Monica de Bolle
Monica de Bolle: Quando a natureza se revolta
Talvez a lentidão com que os impactos negativos se acumularam tenha permitido sensação de normalidade
Em 2005, o geógrafo e historiador Jared Diamond escreveu Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso . Há muitos anos, tive a oportunidade de conhecê-lo em Port Moresby, capital da Papua-Nova Guiné. Na época, ele passava ao menos metade do ano no arquipélago que sempre o fascinou tanto. A obra de 2005 é um estudo sobre como as sociedades entram em colapso político e econômico, transformando-se quase repentinamente de grandes civilizações em pequenas aldeias esparsas — às vezes nem isso. Do estado americano de Montana à civilização maia, de Ruanda à China, da Austrália ao Camboja e o esplendor de Angkor, que visitei em duas ocasiões, Diamond tece enredo eloquente e avassalador sobre como o desprezo em relação à natureza pode levar à ruína. O ponto de partida é a Ilha de Páscoa, caso que o autor afirma ser “o exemplo mais claro de uma sociedade que se autodestruiu ao explorar à exaustão seus recursos naturais”. Ao contrário de outros casos estudados, não houve na Ilha de Páscoa interferência de conflitos ou mudanças climáticas repentinas que pudessem explicar o colapso. Como indagara um dos alunos de Diamond, “o que deveria estar passando pela cabeça do nativo que cortou a última árvore da ilha?”.
O autor tenta dar uma resposta a essa pergunta no fim do livro, quando levanta algumas teses. Talvez muitas civilizações tenham falhado em antever o impacto das consequências futuras de seus atos. Talvez a lentidão com que os impactos negativos se acumularam ao longo de muitos anos tenha permitido sensação de normalidade, de que, apesar de tudo, haveria adaptação política, econômica e institucional às mudanças provenientes das ações adversas sobre o meio ambiente. Talvez o poder político desproporcional daqueles que não estavam sendo diretamente afetados pelas mudanças tenha servido como respaldo para promover espécie de mau comportamento racionalmente justificado por aqueles que usavam ou tinham o poder de administrar os recursos ambientais.
“TALVEZ EXISTA ELEMENTO IRRACIONAL NA DESTRUIÇÃO DO MEIO AMBIENTE, REFLEXO DA BUSCA IMEDIATA POR GRATIFICAÇÃO EM DETRIMENTO DE QUALQUER CONHECIMENTO A RESPEITO DOS ESTRAGOS FUTUROS”
Dado o avanço da pesquisa sobre mudanças climáticas e destruição ambiental hoje — ao contrário do passado de várias civilizações estudadas por Diamond —, os motivos irracionais são mais convincentes do que os potencialmente racionais.
Escrevo tudo isso para dizer algo sobre os retrocessos do governo atual. Trata-se de governo muito esquisito, mesmo sem entrar no (de)mérito de suas idiossincrasias. De um lado, tenta promover mudanças econômicas ambiciosas e urgentes, ainda que ajustes nas propostas de reformas sejam necessários. Confesso que aguento o debate sobre o que deve ser alterado na proposta de reforma da Previdência, mas já não suporto a repetição do óbvio: o Brasil tem de fazê-la de alguma forma, e, não, ela não haverá de fazer “chover investimentos” no país. O ministro da Economia está cumprindo seu papel ao tentar destilar otimismo, mas ele bem sabe que a situação está complicada e que os investidores externos têm muito com o que se preocupar no momento atual antes de pensar em deslocar recursos abundantes para o Brasil. A esquisitice do governo está em, de um lado, ter gente competente trabalhando nos temas econômicos e, de outro, ter gente absolutamente desqualificada para tratar de outros temas — educação e meio ambiente, por exemplo.
Leio que em maio deste ano o desmatamento da Amazônia alcançou o maior nível desde que o atual sistema de monitoramento foi instituído. Leio as preocupações de que o governo Bolsonaro tenha dado passe livre para que atividades ilegais levassem à perda de 739 quilômetros quadrados de floresta durante o último mês. Esse número é quase 100% maior do que o observado em maio de 2016. Durante a campanha de 2018, Bolsonaro prometera acabar com o sistema de multas ambientais do Ibama, que, dizia, atrapalhava empresários e produtores brasileiros. Em abril, Bolsonaro assinou decreto que desautoriza a atuação independente dos fiscais responsáveis pelas multas ambientais, essencialmente tornando o trabalho do Ibama irrelevante. E, é claro, há a cereja enrugada do bolo: a ação de improbidade administrativa devido à alegação de manipulação de mapas de manejo ambiental do Rio Tietê pelo atual ministro do meio ambiente quando era secretário dessa pasta no governo de São Paulo durante a gestão de Geraldo Alckmin.
A natureza haverá de se revoltar ante tamanhos maus- tratos e descaso. O que estará passando pela cabeça daquele que vier a derrubar as últimas árvores da Amazônia?
*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
Monica De Bolle: Chernobyl
Ao que parece, alguns dos membros Lava Jato não viram que suas ações passavam do equilíbrio ao desequilíbrio
“Onde antes temia o custo da verdade agora apenas pergunto: qual o custo das mentiras?” Termina com essa indagação a minissérie do canal HBO sobre o terrível desastre nuclear de 1986 na Ucrânia, então sob domínio da União Soviética. A série é sobre a tragédia, mas é também sobre um regime pútrido, carcomido pela corrupção e pelas mentiras. As citações memoráveis são quase todas sobre as mentiras. Considerem essa: “Quando a verdade ofende, mentimos e mentimos até não sermos mais capazes de lembrar que ela sequer existe. Mas existe. Está lá”. Ou essa: “Todas as mentiras que contamos são uma dívida com a verdade. Mais cedo ou mais tarde, essa dívida será paga”.
O Brasil vive de mentiras há muitos anos, portanto a dívida com a verdade é vultosa. Algumas dívidas já começaram a ser pagas, como a acumulada após anos de mentiras sobre a economia. Na semana passada escrevi sobre versão tropical da estagnação secular da qual padece o Brasil. Permitam que eu puxe esse fio mais um pouquinho. O PIB quase inercial brasileiro é a dívida que temos a pagar após anos de má condução econômica e do acúmulo de mentiras. As mentiras que nos contavam quando diziam que o País não tinha problema fiscal algum, que tudo estava sob controle. As mentiras que levaram às pedaladas, à expansão desordenada do crédito público, à crença de que tolerar mais inflação hoje traria recompensas na forma de alta do investimento, à ilusão de que a redução da desigualdade era para sempre mesmo com toda a macroeconomia fora do lugar.
Essas foram apenas as mentiras mais recentes, algumas contadas durante o segundo mandato de Lula, muitas contadas ao longo do primeiro mandato de Dilma, mais outras tantas nas campanhas eleitorais. A verdade cobrou seu quinhão em 2015 e 2016, e, implacável, continua a fazê-lo até hoje. Afinal, também tivemos a mentira de que a remoção de Dilma traria o crescimento econômico, a confiança, o investimento, tudo isso de volta, sem prejudicar as instituições do País. Tivemos a mentira de que o teto de gastos de Temer – por necessário que fosse, apesar de mal desenhado – restauraria o motor engatado da atividade econômica.
A verdade, sempre à espreita, é que a economia brasileira perdeu dinamismo há tempos porque os governantes do País pouco se preocuparam em modernizar a indústria, abrir a economia, priorizar a educação, investir na infraestrutura. E, prestem bem atenção: a mentira não tem partido, ou vício ideológico, ou religião, ou gênero, sexo, raça ou cor. A mentira é negação, ofuscação, omissão, distorção. A mentira às vezes é intencional, às vezes não. Nada disso importa.
Chernobyl. Não deveria ser metáfora para esse momento, mas o Brasil é aquele reator que, descontrolado, não consegue parar de aumentar a temperatura do desastre. A Operação Lava Jato desvelou mentira após mentira, expondo políticos, empresários, gente que em outros tempos jamais seria pega pela justiça. No último episódio da série, o físico nuclear Valery Legasov, explica como funciona um reator nuclear.
Didaticamente, expõe os pesos e contrapesos necessários para controlar o elevado grau de instabilidade do processo de fissura atômica. Assim revela como os erros humanos – além do erro de desenho das válvulas de controle do reator – levaram o sistema da estabilidade à total e irreversível instabilidade. Algo disso soa familiar após revelações recentes.
Os responsáveis pela Lava Jato iniciaram os trabalhos como um reator em equilíbrio, a cada etapa gerando a energia necessária para que o mal maior – a corrupção – fosse punido. Contudo, em algum momento, o reator tornou-se instável. Ao que parece, alguns dos responsáveis pela operação Lava Jato não viram claramente como as suas ações passavam rapidamente do equilíbrio ao desequilíbrio, possivelmente cruzando limites que não deveriam jamais ser cruzados.
É importante que se reconheça que nós, não juristas, não especialistas, não investigadores, não sabemos se limites intransponíveis foram realmente atropelados. Para tanto, é preciso que se tenha a investigação – tal qual fizeram os cientistas que conseguiram chegar às causas verdadeiras da explosão de Chernobyl. As verdades precisam estar visíveis para que o País possa sair do processo de autocorrosão no qual está metido há mais de dez anos. Isso requer a devida lucidez para reconhecer que há inocentes e culpados de todos os lados, não importa o partido, a religião, a ideologia
Mentira corrói, cria inimizades, polariza. Mentira destrói. Assistam Chernobyl.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Monica de Bolle: Loucura como método
Sem isso, o Brasil provavelmente ainda padeceria de hiperinflação ou teria se tornado uma economia com alto grau de dolarização
Nem todas as respostas para as perguntas desta vida se resumem à urgência da reforma da Previdência, assim como nem todas as respostas às perguntas sobre os problemas do Brasil deveriam gerar repetecos pelo temor de acusações e de tentativas de constranger quem faz as perguntas. Se algum dia não tivéssemos posto em prática a loucura com método, a vontade de testar limites dentro das restrições existentes, o Brasil provavelmente ainda padeceria de hiperinflação e outros males. Ou teria se tornado uma economia com alto grau de dolarização, com os inúmeros problemas que isso nos traria, como se pode testemunhar com o drama da Argentina. O Plano Real, que em breve completará 25 anos, nasceu dessa loucura metódica. Perdemos a capacidade de pensar dessa maneira depois que Dilma Rousseff e Guido Mantega nos trouxeram a loucura sem método, ainda que tenham sido motivados por dar impulso à economia num momento externo turbulento. Loucura sem método, como a nova matriz econômica, não funciona.
Portanto, a vocês, leitores, ofereço esta semana uma lista no lugar de um artigo. Trata-se de lista de perguntas que tenho me feito todos os dias, algumas das quais têm me levado à loucura, sempre com método. Tratei um pouco disso no artigo publicado no site de ÉPOCA em 24 de maio. Aqui estão:
1. O Brasil quase não cresce há três anos, após a Grande Recessão de 2015-2016. Será que o país atravessa uma espécie de estagnação secular, em que a produtividade não deslancha, as tendências demográficas são adversas e a demanda permanece deprimida sem alguma força que a empurre? A taxa de fertilidade no Brasil é menor do que a dos Estados Unidos, país onde o debate sobre estagnação está a todo vapor. Essa pergunta interessa para que possamos pensar em políticas que destravem o crescimento de longo prazo. E, não, a resposta única não é o mantra. A resposta passa por vários temas que temos de desenvolver, o principal deles sendo a qualidade da educação.
2. Por que um país que cresce tão pouco continua a ter inflação anômala para as taxas de expansão observadas? A inflação hoje está em 4,9%. O Focus, a pesquisa do Banco Central junto ao mercado, projeta-a em cerca de 4% para este ano. Contudo, 4% é muito para um país que não cresce quase nada. Poderia a inflação ser, em parte, o resultado do nó górdio causado por juros altos que pressionam o déficit nominal, embutindo riscos na formação de preços que impedem a inflação de ceder? Recentemente, o economista André Lara Resende, um dos principais formuladores do Plano Real, fez pergunta semelhante, com a finalidade de instigar o debate, apenas para ser duramente rechaçado. Há tipos de perguntas que a intelligentsia nacional não se permite fazer. Mas é curioso que essa pergunta, na realidade, seja mais ou menos o corolário de outra:
3. Por que as taxas de juros no Brasil, considerado o nível de atividade, ainda são tão altas? Verdade que no momento estão um pouco mais baixas, mas para o tomador de crédito segue a anomalia. Essa pergunta já foi feita por diversos economistas, sem que ninguém tenha chegado a uma conclusão satisfatória. Será que a falta de uma resposta reflete premissas equivocadas que já não funcionam para entender o Brasil? Apenas pergunto, na esperança de que alguém tenha a coragem de tomá-la como tema de pesquisa com rigor e método. Quiçá eu mesma.
4. Para que estamos guardando tantas reservas internacionais se já não temos riscos externos relevantes? Há quem ainda não entendeu que, embora as reservas sejam um seguro, isso não significa que o seguro deveria nos proteger de todas as contingências imagináveis, inclusive as que dificilmente ocorrerão, como uma crise de balanço de pagamentos sem dívida externa significativa, com déficit em conta-corrente de cerca de 1% do PIB e com dívida soberana em moeda local. A atitude refratária à venda de parte das reservas equivale a pagar sinistros absurdos para assegurar-se de que seu carro jamais sofrerá um arranhão. Não parece razoável.
5. Por que não podemos usar uma parte das reservas para abater parte da dívida soberana? Ou para dar respaldo a linhas de crédito para investimentos públicos e privados compatíveis com a sustentabilidade ambiental, injetando força na demanda enquanto criamos nosso próprio plano de desenvolvimento verde? Pretendo elaborar essa última ideia em breve.
Enquanto isso, divirtam-se com o quebra-cabeça. Mas lembrem-se: loucura com método, sempre.
*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
Monica De Bolle: Estagnação secular?
O que temos é uma crise fiscal crônica para a qual soluções têm de ser encontradas
Em 1938, o então presidente da Associação Americana de Economia (American Economic Association), Alvin Hansen, proferiu discurso perturbador. Era o final da Grande Depressão, mas Hansen sugeria que talvez o mundo estivesse à beira de nova era em que o desemprego seria persistentemente mais elevado do que anteriormente e o crescimento econômico permaneceria muito baixo sem alguma outra força que pudesse empurrar a economia de volta aos níveis de emprego que predominaram antes da crise de 1929. A tese ganhou termo próprio: estagnação secular. Seus principais fatores propulsores seriam a queda na taxa de natalidade e a demanda agregada deprimida em decorrência de fatores diversos. A visão de Hansen provou-se equivocada para a época, mas o economista Larry Summers a retomou recentemente para explicar as taxas de juros reais persistentemente baixas em várias economias maduras. Desde então, o debate sobre a existência ou não de estagnação secular nos países avançados tem sido terreno fértil para o debate econômico.
Até pouco tempo atrás, ninguém no Brasil provavelmente imaginaria que estagnação secular pudesse ser ideia aplicada aos problemas do País. Talvez a ideia tampouco se aplique agora. Mas, na busca por um entendimento sobre as causas do crescimento persistentemente baixo no Brasil, vale a pena refletir sobre quais partes da estagnação secular podem explicar os dilemas atuais. Afinal, o Brasil vive uma crise sem crise, como tenho escrito em outros espaços. Como tenho dito, a crise do crescimento baixo de hoje é inédita no País: não temos crises cambiais ou bancárias a acompanhá-la, ao contrário do nosso passado. Tampouco temos uma crise fiscal aguda, já que não há risco iminente de calote da dívida pública. O que temos é uma crise fiscal crônica para a qual soluções têm de ser encontradas. A reforma da Previdência é, evidentemente, uma delas. Mas não será a partir da reforma da Previdência que o Brasil sairá da armadilha do crescimento baixo.
Tomemos as condições expostas por Hansen. A taxa de natalidade brasileira caiu vertiginosamente nos últimos anos. De acordo com os dados mais recentes, ela está em 1,7 nascimentos por mulher – em 2000, a taxa de natalidade era de 2,3. Ou seja, em pouco menos de duas década, a taxa de natalidade do País caiu mais de 25%. A taxa de natalidade brasileira é, hoje, menor do que a do México (2,2), do Chile (1,8), da Argentina (2,3). Ela é também menor do que a dos EUA (1,8), da França (1,9), do Reino Unido (1,8), e iguala-se a da Bélgica.
Do lado da demanda, os dados brasileiros deixam poucas dúvidas sobre seu estado deprimido. O consumo das famílias cresce pouco desde a Grande Recessão de 2015-2016, o investimento doméstico não dá sinais de vida, e os gastos do governo estão limitados por restrições e medidas diversas. As razões para o baixo consumo das famílias são conhecidas: desemprego elevado, ganhos salariais reais limitados, incertezas quanto aos rumos da economia, e, em menor grau do que no passado, o ainda alto nível de endividamento das famílias. Os motivos para o desempenho pífio do investimento também são conhecidos e ultrapassam as justificativas fiscais: a carência de infraestrutura, as incertezas permanentes, o ambiente geral de baixa competitividade, além de outras razões ajudam a explicar porque o Brasil tem uma das piores taxas de investimento não só entre grandes países emergentes, mas na América Latina. É verdade que nossas taxas de juros reais não são tão baixas assim, ao menos não quando comparadas às das economias maduras. Mas, hoje a diferença entre a Selic e a taxa de inflação corrente é de apenas 1,6%. Se usarmos as expectativas de inflação doze meses à frente, essa diferença é de 2,4%.
Portanto, diagnóstico preliminar de que a economia brasileira hoje flerta com a estagnação secular, sobretudo diante das recorrentes revisões para baixo do PIB para 2019 – o que revela que nos últimos três anos a economia brasileira não terá tido fôlego para crescer mais do que cerca de 1% ao ano – não parece descabido. Se é essa a situação que temos, estão faltando avaliações rigorosas sobre como seria possível abrir espaço para medidas anticíclicas já no curto prazo. Inevitavelmente, tais medidas iriam requerer mudanças bem embasadas e justificadas no teto dos gastos. Mas esse é assunto para uma próxima coluna.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Monica De Bolle: Perdas
Alguns já perceberam que o tamanho dos problemas é de tal magnitude que não há reforma que mude o quadro
Quem já perdeu, sabe. Um amigo ou amiga, um parente, um companheiro ou companheira. Perder algo precioso é muito difícil, há o luto e seus estágios. A negação, a indignação, a barganha, a depressão, a aceitação. É preciso chegar na aceitação para que se possa seguir em frente. Caso contrário, vive-se a perda, continuamente — um ciclo vicioso que leva a lugar nenhum.
Diferentes segmentos da população brasileira vivem a perda pós-eleições e sofrem estágios de luto distintos nesse momento. Há os que negam o que as urnas nos entregou: um presidente despreparado, sem qualquer visão para o País, sem ideias para governar, sem saber o que fazer com o Congresso e com as instituições. Um presidente que espalha factoides por meio de sua máquina de propaganda preferida — o WhatsApp — e conclama manifestações em seu favor, contra os moinhos que movem a democracia meio capenga que ainda temos. Um presidente que, ao convocar tais manifestações, ofende os que foram às ruas protestar pacificamente contra o atraso de suas políticas educacionais e suas guerras ideológicas para lá de bizarras. Os que ainda negam haver um governo fracassado no País com apenas cinco meses de duração terão de atravessar todos os demais estágios do luto. Será duro.
Há os que já passaram do estágio da negação para o da indignação. Esse é grupo diverso, com ex-apoiadores desiludidos com a incompetência do bolsonarismo. A economia que não cresce, o desemprego que não dá alento, a desigualdade que voltou a aumentar no País. Com ela, a informalidade e o desalento de dezenas de milhões de brasileiros e brasileiras. Há, também, os indignados com a farsa de um governo repleto de idiotas — idiotas inúteis, no caso, mas muito ativos. Os idiotas ativos são o tipo mais perigoso que há, pois muita destruição e retrocesso podem causar.
Há os que estão no estágio da negociação. “Se ao menos eles conseguirem aprovar uma reforma da Previdência, as coisas melhoram, não?”. Para esses só posso dizer o seguinte: nada melhora sem capital humano, nada melhora de forma sustentável sem que os jovens que futuramente haverão de compor a força de trabalho no Brasil tenham as qualificações necessárias para as profundas mudanças que já estão em curso. Nos países avançados, essas mudanças têm se manifestado de forma mais gradual pois é neles que se dá a inovação, sobretudo nas áreas de tecnologia, inteligência artificial, automação dos meios de produção. Ainda assim, elas tem sido a fonte de inúmeros problemas, cuja manifestação política mais evidente é a força dos movimentos nacionalistas-populistas, o apelo da retórica fácil e errada para a solução de problemas complexos. Em algum momento, essa realidade haverá de se impor, e aqueles que estão em processo de negociação com seu luto particular pelo País passarão para o quarto estágio, o da depressão.
Alguns já chegaram lá. Alguns já perceberam que o tamanho dos problemas é de tal magnitude que não há reforma da Previdência que mude o quadro. Tampouco há reforma tributária, financeira, ou venda de ativos públicos que alcancem esse milagre. O Brasil precisa urgentemente sair da balbúrdia de todo o dia e por a cabeça para pensar. Para pensar no que virá depois de Bolsonaro, para refletir sobre as prioridades das políticas públicas. O trabalho é duro, pois listas de desejos não bastam. É preciso saber fazer o que se quer, procurar os meios de financiar as prioridades sem pôr em risco a estabilidade macroeconômica, sem a qual nada é possível fazer. É preciso entender melhor o que mesmo garante a estabilidade macroeconômica. Dogmas antigos já caíram por terra em alguns lugares do mundo. Talvez o espaço fiscal aberto por uma reforma da Previdência seja maior do que pareça.
Superada a inevitável depressão — pois o que se perde de oportunidades, o que se desperdiça de tempo no Brasil é de fazer qualquer um sofrer profundamente o País — é necessário chegar na aceitação. Somos um País medíocre, nossos pontos de partida estão abaixo do fundo do poço. Só a partir da aceitação dessa realidade é que será possível deixar para trás o lamento das perdas e olhar para a frente com frescor. Países são para sempre, assim como a lembrança boa de pessoas queridas que perdemos no caminho.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Monica De Bolle: “Mas os piratas existem!”
Lembram-se de 2010? Há quase dez anos a economia brasileira crescia 7,6%, embalada pelo excepcional quadro global e pelas políticas de expansão do governo, sobretudo do crédito dos bancos públicos. Esse artigo não é sobre nada disso.
Em 2010, meu filho, que acaba de completar 15 anos, idade dos alunos avaliados pelo Pisa, exame que mede a qualidade da educação em mais de 70 países elaborado pela OCDE, estudava em uma escola particular no Rio de Janeiro. Era a hora da história, aquele momento em que as crianças sentam-se ao redor da professora para ouvi-la contar sobre aventuras e fantasias. Ela havia escolhido uma história sobre piratas, aqueles de perna de pau, olho de vidro, cara de mau. Corte dessa cena.
Tomada seguinte: em 2010, os piratas da costa da Somália corriam os mares a pleno vapor, capturando mercadorias e embarcações. Vocês devem se lembrar do filme que contou parte dessa história bem real — Capitão Phillips, lançado em 2013, protagonizado por Tom Hanks. Pois em 2010, os piratas da Somália estavam por toda parte. Nas manchetes dos jornais, na televisão, nas conversas entre familiares e amigos. O adolescente de agora que então tinha 5 aninhos sempre foi garoto atento. Os piratas bem reais da Somália atiçaram sua imaginação de menino.
Retomo a cena na escola. Quando acabou a história, alguém perguntou para a professora se os piratas existiam. A professora disse que não, piratas são da imaginação, da fantasia. Imagino que ela se referia aos de perna de pau, olho de vidro, por aí vai. A resposta não agradou um de seus alunos, que rapidamente disse: “Mas os piratas existem!”. Quando a professora insistiu que não, eram apenas personagens em uma história, ele retrucou: “E os da Somália?”. Silêncio. Ele ficou tão contrariado com esse silêncio que a primeira coisa que me contou quando chegou em casa foi o que havia passado na escola. Eu já sabia que a educação no Brasil, mesmo nas supostas melhores escolas particulares, deixava a desejar. Essa história, entretanto, virou espécie de mito familiar sobre as imensas lacunas da educação brasileira, lacunas que atingem a todos, dos mais pobres à elite.
Aos fatos. No último exame Pisa para o qual temos os dados completos, o de 2015 — o exame é aplicado a cada três anos e ainda não temos as informações de 2018 —, o desastre da educação no Brasil ficou mais uma vez explícito. O Pisa define sete níveis de proficiência em três áreas: ciências, matemática, e leitura. Os níveis mais baixos são o 1a e o 1b, que retratam a incapacidade de alcançar o nível mínimo de proficiência, considerado como o alcance do nível 2. O Pisa também traz informações sobre o nível socioeconômico dos alunos avaliados em cada país, definido por meio de um índice com metodologia clara. Desse modo, é possível avaliar o desempenho nas três áreas das diferentes classes sociais. Agora, preparem-se.
Comecemos pela matemática. Segundo os dados do Pisa, em 2015 86% dos alunos de nível socioeconômico mais baixo não alcançaram o nível 2; 83% dos alunos de classe média baixa e média não alcançaram o nível 2; 72% dos alunos de níveis socioeconômicos mais altos não alcançaram o nível 2.
A desgraça no manejo de conceitos, operações, e raciocínio matemático é generalizada.
Nas ciências, 72% dos alunos de nível socioeconômico mais baixo não alcançaram o nível 2. Isso se compara a 60% para a classe média baixa e para a classe média, e a 35% para os níveis socioeconômicos mais altos. A desigualdade em ciências é clara, mas o resultado é desastroso para um país que será atingido em breve pelas mudanças no mercado de trabalho provenientes dos avanços tecnológicos que exigirão alto grau de proficiência em matemática e ciências.
Por fim, o trágico acidente de leitura. São 65% de analfabetos funcionais nos níveis socioeconômicos mais baixos, 53% nas classes médias e 32% entre os filhos das elites do país. Repito: um terço dos filhos da elite brasileira são, pelo Pisa, analfabetos funcionais.
Está aí a pirataria cometida por governos sucessivos, acentuada pela atual guerra ideológica do bolsonarismo, que tem a educação como alvo, e um ministro da pasta sem preparo ou estratégia. Deixo-os com o verbete.
Pirataria: crime de depredação cometido no mar de lama contra embarcações e passageiros responsáveis pelo futuro da nação.
*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
Monica De Bolle: Tá lá o corpo estendido no chão
Metade dos alunos brasileiros avaliados pela OCDE é composta por analfabetos funcionais aos 15 anos
A reforma da Previdência tem ocupado as páginas dos jornais, o espaço dos colunistas de economia, as discussões nas redes sociais, os blogs especializados, as discussões na TV, essencialmente sugando o oxigênio de qualquer outro tema que deva ser discutido com urgência.
A educação brasileira é algo que deve ser discutido com a mesma urgência. Não falo apenas dos cortes arbitrários nas verbas das universidades públicas ou na decisão precoce de eliminar as bolsas de estudos concedidas pela Capes e pelo CNPq. Advirto que sem as bolsas, dezenas de milhares de alunos deixarão de fazer o mestrado ou o doutorado, dezenas de milhares de pesquisadores ficarão sem recursos para seu trabalho acadêmico. No Brasil, o desenvolvimento da pesquisa depende dessas bolsas, ao contrário dos EUA – onde dou aulas e pesquiso – em que há amplo financiamento privado, ou público e privado. Esses temas são de extrema importância, mas nesse artigo quero chamar a atenção para o corpo estendido no chão com o governo fechando a janela para não ver o crime: a educação. Toda a educação no Brasil.
Como deve ser do conhecimento de muitos leitores, há vários indicadores para avaliar a qualidade da educação no País. Tratarei de um deles, o exame Pisa da OCDE aplicado a cada três anos em mais de 70 países abrangendo alunos de 15 anos – ou seja, jovens que estão perto de concluir o ensino fundamental, prestes a entrar na fase que deveria prepará-los para a universidade, o ensino médio.
O último retrato que temos da educação brasileira vem do Pisa de 2015, e a fotografia do corpo estendido no chão é de uma violência chocante. O Pisa de 2015 teve como foco principal a área de ciências, portanto começarei por ela. Os alunos brasileiros obtiveram uma média de 401 pontos em ciências, abaixo do nível 2 da OCDE, faixa que define o mínimo de proficiência. Estar abaixo do nível 2 significa que o aluno não aprendeu a interpretar dados ou a identificar a principal pergunta nas experiências mais simples. De acordo com a OCDE, 40% dos alunos brasileiros avaliados expressaram o desejo de ter uma carreira futura em áreas de ciências, maior do que o interesse médio de apenas 25% demonstrado por alunos de países da OCDE. Contudo, de modo geral os alunos brasileiros não têm o conhecimento mínimo para alcançar o sonho de se tornarem cientistas.
Na avaliação de matemática, 70% dos alunos brasileiros estão abaixo do nível 2. Ou seja, acachapantes 70% dos jovens no ensino fundamental não conseguem usar conhecimentos básicos da matéria para resolver problemas simples. Sem o embasamento mínimo em ciências e matemática, proporção enorme dos alunos brasileiros não estará preparada para os empregos do futuro, cada vez mais influenciados pelas inovações tecnológicas que haverão de influenciar o mercado de trabalho e as vagas disponíveis. Nossos jovens não estão minimamente qualificados para um futuro que chega rapidamente – pensem no drama social e no desperdício inominável que isso significa.
Em leitura, metade dos nossos alunos não consegue alcançar o nível 2 do Pisa. Não alcançar o nível 2 do Pisa equivale a ser um analfabeto funcional. Portanto, vou repetir: metade dos alunos brasileiros avaliados pela OCDE é composta por analfabetos funcionais aos 15 anos, às vésperas de ingressar no ensino médio. que o problema está concentrado nas faixas de renda mais baixas? Pois não está. O Pisa abre os dados por faixa de renda, e mostra inequivocamente que a educação estraçalhada é problema universal.
A elite brasileira, os que estão no topo da distribuição de renda, tem desempenho muito abaixo do aluno mais pobre de Hong Kong, e desempenho mais ou menos equivalente ao do aluno de classe média baixa do Chile. Os filhos da nossa elite não chegam a alcançar o nível 3 da OCDE, enquanto os filhos da elite do México, do Chile, do Uruguai o ultrapassam. Na classificação geral do Pisa, o México está apenas 5 posições acima do Brasil – o Brasil está entre os 10 últimos colocados – o que significa que embora a educação por lá seja ruim, alguns se beneficiam. No Brasil, nem isso. Estamos nivelando todos os nossos jovens por baixo.
“Ah, mas é por isso que devemos cortar as verbas das universidades!”, muitos dizem. Os que dizem esquecem de algo absolutamente fundamental: são as universidades que formarão os professores, os diretores de escola, os secretários de educação, enfim, todos os responsáveis por educar os filhos do Brasil. Está lá um silêncio servindo de amém.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da sais/Johns Hopkins University
Monica De Bolle: A realidade pede passagem
A baixa produtividade da mão de obra resulta de vários problemas, dentre eles a má qualidade da educação no País
O governo de apenas quatro meses de Jair Bolsonaro é um poço de intrigas. Há as brigas entre os olavetes e os não olavetes. Há as brigas entre os filhos que controlam e descontrolam os meios de comunicação do pai e os militares. Há as brigas entre o filósofo presidencial e os generais. Há as brigas entre o presidente da República e o prefeito de Nova York, essa quiçá a mais surreal. Tão surreal que dia desses acabei cantarolando o refrão de música antiga de Lulu Santos, “não vá para Nova York amor, não vá”. Em meio à balbúrdia do governo Bolsonaro – afinal, cada governo tem a sua palavra, seu mot juste – a realidade vem se impondo de forma dramática.
Desde dezembro do ano passado, a inflação subiu quase um ponto porcentual – passando de 3,8% para 4,6% agora. O número em si não chega a assustar, sobretudo porque está dentro da meta do Banco Central. Contudo, a alta súbita da inflação em uma economia que ainda não dá sinais de ter saído do lugar e que pode até ter encolhido um pouco no primeiro trimestre do ano, é preocupante . No entanto, sabemos que a produção industrial encolheu nos primeiros três meses do ano e que outros indicadores econômicos deram claros os sinais de fragilidade. A taxa de desemprego continuou a subir nesse início de 2019, alcançando 12,7 %, o que significa 13,5 milhões de desempregados.
Para complicar a situação para lá de vulnerável do Brasil, a economia mundial não está ajudando muito, como alertara o FMI. Os mais recentes indícios de que a guerra comercial entre a China e os Estados Unidos não deve acabar tão cedo está tirando fôlego dos cenários de crescimento global ainda que a economia norte-americana continue a apresentar bons números para o crescimento e para o mercado de trabalho. Curiosidade que poucos sabem é que os economistas têm muitas dificuldades para traduzir a guerra comercial em números concretos que mostrem o impacto sobre o crescimento global. Isso porque os modelos matemáticos e estatísticos de projeção para medir o impacto de tarifas e retaliações sobre o comércio internacional, sobre os empregos, e o impacto em setores específicos de diferentes países não são compatíveis com os modelos matemáticos e estatísticos usados por macroeconomistas para produzir projeções para o crescimento global. O que isso significa é que sabemos que a guerra comercial não é boa para ninguém. Porém, não sabemos quantificar a magnitude do quão perversa ela pode ser para o mundo e para países específicos.
No caso brasileiro, alguns setores se beneficiaram da conflagração – a China andou comprando mais grãos, mais soja de nós nos últimos meses, e isso nos ajuda. Não nos ajuda de forma permanente, mas qualquer mãozinha é bem-vinda nesse momento tão complicado. O problema é que o Brasil, embora seja um exportador de peso de soja e outros grãos, não é parrudo o suficiente no mercado internacional para determinar o preço dessas exportações. Ultimamente, como resultado de uma série de fatores, os preços dos grãos e da soja têm caído nos mercados internacionais. Isso significa que podemos até exportar mais em volume, mas o valor do que exportamos não tem aumentado tanto assim. Portanto, nem temporariamente se pode afirmar que a guerra comercial tenha sido um maná de Trump e Xi.
Tenho escrito nesse espaço que a reforma da Previdência tampouco será a bala de prata para destravar o investimento no Brasil. Embora haja investidores estrangeiros que estejam à espera da reforma para voltar a destinar recursos para o País, a verdade é que a guerra comercial e a possibilidade de que continue já que, antes de tudo, trata-se de um tema importante para a campanha de Trump nas eleições de 2020, aumenta as incertezas e deixa todos ressabiados. Além, é claro, da reforma em si não ser suficiente para resolver de uma tacada só todos os problemas que hoje impedem o Brasil de crescer, muitos dos quais são estruturais e levam anos para serem adequadamente solucionados. A baixa produtividade da mão de obra, por exemplo, resulta de vários problemas, dentre eles a má qualidade da educação no País. Claramente, não estamos encaminhando as questões relativas à educação de forma adequada.
Dizia no início desse artigo que cada governo tem a sua palavra. A palavra do governo Dilma foi “estarrecida” ou “estarrecido”. Pelo visto o governo Bolsonaro acabará nos trazendo combinação de palavras. Ficaremos todos estarrecidos com a balbúrdia enquanto a economia padece no vácuo.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Monica de Bolle: Avenida Brasil
A religiosidade tacanha e o anti-intelectualismo são aspectos centrais dessa ideologia do retrocesso
Não assisto a novelas desde Roque Santeiro , e, por isso, não assisti a Avenida Brasil , sucesso de público e de exportação em 2012. Contudo, lembro bem o furor causado pela trama e, sobretudo, pelos personagens. Avenida Brasil quebrou padrões ao retratar a vida da chamada nova classe média brasileira, as dezenas de milhões de pessoas que viram seu padrão de vida melhorar durante os anos 2000 com a queda da informalidade do mercado de trabalho e as oportunidades que se abriram naquele período por motivos diversos. A novela acabou em 2012, alguns meses antes dos protestos em massa que eclodiriam em todo o país. Os protestos de 2013 e a falta de respostas dos políticos a uma clara frustração da sociedade brasileira marcariam o início da implosão do centro político. Abrir-se-ia nova fase na radicalização que dali viria a definir os rumos do Brasil, chegando no bolsonarismo.
Nestes quatro meses de governo, já é possível dar contornos ao bolsonarismo. Trata-se, antes de mais nada, de uma “ideologia do retrocesso”, caracterizada por muita ignorância sobre o Brasil, um desprezo pelas redes de proteção social criadas nos últimos 30 anos e a visão tosca de que a diversidade — de gêneros, de ideias, de opiniões, de raça — não é algo a ser cultivado, mas algo a ser condenado como fruto do “marxismo cultural”, do “globalismo”, da “esquerda”.
Damares Azul-Rosa Alves, Abraham Weintraub e Ernesto Araújo são a porta-bandeira e os mestres-salas do bolsonarismo. Não rodopiam com leveza, apenas se expressam com notável rudeza e falta de sofisticação.
O bolsonarismo, cujos contornos dificilmente haverão de se alterar nos próximos meses e anos, poderá abrir imensa oportunidade, verdadeira Avenida Brasil, para as vozes progressistas, se essas souberem utilizá-lo. Para isso não bastará apenas manifestar contrariedade e fazer denúncias quanto aos atos e às falas do presidente e de seus ministros. Para além disso, será necessário apresentar propostas alternativas ao desmantelamento que já se vê em diversas áreas, do meio ambiente à educação, da política externa ao esgarçamento das redes de proteção social. A visão minimalista de Paulo Guedes não é compatível com a de um Estado que tenha políticas claras para o combate às desigualdades. E esse tema não interessa a Bolsonaro.
Segundo os dados mais recentes do IBGE, o desemprego no país continua a subir, tendo alcançado 12,7%. São 13,5 milhões de desempregados e nenhuma perspectiva de melhora pela frente, já que todos estão agora revisando para baixo as projeções de crescimento para o ano. Como já havia escrito antes, para o desagrado daqueles que ainda não haviam se dado conta da realidade na ocasião, estamos por ora fadados a crescer em torno de 1% ao ano, não mais do que 1,5% ou 2% mais à frente, caso a situação melhore um pouquinho. Essas taxas não são suficientes para que recuperemos o nível do PIB de 2013 antes de 2022. Essas taxas tampouco são suficientes para reduzir substancialmente o desemprego. A sociedade continuará desalentada, mesmo que a reforma da Previdência seja aprovada.
Mas, se a reforma da Previdência for aprovada com alguns ajustes importantes para que não seja parte do desmonte da rede de proteção social do país, o bolsonarismo deixará excelente oportunidade para o centro: um médio prazo mais arrumado para as contas públicas. Com a arrumação do médio prazo, haverá espaço para retomar uma agenda de políticas sociais e de investimentos públicos que ajudem o país a sair do atoleiro — a condição necessária é que essas políticas preservem a sustentabilidade fiscal de médio prazo. Portanto, o bolsonarismo está abrindo alas para que os moderados comecem a construir tanto um discurso quanto uma agenda de propostas concretas e bem concatenadas desde já. A liderança que encampe essas ideias e que seja um rosto novo na política brasileira — preferencialmente mais jovem — tem mais chances de eliminar o bolsonarismo em 2022 que qualquer alternativa da esquerda presa ao estatismo excessivo que teima em não se atualizar e modular suas posturas.
As pessoas que se viram retratadas e representadas em Avenida Brasilsão as mesmas pessoas que estarão buscando essa via no carisma de alguém que ainda não apareceu. Está na hora de o protagonista dar as caras.
*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
Monica De Bolle: Volver
Talvez seja possível, como mostra a eleição espanhola, reconstruir o centro político e eliminar a radicalização
Os temas são sombrios, mas as cores vibram. As mulheres são excêntricas e absolutamente normais na excentricidade. A volta da matriarca que já havia morrido é nada mais do que fato corriqueiro na vida bruta daquelas mulheres. Ao acompanhar os resultados das eleições na Espanha, me veio à cabeça o filme de Pedro Almodóvar. Enquanto o xará Pedro Sánchez liderava seu partido para a vitória, pensava em Volver. Talvez a associação tenha vindo da presença feminina – 65% do ministério de Sánchez fora formado por mulheres após as eleições que removeram Mariano Rajoy do cargo de primeiro-ministro em 2018, o que repercutiu mundo afora na ocasião. No entanto, é mais provável que a associação tenha vindo do título do filme: Pedro Sánchez voltou fortalecido após a rejeição de sua proposta orçamentária que resultou nessas últimas eleições.
A vitória do PSOE de Sánchez e o enfraquecimento do Partido Popular (PP) de Mariano Rajoy, além da ascensão do partido de extrema-direita VOX, ainda serão esmiuçadas à exaustão por cientistas políticos e analistas diversos. Evidentemente, as eleições da Espanha têm marcas profundamente espanholas – os movimentos separatistas da Catalunha, o referendo inconstitucional sobre a independência da região, e tantos outros temas mais tiveram peso sobre o resultado. Contudo, é possível identificar traços mais gerais com implicações interessantes para a política e para a política econômica em tempos de extremismos. No caso da política, a ameaça do radicalismo neofascista do VOX pode ter sido bastante importante para mobilizar os impressionantes 76% de eleitores que compareceram às urnas no último domingo.
Mas tão interessante quanto refletir sobre como a Espanha pode ajudar o centro político a volver é pensar sobre quais as políticas econômicas que podem frear a sanha nacionalista ultraconservadora. Durante o curto governo iniciado em maio do ano passado, o PSOE conseguiu promover alguns avanços importantes no combate às desigualdades – tanto de renda, como de gênero – priorizando o aumento do salário mínimo, do investimento público, e a adoção de medidas para diminuir as disparidades entre homens e mulheres – sem comprometer a sustentabilidade das contas públicas no médio prazo. Não custa lembrar que a população espanhola já estava farta da austeridade, do desemprego elevado, da estagnação da qualidade de vida, da sensação de injustiça social provocada tanto pela crise econômica, quanto pelas revelações de corrupção no PP, tradicional partido de centro-direita.
Portanto, a vitória do PSOE levanta a pergunta: seria possível atrair eleitores indignados por meio de políticas redistributivas, porém fiscalmente prudentes, que eliminem a tentação de resvalar para o extremismo? Em que medida pode um partido de linha mais moderada – seja à esquerda ou à direita – oferecer um seguro social atraente por meio da política econômica sem prejudicar a estabilidade do país? Se o nacionalismo ultraconservador for fruto da insegurança provocada pelas inovações tecnológicas, pela globalização, pela imigração, essas perguntas tornam-se extremamente relevantes. Ou seja, talvez seja possível reconstruir o centro político e eliminar a radicalização com um programa econômico fundamentado nessas inseguranças e voltado para a provisão desse seguro social, o que seria uma espécie de reinvenção da social democracia. Por ora, a Espanha serve como exemplo de que isso é possível, ainda que difícil.
Traduzir isso para o Brasil, contudo, não é difícil. Ao que tudo indica, o governo destrambelhado de Bolsonaro pouco ou nada fará pelas redes de proteção social, mas talvez faça algo pela sustentabilidade fiscal caso consiga emplacar a reforma da Previdência. Com taxas de desemprego elevadas, uma economia semiestagnada – a Previdência não é bala de prata para o crescimento – e parcelas da população sem muita esperança de que haverá melhoria de vida, parece claro o caminho para a construção de um centro que seja prudente no manejo fiscal de médio prazo, mas que responda às inseguranças de curto prazo. Quem o fará em meio à balbúrdia tupiniquim tem sido mais difícil de enxergar do que o caminho em si.
Volto ao início. Como a obra cinematográfica de Almodóvar, o resultado das eleições espanholas é ao mesmo tempo unicamente espanhol e profundamente global. Há lições e aliterações importantes para o Brasil. Aos que repudiam o retrocesso radical: há retorno.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Monica De Bolle: O outono de Macri
A Argentina opera com duas moedas, dólar e peso, o que torna o combate inflacionário extremamente complicado
Na semana passada, Mauricio Macri anunciou o “Plan Otoño” contendo drásticas mudanças na visão da coalizão Cambiemos acerca do combate inflacionário – em particular, ressuscitando o congelamento de preços de diversos produtos em acordo firmado com empresários. A medida heterodoxa recebeu duras críticas e poucos afagos, já que seu histórico de fracassos na Argentina e na América Latina mais amplamente é muito bem documentado. No Brasil, parte da esquerda se alvoroçou ao ver no congelamento o sinal de que o “neoliberalismo” de Macri havia naufragado.
Contudo, um breve passar de olhos nos dados fiscais revela que Macri não conseguiu reverter a trajetória de gastos crescentes que prevaleceu durante toda a era Kirchnerista, e que se agravou quando Cristina estava no poder. Em 2015, Macri herdara da antecessora 41,4% de gastos públicos como proporção do PIB. Em 2017, esses gastos continuavam quase que estacionados no mesmo patamar. Portanto, as promessas de Macri jamais se cumpriram, o que explica parte do fracasso atual.
Macri foi eleito em outubro de 2015, prometendo consertar gradualmente os imensos desarranjos macroeconômicos do Kirchnerismo, a começar pela confusão com os fundos abutres detentores de parte da dívida não renegociada da Argentina que haviam impedido que o país tivesse acesso ao mercado internacional de capitais.
Macri assumiu a presidência em dezembro daquele ano e imediatamente iniciou negociações intensas com os fundos que haviam comprado papéis de credores descontentes para reabrir o acesso aos mercados. O sucesso foi rápido e logo a Argentina recebia fluxos maciços de investidores estrangeiros e tornava-se o país emergente com as melhores perspectivas em 2016, razão para que muitos economistas – incluindo esta que vos escreve – achassem que a direção estava acertada, ainda que o caminho do ajuste fosse difícil. Tal impressão foi corroborada em 2017, quando o país não apenas conseguiria a proeza de lançar título soberano com prazo de cem anos nos mercados internacionais, como também asseguraria a vitória da coalizão de Macri nas eleições legislativas, marcando a desordem do Peronismo.
Em 2017, a economia da Argentina cresceu 2,7%, enquanto a inflação parecia ter se estabilizado ao redor dos 25% ao ano – ainda elevada, mas não mais do que durante a era Kirchner. Cabe recordar que durante a era Kirchner, sequer conhecíamos os números verdadeiros da inflação, já que o governo havia desmontado os órgãos oficiais de estatísticas, como o Indec.
Há apenas 18 meses, a Argentina crescia a taxas anualizadas de mais de 3,5% ao ano, e o gradualismo de Macri – após pouco mais de dois anos de sua eleição – ia de vento em popa. Hoje, o país enfrenta uma recessão, a inflação está ao redor de 4% ao mês, e o governo não consegue controlá-la apesar do apoio financeiro do FMI. Matéria recente do jornal El Clarín conta os bastidores do “Plan Otoño”, deixando claro que houve resistências dentro do governo em relação ao inusitado congelamento de preços. Contudo, diante das advertências do Indec de que a inflação não apenas resistia, mas tendia a subir, e ante pesquisas de opinião revelando que a população começava a clamar para que Macri atuasse para conter a escalada dos preços, a pressão para que se impusesse o controle de preços com eleições presidenciais em outubro derrubou a resistência das alas mais ortodoxas.
O caso da Argentina, portanto, não se presta a leituras simplórias de que “o neoliberalismo falhou”. Trata-se de uma economia que opera com duas moedas – o dólar e o peso – o que torna o combate inflacionário pelas vias tradicionais da política monetária extremamente complicado. Trata-se de um país com anos de desequilíbrios econômicos acumulados cuja reversão pelo tradicional “tratamento de choque” teria arremessado mais pessoas ainda à pobreza – nesse aspecto, o gradualismo de Macri pode ser considerado além de pragmático, bem pouco “neoliberal” na acepção mais negativa do termo.
Trata-se, também, de um país em que os líderes eleitos cometeram erros ao longo do caminho que custaram muito caro à população. Desse grupo, Macri não deve ser poupado, já que está no comando há quase 4 anos. Trata-se de um país que, apesar de tudo isso, recebeu selo de confiança do FMI com um programa de US$ 57 bilhões. Por fim, trata-se de um país em que Mauricio Macri ainda tem cerca de 30% a 40% de aprovação popular, a depender da pesquisa de opinião que se considere. Se o Brasil não é para principiantes ou amadores, o que dizer da Argentina.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Monica De Bolle: Rosáceas
A defesa do meio ambiente, para Bolsonaro, é coisa da “esquerda”, coisa de “comunista”.
A primeira vez em que as vi, acho que tinha uns 10 anos de idade. De lá para cá, nas incontáveis vezes em que estive em Paris, jamais deixei de vê-las. Não tenho religião — por escolha pessoal —, mas sempre senti algo dentro da Catedral de Notre-Dame, algo edificante, algo mais adequadamente definido na palavra inglesa uplifting. Já apreciei a beleza de muitas igrejas brasileiras e europeias, já me encantei com a mesquita de Córdoba, mas nada é comparável ao sentimento que evoca a majestosa catedral parisiense. Resgato esse sentimento agora não apenas por causa do incêndio que a devorou parcialmente nesta semana, mas porque pouco há de majestoso ou inspirador na atualidade.
Tenho lido e pesquisado sobre as relações entre as mudanças climáticas e as várias crises migratórias mundo afora, sobre as várias crises migratórias mundo afora e a ascensão do nacionalismo populista. O último relatório da ONU sobre o drama migratório global estimou em pouco mais de 40 milhões o número de pessoas desterradas e em mais de 20 milhões o número de refugiados.
Os desterrados são aqueles que deixam as regiões de origem em seus países e deslocam-se para outras ainda dentro das fronteiras. Os refugiados são aqueles que fogem de seus países para outros, geralmente mais desenvolvidos, onde esperam melhores condições de vida.
O dado perturbador é que a maioria acachapante dos desterrados e refugiados que a ONU contou em 2016 fugiu não de violência e conflitos como geralmente se supõe, mas de eventos catastróficos relacionados ao clima. Secas, inundações, temperaturas escorchantes e suas consequências, como a perda de lavouras e das condições de vida de muitos dos que dependem da produção agrícola de subsistência. Um estudo científico publicado em 2015 aponta a seca desastrosa que atingiu a Síria como fator de estresse para o conflito que mais tarde se daria.
A literatura sobre alterações climáticas e a deflagração de guerras e conflitos é vasta, e a correlação é bem estabelecida. Em alguns casos é possível ver mais do que meras correlações. Em alguns casos é possível afirmar que problemas climáticos causaram guerras e conflitos. Para acrescentar ofensa à injúria, alguns estudos mostram que o ponto em que estamos hoje não é o resultado acumulado de muitas e muitas décadas de descaso. O agravamento das mudanças climáticas é, na realidade, resultado dos últimos 25 a 30 anos.
Apesar dessas evidências e do temor que elas deveriam causar, vários líderes mundiais as ignoraram. Alguns, talvez, porque não viverão muito mais mesmo, caso do septuagenário que ocupa a Casa Branca. Outros pela mais profunda ignorância sobre qualquer tema, em particular sobre o complicado tema das mudanças climáticas. O ocupante do Palácio do Planalto, que em campanha ameaçou tirar o Brasil do Acordo de Paris, esvaziou o Ministério do Meio Ambiente, suspendeu contratos com organizações não governamentais ambientalistas e extinguiu secretarias que formulavam políticas públicas para mitigar os efeitos das mudanças climáticas globais.
Por essa razão, inseriu no Ministério do Meio Ambiente representante da “nova direita” que anda fazendo estragos consideráveis na pasta pela qual é responsável. Não à toa, o Museu de História Natural de Nova York se recusou a prestar seu espaço para evento que homenagearia o presidente brasileiro em meados de maio, fato inusitado repercutido nas manchetes internacionais e locais.
É impossível afastar a angústia diante de tudo isso. Ainda que as besteiras de Damares Azul-Rosa Alves sirvam para que se possa rir um pouco — goiabeiras, mulheres submissas e coisa e tal. Portanto, pensem nas rosáceas. Elas sobreviveram às labaredas, vocês viram as labaredas? As belíssimas rosáceas do século XIII e suas pétalas divinamente coloridas por onde já atravessou a luz de tantos séculos continuam lá, não explodiram, não derreteram, como seria de imaginar.
A sobrevivência das rosáceas é uplifting, não porque acredito em milagres ou qualquer outra interpretação religiosa, intervenção divina ou seja lá o que for. A sobrevivência das rosáceas é uplifting porque ela simboliza a resistência do espírito humano que as concebeu e a capacidade que todos temos de apreciar a força e a beleza dessa resistência, mesmo que as circunstâncias sejam as mais violentas e cruéis.
*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics