da Justiça.


Merval Pereira: Plano Real contra corrupção

É absurdo achar que Sergio Moro, desde o início, tivesse a ideia de uma carreira política, coisa que negou várias vezes

A nomeação do juiz Sergio Moro para um Ministério da Justiça ampliado, que tratará também da segurança e dos crimes financeiros, foi uma iniciativa meritória do presidente eleito Jair Bolsonaro, além de movimento político certeiro.

As críticas da oposição, especialmente o PT, estão precificadas pelo próprio Moro, que deve ter feito um balanço dos prós e contras e, aceitando, demonstra que considera a possibilidade de montar um esquema coordenado de combate à corrupção uma tarefa acima da que se propunha como juiz.

“Um bem maior” para o país valeria, na sua avaliação, as agruras por que passará, tanto devido aos ataques da oposição, quanto aos problemas que enfrentará no interior do próprio governo, com seu jogo político a que não está habituado.

Trazer o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf ) do Ministério da Fazenda para o superministério da Justiça propiciará a que sejam acompanhados em tempo real os alertas de movimentação financeira, sinais exteriores de riqueza que passam pelos órgãos fiscalizadores que não têm como objetivo prioritário o combate à lavagem de dinheiro ou o combate à corrupção.

Em vez de um órgão fiscalizador burocrático do ponto de vista econômico, será um vigilante das transações financeiras que possam indicar crimes. Esse será um papel importante no combate ao crime organizado, pois assim o Ministério da Justiça poderá estabelecer políticas para cortar o suprimento de dinheiro que o financia.

Durante a Operação Lava-Jato, e mesmo antes, quando atuou como assistente da ministra Rosa Weber no julgamento do mensalão, o juiz Moro constatou que o Coaf registrou operações atípicas, mas nada aconteceu de concreto. Moro já havia dito que o país precisava de um “Plano Real contra a corrupção”, e o governo Bolsonaro está lhe dando as condições para estabelecer a ligação entre os diversos órgãos de fiscalização, inclusive o controle das fronteiras, por onde entram armas e contrabando.

O PT vai tentar atacar a nomeação do juiz Moro para o Ministério da Justiça com a alegação de que é prova da tendência contrária a Lula no julgamento. Mas, quando o ex-presidente foi condenado, nem se sabia se Bolsonaro seria candidato. E, naquele momento, Lula era o favorito à Presidência, só ficando inviabilizado pela Lei da Ficha Limpa, com o que Moro não tem nada a ver.

Se a condenação de Lula fosse baseada em erros jurídicos ou provas inválidas, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) teria anulado a sentença de Moro. Ao contrário, os juízes do TRF-4 aumentaram a pena do ex-presidente, condenação em segunda instância que o transformou em ficha-suja.

É absurdo achar que Moro, desde o início, tivesse a ideia de uma carreira política, coisa que negou várias vezes. Seria condenável se tivesse abandonado a Justiça para se candidatar ao Congresso ou ao governo, de algum estado ou mesmo do país, como chegou a ser cogitado por vários partidos políticos. Embora existam exemplos no meio político, como o governador do Maranhão, Flavio Dino, do PC doB, que largou o Judiciário para entrar na política partidária.

É muito bom que ele tenha aceitado o cargo num governo que tem uma agenda anticorrupção e está dando a ele todos os instrumentos para montar um esquema anticrime organizado muito necessário, pois o país chegou a um limite de corrupção inaceitável.

Moro disse que o Brasil precisava de um Plano Real contra a corrupção e, aparentemente, o presidente eleito está dando a ele condições de montar grande esquema para estimular as investigações e a Polícia Federal. As medidas contra a corrupção apresentadas pela Transparência Internacional, FGV e procuradores de Curitiba têm mais chance de serem aprovadas, porque haverá um ministro poderoso empenhado nisso.

Moro poderá até mesmo ajudar o governo a superar certas questões polêmicas, como a classificação de terrorismo para os atos do MST ou do MTST, ou a permissão para matar que se pretende dar à polícia, especialmente no Rio, onde o futuro governador Wilson Witzel anuncia, com o apoio do presidente eleito, que treinará atiradores de elite para atacar bandidos que andem de fuzil. São medidas que, provavelmente, serão barradas na Justiça, e Moro poderá aconselhar a melhor maneira legal de fazer o combate.


Vera Magalhães: Ganha Bolsonaro, perde a Lava Jato

O aceite de Sérgio Moro ao convite para assumir um super Ministério da Justiça é um golaço para Jair Bolsonaro, mas pode significar o início do fim da Operação Lava Jato —além de representar um risco talvez desnecessário para a imagem que o juiz construiu nos últimos anos.

A decisão de Bolsonaro de turbinar a Justiça com a volta das atribuições relativas à segurança pública e todos os órgãos que atuam no combate à corrupção e a crimes financeiros deu a Moro uma justificativa forte para aceitar o convite.

Mas não anula o fato de que o coordenador da Lava Jato está se associando politicamente a um político que acaba de ser eleito, entre outras razões, como substrato da operação que ele comandou. Isso vai fortalecer a narrativa falsa que o PT vem sustentando nos últimos anos: a de que Moro promoveu uma cruzada política contra Lula e os demais caciques do partido.

Falsa porque o arcabouço reunido pela Lava Jato, composto de provas, dinheiro devolvido, delações premiadas, depoimentos, rastreamento de dinheiro desviado pelo mundo, depoimentos, imóveis e outros bens arrestados e a recuperação da Petrobras depois de ter sido debulhada pelo conluio de políticos e empresários não se resume a Moro nem é demolível na base do gogó.

De todo modo, se torna imperioso que Moro se afaste de suas atribuições imediatamente. Isso leva uma nuvem de incerteza sobre qual será a dinâmica da operação de agora em diante, sendo que ainda há processos importantes em andamento —como os relativos ao sítio de Atibaia e dos imoveis no Ipiranga e em São Bernardo que a Odebrecht teria comprado como propina disfarçada para Lula.

Ao partir para uma nova empreitada política, Moro deixa, aos 45 anos, uma carreira brilhante e ainda iniciante de juiz. Sai da magistratura ainda na primeira instância, a despeito dos feitos que já coleciona. Parece óbvio que teria mais tempo, mais independência e mais meios de combater a corrupção mantendo suas funções jurisdicionais, ascendendo na carreira sem ser subordinado a um político do que num posto que, por mais emperiquitado que esteja, no fundo é apenas uma escala para o Supremo Tribunal Federal.

Com as credenciais que tem, Moro não precisava desse pit stop para ascender à mais alta corte do País. Tem notório saber jurídico, demonstrou arrojo na aplicação da lei e certamente pode contribuir para arejar o Supremo. Bastaria esperar um ano. Mas Moro já demonstrou muitas vezes que tem pressa.

Do ponto de vista de Bolsonaro, a escolha engrandece o ministério que ele vai compondo. A presença de Moro e de Paulo Guedes permitirá ao presidente eleito dizer que cumpriu sua disposição anunciada de se cercar de nomes de prestígio em duas das principais áreas do governo.

Para a sociedade, a presença de Moro no primeiro escalão funciona como um sinal de que o combate à corrupção será uma prioridade. E, espera-se, que o sério juiz será uma garantia a mais, além da palavra já empenhada por Bolsonaro, de que o cumprimento à risca da Constituição dará lugar de fato à retórica do passado.


El País: Nomeação de Moro aumenta munição para acusações de ação política do magistrado

Entre os que atuam no combate à corrupção, a indicação de Moro é uma "oportunidade". Mas juristas e petistas afirmam que ida de juiz para o Governo demonstra viés político de sua atuação

Considerado o maior algoz do PT, responsável pela condenação em primeira instância do ex-presidente Lula, o que abriu caminho para tirá-lo da disputa eleitoral, o juiz Sérgio Moro aceitou assumir nesta quinta-feira um dos mais importantes ministérios do Governo de Jair Bolsonaro. O futuro superministro da Justiça e Segurança Pública irá fazer parte de uma gestão assumidamente antipetista, com um presidente que falou até mesmo em “varrer os vermelhos” do país durante a campanha. Com isso, o juiz da Operação Lava Jato se tornou uma vidraça para os críticos que o acusavam de atuação política contra o PT em suas decisões.

A defesa de Lula afirmou que a nomeação "prova definitivamente que Lula foi processado, condenado e encarcerado sem que tenha cometido crime, com o claro objetivo de interditá-lo politicamente" e diz que tomará "as medidas cabíveis no plano nacional e internacional para reforçar o direito do ex-presidente a um julgamento justo". Em nota, Moro, que em diversas ocasiões afirmou que “jamais entraria para a política”, deu a tônica de como se dará sua atuação: uma “forte agenda anticorrupção e anticrime organizado, com respeito à Constituição, à lei e aos direitos”. A pasta que caberá a ele será uma junção de várias secretarias e ministérios que ainda não está completamente definida, segundo Bolsonaro. Transparência, Segurança Pública, Justiça, Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras, atualmente ligado à Fazenda), e Controladoria-Geral da União devem integrar a pasta. O magistrado terá o controle sobre a Polícia Federal, uma das principais entidades responsáveis pela Operação Lava Jato – sendo a outra o Ministério Público Federal, que não será subordinado a Moro.

Ao tomar a decisão de ingressar no novo Governo, Moro abriu mão de uma carreira com estabilidade em troca de um cargo do qual pode ser mandando embora a qualquer momento. Por isso, gerou especulações de que estaria de olho em uma indicação para o Supremo Tribunal Federal em novembro de 2020, quando o decano Celso de Mello se aposentará, uma tese confirmada por Bolsonaro em uma entrevista coletiva na tarde desta quinta. Outra possibilidade seria a de que Moro disputasse a presidência em 2022, mas esta hipótese dependeria em grande medida da aprovação, pelo atual presidente eleito, do fim da reeleição, uma medida defendida por ele durante a campanha.

Independentemente de qual o caminho a ser trilhado pelo juiz, a decisão "deixou o Judiciário em situação difícil, joga uma sombra sobre este poder no sentido de que fortalece o discurso de que existia uma atuação política por parte do magistrado”, acredita o jurista Walter Maieróvitch. Ele também vê como “incompatível” para um juiz de formação humanista “o alinhamento a um Governo cujo presidente eleito diz ter o livro do coronel e torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra em sua cabeceira, e que afirma ser favorável à ditadura militar, pena de morte, redução da maioridade penal e ser contra a liberdade de imprensa”.

Dois fatos recentes dão ainda mais munição para as acusações de atuação política de Moro no magistério durante as eleições. Em 1º de outubro, uma semana antes do primeiro turno, Moro retirou o sigilo de parte da delação do ex-ministro do PT Antônio Palocci que implicava ainda mais Lula. E o vice-presidente eleito, general Hamilton Mourão, afirmou que as primeiras sondagens e contatos com o juiz ocorreram “semanas atrás, durante a campanha”. Esta aproximação teria sido feita pelo futuro superministro da Economia, Paulo Guedes. Questionado sobre isso, Bolsonaro discordou do relato de seu vice, e afirmou que os contatos de Guedes com o juiz se deram apenas depois das eleições: "Tenho pouco contato com o Mourão", disparou o presidente eleito, que afirmou na tarde desta quinta que se os petistas criticaram a escolha de Moro é sinal de que ele fez "a coisa certa".

A estes episódios eleitorais que podem lhe imprimir o rótulo de ter agido contra o PT somam-se outros fatos já criticados durante o curso da Operação Lava Jato. Como, por exemplo, a condução coercitiva do ex-presidente Lula, feita sem convocação formal e, portanto, irregular (e condenada pelo STF) e a retirada de sigilo de áudios de conversa do petista com a então presidenta Dilma Rousseff. Este último fato deu combustível para a oposição que terminou por afastar a presidenta do cargo. Posteriormente, o juiz se envolveu em outra polêmica ao fazer um pedido para que a prisão de Lula fosse mantida, contrariando ordem de um desembargador do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, hierarquicamente superior a Moro.

Deltan Dallagnol

@deltanmd

Como Ministro da Justiça, o juiz Sergio Moro poderá impactar ainda órgãos muito importantes para o controle da corrupção, como a Polícia Federal, a CGU e o COAF, ampliando sua influência positiva dos casos em Curitiba para todo o país.

Deltan Dallagnol

@deltanmd

Se o juiz Moro tivesse aspiração política, ele poderia ter se tornado presidente ou senador nas últimas eleições com alta probabilidade de êxito. Mentiras como essa serão repetidas, mas não vão abalar a LJ, em que atuam não só um juiz, mas 14 da primeira à última instância.

Os petistas dispararam contra o magistrado minutos após ele ter aceito o convite. A presidenta da legenda, Gleisi Hoffmann, chamou a nomeação do magistrado de “a fraude do século”. “Bolsonaro só foi eleito porque Lula foi injustamente condenado e impedido de participar da eleição... Pelo juiz Sérgio Moro. Ajudou a eleger [Bolsonaro], ajudará a governar”, afirmou. O candidato derrotado Fernando Haddad também criticou a escolha: “O significado da indicação de Sérgio Moro para Ministro da Justiça só será compreendido pela mídia e fóruns internacionais”. A ex-presidenta Dilma Rousseff foi mais direta, e após citar os abusos cometidos pelo juiz na magistratura afirmou que “o juiz está nu”. Outros deputados da oposição também criticaram a indicação. “O que Bolsonaro está oferecendo a Moro não se chama Ministério da Justiça (...) se chama recompensa!”, afirmou Glauber Braga (PSOL-RJ), referindo-se à acusação de o juiz ter atuado para tirar da disputa eleitoral o ex-presidente Lula.

Para Thiago Bottino, professor da FGV Direito Rio, a ida de Moro para o Ministério da Justiça reforça um pouco a tese petista de perseguição, mas, segundo ele, “para se dizer que um juiz é parcial, que age com interesses, é preciso demonstrar por meio de atos, de comportamentos que ele tenha adotado”. Para Bottino, isso se aplicaria muito mais a episódios como a condução coercitiva de Lula e o vazamento dos áudios entre o ex-presidente e a então presidenta Dilma Rousseff. Diante das controvérsias passadas, a adesão de Moro ao

Governo Bolsonaro não lhe parece problemática. Pelo contrário.

“Sua postura como juiz sempre foi muito mais ativa do que se espera. Tem de ser neutro, ponderado, equilibrado, imparcial, e ele sempre se mostrou diferente disso. No ministério, esse tipo de postura não é problemática”, diz o professor. “O ambiente dele é mais esse mesmo. A rigor, o Bolsonaro recebeu votos para implantar determinadas políticas, com um discurso moralista, de não aceitar a corrupção. Acho que ele [Moro] representa bem esse discurso. Está alinhado com o que o povo brasileiro escolheu para ser política pública nos próximos quatro anos”.

Dentro do círculo bolsonarista e em parte de setores do meio jurídico a indicação de Moro foi muito bem vista. Em nota, a assessoria de imprensa da força-tarefa da Lava Jato informou que “não iria se manifestar oficialmente” sobre a indicação de Moro. O procurador Deltan Dallagnol, no entanto, usou sua conta no Twitter para parabenizar o juiz, e criticar as acusações de atuação política do magistrado: “Se o juiz Moro tivesse aspiração política, ele poderia ter se tornado presidente ou senador nas últimas eleições com alta probabilidade de êxito”. Ele disse ainda que “em Curitiba, a Lava Jato seguirá com outros magistrados (...) Há ainda bastante por fazer e será feito. Perde-se o grande talento de um juiz, mas a maior parte da equipe seguirá firme lutando contra a corrupção”.

O futuro ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, afirmou nesta quinta-feira que havia conversado com Moro na última semana e que o futuro titular da Justiça receberá do novo Governo toda a estrutura para fazer "um combate implacável contra a corrupção". Moro também recebeu os parabéns de Fernando Mendes, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil: “Cumprimento o Sergio Moro pelo convite para assumir o cargo de Ministro da Justiça. Desejo-lhe sorte nas novas funções. Moro sempre foi um juiz federal exemplar e que muito contribuiu para o fortalecimento da Justiça Federal”. O colega Marcelo Bretas, juiz de primeira instância da Lava Jato no Rio, também o congratulou. “Ao colega e amigo Sérgio Moro, desejo sucesso. Competência profissional e dignidade pessoal não lhe faltam para exercer as maiores funções em nossa República”, escreveu no Twitter.

Quem atua diretamente no combate à corrupção viu na indicação de Moro uma oportunidade para o aprimoramento da legislação e dos métodos em vigor. O promotor Marcelo Mendroni, do Grupo de Repressão de Delitos Econômicos do Estado de São Paulo, defendeu a indicação de Moro por seu perfil linha-dura no combate ao crime organizado. “Acho um nome excelente, porque no país não dá mais para ter nenhuma condescendência com grandes corrupções”, afirmou. Segundo o promotor, ao assumir o controle da Justiça o magistrado poderá “criar mecanismos que vão auxiliar os Ministérios Públicos e as polícias estaduais e federal” nesta tarefa. Mendroni explica que o combate à corrupção gira em torno de um tripé: “Estrutura, legislação adequada e treinamento para policiais e promotores atuarem em anticorrupção”. Assim, caberia à pasta que Moro chefiará criar “mais e melhores grupos especializados de policiais e do MP focados em fiscalizar as grandes licitações para evitar fraudes, e cartéis. Só assim a cultura anticorrupção se sedimentará no Estado”.


Merval Pereira: Força à Lava-Jato

Moro está convencido de que sua nomeação não empanaria a atuação na Operação Lava-Jato

Além de uma escolha simbólica, que marca o compromisso, não apenas retórico, do futuro governo Bolsonaro com o combate à corrupção no país, o Ministério da Justiça poderia ser uma etapa para a nomeação do juiz Sergio Moro para o Supremo Tribunal Federal (STF) mais adiante.

Não é usual, embora não haja nada proibindo, que um juiz de primeira instância seja nomeado para o Supremo, mas é comum que o ministro da Justiça o seja. A atuação de Moro no ministério seria uma oportunidade para implementar reformas anticorrupção e anticrime organizado. E poderia servir como anteparo a eventuais excessos.

Convencido de que sua nomeação não empanaria a atuação na Operação Lava-Jato, e que os oposicionistas criticarão de qualquer maneira, como já criticam a operação em si, Moro aguarda um contato oficial para saber se as intenções do presidente eleito Jair Bolsonaro nessa área correspondem ao que pensa.

Moro não acredita que, a partir da nomeação, a tese lulista de que todo o seu trabalho nesses últimos anos foi feito por motivações políticas seja crível para a população. Nada mais natural que um presidente eleito muito por causa do combate à corrupção, e ao apoio à Lava-Jato, convide o símbolo dessa luta para seu ministério.

Em vez de atrapalhar a condução dos processos, Moro poderá ajudar a tornar realidade medidas de combate à corrupção em sintonia com as propostas apresentadas pelos procuradores de Curitiba e ampliadas, a partir da reunião das melhores práticas nacionais e internacionais pela Transparência Internacional e as escolas de Direito da FGV do Rio e São Paulo.

São propostas de reformas legislativa, administrativa e institucional apresentadas ao Congresso, visando a oferecer soluções permanentes para o enfrentamento do crime. Se for confirmado que o governador eleito do Rio, Wilson Witzel, pretende mesmo convidar o procurador aposentado Carlos Fernando Lima para a Secretaria de Justiça no Rio, seria o embrião de um grupo que poderia dar respaldo político às propostas de combate à corrupção gestadas em Curitiba.

Carlos Fernando era um dos coordenadores dos procuradores da Operação Lava-Jato, e um dos que ativamente atuam, através das redes sociais, para disseminar as ideias do grupo e atacar o que considera ameaças de retrocesso na política de combate à corrupção.

Existe a especulação de que esse grupo poderia ser formalizado em um Conselho de Combate à Corrupção sob o comando de Moro no Ministério da Justiça, que também manteria a Polícia Federal, outra corporação fundamental no combate à corrupção dos últimos anos.

Outros estados poderiam seguir o mesmo caminho, e acabaria se formando, mesmo que informalmente, um grupo unido pelas mesmas ideias para combater a corrupção e o crime organizado, formado por servidores públicos com experiência nessa luta. Uma maneira de tornar a operação Lava-Jato irreversível.

Curiosidades
Com relação ao Supremo Tribunal Federal (STF), uma curiosidade é que, como para ser indicado é necessário “notório saber jurídico e reputação ilibada”, mas não ser advogado ou juiz, houve cinco casos de recusa, como lembra o decano do STF, ministro Celso de Mello, em seu livro “Notas sobre o Supremo Tribunal Federal”, todos no governo de Floriano Peixoto. O mais famoso deles é o do médico Barata Ribeiro, prefeito do Rio entre 1892 e 1893.

Os parlamentares concluíram que Barata Ribeiro não tinha, de acordo com documentos da época, “notório saber jurídico”, requisito fundamental para o cargo. Ele foi ministro do STF por pouco mais de dez meses e barrado na sabatina, que podia ser feita após a posse. Foi vítima da maioria oposicionista que dominava o Senado, que integrara por oito anos, a partir de 1900. Os outros quatro barrados foram os generais Ewerton Quadros e Innocêncio Galvão de Queiroz, e Antônio Sève Navarro e Demosthenes da Silveira Lobo.


Folha de S. Paulo: Moro foi 'imparcial durante toda a marcha processual', diz PGR em pedido de Lula contra juiz

Defesa queria afastar magistrado da condução do processo do ex-presidente

Por Nathan Lopes, da Folha de S. Paulo

A Procuradoria-Geral da República (PGR) posicionou-se contra o pedido da defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para considerar o juiz Sergio Moro suspeito e afastá-lo do processo do sítio de Atibaia (SP) em que o petista é réu na Justiça Federal no Paraná. Para os advogados de Lula, Moro é parcial.

Em parecer apresentado ao ministro Félix Fischer, do STJ (Superior Tribunal de Justiça) —instância em que a petição tramita agora, depois de ter sido negada tanto por Moro quanto pelo TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região)—, o subprocurador-geral da República Nívio de Freitas Silva Filho disse que "Moro se manteve imparcial durante toda a marcha processual".

O subprocurador apresentou o parecer na última segunda-feira (9), um dia após o embate jurídico dentro do TRF-4 em torno de um pedido para a libertação de Lula, que está preso na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba desde abril cumprindo pena relativa ao processo do tríplex.

Para Silva Filho, há uma "insistência infundada" da defesa do ex-presidente com pedidos para afastar Moro de processos de Lula. "Segundo bem assinalado pelas instâncias ordinárias, já foram julgadas improcedentes inúmeras exceções de suspeição".

No início do mês, o jornal "O Estado de S. Paulo" levantou que, no processo do tríplex, a defesa de Lula apresentou 78 recursos questionando ações e condutas.

Na ocasião, a advogada Valeska Teixeira Martins avaliou que a imprensa estaria tentando intimidar a defesa de Lula a não apelar.

A reportagem procurou a defesa de Lula para comentar a decisão, mas ainda não obteve resposta.

REDISCUSSÃO
O subprocurador avalia que o "inconformismo" tem como objetivo "rediscutir indefinidamente os termos da condenação proferida de forma escorreita após ampla ponderação do contexto fático", referindo-se ao caso do tríplex.

Todos os pontos de parcialidade de Moro apontados pela defesa foram refutados pelas instâncias inferiores, salientou Silva Filho. Entre eles, estão comentários sobre a Lava Jato e de que já haveria um pré-julgamento em relação a Lula.

"[As instâncias] concluíram que a defesa não demonstrou a quebra de imparcialidade do magistrado natural da causa. Assim, inviável a declaração de nulidade de todos os atos praticados no curso da ação penal", pontuou o subprocurador.

No documento, o subprocurador ainda comentou que um processo penal estabelece "procedimentos que possibilitem o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa". "A imparcialidade e a transparência são, de fato, pilares do direito processual penal, e o magistrado deve imediatamente declarar-se suspeito de analisar e julgar o feito quando houver motivo que comprometa sua isenção, o que, na hipótese, não ocorre".

O caso ainda deverá ser analisado pelo ministro Fischer. Não há prazo para que a decisão seja proferida.


Folha de S. Paulo: Moro contrariou quatro vezes ordens de tribunais superiores

Juiz da Lava Jato só não conseguiu o que queria no caso da prisão de Dirceu

Por Ricardo Balthazar, da Folha de S. Paulo

Mantida a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, chegou a quatro o número de casos em que o juiz federal Sergio Moro contrariou decisões de tribunais superiores desde o início da Lava Jato. Em três desses casos, ele conseguiu o que queria.

Responsável pelas ações da operação no Paraná, Moro só recuou uma vez até agora, ao cancelar a ordem para que o ex-ministro José Dirceu fosse monitorado por tornozeleira eletrônica após sua libertação pelo Supremo Tribunal Federal, na semana passada.

O episódio de domingo, quando Moro mandou a Polícia Federal ignorar a ordem do juiz federal Rogério Favreto para soltar Lula, foi o segundo em que ele se insurgiu contra uma decisão superior por considerar que o magistrado responsável não tinha jurisdição para lidar com o caso.

No fim de abril, um juiz do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Leão Aparecido Alves, mandou suspender o processo de extradição do empresário Raul Schmidt, que é naturalizado português, vive em Portugal e é tratado pela Lava Jato como foragido da Justiça.

Moro se recusou a retirar o pedido de extradição, argumentando que a vara em que atua é subordinada ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região e que, por isso, juízes da outra região não podem interferir em seu trabalho. "Apesar de todo o respeito que lhe cabe, [o TRF-1] não tem jurisdição sobre o assunto", disse.

O Superior Tribunal de Justiça cassou a decisão do TRF-1 e autorizou a continuidade do processo de extradição, que é conduzido pelo Ministério da Justiça. Ao tomar a medida, o ministro Sérgio Kukina disse que só o STJ tem autoridade para tanto, e que nem Moro nem Leão têm jurisdição quando atos do ministério são contestados na Justiça.

A liminar que contrariou Moro foi derrubada, mas a defesa de Schmidt conseguiu barrar a extradição nos tribunais portugueses e ele continua longe do alcance da Lava Jato. "A decisão de Moro nesse caso foi atrevida e desrespeitosa", diz o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, que representa Schmidt.

No caso de Lula, a ordem de Favreto para soltar o líder petista foi dirigida à Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, onde Lula está preso, e não a Moro. Embora tenha condenado o ex-presidente, o juiz de Curitiba não é o responsável pelo acompanhamento da execução da pena.

Os 8 capítulos da novela da soltura
Mesmo assim, a Polícia Federal seguiu a determinação de Moro, que mandou ignorar a ordem de Favreto até que o juiz João Pedro Gebran Neto, relator das ações da Lava Jato no TRF-4, se pronunciasse.

"Um juiz de primeiro grau determinar o descumprimento de uma ordem de tribunal superior é algo totalmente descabido em nosso ordenamento", diz o professor Thiago Bottino, da FGV Direito Rio.

Nesta terça (10), ao manter Lula na prisão, a presidente do STJ, ministra Laurita Vaz, criticou Favreto e elogiou Moro. Para ela, o juiz de Curitiba agiu "com oportuna precaução" ao se deparar com uma "esdrúxula situação processual".

Moro fez seu movimento mais audacioso em maio de 2014, quando a Lava Jato ainda estava no início e o ministro Teori Zavascki, do STF, mandou suspender as investigações e soltar todos que tivessem sido presos pela operação.

Em vez de simplesmente cumprir a decisão, Moro soltou o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa e pediu esclarecimentos a Teori sobre os demais presos, argumentando que havia envolvidos com tráfico de drogas e lavagem de dinheiro entre eles.

Teori reviu sua ordem após o questionamento, permitindo que a Lava Jato avançasse nos anos seguintes. Em 2016, ele declarou ilegal a decisão de Moro de divulgar conversas telefônicas de Lula gravadas com sua autorização, mas não houve sanção ao juiz em nenhuma instância do Judiciário.

Como Moro reagiu às decisões dos tribunais

Em 2014, a pedido do ex-diretor da Petrobras, o STF mandou soltar todos os presos da Lava Jato e suspender as investigações. Moro soltou Costa e convenceu o STF a recuar

Raul Schmidt
Em abril deste ano, um juiz do TRF-1 mandou parar o processo de extradição do empresário, que vive em Portugal. Moro disse que só se submete ao TRF-4. O STJ cassou a liminar do TRF-1

José Dirceu
Em junho, o STF libertou o ex-ministro, condenado por Moro a mais de 27 anos de prisão. O juiz obedeceu, mas mandou Dirceu usar tornozeleira eletrônica. O STF o obrigou a cancelar a medida

Luiz Inácio Lula da Silva
No domingo (8), quando o juiz Rogério Favreto mandou soltar o líder petista, Moro mandou a Polícia Federal ignorar a ordem e esperar outro juiz se pronunciar. A prisão foi mantida


Merval Pereira: Moro respeita o STF

Enquanto a defesa do ex-presidente Lula e os procuradores de Curitiba se digladiam em torno da decisão da Segunda Turma, que mandou para a Justiça de São Paulo algumas delações de executivos da Odebrecht relativas ao sítio de Atibaia e ao prédio do Instituto Lula, o juiz Sergio Moro coloca-se como uma voz sensata, considerando que houve uma precipitação das partes em relação à decisão do STF.

Sua interpretação da decisão do relator, ministro Dias Toffoli, que teve a maioria na Turma, parece ser a mais correta, na visão dos próprios ministros do Supremo. Moro teve o cuidado de tratar a questão com todo o respeito que merece uma decisão do STF, ao contrário do que a defesa de Lula o acusou, de não respeitar a hierarquia judiciária.

Além de salientar que é preciso, para avaliar a extensão da decisão, esperar que “o respeitável acórdão” seja publicado, Moro afirmou em seu despacho que, pelas informações disponíveis “acerca do respeitável voto do eminente Relator Ministro Dias Toffoli, redator para o acórdão, não há uma referência direta nele à presente ação penal ou alguma determinação expressa de declinação de competência desta ação penal”.

Aliás, ressalta Moro, “o eminente Ministro foi enfático em seu respeitável voto ao consignar que a decisão tinha caráter provisório e tinha presente apenas os elementos então disponíveis naqueles autos”.

Mesmo assim, o juiz Sergio Moro decidiu que o processo de “exceção de incompetência” motivado pela defesa do ex-presidente Lula deve ser retomado, e pediu que as partes envolvidas se manifestem: “(...) Não tendo a exceção sido julgada, o mais apropriado é nela reabrir, à luz da decisão da maioria da Colenda Segunda Turma do Egrégio Supremo Tribunal Federal, o prazo para manifestação das partes e, após, decidir acerca dos possíveis reflexos na competência para a presente ação penal”, afirma Moro em seu despacho.

Como a exceção de incompetência não tem efeito suspensivo, Moro decidiu que a ação penal deve continuar em Curitiba até que haja uma definição do alcance da decisão da Segunda Turma. Já os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato partiram para a crítica à decisão da Segunda Turma, afirmando que a remessa de depoimentos a outra jurisdição provocou “lamentável tumulto processual”.

E afirmaram em nota que “a decisão majoritária da 2ª Turma do STF não tem qualquer repercussão sobre a competência desse douto Juízo para promover a processar a presente ação penal”. Aliás, quem se der ao trabalho de ler com atenção o voto do ministro Dias Toffoli verificará que a decisão não firmou, em caráter definitivo, a competência do juízo em São Paulo, tampouco importou em qualquer alteração de competência de eventual investigação ou ação penal que já tramita em qualquer dos juízos.

Portanto, não decorre da decisão tomada por maioria qualquer alteração automática de competência, nem era esse o objeto dos embargos que foram acolhidos. Seguindo fontes do próprio Supremo, “interpretação que vá além da indicação do juízo destinatário de informações (declarações de colaboradores) não é minimamente coerente com a deliberação da Segunda Turma”.

Estranhamento
A consulta que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, fez ao Supremo para saber se pode continuar no país quando o presidente da República viaja, sem se tornar inelegível por assumir interinamente a Presidência, causou estranheza no Supremo Tribunal Federal.

Isso porque uma decisão favorável quebra a tradição de colocar o presidente do STF na interinidade da Presidência da República, fazendo parte da linha de substituição direta.

Não se trata de uma desfeita pessoal à ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo, mas à instituição.


Lúcio Flávio Pinto: Mais um golpe. Na Lava-Jato

A maioria da 2ª turma do Supremo Tribunal Federal começou a estripar os autos do segundo processo contra o ex-presidente Lula, que o juiz Sérgio Moro está instruindo. Por 3 a 2, a turma mandou extrair a participação da Odebrecht na produção de provas que atestam ser de Lula o sítio de Atibaia, em São Paulo.

São testemunhos dados em delação premiada, perícias e outros documentos que revelam, por trás da inexistência de registro imobiliário em nome de Lula, robustas provas indiretas de que o sítio, melhorado à custa de 800 mil reais gastos em obras nele realizadas, constituía, junto com o terreno para o Instituto Lula, um caixa de transações no valor de R$ 12 milhões, em operações de favorecimento à Odebrecht e à OAS.

Não é por outro motivo que as duas empreiteiras executaram as benfeitorias no sítio, tão significativas que não será um despropósito compará-lo à Casa da Dinda, a residência que Collor transformou em atração turística à beira do lago Paranoá, em Brasília, com as melhorias que promoveu, a mais famosa delas sendo uma exuberante cascata.

A decisão de ontem não tira o processo das mãos de Moro, mas enfraquece a sua capacidade de decidir sem o material mais relevante para provar a triangulação: as empreiteiras pagam propina, essa propina é disfarçada em obras, e, em troca, Lula manteve (e Dilma também, apesar da meteórica turbulência de Graça Foster) os diretores da Petrobrás que garantiam as “operações estruturadas” em favor das empreiteiras do cartel batizado de clube das 13.

As peças, desapartadas, serão remetidas para a justiça federal de São Paulo. Obviamente, não terão a mesma serventia que tinham em Curitiba. O prejuízo será duplo. Inviabilizará uma nova condenação de Lula?

Provavelmente, não. Os três patetas (para lembrar a classificação que Ulysses Guimarães deu aos três integrantes da Junta Militar que substituíram o enfermo presidente-general Costa e Silva, em 1969, no período mais negro da ditadura) terão que agir novamente para continuar a desconstrução. Agirão?

Audácia eles têm de sobra. Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli são crias de Lula. O personagem inusitado (e o mais nefando) entre eles, Gilmar Mendes, era execrado pelos petistas como o mensageiro de Fernando Henrique Cardoso, que o nomeou para a corte suprema da justiça brasileira.

Agora que ele é o defensor perpétuo de Lula, os petistas se calaram. Preferem ignorar, por sua utilidade, um fato evidente: Gilmar passou a tutelar Lula para proteger os seus amigos tucanos e empresários, mesmo os de maus bofes, como o dono de ônibus Jacó Barata.

A tríade está naquele plenário para dar um nó na Operação Lava-Jato. Por isso, os fundamentos jurídicos, a coerência e a compostura estão sendo deixados de lado. Seis meses depois que a 2ª turma, à unidade, decidiu manter em Curitiba as provas ligadas à Odebrecht, os três dissentiram e mudaram o entendimento.

A fugacidade é tal que parecem ter decidido tirar as provas do juiz no momento em que ele começa a entrar na fase da sentença, sem sequer olhar para o que dizem os papéis e demais elementos de prova. O relator, Edson Fachin, e o decano, Celso de Mello (cujo voto tem variado, o que o distingue da tríade, arrematada em plenário pelo inefável Marco Aurélio Mello), não tiveram qualquer dúvida: os autos fizeram o nexo entre o sítio, o terreno para o Instituto Lula, a Petrobrás, os diretores corruptos, os favores e as propinas. Logo, a materialidade estava provada.

Para os três paladinos da liberdade de colarinhos brancos, isso não interessa. Lula tem que sair da prisão. Outros têm que sair e vários outros não têm que entrar. A Lava-Jato tem que acabar. Farinha pouca, meu pirão primeiro. E, para rimar: o que fará diante disso o brasileiro?

* Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e do blog Amazônia hoje – a nova colônia mundial. Entre outros, é autor de O jornalismo na linha de tiro (2006), Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007), Memória do cotidiano (2008) e A agressão (imprensa e violência na Amazônia) (2008).


El País: STF muda de ideia e retira de Moro delação da Odebrecht que cita Lula

Segunda turma, que em outubro havia enviado trechos a Curitiba, agora diz que caso não é da Lava Jato. Defesa de Lula celebra e Gilmar Mendes sinaliza que decisão pode ter repercussão ampla

A defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso desde 7 de abril em Curitiba, teve uma rara e surpreendente vitória contra a Operação Lava Jato e o juiz Sérgio Moro cujas implicações completas ainda estão por ser conhecidas. Por maioria de votos, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta terça retirar das mãos de Moro parte das delações da Odebrecht que citam Lula e remetê-las à Justiça de São Paulo. Para três dos cinco ministros, os trechos nos quais os delatores relatam o suposto repasse de verbas indevidas para Lula, incluindo a reforma de um sítio de Atibaia (SP), não estão relacionados diretamente com a Petrobras, que é a investigação original da Lava Jato, e portanto, não deveriam ficar com o magistrado em Curitiba. O mais curioso é que os mesmos ministros haviam negado um recurso da defesa do petista em outubro no mesmo caso - e por unanimidade. Agora, mudaram de ideia os ministros Antonio Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, que acabou desempatando o jogo a favor do ex-presidente.

O advogado de Lula, Cristiano Zanin Martins, comemorou e disse que a decisão corrobora o argumento reiterado da defesa de que nenhum caso do ex-presidente deveria estar nas mãos de Moro - uma vara que seus advogados consideram artificial em Curitiba após o desmembramento da Lava Jato para juízes em vários Estados. "Entendemos que essa decisão da Suprema Corte faz cessar de uma vez por todas o juízo de exceção criado para Lula em Curitiba, impondo a remessa das ações que lá tramitam para São Paulo", disse Zanin, em nota.

Apesar das palavras de Zanin, no entanto, Moro - que condenou Lula no caso do triplex do Guarujá pelo qual ele está preso - segue, pelo menos por ora, como o juiz que sentenciará o petista em dois outros casos, só que não poderá, a princípio, usar os trechos das delações da Odebrecht que o STF resolveu enviar a São Paulo. Porém, é inegável que a decisão é um revés tanto para juiz como para os procuradores da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba.

Em um dos processo que estão em Curitiba, Lula é acusado de supostamente ter recebido propina no valor de 12,5 milhões de reais da Odebrecht. O valor é referente a um terreno em São Paulo onde, segundo delatores, seria construída a nova sede do Instituto Lula, e um imóvel vizinho ao seu apartamento em São Bernardo do Campo. Na outra ação, o ex-presidente é acusado de receber das empreiteiras OAS, Odebrecht e Schahin vantagens indevidas no valor de 1,1 milhão de reais por meio de reformas em um sítio em que frequentava em Atibaia (SP). No caso do sítio, por exemplo, a denúncia contra Lula, de março do ano passado, fala especificamente que entre 2010 e 2011, o ex-presidente se associou criminosamente à Odebrecht, "e em detrimento da Petrobras", para desviar 700.000 reais em reformas em Atibaia.

Não foi assim que entenderam nem Toffoli nem os ministros que concordaram com ele. “Não diviso, ao menos por ora, nenhuma imbricação específica dos fatos descritos (na delação) com desvios de valores operados no âmbito da Petrobras”, lançou o ministro, de acordo com o relato da assessoria do STF. Em outro momento, o magistrado comenta que os delatores falam de favores prestados "como contrapartida pela influência política exercida pelo ex-presidente em favor do grupo", mas não especificamente ligado aos contratos da estatal petroleira.

Porta aberta para questionar Moro
A forma de desmembramento da Lava Jato, que começou em Curitiba, é um dos grandes debates da operação. Não só Lula, mas réus como Paulo Skaf (MDB), da FIESP e pré-candidato ao Governo de Estado de São Paulo, já tentaram tirar os casos de Moro - Skaf com sucesso. Nesse sentido, a derrota desta terça pode ser um sinal de alerta para Curitiba. Gilmar Mendes, que costuma enviar recados em suas frequentes manifestações à imprensa, disse que a sentença pode, sim, abrir a porta para questionar os casos sob a responsabilidade da Lava Jato no Paraná. Após o julgamento, Mendes respondeu: "Qual vai ser a implicação? Obviamente que, se se declinou para São Paulo, os processos terão que ir para lá". "Poderá haver recurso em relação a processos que estão com Moro sob argumento de que não se trata de Petrobras. E isso pode vir até aqui em outro contexto. Eu não sei quais implicações em todos os casos", disse o magistrado, segundo O Globo.

Gilmar Mendes minimizou ter mudado de ideia sobre o recurso da defesa de Lula tão pouco tempo - ele que também alterou seu entendimento sobre a questão da prisão após condenação em segunda instância. Seja como for, na imprevisibilidade que domina o STF, Toffoli deixou a porta aberta para mudar de opinião mais uma vez. Disse, de acordo com a assessoria, que "a investigação se encontra em fase embrionária" e que, por isso, "sua decisão não firma, em definitivo," com qual juiz devem ficar as delações.


Eliane Cantanhêde: Republiqueta de banana?

A prisão de Lula é um aviso: quem comete crimes que ponha as barbas de molho

Muitos comemoram, muitos choram, mas não há o que comemorar nem chorar na prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, homem com biografia vibrante, que saiu do horror da miséria, sacudiu num pau de arara, virou o maior líder sindical da história recente, chegou à Presidência e saiu dela com 80% de aprovação. Mas fez tudo o que fez ao chegar ao poder.

Para o ministro Gilmar Mendes, a prisão de Lula “mancha a imagem do País”. Para a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, transforma o Brasil numa “republiqueta de bananas” aos olhos do mundo. É verdade que há grande mobilização das esquerdas brasileiras em defesa de Lula junto a governos, líderes e sociedades. Mas não é verdade que Lula seja uma “vítima das elites”, “um perseguido político”.

Assim como não se pode classificar de “golpe” o impeachment da presidente cassada Dilma Rousseff, não se pode chamar de “golpe” as sucessivas decisões que condenaram Lula a 12 anos e 1 mês de prisão.

Dilma se mostrou incompetente para gerir a política, a economia e as contas do País e efetivamente fez as “pedaladas” – deixou de transferir recursos do Tesouro para os bancos públicos pagarem os programas sociais. Por quê? Para mascarar o rombo das contas públicas e, pior, continuar gastando em ano eleitoral. É crime.

Quanto a Lula: a primeira condenação é pelo seu caso mais simples, o do triplex do Guarujá, mas isso está inserido num contexto muito mais complexo, que envolve várias outras ações, pelo sítio em Atibaia, pela Operação Zelotes, pelo Instituto Lula... E, principalmente, pela evidência (até pela fala do ex-ministro Antonio Palocci) de que Lula institucionalizou a corrupção. Corrupção sempre houve, mas articulada e operacionalizada a partir do Planalto e do Ministério da Fazenda?

O impeachment de Dilma seguiu todos os trâmites legais: o Supremo definiu o rito, a Câmara votou em dois turnos, o Senado também, a sessão final foi presidida pelo então presidente do Supremo. Tudo foi transmitido ao vivo para a população, sem uma só restrição às liberdades individuais.

E a prisão de Lula, por mais triste que seja, e é, seguiu todos os trâmites legais: investigação da Polícia Federal, do Ministério Público, da Receita, com julgamento em primeira instância, confirmada pelo TRF-4 e após tanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ) quanto o próprio Supremo Tribunal Federal negarem o pedido de habeas corpus apresentado por advogados de grande respeitabilidade.

Golpe? Que golpe? Lula apenas se tornou o foco e a síntese de um intenso debate que divide o Supremo, o Planalto, o Congresso, os partidos, os formadores de opinião e toda a sociedade brasileira. Deixar Lula livre em nome de sua biografia e de seu prestígio internacional, ou prosseguir firmemente num processo histórico de combate a uma corrupção estratosférica? Deixar Lula livre em nome de não se criminalizar todo o sistema político, ou manter o processo de depuração das instituições e dos quadros políticos? É disso que se trata.

Essas questões remetem para o voto do ministro Luís Roberto Barroso durante o julgamento no Supremo: um país não é justo quando garotos pobres com um baseado de maconha são jogados nas prisões, mas ricos, poderosos e famosos matam, roubam, corrompem e são corrompidos e nada acontece com eles.

A presidente do PT defende o regime Maduro e acusa o Brasil de “republiqueta de banana”, mas é exatamente o oposto. O que se pretende é justamente que a justiça valha para todos e que o Brasil deixe de ser uma republiqueta que massacra os pobres e endeusa os poderosos.

A prisão de Lula, aliás, é um aviso: quem comete crimes que ponha as barbas de molho. Fim da farra.


Marco Aurélio Nogueira: A esquerda que não merecemos ter

Os esquerdistas acham que com a volta de Lula o sol voltará a brilhar e a emancipação será retomada. Não se dão sequer ao trabalho de verificar os dados e de perguntar ao Lula o que ele de fato fará se for eleito presidente

Do jeito que estão as coisas, não há como cogitar da afirmação de um competitivo campo de esquerda no Brasil.

Indo além: o movimento progressista está desnorteado, desarvorado, sem fibra.

A esquerda é um universo amplo, plural, integrado por muitas correntes, agregações e pessoas. Vai do liberalismo político democrático aos defensores do socialismo, de ambientalistas e ecologistas aos libertários, dos que lutam por direitos aos que querem igualdade e reconhecimento. É parte do progressismo, do reformismo, da democracia, ainda que nem sempre acerte os passos com tais plataformas.

Quando, porém, no Brasil, você para e olha, a impressão é que a esquerda se resume ao petismo, aos seguidores de Lula e aos correligionários do PT, com seus aliados, seus trânsfugas e seus satélites.

A simplificação mental é assustadora. Um mundo todo está acabando na política. Partidos e lideranças se desfazem por efeito das transformações estruturais do capitalismo e, no Brasil, dos desdobramentos da Lava-Jato e da crise do Estado e da política. Em vez de reconhecer isso, o esquerdismo prevalecente opta por vitimizar Lula e o PT: somente eles seriam “perseguidos”. Impeachment foi golpe, eleição sem Lula seria fraude, Lula estaria sendo condenado sem prova só para não poder se candidatar, a lawfare seria a adaga espetada em seu peito. Uma catilinária ilimitada.

Tudo isso é interpretado como expressão pura da esquerda, sem mais. Blogs, robôs, sites, mídia eletrônica organizam uma incansável campanha para ampliar o diagnóstico de que tudo só acontece porque a direita (jamais definida com clareza), os liberais, os socialistas democráticos, os partidos do sistema, decidiram atacar o PT e a esquerda, porque a Globo não gosta de Lula e quer dominar tudo, porque Sergio Moro é um partidário antipetista. Porque as elites resolveram sangrar a sociedade.

Estaria assim em marcha uma violenta guinada regressista, tradução brasileira do mesmo fenômeno que se veria no mundo. Direitos pisoteados, pobres sendo remetidos ao inferno da miséria, trabalhadores encurralados, superexplorados, tratados como animais, um cenário de horror. E, no meio dele, Lula e o PT lutando como verdadeiros patronos da Humanidade, que por eles, no mundo todo, torce apaixonadamente.

Consolidou-se assim uma nova faceta do mito global do redentor.

Não há mais crítica política. Muito menos autocrítica. Os iluminados, como se fossem escolhidos, sabem tudo, dominam os mares, voam mais alto. São “perseguidos” e, por isso, automaticamente purificados, desobrigados de analisar os próprios passos, os erros cometidos, as culpas que carregam. Toda exigência deveria ser suspensa para não facilitar o trabalho da “direita”.  Durante os anos do petismo no poder, a crítica não podia ser formulada porque desestabilizaria e enfraqueceria o governo; depois do impeachment, ela é inadmissível porque serviria para fortalecer os “golpistas”. De negação em negação, de recusa em recusa, foi-se empurrando a sujeira para baixo do tapete.

A mitificação corre solta, impulsionada por gente que se vangloria de ter uma inteligência superior, experiência política e boas intenções. Converte-se Lula num factótum da perfeição, dono de uma racionalidade política jamais vista e de uma entrega total aos pobres. Passa-se uma esponja em pecados eventuais, na sede desmesurada por poder, no protagonismo centralizador, avesso a disciplinas e partidos. O mito assim forjado tem alguns pés de barro, devidamente ocultados para não estragar o enredo, mas nem por isso deixa de ser alimentado.

A convicção cega embota as mentes, a superficialidade do diagnóstico agita, mas não consegue esclarecer nem ativar um verdadeiro programa de luta e transformação. Vai-se por inércia, repetindo chavões e slogans fáceis, que se derramam como água, a um ponto em que tudo se converte em senso comum. Nesse momento, as pessoas simplesmente param de pensar. Deixam de ser autônomas, convertem-se em repetidoras passivas, que se lançam em embates infrenes contra tudo e todos.

Os que procuram complicar um pouco o argumento, ponderar ou encontrar um terreno de maior razoabilidade, são atacados sem pena nem consideração. São estigmatizados, convertidos em aliados de “golpistas”.  Avança assim um rolo compressor dedicado a disseminar um tipo de pensamento único “progressista”, a martelar verdades tidas como absolutas, a promover polarizações sempre mais insanas e insensatas, a construir uma narrativa que beira a irracionalidade.

Todos seriam parciais: o MP, a PF, Moro e a Lava Jato, os juízes do TRF-4, a Justiça inteira, as instituições em seu conjunto, os delatores premiados, a mídia. Exagera-se, para levar ao extremo uma estratégia “coitadista”, de vitimização.

O país? Ora, o país… O importante seria não perder o foco: salvar o líder redentor. Fernando Gabeira disse bem: “A esquerda decide lançar todas as suas fichas na salvação do líder num momento em que a maioria está preocupada com a salvação do País. Essa energia concentrada em salvar Lula deixa de lado algumas questões vitais que ela teria de encarar num processo eleitoral”.

O desprezo pela dúvida e pela opinião divergente culmina na redução delas ao imprestável, ao suspeito. Não haveria porque debater se o “outro” é visto como inimigo a ser destruído. É uma questão de fé.

Interditam-se assim posturas e iniciativas que poderiam ajudar a oxigenar o ambiente, a fazer avançar uma crítica mais realista, a tolerância, a busca de entendimentos para fortalecer o próprio campo da esquerda, revitalizando um patrimônio de afetos, agregações, sinergias. Para o pensamento único, a dissonância é incômoda.

Vez ou outra se ouvem vozes falando em “unidade das esquerdas e das forças populares” para frear o “governo entreguista” e impedir a “usurpação” que se anuncia com o julgamento político de Lula. É uma retórica rebarbativa, que não avança na compreensão do quadro e se perde na proposição abstrata de uma imprecisa “aliança nacional” para defender a democracia. Perorações desse tipo desaguam inevitavelmente na postulação do “direito” que teria Lula de disputar a eleição, porque ele é o líder supremo, amado pelo povo, pouco importando se cometeu deslizes, se vier a ser condenado, se tiver a ficha suja de acordo com a legislação em vigor.

Isso tudo acontece não só porque o esquerdismo prevalecente conseguiu acumular recursos e mostra competência na agitação e na propaganda. Acontece também porque a nossa época é uma época de lassidão crítica, de preguiça, de acomodação, de miséria intelectual. Uma época opiniática, em que cada um carrega a sua verdade e sua fé.

Acontece também porque os demais protagonistas do campo democrático e de esquerda – aquilo que se deveria chamar de esquerda democrática – não souberam se projetar e se articular, deixando o terreno vazio. Parte deles nem consegue se descolar do petismo lulista.

A desgraça maior é que ninguém sabe bem o que fazer.

Os esquerdistas acham que com a volta de Lula o sol voltará a brilhar e a emancipação será retomada. Não se dão sequer ao trabalho de verificar os dados e de perguntar ao Lula o que ele de fato fará se for eleito presidente.

Os que querem se diferenciar desse senso comum batem cabeça, ora se entregando ao encontro de um nome com que dar operacionalidade ao moderantismo de centro, ora abraçando bandeiras caras ao neoliberalismo, sem atualizá-las ou corrigi-las.

Uns e outros se acham autossuficientes. Atacam-se reciprocamente sem tréguas, e no correr da batalha deixam de lado o mais importante.

O mais importante? A defesa da democracia e de um reformismo realista, progressivo, consistente em termos programáticos, que nos permita repor o país nos eixos e disputar o futuro, coisa que somente será concebível se houver o concurso generoso de muitos. A defesa da igualdade, da liberdade, de direitos para todos, de formas abertas de vida social, da solidariedade, da cooperação.

O mais importante? A colocação em marcha de uma reinvenção que nos faça voltar a ter orgulho de nos proclamarmos de esquerda.