Monica de Bolle

Monica De Bolle: Imunidade de rebanho

O uso indevido de cálculos para a imunidade de rebanho tem consequências econômicas diversas

A revista Science publicou um artigo recente no qual a imunidade de rebanho é modelada como parte de uma série de modelos epidemiológicos que tentam, à luz dos dados e de diversas informações sobre a população de diferentes localidades, dar diretrizes gerais sobre o curso da epidemia. Trata-se, portanto, de um conjunto de artigos, e, em todos eles, pesquisadores têm sublinhado que seus modelos não devem ser tomados ao pé da letra para a formulação de políticas de saúde pública.

Como todos os modelos, eles servem tão somente para entender algumas partes de um problema intrincado, não-linear, dinâmico e que comporta uma miríade de dúvidas, questões não respondidas e, possivelmente, outras ainda não formuladas. Contudo, há quem os esteja interpretando de forma indevida para argumentar a favor da reabertura econômica independentemente da evolução da epidemia e para afirmar, equivocadamente, que alguns lugares já podem estar próximos dessa espécie de Santo Graal da nossa era.

Esses artigos usam de recursos técnico-científicos semelhantes aos empregados por economistas em suas construções retóricas no que deveria ser um esforço por elucidar questões. Vou ilustrar o que quero dizer. Em economia, é comum valer-se de modelos em que há um agente representativo, isto é, um indivíduo cujo comportamento pode ser extrapolado para todos os demais, pois é característico de todos. Modelos com esse tipo de premissa permitem simplificações que em muito auxiliam a avaliação analítica: por exemplo, se todos os consumidores tiverem um comportamento semelhante e redutível ao de um agente representativo, o problema da agregação, típico na macroeconomia, é facilmente eliminado. Para analisar o consumo agregado, basta reduzi-lo às decisões de um único indivíduo, uma vez que todos os demais a ele se assemelharão. É claro que, na prática, não funciona dessa forma, como sabemos por intuição e como revelam os estudos de economia comportamental. Ainda assim, trata-se de um artifício útil.

A imunidade de rebanho clássica, como os modelos de agente representativo, partem do pressuposto de que a imunidade é uniformemente distribuída em uma dada população. Por força desse pressuposto, há uma forma simples para calculá-la. Os 60% a 70% de infectados para alcançar a imunidade de rebanho, supondo que o fator de reprodução do vírus causador da covid seja algo entre 2,5 e 3, são calculados a partir da fórmula proveniente da imunidade clássica. Há, porém, duas questões importantes a considerar. A primeira é que o fator de reprodução real do vírus só será conhecido quando a epidemia acabar. Por ora, temos apenas estimativas que variam de acordo com fatores diversos. A segunda é que a presumida uniformidade imunológica está associada à existência de uma vacina que confere imunidade ao vírus. Ou seja, a imunidade de rebanho clássica só tem sentido no contexto de uma vacina existente para determinar a cobertura crítica de um programa de vacinação, aquela cobertura que atinge a imunidade de rebanho.

Não temos vacina para o SARS-CoV-2, logo, a imunidade de rebanho clássica não é aplicável. Por esse motivo, não se pode partir do pressuposto de uniformidade imunológica. Parte-se, ao contrário, da heterogeneidade imunológica, elaborada de maneiras distintas em diferentes estudos. No entanto, premissas ainda são necessárias. No estudo da Science, há duas: a de que todos os infectados sobreviventes têm imunidade plena contra o vírus e de que essa imunidade é duradoura. Essas premissas, como a do agente representativo, são simplificações necessárias, do ponto de vista da pesquisa científica, para elucidar um aspecto daquilo que se busca entender. Como disse antes e insisto aqui, ambas carecem de evidências científicas para sustentá-las; isso não invalida um modelo que se propõe a avaliar os fatores que podem influenciar a imunidade de rebanho, mas invalida seu uso para defender a reabertura econômica prematura.

O uso indevido de cálculos para a imunidade de rebanho tem consequências econômicas diversas. Ele expõe a população desnecessariamente – sobretudo a mais vulnerável economicamente – ao risco de contágio, com consequências sobre a desigualdade. Ele põe em risco pessoas que podem vir a apresentar sequelas, tornando-as dependentes de um sistema de saúde sub-financiado e as retirando do mercado de trabalho caso apresentem problemas mais graves decorrentes da exposição ao vírus. Para resumir, o uso indevido dos cálculos e do conceito de imunidade de rebanho põem a economia em outro patamar de risco. Economistas não usariam modelos de agente representativo para recomendar políticas de combate a uma crise econômica aguda. Da mesma forma, tudo o que existe sobre imunidade de rebanho deve ser deixado em seu devido lugar: entre os pesquisadores e cientistas que buscam compreender um vírus novo em plena evolução.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica De Bolle: Preguiça mental

De nada vale o aumento da produção industrial em um mês, porque um ponto apenas não estabelece tendência

Reforma, reforma, reforma, privatização. Repitam comigo: reforma, reforma, reforma, privatização. Agora outro. Teto, teto, teto, ou inflação. De novo: teto, teto, teto, ou inflação. Mais um: a dívida, a dívida, a dívida, crise fiscal. A dívida, a dívida, a dívida, crise fiscal. Resume-se a isso o debate econômico no Brasil. Não, esqueci desse: a queda de oferta é maior do que a queda da demanda, logo, vai dar inflação. Em algum momento vai dar inflação. Aguardem aí que vai dar inflação. A palavra inflação fica ecoando no ouvido como uma taça tibetana, aquelas usadas para meditar, mais apropriadamente conhecidas em inglês como “singing bowls”. O som que emana delas é o ruído da preguiça mental, aquela névoa densa que caracteriza o debate econômico brasileiro.

Cresceu a produção industrial? É a retomada, a hora das reformas, o momento oportuno para privatizar, o tempo do teto, o desfile dos ajustes para conter a dívida. O problema? O problema é que passam-se os anos, passam-se as décadas, e as conveniências continuam as mesmas, pois impera uma preguiça mental. De nada vale um aumento pontual da produção industrial se o ponto de partida era péssimo. Trata-se daquela velha história: se algo que valia 100 caiu 50% de valor, para que volte a valer o que valia antes o aumento precisa ser de 100% -- as condições iniciais importam. De nada vale o aumento da produção industrial em um mês, porque um ponto apenas não estabelece tendência do que quer que seja. Ah, mas a economia reabriu? Falemos sobre a reabertura da economia. Mas tratemos de não ignorar o contexto.

Temos uma epidemia que muitos ainda não entenderam. Como o vírus ataca os pulmões, prevalece a impressão de que a covid é uma doença do trato respiratório. Contudo, o que já se vê nos relatos clínicos e em estudos científicos é outra caracterização do mal que aflige o planeta, e o Brasil em particular. O vírus entra no corpo pelas vias respiratórias superiores, migra para o pulmão, mas também para a corrente sanguínea. Ele tem a capacidade de se ligar ao endotélio, a parede das veias capilares. A rede das veias capilares é a mais extensa e complexa do sistema vascular. Uma vez acoplado ao endotélio, o vírus migra com o fluxo sanguíneo para todos os tecidos e órgãos do corpo. Essa doença que chamamos de covid é, por isso, sistêmica: uma vez no sistema circulatório, o vírus trafega por toda parte. Isso explica por que os sintomas são tão variados. Também explica por que essa doença é tão traiçoeira.

Uma economia em que circula um vírus sistêmico sem qualquer controle é uma economia destroçada, ainda que os efeitos demorem a aparecer. Pois não basta que estejam abertos os estabelecimentos, as fábricas, os bares, os restaurantes. Se a população estiver desprotegida, ou se parte dela for negligente, muitas pessoas adoecerão. Quanto mais doentes, ainda que muitos apresentem sintomas leves, mais sofre a economia. Digo isso levando em conta o que sabemos. Se levarmos em conta o que não sabemos, caberá perguntar: já que o vírus é sistêmico, qual a chance de uma sequela permanente? Qual a chance de invalidez?

Quantas pessoas sofrerão de fibrose pulmonar, problemas de coagulação sanguínea, problemas neurológicos? Quantas terão trombose, ou acidentes cardiovasculares? Enfim, quantas pessoas ficarão permanentemente, ou por um período muito longo, dependentes do sistema de saúde? Quantas dessas pessoas terão o SUS como única via? Nessas circunstâncias, como vamos dar os recursos necessários ao SUS? E se algumas pessoas não puderem voltar ao trabalho devido às sequelas da covid? Como haverão de se sustentar? Qual pode vir a ser o impacto de uma epidemia descontrolada na força de trabalho?

Essa lista de perguntas é apenas uma pequena amostra de tudo aquilo que nossos governantes, economistas, gestores de política pública deveriam estar se perguntando e para o que deveriam tentar mapear saídas. Sim, mapear. Respondê-las com qualquer grau de certeza é impossível. Contudo, em vez de perguntar e pensar, muitos de nossos pensadores e executores se entregam à preguiça mental disfarçada por um repeteco constante de mesmices. Se pudesse acrescentar um efeito colateral do vírus, seria esse de ele ter sido capaz de cruzar a barreira hematoencefálica provocando o adormecimento de muitos neurônios por aí.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica De Bolle: Taras

A ligação entre medicina e economia se estende pela história do pensamento econômico

“A economia é uma disciplina afinada com a ideia e a produção de fetiches e taras. Então, por que não dizê-los? Uma tara do momento é aquela pela busca dos “cenários pós-covid”. Fala-se em recuperação em V, em L, em U, em W. Mas o que significa “pós-covid”? Ao mesmo tempo, no Brasil, o fetiche fiscal não se desgarra de muitos economistas. Mas e a dívida? Mas e o déficit? Mas e a dívida e o déficit? Mas e a dívida, e o déficit, e a inflação? A situação atual, que é de transição para algo que não sabemos o que é, não permite enxergar com clareza. É também verdade que, confrontadas com a incerteza, as pessoas muitas vezes se agarram àquilo que conhecem, projetando no futuro o passado. Contudo, é importante algum esforço e desprendimento para julgar o que do nosso passado econômico importa – se é que alguma coisa – para imaginarmos o que vamos enfrentar nos próximos meses e anos.

Antes, contudo, vou repetir algo que já escrevi algumas vezes neste espaço e já disse outras tantas mais no meu canal do YouTube. De nada adianta pensar nas letrinhas da retomada se não há um entendimento subjacente da epidemia e algum acompanhamento dos estudos científicos publicados sobre ela. Muitos economistas preferem pensar que nada precisam entender do assunto para traçar seus diagnósticos e suas previsões. É curiosa essa crença de economistas na autonomia da razão econômica em relação não só às Humanidades, mas a outras ciências. Afinal, na sua formação, a economia como disciplina sofreu a influência de grandes médicos, como John Locke (1632-1704) e François Quesnay (1694-1774), apenas para citar esses dois, cuja obra e pensamento influenciaram Adam Smith (1723-1790). Portanto, a ligação entre a medicina e a economia se estende pela história do pensamento econômico, retornando às suas origens. E, embora pareça divagar aqui, o desvio se justifica porque ignorar as origens da crise econômica para formular políticas públicas e previsões de crescimento é não apenas profundamente equivocado, mas dissonante da própria história da economia como ciência social.

O fetiche fiscalista é outra manifestação do mesmo mal. É claro que temos de nos preocupar com o tamanho do déficit público e com a trajetória da dívida. Mas o que isso significa? Vamos propor o que em termos de medidas econômicas para responder a essas preocupações?

Que o governo retome a defunta agenda de reformas, que nada faria neste momento para sustentar a economia? Que o Estado brasileiro não cumpra o seu papel constitucional de atender aos mais atingidos pela crise, seja por meio de programas de transferência de renda, seja por meio de repasses para a saúde, seja por meio de recursos destinados à educação, sobretudo para permitir que crianças sem acesso às escolas e sem acesso digital possam dispor de algum meio para o aprendizado? Vamos insistir que parte importante de nossos males vêm do sistema Simples, que as empresas sofrem muito com a carga tributária, que é preciso rever todas as políticas públicas para melhorar a eficácia? Nada disso é compatível com a urgência da falta de recursos hospitalares, das filas de quem não consegue receber o auxílio emergencial. É ainda menos compatível com uma ideia que tem de estar clara: a inação do governo é fator determinante da forma de recuperação da economia e do que venha a acontecer com o déficit e com a dívida pública.

Governo que não age à altura da crise atira o país contra a parede. Não à toa, o FMI revisou a projeção para o encolhimento do PIB brasileiro de 5,3% esse ano para 9,1%, chegando bem perto do quadro de depressão econômica sobre o qual venho falando há meses. Quedas do PIB dessa magnitude não precisam de nada mais para fazer um estrago considerável nas contas públicas. A arrecadação salta do precipício, elevando o déficit de forma abrupta. O encolhimento da renda decorrente da redução do PIB diminui o denominador da razão dívida/PIB, elevando-a. Ainda que seja impossível quantificar o estrago da inação, é possível dizer que a falta de medidas adequadas, ou a insuficiência delas, gera precisamente a deterioração tão temida pelos fiscalistas. Por que eles apontam, então, em outras direções, como se essa não fosse determinante de suas ideias fixas?

Por fim, o fetiche do teto. Escrevi sobre ele na semana passada, em modo catabólico – o artigo chamava-se “A Bioquímica do Teto”. Retomo-o agora em modo anabólico: a síntese do teto metaboliza produtos com alto grau de toxicidade para a economia brasileira, impedindo que as ações necessárias de combate à crise aguda e à crise crônica que dela sobrevirá sejam articuladas. Francamente? É duro ter de repetir isso quase toda semana.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica De Bolle: O maior dos descasos

Enquanto o País quer a volta da normalidade perdida, o governo anuncia o fim do auxílio emergencial

O Brasil ultrapassou os 50 mil óbitos causados pelo SARS-CoV-2, o vírus responsável pela síndrome denominada covid-19, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). De acordo com os modelos epidemiológicos mais apurados, é provável que o Brasil alcance a terrível marca dos 100 mil óbitos até meados de julho. Em meio a tantas mortes, tantas pessoas sofrendo nos hospitais, tantas famílias destroçadas, testemunhamos a indiferença de boa parte da população brasileira. Com a “reabertura”, festeja-se o retorno aos shopping centers, aos restaurantes, às academias. Festeja-se as aglomerações, os churrascos, a volta da “vida normal”. Espanta a falta de percepção de que a vida está e seguirá longe do normal.

A vida não está, nem deveria estar normal, em primeiro lugar, porque os mortos pela covid-19 se somam dia após dia. A comoção que o País sentiu pelos italianos e pelos espanhóis parece passar longe dos olhos e do coração de muitos brasileiros, agora que morrem seus concidadãos.

Em segundo, há um vírus letal e altamente imprevisível em circulação. Esse vírus pode não causar sintoma algum, pode causar sintomas leves, pode levar o paciente a ser entubado, pode levar à morte. Esse vírus, como mostram estudos, pode se alojar nos pulmões, no sistema vascular, nas articulações, no sistema neurológico. Pode deixar sequelas severas. Mas, no Brasil atual, é como se ele não existisse. A vida segue como se as pessoas por ele vitimadas fossem apenas números que se computam todos os dias: sua morte não modifica o presente, nem se nota no governo federal ou em parte da sociedade brasileira qualquer intenção de responder à crise humanitária que assola o País.

Desde o início dessa pandemia – e sobretudo desde que chegou ao Brasil – tenho dito que a economia permanecerá contaminada pelo vírus enquanto ele estiver em circulação. Em artigos para esse espaço e nas transmissões diárias registradas em vídeo que tenho feito há três meses no meu canal do YouTube tenho insistido que, independentemente de medidas sanitárias, o que afeta a economia é o vírus. Isso significa que não haverá normalidade econômica com as pessoas morrendo aos milhares, e é importante que essa impossibilidade fique clara. Os restaurantes cheios, os shopping centers cheios, todos esses estabelecimentos, que são foco de contágio e de disseminação da epidemia, sofrerão as consequências do descontrole da doença. Muitos talvez venham a fechar as portas novamente antes mesmo de terem recuperado perdas decorrentes do fechamento anterior. Os trabalhadores precarizados e mais sujeitos ao contágio talvez sejam infectados, talvez percam qualquer possibilidade de subsistência. De nada adianta fingir que o vírus não existe. Ele está aí e em breve chegará a uma pessoa próxima de cada um, pois essa é sua natureza.

Enquanto se abraça o descaso, enquanto alguns são embalados pela ilusão de uma volta à normalidade perdida, o governo brasileiro aproveita o ensejo para anunciar o fim do auxílio emergencial. De tudo o que se fez e não se fez no Brasil ao longo dos últimos meses, a única medida realmente adequada e relevante que se adotou foi o auxílio emergencial, apesar da sua péssima implementação pelo governo federal. Removê-lo no meio de uma epidemia que continuará a matar, a destruir famílias, a fomentar o medo e a insegurança é uma aposta em infundir medo. Não me parece despropositado entender que acabar com o auxílio emergencial, nas circunstâncias presentes, é uma forma de continuar uma política abjetamente irresponsável que a pandemia deu ao governo federal a oportunidade de implementar. Também não é exagero afirmar que, hoje, o fiscalismo excessivo – o zelo pelas contas públicas nesse momento inédito, o dogma do teto de gastos -- abraçado por alguns economistas mata.

O auxílio emergencial e o deslocamento da renda básica da cidadania para o centro do debate público revelam que às vezes vale apostar no que deve ser comum a nós todos: o direito à vida digna, a inclusão na democracia, a igualdade de voz na política. Eles também revelam, no entanto, que isso que nos deve ser comum, a experiência da cidadania, depende de condições materiais. O auxílio emergencial e a renda básica nos unem como sociedade, algo que ameaça qualquer governo que só consegue se sustentar provocando divisões e tensões. Não é hora de acabar com o auxílio emergencial. Também há risco em tornar a causa da renda básica, cujo interesse é transversal à sociedade, uma plataforma a partir da qual generalizar outras lutas, ainda que justas e urgentes. A renda básica terá efeitos sobre injustiças históricas que têm sido articuladas em termos de diferenças, mas ela não é sobre diferenças. Pelo contrário: a melhor forma de se construir a renda básica ao público é a partir daquilo que temos em comum: o direito à cidadania.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Cartão bolsa família | Foto: Agência Brasil

Monica De Bolle: O que não custa?

Estamos falando de famílias cujas crianças seriam contempladas por um benefício de meio salário mínimo

“Quanto custa?”, perguntou o colega Samuel Pessôa sobre as propostas de renda mínima, ou renda básica permanente, em sua coluna do último domingo para a Folha de S. Paulo. Antes mesmo de a pergunta ser expressamente formulada, cheguei a dar uma primeira resposta ao que me pareceu ser uma inquietação sua em meu artigo do dia 3 de junho para o Estadão. Com base nos estudos do Ipea, da USP, do Cedeplar, centro sediado na UFMG, além de outros, havia explicado que um programa de renda básica infantil focalizado nas crianças na faixa de 0 a 6 anos poderia custar entre 1% e 1,5% do PIB brasileiro. Peço aos leitores que guardem na memória essas duas cifras, pois retornarei a elas para responder novamente aos questionamentos levantados por Samuel.

Antes disso, sublinho: muito me alegra que o tema da renda básica tenha entrado no debate nacional de forma inteligente e enriquecedora. Vários economistas têm tratado do assunto em suas colunas semanais ou periódicas de forma engajada, sem ataques pessoais, com respeito aos interlocutores. Com Samuel Pessôa sempre tive o prazer de travar discussões construtivas, o que é raro no ambiente atual, de hostilidades, escaramuças e “lacrações”. Não está sendo diferente dessa vez. Sugiro, portanto, que vocês, caros leitores e leitoras, leiam os artigos publicados por mim e por ele nas últimas três semanas.

Bolsa família
Seu artigo na Folha de domingo suscitou duas questões principais. A primeira é se a renda básica provocaria pressões inflacionárias; a segunda, se a renda básica pressionaria a dívida pública brasileira. A primeira questão se assenta na premissa de que, no Brasil, a demanda agregada – isto é, a soma do que se consome, do que o governo gasta, do que se investe, do que se exporta, subtraídas as importações – é estruturalmente superior à oferta. É verdade que a economia brasileira havia perdido dinamismo muito antes de a pandemia nos atingir. Também é verdade que a produtividade no Brasil é baixa, sobretudo a da mão de obra, de modo geral pouco qualificada. Essas características afetam a nossa capacidade de oferta. Contudo, é difícil sustentar que a demanda é estruturalmente inferior à oferta. Em primeiro lugar porque a capacidade de consumo das famílias brasileiras é extremamente limitada. Cerca de metade da população brasileira ganha um salário mínimo ou menos, ou seja, o montante total do que gastam é muito pouco. Isso se traduz em um nível de consumo relativamente baixo, resultando em demanda mais deprimida do que se poderia supor: o consumo responde por cerca de dois terços da demanda.

Em segundo lugar, nossa capacidade de investimento é notoriamente baixa. A taxa de investimento brasileira nos últimos anos – e o quadro não muda quando olhamos a média dos últimos 30 anos – é de míseros 15% a 16% do PIB. Em comparação, México e Chile, antes da pandemia, investiam mais de 20% do PIB. Eis, portanto, outro componente de nossa demanda deprimida. O governo gasta, mas as séries históricas das contas nacionais não sugerem qualquer gasto do governo que gere a situação de demanda estruturalmente elevada, salvo durante o primeiro mandato de Dilma, possivelmente. Não há, assim, elementos para sustentar a tese de que, frente à demanda, nossa oferta é insuficiente. Como é nessa premissa que se assenta a ideia de renda básica inflacionária, ela não se sustenta. Para completar, relembrando as cifras citadas anteriormente, uma renda básica cujo custo seja entre 1% e 1,5% do PIB não é alta o suficiente para ser inflacionária. Estamos falando, afinal, de famílias cujas crianças entre 0 a 6 anos seriam contempladas por um benefício de, no máximo, meio salário mínimo.

As cifras de 1% a 1,5% do PIB também não seriam a palha nas costas do camelo da dívida pública brasileira. O programa ao qual me referi no artigo da semana passada é praticamente neutro do ponto de vista fiscal: parte é autofinanciável, parte de seu financiamento depende de tributação de dividendos, outra parte vem da remoção do desconto para dependentes do imposto de renda. As contas foram feitas, e, no caso dessa proposta de renda mínima, a responsabilidade fiscal está em perfeita sintonia com a responsabilidade social. Insisto que o programa de renda mínima infantil complementaria nossa rede de proteção social. Não eliminaríamos o Bolsa Família, fundamental para a redução da pobreza. O que faríamos seria preencher as lacunas para as crianças em situação de precariedade cujas famílias não são elegíveis ao Bolsa Família e a outros programas sociais.

Trata-se, portanto, de proteger as crianças – todas as crianças – a um custo baixo e sem a necessidade de financiar o programa produzindo imensa distorção e regressividade pela adoção de uma alíquota única de imposto de renda, conforme sugerem os autores do estudo privilegiado por Samuel. Que tal?

*ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY


Monica De Bolle: Vida ou morte

Apesar dos riscos que manifestações pró-democracia em meio à pandemia podem implicar, calar-se neste momento é dar respaldo às atrocidades que levam vidas impiedosamente e com descaso

Perguntado sobre os mais de 30 mil mortos por Covid-19 no Brasil, o presidente da República respondeu, na lata, sem dó: "A morte é o destino de todos". A morte é o destino de todos. Destino de George Floyd nos Estados Unidos, nas mãos de um policial. Destino do menino João Pedro, de 14 anos, baleado enquanto obedecia a quarentena dentro de sua casa. Assassinado por policiais. A morte é o destino de todos. Destino de pessoas de idades diversas, vítimas da doença a que o presidente se recusa a dar a devida relevância. Pois bem. A morte é, de fato, o destino de todos, ou de muitos que não perderiam sua vida tão cedo em razão do desprezo pela vida que demonstra o líder do país. Manifestação? Sim, manifestação.

As manifestações no meio de uma epidemia evidentemente aumentam o risco de contágio. As pessoas precisam se proteger, sair de máscara, procurar manter distanciamento para reduzir o risco de contaminação. Mas condenar as manifestações pró-democracia por causa da epidemia?

É bom lembrar que a manifestação pró-democracia é contra o presidente da República, que não apenas repudia a democracia, mas faz troça da epidemia e da perda de vidas, todas as vidas — em especial, a vida dos mais pobres e dos negros, os mais atingidos até agora. Portanto, manifestar-se pró-democracia é posicionar-se a favor da luta contra a epidemia.

Manifestar-se pró-democracia é uma questão de vida ou morte, tal qual a própria epidemia.

Tenho visto muita gente no Brasil se recusando a enxergar aquilo que deveria ser óbvio. O país atravessa um momento insustentável, com um governante que prefere o caos à preservação do país. Um governante que detesta as instituições que regem nossa democracia. Um governante abertamente favorável à brutalidade e à opressão. Um governante que não se importa com o sofrimento de dezenas de milhares de famílias brasileiras, com dezenas de milhões de habitantes do Brasil, com os mais vulneráveis, que ele reluta em auxiliar pela renda básica emergencial. O que fazer perante essa situação? Panelaços, sim. Gritaria, sim.

Mas vejam: as ruas sempre foram um espaço privilegiado da ação política. Quando algo está profundamente errado nós buscamos as ruas porque é nelas que se tem maior visibilidade e, portanto, se encena a um maior número a contestação, na esperança de que espectadores se disponham a se tornar atores. A tomada das ruas está proibida por causa da epidemia? Não, tomá-las está mais perigoso, mas de modo algum proibido.

Cabe a todas as pessoas que queiram se manifestar — diga-se, legitimamente — contra a barbárie do bolsonarismo ir às ruas com responsabilidade. Com máscara para não se contaminar. Com máscara para não contaminar os outros.

Aqui nos EUA a morte de George Floyd levou centenas de milhares de pessoas para as ruas ao longo de mais de uma semana. Algumas dessas manifestações foram violentas. Outras foram pacíficas. Outras ainda tiveram de lidar com a brutalidade da polícia: foi esse o caso aqui em DC, onde moro. Para que Trump pudesse tirar uma foto com a Bíblia na mão de cabeça para baixo, as forças de segurança lançaram gás lacrimogênio sobre pessoas que exerciam pacificamente seu direito de protestar contra o racismo.

Há temores de que possa haver um recrudescimento da epidemia nas próximas semanas? Sem dúvida. Mas o resultado das manifestações já é visível: os policiais envolvidos na morte de Floyd que haviam sido acusados com brandura viram suas acusações se tornarem muito mais duras em razão da indignação do povo nas ruas diante da injustiça do homicídio e da condescendência com ele.

Vejo no Brasil uma relutância que, apesar do descontrole da doença, não vislumbrei aqui. São pessoas que veem no governo Bolsonaro, na figura presidencial, todos os perigos que eles representam, mas que hesitam. Hesitam por causa da epidemia. Hesitam devido a um senso de responsabilidade justificado, como preservação das vidas.

Contudo, calar-se neste momento, apequenar-se neste momento, esconder-se neste momento é dar respaldo às atrocidades que levam vidas impiedosamente e com descaso. "É o destino de todos".


Monica De Bolle: Renda básica é impagável?

O impacto total desse tipo de programa sobre as contas públicas acaba sendo menor do que parece

A ideia de se instituir um programa de renda básica permanente está ganhando adeptos mundo afora. Em resposta à crise, o governo da Espanha aprovou, na sexta-feira, um programa de renda mínima para reduzir a pobreza. Governos de outros países estão considerando medidas semelhantes, como é o caso do Chile.

No Brasil, o debate sobre a renda básica ganhou fôlego no âmbito da adoção do auxílio emergencial de R$ 600 em abril, cuja prorrogação é necessária para o enfrentamento da pandemia e dos efeitos macroeconômicos dela provenientes. Mas a renda básica que hoje é assunto de artigos diversos – inclusive da série de colunas que tenho escrito neste espaço sobre o tema – transcende a emergência. A ideia é fazer o que fez a Espanha e torná-la um benefício permanente, reforçando as redes de proteção social do País.

Há muitos pesquisadores no Brasil debruçados sobre esse tema, fazendo simulações, contas, analisando os dados e as possibilidades. Destaco em especial o trabalho de pesquisadores do Ipea, da USP, e do Cedeplar da UFMG. Esses são os estudos que mais têm recebido a atenção dos parlamentares no Congresso, ao contrário de outras propostas que nem sequer estão em discussão. Insisto: não há uma só proposta para a renda básica. Há várias. Algumas são perfeitamente viáveis do ponto de vista macroeconômico e sustentáveis do ponto de vista fiscal. Outras são impagáveis.

Recentemente, uma proposta impagável foi objeto da coluna do economista Samuel Pessôa, que ficou impressionado com seus potenciais efeitos sobre a redução da desigualdade, mas, depois de mostrar ser a proposta inviável, lamentou e ficou por isso mesmo. É compreensível que existam temores de natureza fiscal sobre a adoção de um programa que, à primeira vista, pode parecer impossível de custear. Não é compreensível, entretanto, deixar de lado propostas que hoje fazem parte do debate interno.

É evidente que um programa de renda básica formulado como simples extensão do atual auxílio emergencial é custoso: os cálculos mostram que o gasto com esse programa alcançaria facilmente cerca de 7 pontos porcentuais do PIB. Além disso, tal programa poderia ter consequências indesejáveis do ponto de vista do trabalhador, estimulando a informalidade quando essa já é elevada e tende a aumentar em razão da crise. Por fim, o financiamento da renda básica exigiria, no mínimo, a extinção de outros programas focalizados, como o Bolsa Família, que hoje alcança as famílias mais pobres. Por que não simplesmente ampliar o Bolsa Família, alguns perguntam? Porque o Bolsa Família deixa vulnerável uma massa de brasileiros que não são suficientemente pobres para atender aos seus critérios, mas ainda assim vivem na precariedade, oscilando entre o emprego formal e a informalidade.

Quais as alternativas? Uma delas, proposta por pesquisadores do Ipea e da USP e hoje tema de intensas discussões e simulações, seria pagar uma renda mínima para todas as crianças, universalizando o benefício. Quais crianças? Uma ideia é começar pela primeira infância, a faixa de 0 a 6 anos, que receberiam meio salário mínimo. Tal programa abrangeria um enorme contingente de famílias pobres e vulneráveis, cobrindo as lacunas deixadas pelos programas sociais existentes. Ao preencher essas lacunas, o programa seria complementar aos já existentes. Não deixaríamos de ter o Bolsa Família, ou o Benefício de Prestação Continuada, por exemplo. Esse programa universal de proteção infantil custaria cerca de 1,5 ponto porcentual do PIB, não elevaria a razão dívida/PIB, não geraria inflação, e atenderia tanto à necessidade de responsabilidade fiscal quanto a de responsabilidade social.

O impacto total desse tipo de programa sobre as contas públicas acaba sendo menor do que parece, e a razão é simples: trata-se de uma transferência de renda que resulta em aumento do consumo, e o aumento do consumo eleva a arrecadação de impostos, o que financia, em parte, o programa. Além disso, o consumo aquece a economia e gera crescimento, de modo que há um efeito multiplicador: com mais renda, há mais consumo e, no fim, mais arrecadação.

O Brasil atravessa um momento único. Nele se abre uma fresta pela qual podemos finalmente emplacar um reforço às redes de proteção social que preencham as lacunas dos demais programas. São dezenas de milhões de pessoas que poderão ser beneficiadas. E tudo isso é perfeitamente pagável. E também impagável: seu valor para a sociedade é inestimável.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica de Bolle: A reabertura inevitável e fatal

O Brasil, que longe está de poder reabrir sem risco, começará a fazê-lo a partir da semana que vem. Teremos mais meses de tragédia pela frente, e, para completar o quadro, a economia não será poupada

O Brasil tem quase 400 mil casos de Covid-19. Já é o segundo no mundo depois dos Estados Unidos. As mortes continuam a subir, os recursos hospitalares já estão no limite, acima do limite, ou muito próximos do limite, a depender da localidade. O fator de contágio, o que os epidemiologistas chamam de R0, permanece acima de 1: provavelmente bem acima de 1, a julgar pelas conhecidas subnotificações e testagem para lá de insuficiente. Com o fator de contágio acima de 1, a epidemia recrudesce no instante em que o isolamento social começa a ser relaxado. Por esse motivo, os países europeus que estão reabrindo lentamente sua economia só o fazem porque o R0 está, hoje, abaixo de 1. Para mantê-lo nesse patamar sem vacinas, será preciso um enorme esforço dos governos, a readequação dos locais de trabalho, uma mudança de comportamento.

São Paulo anunciou a reabertura para o dia 1º de junho. Aqui em Washington, DC, onde moro, a reabertura gradual só será considerada — considerada, não feita — no dia 8 de junho.

Mas voltando ao Brasil. Tenho acompanhado, sob sugestão de amigos infectologistas aqui nos Estados Unidos, este site. Nele há projeções sobre o curso da epidemia no Brasil, bem como as estimativas de óbitos por Covid-19. Desde março, as projeções para o país têm se confirmado. Caso se confirmem para junho e julho, em meados de junho teremos 50 mil óbitos e em meados de julho o número chegará à catastrófica marca dos 100 mil, patamar em que estão os EUA. A diferença é que, nos EUA, as medidas de isolamento ainda estão em vigor em várias partes do país, mesmo que a curva epidemiológica tenha melhorado. O Brasil haverá de suspendê-las muito antes do ponto mais ou menos seguro (segurança absoluta sem vacina é algo que não existe).

A decisão de reabrir tomada pelo governador de São Paulo revela dois problemas espalhados pelo país. De um lado, há grande pressão sobre os governadores, tanto por parte do presidente da República quanto de alguns empresários. De outro, a verdade mais desastrosa dessa epidemia: se a população não adere às medidas de distanciamento, seja por qual motivo for, elas pouco adiantam para frear o estrago do vírus e derrubam a economia como se não houvesse medida alguma. Não temos ainda muitos dados ou indicadores sobre o impacto da epidemia na economia brasileira, mas o que há revela um quadro devastador.

Segundo dados recém-divulgados pelo Caged, em março e abril o país perdeu mais de 1 milhão de empregos formais. Esses empregos estão majoritariamente concentrados nos setores de serviços e comércio, que empregam muitas pessoas de baixa renda. Ou seja, os mais de 1 milhão de vagas formais destruídas certamente afetaram desproporcionalmente aqueles que recebem os menores salários, aumentando a desigualdade e a necessidade de uma rede de proteção social mais forte. Os dados deixam em evidência a necessidade de prorrogar o auxílio emergencial, o que, nesse momento, o governo reluta em fazer. Apenas para contextualizar, essa perda de vagas formais em dois meses é significativamente maior do que as perdas registradas nos dois anos de recessão histórica, 2015 e 2016. O estado que mais perdeu empregos? São Paulo, seguido do Rio de Janeiro e de Minas Gerais.

Diante dessa calamidade e das dificuldades de levar a cabo o distanciamento social necessário, seja por interferências do governo federal, seja por motivos diversos que orientam o comportamento da população, seja porque há uma parcela muito expressiva da população brasileira que não pode ficar em casa, a decisão de reabrir será prematura. O debate sobre saúde versus economia? Esse continua a não existir. O que ocorrerá no país é que mais vidas serão perdidas. Teremos mais meses de tragédia pela frente. E, para completar o quadro, a economia não será poupada, ao contrário do que alguns empresários, parte do mercado financeiro e membros da equipe econômica acreditam. Rumamos para o pior dos cenários, a não ser que, por um passe de mágica — dado que, ministro da Saúde não temos — comecemos a testar em larguíssima escala e aprendamos a fazer o rastreamento de contatos da noite para o dia.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica De Bolle: Estupidez em cima de estupidez

Fala de Guedes na reunião de 22 de abril revela alguém que se comporta como um gestor de fundo de quintal

O título deste artigo é autoplagiado do meu livro Como Matar a Borboleta Azul: uma Crônica da Era Dilma, publicado em 2016. No capítulo sobre os anos 2014 e 2015, tratei da má condução da economia e das escolhas que se revelariam estúpidas, ainda que não mal-intencionadas. Falava ali sobre o ensaio de Carlo Cipolla, As Leis Fundamentais da Estupidez Humana, sobre o qual já escrevi diversas vezes neste espaço, em que neste mês completo dez anos e que me rendeu colunas que acabaram sendo fonte para o livro sobre Dilma.

Recapitulo aqui para o leitor as cinco leis de Cipolla. A primeira reza que sempre e inevitavelmente cada um de nós subestima o número de indivíduos estúpidos em circulação. A segunda lei estabelece que a probabilidade de certa pessoa ser estúpida é independente de qualquer outra característica dela própria. A terceira defende que uma pessoa estúpida é aquela que causa danos a outras sem tirar nenhum proveito para si, podendo até sofrer prejuízo com isso. A quarta lei mostra que as pessoas não estúpidas desvalorizam sempre o potencial nocivo das estúpidas. A quinta advoga, enfim, que o estúpido é o tipo de pessoa mais perigoso que existe.

Tenho refletido muito sobre o ensaio de Cipolla, pois há tempos ele retrata bem a realidade brasileira. Na verdade, constatei que temos nos aprimorado em nos tornarmos a representação viva de tudo o que o historiador falecido em 2000 elaborou de forma sublime. Penso que Cipolla estaria muito fascinado em ver como as leis da estupidez funcionam na prática e como a sua tentativa de traçar as linhas mestras da natureza humana, sobretudo da natureza dos estúpidos, está tão bem representada no Brasil de Bolsonaro.

A reunião ministerial de 22 de abril de 2020 que o diga. Lá há estúpidos aglomerados, falando sem freio, sem noção de si ou do cargo que ocupam, sobre o País estraçalhado pela pandemia e pelo governo de Jair Bolsonaro. Nada daquilo surpreende, embora tudo choque. Choca a fala do ministro do Meio Ambiente quando menciona “passar a boiada” na Amazônia. Choca a fala do ministro da Educação sobre as instituições democráticas do País. Choca a fala do ministro da Economia, Paulo Guedes, de que essa – a crise humanitária – é uma espécie de oportunidade para o governo ganhar dinheiro ajudando as grandes empresas. As pequenininhas, afinal, não valem o esforço, segundo Guedes. Com elas, o governo perderia dinheiro.

Embora todas as falas sejam chocantes e profundamente estúpidas pelos danos que causam ao País e a quem as profere – sim, eles todos se prejudicam com os despautérios proferidos, ainda que o mercado brasileiro prefira enxergar uma realidade paralela –, ative-me à de Guedes.

Guedes é o ministro da Economia, logo, sua responsabilidade é com todas as entidades e indivíduos que formam o que chamamos de economia brasileira. Mais do que isso, seu dever é com o coletivo, com a ideia de entregar um País melhor para todos do que aquele que encontrou. Mas o que fez Guedes? Sua fala revela alguém que se comporta como um gestor de fundo de quintal ao afirmar que seria possível o governo lucrar dando dinheiro para as grandes empresas.

Reflitam por um momento: eu não comecei este artigo falando sobre a gestão Dilma à toa. Quando foi a última vez que o governo lucrou dando dinheiro para grandes empresas? Ou não houve esse dia, esse momento não aconteceu? Guedes conseguiu a proeza de sair-se muito pior do que Guido Mantega, quando este defendia as políticas de campeões nacionais. Porque lá, ao menos, a ideia era fazer o País crescer. Agora, a ideia é lucrar no meio de uma crise humanitária, com dezenas de milhares de mortos e com o Brasil tornando-se, rapidamente, o epicentro da pandemia. Mais. Guedes falou em lucrar com grandes empresas enquanto as pessoas penam para receber o auxílio emergencial, enquanto o governo faz de tudo para dificultar o pagamento. E ele ainda tem o desplante de dizer que não haverá dinheiro para prorrogá-lo. Não se trata de não saber fazer conta. Trata-se de má intenção mesmo. Sem contar que salvar grandes empresas geraria uma imensa distorção no Brasil, já demasiado concentrado.

O que sobra, então? Sobra fazer um gráfico. Num eixo, mede-se do menos ao mais estúpido. No outro, medem-se as intenções: dos mal-intencionados aos bens intencionados. Peguem uma folha de papel e tracem os quadrantes. Agora, ponham os nomes de cada ministro no gráfico. Trata-se de terapia para tempos de estupidez galopante.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica de Bolle: Estado mínimo para quem?

Esse Brasil que Paulo Guedes carrega na cabeça e tenta concretizar por atos e palavras está sendo rejeitado por todos aqueles que, da quarentena da indignação, batem panelas e gritam de suas janelas

Nesta quarentena da indignação não há um dia sequer em que não soframos alguma afronta do governo Bolsonaro, de seus ministros e de suas respectivas equipes. Mais uma vez, meteu os pés pelas mãos recentemente o ministro Paulo Guedes, cujos feitos dessa natureza são realmente espantosos. Perguntado sobre a prorrogação do auxílio emergencial, aquele cujo objetivo era impedir que as pessoas vulneráveis tivessem de escolher entre passar fome ou se contaminar, Guedes disse que pensa em reduzir o valor do benefício de R$ 600 mensais para R$ 200 mensais, o valor inicialmente defendido pelo governo federal. Antes dele, o secretário do Tesouro havia dito que não há dinheiro para pagar a renda básica, qualquer renda básica de natureza permanente. Quais contas ele apresentou? Em que dados fundamentou sua fala? Ora, em nenhum, evidentemente.

Neste exato momento, há pesquisadores pelo país trabalhando em diferentes propostas de renda mínima: fazem contas, buscam os fatos. Em artigo publicado no jornal britânico Financial Times, apresentei alguns cálculos para o Brasil e mostrei que daria, sim, para adotar um programa de renda básica permanente. Há vários projetos de lei para a criação da renda básica tramitando no Congresso. Destaco dois: o de autoria do senador Randolfe Rodrigues, que ajudei a elaborar, e o de autoria do senador José Serra. Em meio a todo esse trabalho, o secretário do Tesouro de Guedes teve o desplante de vir a público, mão na frente outra atrás, para dizer que não é possível fazer o que é preciso fazer sem apresentar qualquer sustentação para seu argumento. Será difícil esquecer essa fala.

Ao mesmo tempo, seu chefe tenta voltar à ladainha dos R$ 200, sumariamente atropelada em abril pela sociedade civil e pelo Congresso Nacional, que enxergaram as necessidades da população brasileira. Para piorar, Guedes tenta retomar a discussão de seu infame “coronavoucher” enquanto acena para as empresas aéreas. Sim, as empresas aéreas estão sofrendo nessa pandemia. Sim, vários países fizeram pacotes de socorro para empresas do setor, e alguns tentam fazer até mais do que já fizeram. Mas reparem: socorrer as empresas aéreas significa destinar recursos públicos para elas, uma espécie de estatização parcial. Quem está defendendo a estatização parcial é ninguém menos do que o ministro Estado Mínimo, aquele que na semana passada queria privatizar tudo. Como é isso então? Estatizamos parcialmente empresas aéreas gastando dezenas de bilhões de reais em recursos públicos, mas nada fazemos pela população que precisa do auxílio emergencial? Se o cobertor é curto, como vem nos dizendo o secretário do Tesouro, qual é a escolha moral? Essa não é uma pergunta retórica. Trata-se de uma crise humanitária.

“As escolhas de política pública, ou seja, a decisão sobre como gastar em um cenário que envolve recursos escassos e consequências mortais é uma escolha moral”

A depender de como forem feitas as opções e de quais forem os parâmetros que as determinarem, os responsáveis no mínimo terão de responder moralmente junto à sociedade. Afinal de contas, trata-se de escolher entre salvar vidas diretamente ou de preferir ignorar o único dilema que importa.

Em artigo para o jornal O Estado de S. Paulo desta semana, escrevi sobre nossa falência moral como sociedade, nossa decadência. Ela está aí, para ser vista a olhos nus. Nossos companheiros de números espantosos da epidemia são Donald Trump, Vladimir Putin e Boris Johnson — a tríade que forma a quadra nacionalista-populista-negacionista com Jair Bolsonaro. Jair Bolsonaro, aquele cuja popularidade cai a cada dia de desgraça. Mas, sim, divago.

Volto ao ministro e a sua equipe. A quem diz respeito o Estado Mínimo de Paulo Guedes? Aos pobres? Aos vulneráveis? Àqueles que nada podem fazer para penalizar a infinita incompetência desvelada a cada dia? Esse Brasil do Estado Mínimo para os pobres é velho, tosco, injusto, desgraçado. Esse Brasil que o ministro carrega na cabeça e tenta concretizar por atos e palavras está sendo rejeitado por todos aqueles que, da quarentena da indignação, batem panelas e gritam de suas janelas. Paulo Guedes entrou no governo como superministro, posto Ipiranga. Se tiver sorte, sairá do governo — porque um dia tudo passa, sobretudo ministros — tão microscópico quanto seu abjeto Estado Mínimo.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica De Bolle: A queda

Brevemente, estaremos disputando com os EUA o primeiro lugar entre os países mais afetados pela pandemia

Era 10 de março de 2020. Naquele dia, as bolsas desabaram, os circuit breakers foram acionados: no Brasil, mais de uma vez. Era a semana em que os mercados internacionais – e o brasileiro, em parte – começaram a se dar conta da dimensão da crise econômica que resultaria da pandemia. Lembro de ter dito, quando as perspectivas ainda eram de crescimento do Brasil em 2020, que o País provavelmente sofreria a maior recessão da história. De lá para cá, passaram-se dois meses. Foram dois meses em que as projeções para o PIB brasileiro rapidamente convergiram para o quadro recessivo com o qual hoje nos debatemos. Dois meses é muito pouco tempo para uma virada tão abrupta, o que revela o tamanho do precipício.

Esta semana, Kristalina Georgieva, a diretora-gerente do FMI, afirmou já estarem desatualizadas as projeções para o encolhimento do PIB global feitas há pouco mais de um mês. Na ocasião, em meados de abril, o FMI afirmou que a economia mundial sofreria retração inédita de 3% esse ano. Já será pior. Recentemente, o Congressional Budget Office, instituição fiscal independente que funciona no Congresso americano, destacou que o PIB dos EUA deverá sofrer queda de 11% no segundo semestre. Tal queda é de uma ordem de magnitude superior a tudo o que aconteceu durante a crise financeira de 2008, o que dá a dimensão dessa crise. A destruição já é evidente nos empregos perdidos e nas portas que se fecham. Livrarias, restaurantes, lojas de rua. De súbito, bairros na região onde moro ficaram irreconhecíveis, assim como o ritmo da vida.

No Brasil tudo é mais dramático e trágico. O presidente afronta o vírus semana sim, outra também. Brinca com a natureza e com a vida das pessoas de forma irresponsável, inconsequente. Nos seus atos revela não apenas ignorância, mas desprezo – desprezo pelas pessoas, por todo um país. Falta-lhe quase tudo, mas sobretudo a capacidade de se deixar afetar pelo sofrimento causado tanto pela doença quanto pela queda brutal que marcará esse ano como o pior da história. Ao seu ministro da Economia, também falta muito. Dia desses ele dizia que, se uma pessoa sã quiser sair às ruas e correr o risco de se contaminar, esse é um direito dela. O ministro esqueceu que, se essa pessoa se contaminar, ela põe em risco a vida de outras pessoas, logo, seu direito de ir e vir não deve ser irrestrito. E, evidentemente, ninguém consegue identificar a olho nu quem está infectado e quem não está.

O Brasil de Bolsonaro está espantando o mundo ao se revelar vil de modo tão banal. Está conseguindo espantar o mundo mesmo com a angústia generalizada, o que é um feito impossível de exagerar. Não faz muitos anos, fomos exemplo no combate à inflação, no combate à pobreza, nas políticas de preservação do meio ambiente, na redução das desigualdades, ainda que tenhamos permanecido profundamente desiguais. Já demos contribuições importantes para o debate público global. Se por um lado permanecíamos profundamente desiguais, nossa rede de proteção social, criada nos anos 1990 e ampliada nos anos 2000, já foi alvo de elogios e estudos, além de tentativas por parte de outros países de construir algo semelhante. A nossa é uma queda inestimável.

Hoje, somos um país esgarçado e desgraçado por vontade própria – a culpa nossa mesmos. Brevemente, estaremos disputando com os Estados Unidos o primeiro lugar entre os países mais afetados pela epidemia, porém, com uma população mais vulnerável e mais pobre. Brevemente, seremos vistos como o país que mais falhas cometeu no combate à epidemia, que mais deixou exposta a sua população, que mais atrocidades fez ao decidir desdenhar do vírus, investidor em curas contestadas pela ciência, por fazer buzinaços e carreatas em frente aos hospitais, onde pessoas padecem do mal que o presidente insiste em diminuir.

A queda de nosso PIB em 2020 será gigantesca, ainda que a real magnitude seja difícil de antever. As dezenas de milhões de pessoas que serão lançadas ao desemprego estarão visíveis, a despeito do descaso presidencial. Mas a queda maior? A queda mais dolorosa? É a de testemunhar a crise humanitária e nela enxergar a nossa mais profunda falência e decadência como sociedade.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e Professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica de Bolle: A economia da exclusão

Do debate sobre a renda básica à discussão sobre desigualdade de gênero e racial, o país que se revela é devastador

Como muitos leitores já sabem, tenho usado parte de meu tempo neste período de quarentena para me dedicar a um canal que criei no YouTube com a finalidade de disseminar conhecimentos sobre economia e de trazer alguns debates. A hora que eu perdia entre idas e vindas do trabalho agora uso nessa empreitada. Entre explicações sobre economia e debates com interlocutores, tem ficado cada vez mais evidente que nossa economia, essa economia que aceitamos como natural e pela qual passamos a conviver com injustiças diversas, é profundamente excludente.

Segundo dados do IBGE, em 2018, quando a economia brasileira estava “em bom estado”, isto é, não havia crise e o país ensaiava uma retomada, tínhamos cerca de 12 milhões de desempregados. Desses 12 milhões de desempregados, dois terços eram pessoas negras e pardas. Dois terços. Estamos agora no meio de uma pandemia, e o desemprego haverá fatalmente de subir. Se a queda do PIB for da ordem de 10% neste ano, conforme estimo, teremos, em breve, mais de 20 milhões de desempregados no país, ou 10% da população brasileira. Vou repetir: em poucos meses, 10% da população brasileira provavelmente estará desempregada. Quem serão essas pessoas? A julgar pelos dados de 2018, certamente a composição do desemprego será marcada pela gritante disparidade racial, refletindo o que já está acontecendo em outros países. Aqui nos Estados Unidos, onde a taxa de desemprego alcançou exorbitantes 14,7% no mês de abril, os que perderam seus empregos foram desproporcionalmente negros e hispânicos.

Eis outra dimensão de nossa imensa economia da exclusão: cinco anos após a chamada PEC das Domésticas ter sido sancionada — a emenda constitucional que regularizou o trabalho doméstico garantindo equidade de benefícios —, 70% das pessoas que trabalham no setor continuam na informalidade. Como também mostram os dados do IBGE, as mulheres são maioria no trabalho doméstico (97% dos cerca de 6,5 milhões de trabalhadores nesse setor), e, portanto, são elas as mais atingidas pela informalidade. Trata-se de mais de 4 milhões de pessoas trabalhando em condições precárias, muitas delas mães que sustentam famílias. São mães que sustentam famílias sem receber sequer um salário mínimo integral. Como revelam diversos estudos do Ipea, essa mulheres são majoritariamente negras e de baixa escolaridade. As trabalhadoras domésticas, lembra-nos o IBGE, são as que têm o menor rendimento médio entre todos os trabalhadores do mercado de trabalho.

Somos um país que cria muitos obstáculos para a entrada e a permanência de negros, pardos e mulheres no mercado de trabalho. Países que excluem, documentam os estudos empíricos, são países que têm pouco dinamismo e baixo crescimento. Países excludentes são aqueles que perpetuam as desigualdades, as quais se tornam estruturais por se reproduzirem de geração em geração, na falta de ações transformadoras. Nada disso é novidade, os dados brasileiros são conhecidos e há muita gente dedicada a estudar e esmiuçar esses temas há décadas.

O que há de diferente agora? Nada. E tudo. Nada, haja vista que a economia da exclusão é uma característica nossa como país. E tudo porque o momento atual suplica por apoio a uma mudança profunda. Tenho trazido para este espaço a discussão sobre a renda básica permanente no Brasil, e ela é um pilar fundamental a partir do qual podemos tornar não só nossa economia mais inclusiva, mas fazê-lo reconhecendo a dignidade das pessoas. É importante debater os entraves institucionais que contribuem para a manutenção de uma parte considerável de nossa população em condições de extrema precariedade e considerar os dezenas de milhões de adultos e crianças que não têm acesso a quase nada. Como bem disse o presidente da Cufa, com quem debati dia desses, o verdadeiro Estado Mínimo apregoado pelo ministro da Economia está nas favelas, nas comunidades, nas periferias.

Temos um governo cujo discurso é o da exclusão. Contudo, temos uma pandemia e uma crise econômica que revelam de forma crua a extensão dessa exclusão, as injustiças a ela associadas e a precariedade da vida de imensa parte de nossa população, logo, de nossa economia. Podemos optar por manter a economia da exclusão. Ou podemos finalmente fazer algo para começar a resolver problemas que, se não solucionados, implicarão desperdício de vidas e redução da capacidade de desenvolvimento do Brasil.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins