Monica de Bolle
Monica de Bolle: Trégua?
É cedo para saber se há indício de que o ciclo do nacionalismo populista pode se esgotar mais rapidamente do que se imaginava
No mais recente episódio do Brexit, o primeiro-ministro Boris Johnson sofreu derrota acachapante após a tentativa de fechar o parlamento britânico por cinco semanas, o que provavelmente resultaria no “no-deal Brexit”, ou a saída da Grã-Bretanha da União Europeia sem qualquer acordo, em outubro.
Em 2016, pouco antes da votação do fatídico referendo, Nigel Farage, o engenheiro do Brexit e membro do partido nacionalista UKIP, afirmou que o Brexit seria a placa de Petri para a vitória de Trump nos Estados Unidos. Amigo de Steve Bannon, o homem que inventou o Movimento — o agrupamento de líderes e partidos populistas-nacionalistas —, Farage foi arroz de festa nas comemorações que seguiram a vitória de Trump.
De lá para cá, Brexit e Trump têm sido vinculados à disseminação de uma ideologia de extrema-direita sustentada pelos pilares do nacionalismo, do conservadorismo retrógrado, de uma interpretação particular do que significa ser cristão no mundo moderno e diverso do século XXI, da supremacia racial, da negação das mudanças climáticas.
Comentei no artigo da semana passada que a linguagem usada por esses “novos” nacionalistas é muito parecida — não importa se estamos tratando do Brasil, da Turquia, dos EUA, da Hungria, da Itália. As lideranças desses países ou dos partidos da extrema-direita nacional-populista dizem mais ou menos as mesmas coisas sobre esses temas, usando às vezes as mesmas palavras. Pode ser que o repeteco seja falta de imaginação.
Mas o mais provável é que as mensagens simples sobre assuntos complexos exerçam um hipnotismo entre camadas da população mais, digamos, vulneráveis. Essas camadas, que incluem as supostas elites em muitos casos — vejam o Brasil que elegeu Bolsonaro —, rejeitam as evidências científicas e aceitam as estultices que lhes são enfiadas goela abaixo pelas redes sociais e tribos às quais pensam pertencer. Para todos os que trabalham com fatos, o que acabo de escrever provoca tanto uma desilusão profunda quanto a intensa vontade de ocupar o vácuo deixado pelo anti-intelectualismo.
“Será que o anti-intelectualismo tem limites?”
Nos últimos dias testemunhamos o cerco a Boris Johnson, a derrota de Matteo Salvini, a queda de popularidade de Jair Bolsonaro. Também vimos a guerra comercial entre os EUA e a China mostrar os primeiros efeitos sobre a indústria americana: pela primeira vez em três anos, o índice ISM, que mede o estado da indústria nos EUA, caiu abaixo dos 50 pontos. Quando isso acontece, normalmente é sinal de que uma recessão desponta no horizonte. Trump prometeu proteger a indústria nacional quando foi eleito em 2016 e trazer de volta empregos que haviam sido “roubados” pelos competidores internacionais. Eis que a notícia de que a indústria pode estar prestes a encolher não é nada boa para sua reeleição.
É demasiado cedo para saber se alguns desses sinais são indício de que o ciclo do nacionalismo populista pode se esgotar mais rapidamente do que se imaginava. Afinal, entre outros temas, vimos novamente a ascensão da extrema-direita alemã nas eleições regionais.
A Índia está perseguindo muçulmanos na Caxemira e ameaçando retirar a cidadania dos que não professam o hinduísmo. A coalizão do 5 Estrelas de Beppe Grillo com os Democratas provavelmente se esfacelará. O Brexit, quem se arrisca? Foram tantas reviravoltas que é impossível saber se ao final teremos ou não ilha flutuante — e, é claro, penso na versão francesa do creme inglês. Por fim,Trump.
Vencendo ou não as eleições, a verdade é que o construtor de muros transformou não apenas o Partido Republicano como também o Democrata. O grupo de candidatos à Presidência no campo dos democratas encolheu nas últimas semanas, o que não é surpresa. Contudo, difícil é encontrar um candidato ou candidata com posições mais próximas do que costumava ser o centro político americano.
Alguns, como Bernie Sanders, não têm qualquer inibição em mostrar seu lado populista com viés nacionalista. Ele é contra o livre-comércio, ele é a favor de políticas que ponham os EUA em primeiro lugar — o America First —, ele defende que os empregos devam retornar para os EUA e que se danem as cadeias de valor. Elizabeth Warren é a versão tímida de Bernie Sanders.
Não fala em America First, mas em planos para a prosperidade. Contudo, seus planos econômicos são muito parecidos com os de Trump. Joe Biden e Kamala Harris são mais “moderados”, mas flertam ou defendem a ideia de transformar o sistema de saúde de modo radical e fiscalmente insustentável. É claro que todos esses candidatos têm uma visão mais humana e esclarecida sobre outras questões fundamentais, como o clima, os imigrantes, o segregacionismo racial e por aí vai. Mas o ponto é que, ao menos na área econômica, Trump implodiu o centro para valer.
Que dure ao menos um pouquinho a trégua. Afinal, o que virá depois do ciclo nacionalista de extrema-direita em nada se parecerá com o mundo que muitos de nós vimos surgir após a queda do Muro de Berlim.
*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
Monica de Bolle || Fumaça ou Fogo?
Contrariando as leis da física, na economia às vezes a fumaça aparece antes do fogo
Vi na internet as impressionantes imagens da espessa fumaça que encobriu São Paulo na última segunda-feira, fruto de queimadas e prova de que o dito popular “onde há fumaça, há fogo” geralmente se concretiza. O que dizer, portanto, dos ruídos e da fumaça que andaram causando intensas turbulências nos mercados internacionais nas últimas semanas? Há fogo? Se há, de onde se origina?
Muitos se preocupam que a origem seja a economia norte-americana, que andou dando alguns sinais recentes de fadiga. O temor de uma recessão nos EUA em meio aos graves problemas que afligem o mundo – do Brexit à crise com o Irã à desaceleração da economia chinesa aos protestos em Hong Kong, e por aí vai – tem sido fonte de incerteza, muita especulação, e de dúvidas ponderáveis sobre os rumos da política econômica mundo afora. Por certo, o risco de uma recessão nos EUA existe. A recuperação em curso é a mais prolongada tomando-se várias décadas, o que por si sugere que uma virada cíclica estaria no horizonte.
Pesquisa do Wall Street Journal sobre as previsões econômicas para os EUA mostrou recentemente que alguns entrevistados acham que a probabilidade de que o país seja atingido por uma recessão até o fim do ano que vem é de mais de 70%. Trump tem demonstrado intensa ansiedade em relação ao estado da economia ao responsabilizar o banco central norte-americano – o Fed – por um eventual enfraquecimento que venha a prejudicar sua reeleição. Contudo, nada disso atesta que há uma recessão iminente por vir.
Apesar de alguns sinais negativos, a economia continua a crescer em bom ritmo, ainda que os efeitos dos estímulos fiscais de 2017 tenham se dissipado. O investimento está crescendo de forma robusta e o consumo, auxiliado pela baixíssima taxa de desemprego, está forte. Em julho, o Fed reduziu os juros pela primeira vez desde 2008 de forma preventiva e há indícios de que fará o mesmo movimento em setembro. O que explica tanta angústia?
A resposta óbvia é o comércio internacional e as ações tomadas pelo governo Trump desde 2017. Ainda que muitos achem que a guerra comercial com a China não vá se intensificar, o fato é que há meses temos uma guerra comercial em curso que já está afetando algumas das principais potências exportadoras do planeta, entre elas, a Alemanha. Some-se a isso algo que passa desapercebido entre aqueles que acompanham de longe as tribulações dos mercados internacionais: é muito difícil mapear os efeitos de uma guerra comercial sobre as variáveis macroeconômicas. A razão é que os modelos usados pelos economistas para fazer projeções macroeconômicas são incompatíveis com os modelos usados pelos especialistas em comércio internacional para analisar como o aumento de determinada tarifa – e a possível retaliação a essa medida – afetaria diferentes setores, estados, ou municípios.
Para elaborar essa tarefa, especialistas em comércio internacional trabalham com modelos que precisam ser calibrados com algum cenário macroeconômico – ou seja, as hipóteses macroeconômicas são impostas para que se enxergue o efeito da tarifa. Isso significa que o impacto macroeconômico nesses modelos não é o resultado, mas a variável que o alimenta. Diante dessa incompatibilidade entre as formas de fazer previsões macroeconômicas e previsões sobre o impacto de medidas comerciais, resta uma incerteza brutal.
Incerteza que, diante de qualquer sinal negativo, vira motivo para que os investidores busquem proteção livrando-se de ativos de risco – como os brasileiros – e para que os gestores de política econômica adotem medidas preventivas.
Portanto, onde há fumaça, há fogo. No entanto, contrariando as leis da física, na economia às vezes a fumaça aparece antes do fogo.
Na economia, às vezes o fogo permanece invisível por uns tempos até que tenha passado por todos os processos de ignição que produzem as primeiras faíscas. Querem saber a origem do fogo? Pois trata-se da guerra comercial entre EUA e China. Essa guerra que aí está não desaparecerá tão cedo. E não é preciso que piore para continuar amedrontando os mercados.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Monica De Bolle: Não foi só o Trump
Depois da crise, o nacionalismo se tornou cada vez mais escancarado
Não foi só o Trump nem a combinação do Brexit com sua vitória eleitoral em 2016. Ao contrário do que muitos ainda pensam, o populismo nacionalista ressurgente começou a despontar nos países avançados — e em seguida em um punhado de países emergentes — logo após a crise financeira de 2008. É isso que mostra pesquisa recente concluída por mim e coautores, prestes a ser publicada pelo Peterson Institute for International Economics, após o processo habitual de peer review.
Nós examinamos 55 plataformas políticas de todos os países do G20 antes e depois da crise de 2008. Criamos metodologia para codificar e atribuir notas de 1 a 5 para diferentes aspectos do nacionalismo econômico que desponta como pilar do populismo nacionalista que hoje enfrentamos pelo mundo. Dividimos o nacionalismo econômico em sete dimensões de política econômica: a política industrial, a política comercial, a política em relação ao investimento externo, a política migratória, a política macroeconômica, a política em relação às instituições multilaterais e a política em relação à concorrência. Cada uma dessas dimensões recebeu nota no documento do partido político analisado: a nota 1 refletia a inclinação liberal no sentido clássico do termo; já a nota 5 refletia o grau máximo de nacionalismo justificado por casos históricos, como o nazismo dos anos 30 ou o fascismo nacionalista na Itália e na Espanha. Analisamos todos os partidos que haviam recebido mais de 10% dos votos nas eleições gerais mais próximas anteriores à crise de 2008 e nas eleições mais recentes.
A primeira constatação interessante é que, tanto nos países avançados quanto nos emergentes, os partidos que não tinham relevância ou que não existiam antes da crise, são, de um modo geral, mais extremistas — muitos são mais nacionalistas, outros têm claro viés estatizante. Portanto, as plataformas políticas desses “novos” atores no quadro político de cada país refletem nitidamente a aglutinação nos extremos que caracteriza esta era de polarização. Como disse anteriormente, essa revelação é generalizada, não se restringe à reinvenção do Partido Republicano nos Estados Unidos, tampouco ao Ukip defensor do Brexit na Grã-Bretanha. Há novos nacionalistas no México, na Índia, na Coreia do Sul, por exemplo.
O PSL de Jair Bolsonaro é difícil de codificar, pois a plataforma de 2018 não contém informações suficientes, mostrando o que já sabíamos: o partido que venceu as eleições não tinha propostas claras ou bem delineadas para nada. Não à toa vemos o protagonismo do Congresso preenchendo esse vácuo. Tal protagonismo é bem-vindo. A segunda constatação é que a crise financeira de 2008 pode, de fato, ter servido como um divisor de águas importante. Quando consideramos as plataformas políticas antes da crise, havia claramente posicionamentos mais à esquerda ou mais à direita, mas o nacionalismo não era tão evidente. Quando constatávamos nacionalismo, ele aparecia de forma meio encabulada, quase pedindo perdão por ali estar.
As plataformas mais recentes demonstram orgulho em ser nacionalistas, escancaram essa postura sem qualquer pudor. Nossa metodologia foi capaz de captar isso com clareza, além de demonstrar quão abrangente é a tendência. E, igualmente importante, embora muito do nacionalismo de hoje esteja identificado com partidos de extrema-direita, há partidos de esquerda que também o abraçaram.
A terceira constatação é que o nacionalismo é contagiante. Ele se espalha de um país para o outro como uma epidemia — ou como uma crise financeira. Países não são nacionalistas individualmente. O discurso de que o estrangeiro deve ser visto com desconfiança — seja o estrangeiro as empresas, os imigrantes, as instituições — tem fortíssimo apelo emocional e, por conseguinte, político. Os partidos são o fio que conduz esses sentimentos mais descarados do eleitor. Será muito interessante ver como isso haverá de se refletir nas próximas eleições, sobretudo nas eleições para presidente aqui nos EUA. Já se veem dos dois lados do espectro ideológico os sinais do nacionalismo destemido. Ele aparece tanto em Trump quanto nas propostas da senadora democrata Elizabeth Warren, uma das primeiras colocadas nas pesquisas.
O Brasil que tanto já sofreu com os desmandos nacionalistas escapará dessas tendências? O Brasil do Congresso na liderança e de Rodrigo Maia como capitão das reformas conseguirá resistir ao apelo? De um lado, nossos problemas são grandes demais, urgentes demais, para que possamos nos permitir tirar os olhos do que é preciso fazer. De outro, é justamente da frustração que nasce o populismo nacionalista mais estridente. Os perigos estão aí. Basta prestar atenção no presidente e em seu entorno, filhos incluídos.
*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
Monica de Bolle: A primazia da política
O que vemos hoje é bem mais amplo do que o Brexit ou a eleição de Trump em 2016
Por que os eleitores aparentemente votam contra seus interesses econômicos? Por que as pessoas apoiam medidas econômicas que podem lhes trazer prejuízos? Por que o eleitor racional em matéria econômica parece ser um mito que não encontra qualquer apoio nos dados? Essas perguntas são essenciais para entender não apenas o ressurgimento do nacionalismo econômico no mundo, mas também para entender a economia política que determina decisões surpreendentes. Nos países desenvolvidos, em especial nos EUA, essas perguntas estiveram presentes no rescaldo da eleição de Donald Trump e retornaram agora, com as eleições de 2020.
Em 2016, os eleitores norte-americanos que elegeram Trump votaram contra a imigração, apesar das amplas evidências de que o envelhecimento populacional e as características demográficas dos EUA clamam por imigrantes para sustentar o crescimento econômico. Esses mesmos eleitores também foram capturados pela retórica protecionista, ainda que as medidas que dela resultassem pudessem trazer prejuízos concentrados em localidades e parcelas expressivas do eleitorado.
Nos dois casos, o que se viu foi a imputação de culpa – nos imigrantes, no comércio internacional – e na racionalização de temas como a causa de todos os males, sobretudo daquelas pessoas que sentiram-se ao longo do tempo marginalizadas pelas transformações ocorridas no sistema produtivo norte-americano. A emoção suscitada, seja indignação ou repúdio, foi mais forte do que qualquer fato ou evidência.
Três anos depois, o mesmo continua a ocorrer. Imigrantes continuam demonizados pela parcela de eleitores de Trump a despeito de tudo, inclusive do tratamento desumano recebido na fronteira com o México. O comércio internacional e as guerras tarifárias de Trump, que já fizeram vítimas entre os produtores rurais com o desvio de compras de produtos agrícolas da China para outros países, não provocaram qualquer alteração visível nas preferências desses eleitores. Embora seus interesses econômicos estejam sendo prejudicados, muitos continuam a apoiar Trump com o mesmo fervor.
O que explica esse tipo de comportamento? Teses abundam, mas, francamente, a mais fácil de enxergar é aquela que coloca a polarização no centro da explicação. Aqui nos EUA a polarização se dá menos em função de posicionamentos políticos associados ao que se poderia chamar de “esquerda” ou “direita”, e mais em relação às questões identitárias. Raça e gênero são duas linhas divisórias mais marcantes do que os conceitos de “conservador” ou “liberal”. Exemplo disso foi o furor causado por Trump depois de o presidente norte-americano postar tuíte controvertido sobre quatro parlamentares democratas, todas mulheres, nenhuma delas branca.
O “nós e eles” que hoje determina a polarização norte-americana está portanto bastante marcado por ser branco e homem ou ser mulher de outra raça. Essa não é uma simplificação boba do que se passa por aqui, infelizmente. Ao rachar o país nessas linhas divisórias, Trump tenta mais uma vez mobilizar seus eleitores menos pelos seus interesses econômicos e mais pela tribo a qual pensam pertencer. Deu certo em 2016. Ao que tudo indica, é provável que dê certo novamente em 2020, ainda que os prejudicados pelas políticas econômicas de seu governo existam – eles e elas estão dispostos a ignorar esses prejuízos a favor de ver o outro grupo perder.
Algo parecido acontece hoje no Brasil, ainda que os grupos sejam bastante diferentes. Não há uma divisão por raça ou gênero, mas sim por outra demarcação. De um lado, define-se a “esquerda”, de outro a “antiesquerda”. A antiesquerda não é, necessariamente, a direita. O grupo é formado por todos aqueles que identificam a esquerda como corrupta e incapaz de gerir o País, dados os desastres econômicos do PT. Vista dessa maneira, não surpreende que todas as reformas rejeitadas pela esquerda – como a reforma da Previdência – sejam imediatamente encampadas pela antiesquerda, produzindo o resultado da votação em primeiro turno na Câmara.
Repensar a primazia da política sob esses moldes é importante para entender os rumos das reformas. O que vemos hoje é bem mais amplo do que o Brexit ou a eleição de Trump em 2016. Saber traçar a economia política da polarização é saber prognosticar o futuro da economia.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Monica de Bolle: Dilema moral
Como se separa a reforma da Previdência das gravíssimas investidas deste governo contra a imprensa, contra o Congresso, contra as instituições de nossa democracia?
O que fazer quando um governo parece estar conduzindo bem a economia ou tratando de fazer algumas reformas importantes ou mantendo o crescimento econômico em ritmo saudável enquanto ataca instituições democráticas, ou direitos humanos fundamentais, ou ambos? Tenta-se separar a política econômica do resto, implicitamente indicando que o resto é menos importante do que a economia? Tenta-se manter o silêncio sobre a política econômica enquanto se apontam os perigos de atacar a democracia, os direitos humanos? Tenta-se reconhecer os esforços na área econômica e apontar os demais perigos ao mesmo tempo, correndo-se o risco de colocar economia e defesa de valores fundamentais no mesmo patamar? Não sei ao certo responder a nenhuma dessas perguntas. Ou melhor, sei que separar a economia do resto é não apenas impossível, mas intelectualmente desonesto, já que a economia opera dentro das fronteiras políticas e geográficas do país cujo governo pode estar violando valores fundamentais.
Na Hungria, o governo autoritário de Viktor Orbán tem tido estrondoso sucesso econômico. Desde sua ascensão ao poder, ficaram para trás os problemas fiscais que ameaçavam o país, retomaram-se os investimentos e o crescimento econômico. A Hungria foi, por muito tempo, uma das maiores decepções entre os países que transitaram dos regimes centralizados para as economias de mercado ao longo dos anos 90. Desde a chegada de Orbán, o quadro se inverteu e o país passou a ter um dos melhores desempenhos da região. Enquanto colocava a economia para funcionar, Orbán censurava a imprensa, perseguia inimigos políticos e transformava a democracia de seu país em caricatura.
Aqui nos Estados Unidos, a economia continua a crescer com desemprego em baixa a despeito das guerras comerciais de Trump e de suas investidas contra o Fed, o Banco Central americano. É bastante provável que a economia forte seja um de seus grandes trunfos nas eleições do ano que vem. Contudo, sua política migratória está há tempos enjaulando crianças na fronteira com o México, em condições absolutamente desumanas. Há bebês presos sem receber os cuidados de adultos, mas sim de crianças um pouco mais velhas, elas próprias desnutridas e sem qualquer acesso a higiene básica. Segundo relatos de membros do Congresso, de pediatras e de jornalistas que visitaram centros de detenção de Trump, há crianças doentes sem tratamento, crianças com problemas psicológicos devido ao encarceramento e à separação de seus pais, crianças amontoadas em celas em que não há leitos suficientes, em que as luzes ficam acesas a noite toda. Como se separa a economia disso?
“Por falar em crianças, como se separa a reforma da previdência da defesa do trabalho infantil recém-tuitada por Bolsonaro?”
Como se separa a reforma da Previdência das gravíssimas investidas deste governo contra a imprensa, contra o Congresso, contra as instituições de nossa democracia? Como se separa a reforma da Previdência do retrocesso na área ambiental quando as mudanças climáticas são hoje a tendência global de maior relevância para os cenários de médio e longo prazo, a maior ameaça à sobrevivência das parcelas mais destituídas da população brasileira? Em outras circunstâncias, talvez fosse fácil apontar os acertos e os erros da principal reforma desse governo, talvez fosse fácil dizer que ela contém mais acertos do que erros, ainda que cristalize muitos dos privilégios que se pretendia eliminar. Em outras circunstâncias, talvez não fosse difícil afirmar que as economias previstas pela reforma darão ao país o alívio de que tanto necessita nas contas públicas, ainda que os estados e municípios tenham sido excluídos — francamente, parecia ingênua a crença de que esses entes federativos fossem realmente incluídos ante seu peso político. Contudo, diante da perda de valores fundamentais que o governo Jair Bolsonaro representa, diante da caricatura que fazem seus seguidores de temas tão graves quanto o trabalho infantil, é muito complicado discutir friamente a reforma da Previdência e respaldá-la sem ressalvas, sem o pé atrás de que talvez isso acabe dando ao governo a licença para pôr mais retrocessos em marcha.
O dilema moral, com o qual poucos parecem se preocupar, não é brasileiro. Ele é global. Isso não o torna mais palatável, mas sim profundamente desorientador.
*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
Monica de Bolle: Fios desencapados
Países que utilizam trabalho infantil geram desincentivos ao investimento e ao aprimoramento produtivo
A imagem que tinha na cabeça quando comecei a escrever este artigo estava mais para cabos elétricos soltos do que fios desencapados, mas o efeito visual é mais ou menos o mesmo. Pensava em postes elétricos caídos e aqueles cabos chamuscando e soltando fagulhas, perigo para qualquer um que passe perto. Fios desencapados servem ao mesmo propósito de visualizar perigos aos quais somos expostos todos os dias e à necessidade de conter os danos desses fios desarmando-os e refutando argumentos estapafúrdios.
Não falo sobre os terraplanistas, pois esses já se tornaram folclóricos de tão primitivos que são. Falo dos outros. Falo do susto brutal de aprender repentinamente que, no Brasil, parte da elite não sabe o que é trabalho infantil, ou finge que não sabe para proteger o presidente da República da repercussão de seus tuítes. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define o trabalho infantil assim: “Nem todo o trabalho exercido por crianças ou adolescentes deve ser classificado como trabalho infantil. A participação de crianças e adolescentes em atividades que não afetem sua saúde ou desenvolvimento e não interfiram nas atividades escolares é geralmente vista como positiva”. Isso inclui atividades como ajudar os pais nas tarefas de casa, nos negócios da família, ou algo que possibilite ganhar um dinheirinho extra durante as férias escolares ou feriados.
O termo “trabalho infantil se refere a atividades que privem as crianças de sua infância, de seu potencial, de sua dignidade, e que possam ser prejudiciais ao seu desenvolvimento físico e mental”. Portanto, a parlamentar que vendia brigadeiros na escola para pagar as aulas de tênis “sem precisar”, a jornalista que trabalhava no armazém do pai, ou o juiz que aos 12 anos foi trabalhar numa pequena loja da família não foram vítimas de trabalho infantil. Assim como não foram vítimas de trabalho infantil as centenas de pessoas que tuitaram suas experiências a pedido do filho deputado do presidente.
Vítima de trabalho infantil é a meninada que vende bala nos semáforos das cidades brasileiras, que cata lata nos litorais do nosso País, que corta cana debaixo de sol escaldante. Vítima de trabalho infantil são as 2,4 milhões de crianças exploradas País afora, segundo os mais recentes dados da OIT. Cabe lembrar, tuítes à parte, que o Estado brasileiro se comprometeu a erradicar a violação de direitos da criança e do adolescente por meio da exploração laboral até 2025 – faltam menos de 6 anos para terminar o prazo.
Nesses tempos de fios desencapados, em que as descargas elétricas parecem provocar convulsões intelectuais em quem deveria ter preparo suficiente para separar os mais abjetos absurdos da mera ignorância, está difícil usar valores morais para convencer as pessoas dos malefícios de certos argumentos. Valores morais universais foram atropelados pela ideologia e, nesse momento, estrebucham nos grupos de família de WhatsApp, nas redes sociais, na briga constante como forma de “diálogo”. Nesse ambiente, a única forma de trazer alguma racionalidade para a discussão é colocá-la de forma fria, deixando de lado – pasmem – a moralidade.
De forma fria, a literatura mostra que o trabalho infantil prejudica o crescimento econômico, ainda que possa auxiliar algumas famílias miseráveis no curto prazo – e mesmo essa premissa é questionável diante dos dados. Ao competir com a educação, o trabalho infantil impede que as crianças cresçam para se tornarem adultos com mais escolaridade, e, portanto, mais produtivos e com maiores chances de obter empregos que ofereçam salários melhores do que a renda de seus pais. Ficam essas crianças, quando adultas, presas em ciclo de pobreza quase perpétuo, o que pode aumentar o grau de desigualdade de renda de um país, para não falar da falta de acesso a qualquer outra oportunidade que favoreça o desenvolvimento econômico. Países que utilizam trabalho infantil geram desincentivos ao investimento e ao aprimoramento produtivo, já que há um recurso barato em abundância – as crianças.
Cabe a todos aqueles com espaço nos jornais o esforço de encapar fios constantemente para que a ignomínia não resulte na regressão autodestrutiva.
* Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Monica De Bolle: 4 de julho
Todos se apoderaram de símbolos de seus países para traçar a linha que divide os lados.
Por acaso, este artigo vai para o site de ÉPOCA no dia 4 de julho. Não por acaso, este 4 de julho em especial não é um 4 de julho qualquer. Trata-se, sim, do Dia da Independência dos Estados Unidos, mas no Brasil não costumamos dar muita atenção a isso — ou não costumávamos. Sabe-se lá o que o clã Bolsonaro, em sua veneração deslavada por Donald Trump, resolverá tuitar amanhã. Pouco importa.
O que importa é que neste 4 de julho o atual presidente americano resolveu encampar a data historicamente apolítica para fazer um quase inédito discurso nos monumentos de Washington DC, bem como pôr à mostra tanques, aviões de caça e outras parafernálias militares. Desde que foi convidado por um recém-eleito Emmanuel Macron para participar das comemorações do Dia da Bastilha em Paris, a ideia de imitar os franceses não lhe sai da cabeça.
A diferença é que o Dia da Bastilha sempre teve essa tradição. Já aqui, com um discurso que inevitavelmente tocará em temas da campanha presidencial de 2020, a iniciativa de Trump é obviamente divisiva.
Age o presidente americano como outros líderes nacionalistas contemporâneos e passados.
Do lado de cá, os que defendem Trump, os patrióticos, a gente “do bem”. Do lado de lá, os críticos do presidente, logo os que rechaçam os símbolos nacionais. Soa familiar? Alguém aí com uma certa aflição de vestir a camisa da Seleção Brasileira e ser rotulado de defensor do “mito”? Alguém aí desconcertado com o que hoje significa a amarelinha, a canarinho? Em caso de resposta positiva, saibam que não estão sós.
A posse dos símbolos do país por líderes nacionalistas tem a intenção de causar precisamente esse grau de desconforto. Por óbvio, a posse dos símbolos do país divide e isola, marca com letra escarlate — no caso do Brasil a letra escarlate não é a letra A, mas a letra E de Esquerdista — os que pertencem a essa construção inventada, o lado de lá.
A eleição de Trump em 2016, mais do que o Brexit no mesmo ano, inaugurou a era do populismo-nacionalista. mbolle@edglobo.com.br Nessa “nova” era de passado marcado, o lado de cá, o “nós”, é composto por todos aqueles que compartilham a identidade do líder escolhido — sua raça, sua nacionalidade, seus valores. O lado de lá, o “eles”, é composto por todos os que podem até compartilhar raça e nacionalidade. Mas se não compartilham valores, estão definitivamente do outro lado.
O estrangeiro, que não compartilha a nacionalidade e muitas vezes tampouco a raça, está sem dúvida alguma do lado de lá. Por isso, o estrangeiro deve ser detido, contido, quiçá preso e maltratado como os pobres imigrantes da América Central aprisionados em condições desumanas nos centros de detenção de Trump. Se o estrangeiro é o lado de lá, o lado de cá precisa ser autossuficiente para não ter de lidar com ele.
Por isso o protecionismo como arma econômica. Por isso, também, alguma prudência macroeconômica, já que depender do investimento estrangeiro significa entregar-se a “eles”. Por isso o nacionalismo econômico que acompanha os movimentos populistas ultraconservadores da atualidade. Há “adversários” dentro das fronteiras, mas a maioria está fora delas.
A direita tosca brasileira até tentou encampar algumas dessas ideias. Se diz “antiglobalista” e já estampou a letra escarlate em todos aqueles que não aceitam a torpeza do marxismo cultural, da ideologia de gênero, do retrocesso ambiental. Mas as fragilidades da economia brasileira impõem limites a essa visão ignorante, ávida por rechaçar dados, fatos, especialistas, acadêmicos e a força das ideias.
O recém-anunciado acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul está aí para provar que até os mais fanáticos antiglobalistas sempre se dobrarão ante a realidade crua, ainda que para isso tenham de contorcer a própria falta de lógica para justificar as contradições, como fez nosso ministro das Relações Exteriores.
A resposta da UE ao populismo-nacionalista de Donald Trump tem sido contundente. Ainda que o bloco esteja repleto de problemas, ainda que a direita ultraconservadora tenha também se erguido por lá, desde 2017 a UE negociou acordos comerciais com boa parte do planeta e dos parceiros comerciais dos EUA, entre eles Canadá, Japão, México, Vietnã e agora o Mercosul.
Quatro de julho. Pretendo passá-lo escutando a “Ode à alegria”, de Beethoven, hino da UE.
*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Kopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
Monica De Bolle: O acordo UE-Mercosul
Há risco de que o acordo não avance devido à radical mudança do governo Bolsonaro na área ambiental
O anúncio de que após 20 anos de negociação finalmente a União Europeia e o Mercosul chegaram ao tão esperado acordo de livre-comércio foi notícia e tanto na semana passada. Para quem defende a liberalização comercial e a abertura da economia brasileira, o acordo abre caminhos para que finalmente o Brasil saia do isolamento. Os que acompanham essa coluna além de outros artigos que já escrevi sobre o tema sabem que há tempos defendo a abertura com base na ampla literatura empírica existente sobre os efeitos de longo prazo da abertura comercial no crescimento, na produtividade, nas transferências de tecnologia, nos investimentos.
Dito isso, acordos comerciais são notoriamente difíceis de explicar para o público geral pois as minúcias e detalhes técnicos é que determinam a extensão dos benefícios pretendidos e se os números veiculados pelos governos envolvidos refletem adequadamente as medidas que o texto final contém. Antes de prosseguir, advirto: muito se tem falado nos últimos dias sobre o acordo com o Mercosul. No entanto, ainda não dispomos do texto completo do acordo para analisá-lo. Dispomos tão somente de um documento de 17 páginas publicado pela UE resumindo alguns pontos do acordo preliminar.
O primeiro ponto importante: o que foi anunciado na semana passada trata-se de um acordo preliminar, não final. O acordo final só virá após a sequência de revisões técnicas e jurídicas a serem feitas pelos países envolvidos, o que significa que as negociações ainda não terminaram.
E, o que se sabe até agora? Não muito. Do texto de 17 páginas é possível extrair alguns detalhes sobre o acesso aos mercados para bens industriais e agrícolas, mas acordos modernos contém bem mais do que apenas a redução de tarifas e a abertura de mercados – embora o resumo da UE forneça lampejos do conteúdo dos demais capítulos, ainda é difícil saber o que de fato foi negociado nas áreas de propriedade intelectual, e-commerce, regras de origem, barreiras técnicas ao comércio, convergência regulatória, além de tantos outros temas complicados e bastante técnicos.
O que é possível dizer é que a UE pretende eliminar as tarifas aplicáveis a 100% dos produtos industrializados provenientes do Mercosul por linha tarifária ao longo de 10 anos, e que o Mercosul fará o mesmo para 93% das linhas tarifárias dos manufaturados que exporta para a UE. Há uma exceção para veículos de passageiros que ainda não está bem detalhada, mas no geral pode-se dizer que o acordo abre o mercado europeu para a indústria brasileira. Isso é evidentemente bom, mas há também que se considerar que a indústria local padece de baixa competitividade. A abertura pode ajudar esses setores a se modernizarem. Há quem ache que o acordo poderia acelerar a desindustrialização brasileira. Para esses, lembro: muitas empresas europeias já estão no País e já competem diretamente com empresas locais.
No setor agrícola, o acordo parece favorecer mais a UE do que o Mercosul. Enquanto o Mercosul reduzirá tarifas em mais de 90% do que importa da UE, a UE diminuirá tarifas em 82% do que importa do Mercosul. Produtos como carne bovina, açúcar, etanol, dentre outros, estarão sujeitos a cotas no mercado europeu, além de toda a exportação agrícola ficar rigorosamente sujeita às regras sanitárias e fitossanitárias da UE, áreas em que o bloco segue padrão próprio.
O acordo contém capítulo destinado ao desenvolvimento sustentável obrigando todas as partes a cumprir estritamente as condições não apenas o acordo climático de Paris, mas diversos outros acordos internacionais. Essa é a parte que pode ser mais complicada para o Brasil durante o processo de ratificação nos parlamentos, sobretudo no parlamento europeu, onde os partidos verdes aumentaram sua participação nas últimas eleições. Não é segredo que o governo Bolsonaro vem desmantelando regras ambientais e agências de monitoramento como o Ibama. Caso essas práticas não sejam inteiramente revertidas, não dá para excluir o risco de que após passar por todas as barreiras e atravessar duas décadas de negociações, o acordo UE-Mercosul não avance devido à radical mudança do governo Bolsonaro na área ambiental. Aguardemos os próximos capítulos, pois serão muitos.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Monica De Bolle: Em razão do sexo
Quem defende a bandeira da igualdade é frequentemente tratado com desprezo, rotulado de 'feminazi'
Nunca me conformei com as traduções dos títulos de filmes estrangeiros para o português, sobretudo a dos originais em inglês. Suprema foi o título que encontraram para On the Basis of Sex, filme que narra a luta de Ruth Bader Ginsburg para reformar o imenso arcabouço de leis norte-americanas que discriminavam “em razão do sexo”, ou em razão do gênero. Sim, Ginsburg foi indicada para a Suprema Corte dos EUA no início dos anos 90, mas o filme não é sobre isso. É sobre muita coisa, em especial sobre a parceria entre a protagonista e o marido para que ambos pudessem alcançar o ápice de suas carreiras em meio às demandas familiares e domésticas. Tudo isso se perde no título boboca que escolheram para dar ao filme no Brasil.
O tema do filme e da atualidade – as disparidades de gênero e as imensas dificuldades para combatê-las – encontra enorme resistência no Brasil. A resistência ficou bem visível na Copa do Mundo feminina e no desabafo da jogadora Marta após o embate entre Brasil e França. Fica evidente toda vez que alguém ousa levantar nas redes sociais a hostilidade que existe em relação às mulheres em diversas profissões. Há mulheres de outras gerações que não percebem essa hostilidade por terem a ela se acostumado. Há mulheres diversas que lutam bravamente para que as dificuldades sejam reconhecidas. Há muitos homens que entendem haver diferenças gritantes no tratamento dispensado a homens e mulheres em ambientes diversos. Há outros que se valem da misoginia, cujo espaço aumentou na era das redes sociais.
Tudo isso é desculpa para passar ao largo do que a evidência empírica crescente revela sobre a desigualdade de gêneros: ela prejudica o crescimento econômico além de provocar aumento da polarização política. Quem defende a bandeira da igualdade é frequentemente tratado com desprezo, rotulado de “feminazi” pela direita medieval – que compreende apenas uma parte da direita – ou simplesmente ignorado. No entanto, a questão no mundo está evoluindo com muito mais rapidez do que no Brasil, e o País parece que não irá perder mais uma oportunidade de continuar andando para trás.
Há estudos acadêmicos mostrando como a redução das disparidades entre homens e mulheres podem melhorar as perspectivas de crescimento com justiça social. Façam pesquisa rápida no Google sobre “Women in Public Policy” apenas para ver quantas universidades de ponta no mundo, hoje, têm iniciativas para estudar o tema. Busquem artigos no site do Banco Mundial e surpreendam-se com o grau de discriminação ainda existente no mundo em pleno Século 21. Diz o Banco Mundial: “normas sociais são fator fundamental para explicar as privações e restrições que mulheres encontram. Normas afetam o trabalho da mulher ao ditar como ela deve dispor de seu tempo, desvalorizando seu potencial.
O trabalho doméstico, a responsabilidade pela criação dos filhos e pelos cuidados com os idosos ainda são consideradas as principais funções da mulher. Ao menos a metade das pessoas nos países em desenvolvimento acredita que quando empregos estão escassos, homens têm mais direito ao trabalho do que mulheres”. Tudo isso sem falar no viés que impera na contratação e na avaliação de desempenho, como mostram pesquisas. A discriminação legal – tema de On the Basis of Sex – ainda é barreira para o trabalho feminino. Ela existe em 128 países analisados pelo Banco Mundial. Pensem nesse número: 128 países discriminam abertamente contra as mulheres em suas leis.
Outras áreas de pesquisa mostram as diferenças entre mulheres e homens nas preferências em relação às políticas públicas. Mulheres exibem mais preferência por políticas igualitárias e redistributivas do que homens, que tendem a preferir a eficiência. No espectro político simplista de hoje, isso faz com que mais mulheres sejam mais frequentemente rotuladas de “esquerda” do que os homens, o que é uma estupidez. Mulheres exibem menor aversão ao risco do que homens e alguns estudos mostram que preferem trabalhar de forma colaborativa do que de forma competitiva. Ou seja, em qualquer ambiente de trabalho, a maior diversidade de gêneros pode trazer complementariedades importantes: competitividade na dose certa, aversão ao risco na dose certa.
Em razão do sexo, ainda existe muita coisa errada, muita discriminação, e muita gente confortável demais com injustiças que já não encontram a mesma aceitação no resto do mundo. Não tenho ilusões de que o Brasil acordará para isso tão cedo. Mas, fica mais um alerta para o retrocesso iminente.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Monica de Bolle: Respeito você, mas...
O machismo é grande na profissão de economista, e a hostilidade muitas vezes afugenta as mulheres da carreira
Falar sobre machismo é sempre difícil. É importante, mas difícil e muitas vezes cansativo. É objeto de controvérsia por várias razões, inclusive porque homens geralmente não veem que houve machismo em certa situação. Como eles não veem, não houve. Contudo, não é bem assim que a coisa rola.
Publiquei recentemente no Twitter um gráfico para falar sobre a inexistência de caixa-preta no BNDES. Nesse gráfico, havia dois eixos. Em um deles, estavam os desembolsos anuais do BNDES como proporção do PIB. No outro, o investimento brasileiro também como proporção do PIB. O ponto era bem simples: houve um salto considerável nos desembolsos do BNDES ao final do segundo mandato de Lula e do primeiro de Dilma. O aumento dos desembolsos do BNDES não veio acompanhado de qualquer aumento da produtividade brasileira, e, embora tenha havido uma elevação da taxa de investimento no período, essa subida poderia ser explicada por fatores cíclicos, como a alta das commodities e os impulsos externos que sobrevieram da crise de 2008. Ao terminar a farra do crédito público subsidiado, em 2014, sobraram os escombros. A economia estava ainda mais desarranjada, pois o Tesouro fizera repasses com subsídios implícitos ao BNDES para que o banco priorizasse empréstimos a empresas designadas como campeãs nacionais. Essas empresas e o volume de recursos baratos recebidos do banco estão no site do BNDES desde 2015 para qualquer um ver, o que não configura existência de caixa-preta alguma. Além do mais, como todas essas empresas tinham acesso a outras fontes de recursos, o uso do crédito público para beneficiá-las trouxe distorções tão importantes quanto os desarranjos fiscais. Por fim, os excessos do BNDES pressionaram as taxas de juros para cima e entupiram os canais de transmissão da política monetária, prejudicando o trabalho do Banco Central. Todos esses argumentos foram previamente apresentados por mim e por outros economistas ao longo dos anos. Trata-se de terreno batido, mas a memória é curta. Sobretudo a do presidente da República, que insiste em procurar pelo em ovo em vez de resolver os imensos problemas do país.
De volta ao gráfico, a celeuma começou quando um economista resolveu criar caso com a existência de dois eixos. De fato, quando se apresentam duas séries em dois eixos distintos no mesmo gráfico, isso pode, às vezes, causar confusão. O artifício pode até ser usado para induzir quem vê o gráfico a enxergar correlações espúrias entre séries macroeconômicas. Evidentemente, não era o caso nesse gráfico específico — e o economista em questão, além de outros economistas que resolveram participar do “debate” induzidos pelo primeiro, sabiam disso. Ou deveriam saber. A forma como o economista tratou de se expressar sobre tema comezinho foi ríspida e condescendente. Não é a primeira vez que acontece comigo, assim como não é a primeira vez que acontece com alguma mulher, seja na área de economia ou em outras áreas. O machismo é grande na profissão, como constatam estudos recentes, como os relatórios produzidos pela American Economic Association nos últimos anos. O tema tem sido tratado com seriedade aqui nos Estados Unidos e em outros países, pois a hostilidade muitas vezes afugenta as mulheres da profissão de economista, o que é uma lástima. Afinal, outros estudos mostram com clareza que a diversidade importa muito para o desenho de políticas públicas.
“MULHERES MUITAS VEZES ENXERGAM PRIORIDADES DIFERENTES DAS DOS HOMENS NO DESENHO DESSAS POLÍTICAS E DE PROGRAMAS SOCIAIS”
O exemplo mais clássico é a importância do acesso a creches de qualidade e financeiramente acessíveis para que as mulheres possam trabalhar — especialmente as que vêm de classes sociais mais desfavorecidas. A oferta de creches públicas de boa qualidade, além de permitir que mulheres ingressem no mercado de trabalho, tende a reduzir desigualdades ao fazê-lo. Esse tipo de preocupação costuma estar mais presente entre mulheres do que entre homens, ainda que muitos deles estudem o tema. Não me entendam mal: há muitos homens economistas que veem mulheres economistas como pares e que se debruçam sobre temas semelhantes. Mas há, sobretudo no Brasil, uma espécie de masculinidade tóxica que necessita sobressair a qualquer preço. Nem que o preço seja abafar um debate importante para tratar de picuinhas ou de assuntos de menor importância ou relevância.
Usei algo que aconteceu comigo para levantar o tema maior. Convido outras mulheres economistas ou de outras áreas a fazer o mesmo. Afinal, não há nada como uma conjunção adversativa para anular tudo que vem antes: “Respeito seu ponto, mas...”; “Admiro seu trabalho, mas...”; “Gosto do que você escreve, mas...”. E essas são as intervenções pretensamente gentis e educadas. Há as rudes e grosseiras, que muitas vezes nem sequer podem ser repetidas.
Para encerrar, não há caixa-preta no BNDES.
*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
Monica De Bolle: O bordão da “caixa-preta”
Se querem culpar alguém pelos excessos cometidos no passado, culpem o governo que instruiu o banco a fazer os empréstimos, não o banco
Boa parte do meu livro sobre a era Dilma publicado em 2016 foi sobre o BNDES. Perdi a conta de quantos artigos escrevi sobre o banco. Só para esse jornal, devem ter sido mais de 20 ao longo de vários anos. Para sublinhar o ponto, em artigo publicado no dia 9 de janeiro desse ano, intitulado “O que pode avançar?”, escrevi esse trecho: “Sobre o BNDES em particular, perdi a conta do número de artigos que escrevi para esse espaço”. Entretanto, é impossível não escrever sobre o BNDES após a demissão do presidente do banco, Joaquim Levy, no último fim de semana. É impossível deixar de escrever sobre o BNDES ante os espantalhos e factoides que o presidente da República insiste em criar e diante do “bordão da caixa-preta” – não confundir com o cordão da bola preta – que muitos de seus fiéis seguidores insistem em repetir como se rezassem o terço da seita bolsonarista. Levy é um técnico experiente, e como técnico experiente, se recusou a rezar o terço. Ao que tudo indica, essa é pelo menos uma das razões para que tenha sido tratado com rudeza e falta de profissionalismo pelo presidente no último fim de semana.
E aí, há caixa-preta no BNDES? Como outros pesquisadores, eu já trabalhei com dados do banco e já interagi bastante com seu corpo técnico. Em 2015 publiquei um estudo pelo Peterson Institute for International Economics em que apontava três distorções causadas pelo crédito subsidiado em abundância: a prática de emprestar barato para grandes empresas de baixo risco deixava para o mercado privado empresas de maior risco, induzindo aumento das taxas de empréstimos privados para compensar pelo risco adicional absorvido nos balanços de outras instituições; os repasses opacos do Tesouro para o BNDES, que criavam passivos para o governo na forma de subsídios – esses repasses que vigoraram durante os anos Dilma ajudaram a desequilibrar as contas públicas; a abundância de crédito barato do BNDES forçava o Banco Central a manter as taxas de juros mais elevadas, pressionado para cima a taxa de juros real. Calculei que se o BNDES reduzisse seu balanço expressivamente e acabasse com o crédito subsidiado, a taxa de juros real poderia cair em pouco mais de um ponto porcentual. Foi o que aconteceu. Para chegar a essas conclusões, usei os dados disponibilizados no site do BNDES, que passou por profunda reformulação em 2015 com o objetivo de dar transparência às suas operações, além de ter acesso a técnicos do banco, que, com sua generosidade, ajudaram a esclarecer várias dúvidas. Muitos, na época, expressaram profundo desagrado com as práticas que haviam predominado durante boa parte do primeiro mandato de Dilma.
Mas, vejam: o BNDES é um banco estatal. Como banco estatal, ele é um instrumento do governo. Se o governo decidir expandir o crédito para grandes empresas a fim de dar impulso às suas políticas de campeões nacionais como na época de Dilma, o que o BNDES pode fazer é pôr seus técnicos para avaliar as operações a fim de reduzir os riscos para o banco. O BNDES, como instrumento do governo, não pode negar uma ordem do governo. Portanto, se querem culpar alguém pelos excessos cometidos no passado, inclusive pelos empréstimos aos governos da Venezuela e de Cuba, culpem o governo que instruiu o banco a fazer os empréstimos, não o banco. É verdade que antes de 2015 pouco se sabia sobre as operações do BNDES – mas isso se devia à vontade do governo ao qual o banco está sujeito. De 2015 para cá houve mudanças na estrutura de governança do banco, além da abertura de seus dados. Basta entrar no site da instituição. Está tudo lá, disponível para quem quiser ver. Sem caixa-preta.
Ah, mas o BNDES estava demorando muito para devolver recursos ao Tesouro? Pois considerem: se o Tesouro foi irresponsável ao repassar recursos ao BNDES para que pudesse emprestar mais a longo prazo, o Tesouro, o governo, não podem agora ser irresponsáveis querendo que a instituição se desfaça às pressas desses recursos. Eles foram usados para empréstimos de longo prazo, que não têm, por óbvio, liquidez imediata. Portanto, desfazer os desmandos do passado é bem mais lento e difícil do que se imagina. Ah, mas o Bndespar deveria se desfazer de suas ações para pagar o governo mais rápido. Espera lá. O Bndespar é uma gestora de recursos, ou o braço de investimentos no mercado do BNDES. Como toda gestora, o Bndespar tem de ter cautela ao se desfazer de seus ativos. Sair vendendo ações a qualquer preço é prejudicial para o preço da ação da empresa em questão, assim como para a higidez da gestora, e, em última análise, para a do próprio BNDES. Se o governo apressadinho quiser tudo para já corre o risco de abalar a gestora, o banco, e os preços das ações de algumas grandes empresas brasileiras sem necessidade. Caso abale a solidez do banco, adivinhem o que acontece? O BNDES pertence ao governo, portanto, o ônus é do próprio governo. Tiro no pé, ou a velha máxima: apressado come cru.
Portanto, abaixo o bordão da caixa-preta. Viva a autêntica Marcha do Cordão do Bola Preta:
“Quem não chora não mama!
Segura, meu bem, a chupeta
Lugar quente é na cama
Ou então no Bola Preta”
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Folha de S. Paulo: Recuperação da economia só é viável com proteção social, diz Monica de Bolle
Economista defende que retomar o crescimento demandará não apenas medidas de efeito de médio ou longo prazo, como a reforma da Previdência, mas também estratégias criativas e ousadas com resultados mais imediatos, que atendam aos desempregados e vitimados pela desigualdade.
Somos peritos em crises, nossa experiência é vasta. Já passamos por hiperinflações, moratória de dívida externa, crises bancárias, crises cambiais —à exceção da moratória, o resto merece o tratamento no plural, pois as vivemos em diversos momentos, às vezes até simultaneamente. Contudo, mesmo com nossa vasta experiência em matéria de crises econômicas, jamais passamos pelo que testemunhamos hoje, espécie de crise sem crise.
Temos uma crise, pois a economia brasileira não cresce, ou cresce pouco. Não temos uma crise tradicional, pois a armadilha de crescimento baixo não é acompanhada ou mesmo causada por uma crise financeira, como no passado. O freio brasileiro está engatado há muito tempo e não resulta somente da grande recessão de 2015-2016.
Como analisei em meu livro, “Como Matar a Borboleta-Azul: Uma Crônica da Era Dilma” (Intrínseca, 2016), a tragédia do crescimento baixo reflete anos de descaso com os efeitos de contas públicas desarranjadas, de políticas insustentáveis de crédito para aumentar o consumo, do protagonismo indevido do BNDES, responsável por grandes distorções financeiras, da ausência de medidas para aumentar a competitividade do país.
Tais erros na condução da economia começaram no segundo mandato de Lula e continuaram com Dilma. Para resolver o acúmulo de entraves ao crescimento, não bastará a reforma da Previdência. Ela abrirá um importante espaço fiscal no médio prazo, é claro, mas isso é insuficiente. No ritmo atual de crescimento, não conseguiremos reduzir o desemprego e a desigualdade e flertaremos com o risco crescente de uma grave crise social.
Penso que, como ocorre em vários países avançados, o Brasil padece da chamada estagnação secular. O termo foi originalmente concebido em 1938 pelo economista e ex-professor da Universidade Harvard Alvin Hansen, para descrever o que ele acreditava ser o destino da economia norte-americana após a grande recessão dos anos 1930: um freio sustentado do crescimento econômico causado por uma demanda agregada deprimida e tendências demográficas adversas.
Em versão atualizada pelo economista Larry Summers, outro ex-professor de Harvard, a estagnação secular ocorre quando a produtividade para de crescer, a demografia passa a ser um ônus e a demanda agregada perde fôlego de forma sustentada.
No Brasil, a produtividade —seja a que conhecemos por produtividade total dos fatores ou a produtividade dos trabalhadores— está estagnada há décadas. Nossa taxa de crescimento populacional é hoje menor que a dos EUA e a da França, igualando-se à da Bélgica. Todos esses países estão sob risco de contrair a estagnação secular.
O crescimento da população é importante para as tendências de longo prazo das economias, pois garante que, no futuro, haverá gente suficiente para formar a força de trabalho sem a qual os países não crescem, por mais que existam robôs. Os robôs, afinal, não só são confeccionados por alguém, como também são operados por gente.
Por fim, a demanda no Brasil está inequivocamente deprimida. Basta observar o ritmo médio de expansão do consumo nos últimos anos —pouco mais de 1%— e a trajetória periclitante do investimento. A taxa de investimento brasileira fixou-se há tempos em pouco mais de 15%, patamar bem mais baixo do que o observado em nossos pares latino-americanos. A urgente reforma da Previdência não irá alterar esse quadro.
Se o Brasil preenche as condições para a estagnação secular nos quesitos acima, outro critério também é atendido: a taxa de juros real está em nível historicamente baixo e não dá sinais de que irá subir. Hoje, tomando a inflação 12 meses à frente projetada pelo mercado, ela está em cerca de 2,5%.
Diante do quadro econômico decepcionante e da ausência de pressões inflacionárias no horizonte, há quem defenda a redução da Selic pelo Banco Central, o que parece razoável, sobretudo após a aprovação das novas regras da Previdência. Nesse caso, e supondo que a inflação se mantenha ao redor dos 4% projetados pelo mercado, a taxa de juros real poderia ser ainda mais baixa.
Por que é possível projetar uma taxa de juros real permanentemente baixa à frente, sobretudo em comparação com a média de cerca de 3,5% nos últimos dois anos do primeiro mandato de Dilma?
Antes de responder, eis uma digressão: embora a taxa de juros real neste período estivesse em nível baixo comparado ao passado, era claro que tal patamar fora alcançado permitindo que a inflação ficasse, recorrentemente, bem acima da meta de 4,5% e que, por esse e outros motivos, aquele nível do juro real não seria sustentável, como de fato se viu posteriormente. Abordei esse tema em detalhe no meu livro.
Voltando à pergunta sobre os motivos de a taxa de juros real permanecer baixa agora, remeto os leitores aos resultados de artigo que escrevi em 2015 para o Peterson Institute for International Economics, sobre o papel do BNDES e o impacto de seus empréstimos.
Na ocasião, apresentei exercício empírico no qual mostrava que a farra do crédito subsidiado durante o segundo mandato de Lula e o primeiro de Dilma havia distorcido as taxas de empréstimos no mercado de crédito, além de ter exercido pressão considerável sobre os juros reais.
Calculei que, se os empréstimos do BNDES deixassem de ser feitos a taxas subsidiadas e retornassem aos patamares observados no início dos anos 2000, isto é, caindo de uns 4% do PIB para algo em torno de 1% do PIB, a taxa de juros real poderia cair em até 1,3 ponto percentual.
A introdução da TLP (taxa de longo prazo) durante o governo Temer removeu o componente subsidiado dos empréstimos do BNDES. Além disso, os desembolsos do banco foram reduzidos de R$ 190 bilhões em 2013 para R$ 69 bilhões em 2018, ou, precisamente, para 1% do PIB. Nesse mesmo período, a taxa de juros real caiu da média de 3,5% observada em 2013-2014 para 2,5% hoje, em linha com os cálculos que havia feito em 2015.
A taxa de juros real reflete o custo do capital para as empresas. Portanto, uma taxa permanentemente mais baixa proveniente das mudanças na atuação do BNDES deveria incentivar a alta dos investimentos privados. Contudo, não é isso o que se vê. Observa-se precisamente o que ocorreria em situação de estagnação secular: a taxa de juros real menor já não é capaz de estimular a economia.
E o consumo, componente mais importante da demanda privada e motor dos gastos que incentivam as empresas a produzir? Para falar sobre ele, é preciso não só reconhecer a alta taxa de desemprego, mas destrinchar o que vem ocorrendo com a desigualdade.
Em análise recente, o especialista no tema Marcelo Medeiros mostra que a retomada lenta da economia brasileira tem sido profundamente desigual, que a desigualdade de renda voltou a crescer em 2016, após longo período de queda e posterior estabilidade.
De um lado, o aumento da desigualdade não surpreende: resulta diretamente da grande recessão de 2015-2016, ela própria decorrente dos desmandos macroeconômicos que analisei em meu livro sobre a era Dilma. De outro, há sinais de que a alta da desigualdade total esteja em processo de aceleração.
Segundo Medeiros, dados do Imposto de Renda mostram que há migração dos investimentos daqueles que têm renda mais alta para aplicações financeiras. Isso significa que recursos são transferidos das áreas de produção, que naturalmente criam empregos, para títulos públicos e outros ativos financeiros sem impacto direto na geração de vagas.
Portanto, à frente, a desigualdade poderá aumentar mais em razão de altas no desemprego ou da criação de empregos precários, que não dão a segurança devida ao trabalhador para que ele volte a consumir.
Outro fator importante é a mudança metodológica de 2016 na Pnad Contínua, a pesquisa nacional por amostras de domicílios do IBGE. Naquele ano, a pesquisa passou a incorporar rendas que antes não estavam refletidas nos dados de rendimentos do trabalho —a saber, o 13º salário e o pagamento de comissões. Há quem tenha visto aumento na renda do trabalho e o tenha atrelado à recuperação econômica sem se dar conta da alteração na metodologia.
Ainda mais importante é a constatação de que a parte da renda do trabalho que aumenta é proveniente das comissões e do 13º. Esses rendimentos são, evidentemente, frágeis para o consumidor, pois comissões são variáveis e o 13º é sazonal.
Por essas razões, rendas provenientes dessas fontes não têm o mesmo poder de aumentar o consumo como teria a elevação do salário para aqueles com empregos seguros. E a economia brasileira hoje está sem fôlego para criar empregos que deem segurança aos consumidores.
Diante do diagnóstico apresentado, isto é, de que a economia brasileira não tem dinamismo para crescer acima das taxas observadas no médio e longo prazo e de que as tendências de curto prazo contribuem para agravar as tensões sociais, é possível elaborar algumas soluções.
Para devolver o dinamismo econômico ao país, a atual agenda de reformas é correta: precisamos de uma reforma da Previdência, precisamos de uma reforma tributária, precisamos de privatizações. Precisamos, também, abrir a economia brasileira ao comércio e ao investimento externos, o que passa não apenas por medidas de redução de tarifas de importação mas por atuações nas diversas áreas regulatórias em que o Brasil está severamente atrasado em relação a outros países latino-americanos.
A convergência regulatória para equiparar o país às boas práticas internacionais não só abriria espaço para negociar acordos de facilitação de comércio ou de livre-comércio como também reduziria o protecionismo que torna o Brasil um dos países mais isolados do mundo. Transferências tecnológicas por meio da abertura comercial ajudariam a aumentar a produtividade, junto com outras reformas, como a tributária.
A estratégia para tirar o Brasil da estagnação secular passa, portanto, pelas reformas que Paulo Guedes tem defendido e por uma agressiva abertura comercial. É claro que o desenho das reformas deve ser cuidadoso para que elas não tenham consequências indesejáveis, como o esgarçamento da rede de proteção social. Contudo, a estratégia de médio e longo prazo parece clara.
Menos clara e menos debatida é a estratégia de curto prazo para a economia brasileira. A esse respeito, o atual governo não tem plano. Tudo se resume, no curto prazo, à aprovação da reforma da Previdência. Embora a agenda Guedes não se limite a ela, todos os efeitos das reformas propostas estão circunscritos ao médio ou longo prazo.
Eis, portanto, o manifesto: para atender aos milhões de desempregados e de consumidores afogados em incertezas e vitimados pela desigualdade, é preciso desenhar políticas de curto prazo para retirar a demanda do Estado catatônico. Tais políticas não podem se resumir ao recente flerte de Paulo Guedes com a liberação do FGTS —como vimos no governo Temer, essa medida tem fôlego curto e não ameniza a aceleração da desigualdade de renda em curso. É preciso pensar de forma mais criativa e ousada.
Há tempos venho propondo o uso das reservas internacionais brasileiras para dar um alívio à economia. Antes de prosseguir, advirto: a ideia seria usá-las após a aprovação da reforma da Previdência, quando parte da incerteza fiscal de médio prazo terá sido resolvida.
Vender reservas é ideia que encontra muitas resistências, pois há quem argumente, não sem razão, que o nosso amplo estoque de US$ 380 bilhões é o que mantém o Brasil distante de crises mais agudas.
No entanto, hoje não temos mais vulnerabilidades externas relevantes. Conseguimos reduzir nosso déficit externo para pouco mais de 1% do PIB, não temos dívida externa em montante relevante e nossa dívida pública está praticamente toda denominada em moeda local. Isso significa que não temos riscos no balanço de pagamentos, o que nos abre um espaço importante.
De acordo com os cálculos do Fundo Monetário Internacional (FMI), o Brasil dispõe hoje de cerca de US$ 140 bilhões de reservas excedentes, isto é, de recursos acima do necessário para lidar com pressões externas. Ou seja, temos uma poupança que não está sendo utilizada. Neste momento de extrema fragilidade interna, deveria ser empregada para reduzir a insegurança econômica que impede o consumidor de consumir e a empresa de investir.
Uma ideia seria usar as reservas excedentes para abater a dívida pública, o que diminuiria os juros pagos pelo governo e o déficit nominal, abrindo espaço para algum aumento de gastos —por exemplo, com programas sociais para enfrentar a aceleração da desigualdade.
Vejam: esse uso das reservas possibilitaria o aumento de gastos, porém de maneira bastante indireta. Precisa-se de cautela para não desestabilizar o mercado de câmbio: a rápida conversão de dólares em reais tenderia a apreciar a moeda brasileira , prejudicando as exportações.
As reservas excedentes poderiam também ser usadas, como alguns economistas já haviam sugerido, para constituir fundo cujo objetivo seria o de financiar investimentos em áreas como infraestrutura. Josué Pellegrini, economista da Instituição Fiscal Independente (IFI), analisou essa possibilidade, além do emprego das reservas excedentes para abater a dívida pública, em nota técnica publicada pela IFI em agosto do ano passado.
Para além das dificuldades apresentadas por Pellegrini, tenho menos simpatia por esse uso das reservas, pois não atenderia às necessidades imediatas das famílias e dos consumidores aqui expostas, além de não ajudar a solucionar o drama do aumento da desigualdade.
A terceira possibilidade, bem mais controvertida e próxima de um flerte com a heterodoxia, seria a transferência das reservas excedentes, ou de parte delas, para o Tesouro Nacional, atendendo às restrições abordadas na nota de Pellegrini. Uma vez em poder do Tesouro, os recursos seriam destinados a aumentar diretamente a capacidade de elevar os gastos com programas sociais para reduzir a desigualdade e a insegurança econômica dos mais atingidos pela lenta recuperação.
Essa ideia difere do uso das reservas para abater dívida, pois os recursos transferidos para o Tesouro não seriam gastos primeiro para esse fim, mas diretamente em programas sociais. Mais uma vez, insisto: tal medida seria feita apenas após a aprovação da reforma da Previdência, sem a qual essa ideia provavelmente seria tiro pela culatra.
O uso direto de parte das reservas excedentes para turbinar programas sociais sem a âncora da mudança na Previdência seria visto por muitos economistas como espécie de populismo econômico, criando turbulência nos preços de ativos e prejudicando a atividade. Contudo, uma vez aprovada a reforma, penso que usos menos ortodoxos, como o sugerido, deveriam ao menos ser contemplados. O país não está em situação de poder se dar ao luxo de nada fazer no curto prazo.
Reafirmo esse ponto relembrando aos leitores as experiências de alguns países que tentaram fazer ajustes em suas economias sem qualquer base de apoio para o curto prazo. Os casos mais recentes não foram em países emergentes como o Brasil, mas em alguns europeus após a crise de 2008. Todos passaram por intensas turbulências políticas e sociais em razão das políticas de arrocho a que foram submetidos, o que possivelmente prolongou a saída da crise que sobre eles se havia abatido.
O caso mais emblemático é o da Grécia, mas Portugal e Espanha também viveram seus próprios infernos particulares, ainda que pudessem desfrutar do apoio financeiro das instituições europeias criadas para resolver a crise, do Banco Central Europeu e do FMI.
Para além desses exemplos, o próprio Brasil já demonstrou para si que a viabilidade das reformas só pode ser garantida com redes de proteção que evitem o caos social. O Plano Real, que completa 25 anos neste mês, e as reformas que o sucederam só foram possíveis porque a abrupta redução inflacionária removeu o ônus que impossibilitava o bom funcionamento da economia e recaía brutalmente sobre as camadas mais vulneráveis da população.
Basta olhar indicadores de pobreza e de desigualdade de renda para constatar que o Plano Real foi um grande equalizador, impedindo que uma situação de caos social e político ainda mais grave.
Volto, portanto, ao parágrafo inicial deste artigo. Por razões diversas, descuidos e desprezos de longa data, o Brasil está hoje preso numa armadilha de crescimento baixo que tende a agravar os problemas políticos, econômicos e sociais. Para sair dessa armadilha, é premente fazer reformas econômicas na linha das propostas pelo governo, ainda que alterações sejam necessárias para evitar danos às redes de proteção social.
Também é preciso ter o foco correto nas áreas de educação —sem um plano para tal não haverá aumento de produtividade—, de treinamento dos trabalhadores —principalmente com as mudanças tecnológicas em curso—, do meio ambiente. O descaso ambiental pode piorar ainda mais os rumos da economia brasileira no longo prazo, como revelam os diversos estudos acerca dos impactos econômicos perversos da negação da realidade.
Ao prevalecer a guerra ideológica nessas áreas, o governo presta um desserviço para si e para o país. Afinal, as reformas econômicas terão impacto diminuído caso se insista em ignorar a importância desses temas ou seguir na contramão do que revelam as evidências científicas. Mas mesmo isso já não basta.
Para que o Brasil tenha alguma chance de recuperar a segurança econômica, os gestores precisam reconhecer a importância de criar uma rede de sustentação no curto prazo. Para isso, será necessário resgatar o espírito criativo e inovador sem o qual estaríamos hoje ainda presos à hiperinflação.
Nossa crise atual é inédita. Esse ineditismo requer que tanto os que gerem a economia quanto os que dela entendem e sobre ela debatem saiam das suas zonas de conforto e parem de rotular à revelia. Há ideias ortodoxas que não funcionam, como as contrações fiscais sem sustentação social. Do mesmo modo, há ideias heterodoxas que resultaram em sucessos espantosos, como o Plano Real.
Fica o manifesto por um debate sem as amarras ideológicas que impedem a criatividade em momento tão crítico.
*Monica de Bolle, economista, é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University (EUA) e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics.