Monica de Bolle
Monica De Bolle: Generais no labirinto ‘populista’
Os generais, quem diria, são a maior esperança para que o Brasil retome algum senso de competência e disciplina
Em coluna recente para o Financial Times, Gideon Rachman argumentou que a era “populista” pode durar trinta anos, ou seja, que os movimentos que levaram ao Brexit e à vitória de Donald Trump em 2016 não vão retroceder tão cedo. Em particular, Rachman afirma que o presidente norte-americano tem diversos admiradores mundo afora, incluindo Jair Bolsonaro no Brasil. Independentemente do que se acredite sobre a durabilidade dos “populismos”, é fato incontestável que o começo do fim da era da globalização triunfante começou em 2008. O que acontecerá daqui para frente é fruto de muitas especulações e de usos confusos de termos como “populismo”.
Há populismo no mundo? Se definirmos populismo como algo que não está necessariamente atrelado a alguma ideologia e que utiliza espécie de retórica particular e simplória para separar segmentos da população – o povo versus o resto, o povo “puro” em contraposição ao resto “corrupto” – o encontraremos por toda a parte e em todos os continentes. Em alguns casos, o populismo se confunde com visões nacionalistas, como exemplifica o discurso de Steve Bannon, ex-estrategista de Trump e espécie de encantador de serpentes nacionalista-populistas. Disse ele em uma entrevista ao final de 2018 para a BBC: “O nacionalismo econômico significa colocar o seu país em primeiro lugar no que diz respeito à economia, e maximizar o valor da cidadania”. Essa forma de definir o nacionalismo econômico leva, necessariamente, a um discurso contrário à imigração, contrário à atuação de empresas estrangeiras, inequivocamente excludente. O povo é o cidadão nascido e forjado na pátria amada. O resto é ameaça à sua sobrevivência, à sua identidade cultural, à sua grandeza, à grandeza da Nação.
Dessa visão nacionalista-populista surgem inevitavelmente as questões identitárias presentes mundo afora, e, desde a eleição de Bolsonaro, Brasil adentro. Frases como “temos de resgatar os valores judaico-cristãos”, “é preciso combater o marxismo cultural”, “é premente extirpar a ideologia de gênero” aludem aos espantalhos que criam o sentido de “nós” e “eles” que forma o núcleo da nova direita religiosa ultraconservadora do País. Com o discurso excludente e acusatório, essa nova direita religiosa e ultraconservadora é inequivocamente nacionalista-populista. Aqui nos Estados Unidos, ela compõe boa parte do eleitorado do Partido Republicano. Em alguns países europeus, versões dessa variante de direita estão presentes nos partidos que hoje representam aquilo que nos acostumamos a chamar de “extrema-direita”. O crescimento desse eleitorado e o fortalecimento desses partidos nas economias avançadas explicam porque Gideon Rachman acredita que a era populista-nacionalista pode perdurar por tanto tempo.
Mas, e no Brasil? Sabemos que parte do eleitorado de Bolsonaro é composto por essa direita religiosa ultraconservadora. Sabemos também que o próprio presidente já defendeu algumas dessas ideias – tanto assim que escolheu alguns ministros carregados dessa espécie de ideologia. Contudo, tem sido interessante observar, nesse primeiro mês de governo, a movimentação dos generais. Mais astutos do que parte do entorno de Bolsonaro, os generais parecem ter percebido que a maioria dos eleitores de Bolsonaro não têm qualquer afeição pela ideologia da direita ultraconservadora. Muitos são conservadores, mas não têm qualquer identificação com a agenda defendida pelas Damares, Ernestos e afins. Estão eles, portanto, em intensa atividade para criar clivagens entre os ideólogos e os conservadores com o intuito de preservar alguma racionalidade na política externa brasileira – sobretudo nesse momento complicado em que a Venezuela ameaça implodir. Além da racionalidade na política externa, estão também os generais empenhados em afastar familiares enroscados da presidência, reduzir os ruídos com a imprensa, abrir caminho para que as reformas econômicas sejam feitas sem a intromissão dos nacionalistas-populistas. Os generais, quem diria, são a maior esperança para que o Brasil retome algum senso de competência e disciplina para enfrentar os grandes desafios que tem pela frente.
Com os generais, o Brasil parece correr menos risco de ser tomado pelo nacionalismo populista que avança no mundo. O que isso quer dizer sobre o futuro do País caso tenham sucesso na consolidação do poder político pela via democrática é tema para muita reflexão.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns hopkins University
Monica De Bolle: Em nome do quê?
Contudo, o presidente jamais disse em nome de que faria política econômica.
A democracia brasileira está em risco? Para responder a essa pergunta, a Companhia das Letras reuniu cientistas políticos, sociólogos, historiadores, economistas e especialistas em Direito e publicou 22 ensaios em livro, já disponível sob o título Democracia em risco?. Contribuí para o livro com um texto sobre minhas primeiras impressões a respeito do bolsonarismo. Mais especificamente, o intuito era tentar entender em nome de que se fará a política econômica no Brasil. Afinal, em muitos aspectos o bolsonarismo é, sim, uma ruptura com nosso passado, ao menos desde a redemocratização.
A política econômica sempre foi feita em nome de alguma coisa. Durante a primeira metade dos anos 90, ela foi feita em nome da inflação, ou melhor, em torno da necessidade de reduzir a inusitada inflação brasileira, que por mais de 20 anos ficou acima dos 500% anuais. O Brasil é dos raríssimos casos no mundo em que a hiperinflação virou um modo de vida por quase duas décadas. Depois que o Plano Real deu fim à enorme mazela, a política econômica passou a ser formulada para lidar com os tropeços da segunda metade dos anos 90 — nessa época, vimos crises financeiras em série nos mercados emergentes. Essas crises trouxeram grande instabilidade para a economia brasileira em momento delicado, quando os ganhos e avanços do Plano Real ainda não estavam plenamente consolidados. Foi uma época complicada, com ramificações políticas que conosco permaneceriam até os dias de hoje. Ainda há quem fale na herança maldita de FHC, embora tenha sido em seu governo que foram plantadas algumas das sementes mais importantes da estabilidade econômica.
No início dos anos 2000, a política econômica mudou sutilmente de norte. Embora a estabilidade macroeconômica continuasse a ser o principal objetivo, o Brasil havia avançado o suficiente para que outros objetivos pudessem ser contemplados. Foi a época em que a política econômica foi feita, também, em nome da redução das desigualdades de renda, da formalização do mercado de trabalho, da diminuição da pobreza. Ou seja, o governo FHC e os governos petistas — por mais manchados que estejam estes últimos pela corrupção — fizeram política econômica em nome da melhoria de vida das pessoas. E, por mais que se queira demonizar Lula, o fato é que ele — como FHC — deixou um legado além da corrupção.
Nos anos Dilma, a política econômica mudou de configuração: a estabilidade macroeconômica ficou de lado e a busca pelo crescimento que se perdia com a reversão do quadro global se tornou mais importante, sob o argumento de que só dessa maneira seguiria o país garantindo os ganhos sociais vistos em anos anteriores. O foco no crescimento como único objetivo levou o governo Dilma a adotar um amontoado de medidas econômicas incoerentes, que acabariam por desaguar na recessão de 2015 e 2016, também agravada pelas revelações da Lava Jato e pela paralisia de diversos setores fundamentais, como o de construção civil.
Esse arco histórico é necessário para que se possa pensar na pergunta que intitula este artigo. É fato amplamente citado que Bolsonaro não falou sobre a agenda econômica nem durante a campanha, nem depois da posse. Houve menções às privatizações aqui e acolá, referências à reforma da Previdência, platitudes acerca da necessidade de abrir a economia brasileira.
E, vejam bem, quem tem de dizer isso é o presidente eleito, não o ministro da Economia ou qualquer outro integrante técnico do governo. Se Bolsonaro jamais disse em nome de que formularia a política econômica, houve alusões de sobra ao nome de Deus, o que não surpreende. Afinal, o bolsonarismo tem como principal fiadora a ideologia ultraconservadora da nova direita religiosa do Brasil. A ministra Damares Alves a ilustra bem, assim como o ministro Ernesto Araújo. Essa ideologia não tem interesse na agenda econômica do país, seja por falta de conhecimento, por desinteresse ou pela prioridade que dá à retrógrada agenda de costumes que defende. Nunca antes na história deste país — ao menos não nos últimos 30 e poucos anos — tivemos uma agenda econômica tão desligada do núcleo político do governo.
Não quero dizer com isso que há sombra ominosa sobre a economia brasileira. Quero apenas dizer que a resposta à pergunta que encabeça este artigo é, por enquanto: em nome de nada.
*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
Monica De Bolle: Nosso Brasil
O bolsonarismo é o petismo no espelho com o sinal trocado – não fosse assim, as eleições teriam sido diferente
“O Brasil é nosso. Nós somos diferentes deles”. Nós e eles. Eles e nós. Nós não somos eles, eles não são como nós. Nós somos diferentes, e ser diferente significa ser melhor, naturalmente. Mas, quem são eles? E quem diz agora que nós somos diferentes deles, ou que eles são diferentes de nós? Mais fácil responder a segunda pergunta do que a primeira. Dessa vez, quem disse “nós somos diferentes deles”, quem deu ar de novidade à velha ladainha do “nós” e “eles” cuja história é tão rica em Nosso Brasil foi Jair Bolsonaro.
Cabe digressão exploratória e explanatória. O interesse geral pelo termo “populismo” jamais esteve tão alto, a julgar pelos dados do Google Books NGram Viewer, que compila as menções do termo em publicações desde o ano 1900. Isso mesmo, desde o início do século passado. Nas publicações em língua inglesa, espanhola e portuguesa o aumento das citações de “populismo” é espantoso. Em razão disso, cientistas políticos, economistas, sociólogos, e outros pesquisadores da área de ciências sociais têm se dedicado a destrinchar o que, afinal, é populismo. Não é fácil chegar a um consenso sobre o que significa, já que de Hugo Chávez a Viktor Órban, de Donald Trump a Recep Erdogan, da direita à esquerda, há populistas para todos os gostos.
Jan-Werner Müller da Universidade da Pennsylvania, define populismo a partir de alguns ingredientes: trata-se de uma visão antielitista e antipluralista. O aspecto antipluralista é o mais importante. De acordo com a sua definição, o antipluralismo é a postulação moral de que um grupo representa “nós”, o “povo”, e não permite que qualquer outro grupo da sociedade faça a mesma postulação, os “eles”. Os “eles” são imorais e corruptos. A oposição não é legítima, pois quem não apoia os populistas não é parte do “povo”, não está entre “nós”. Opositores políticos, muitas vezes, são tachados de inimigos do “povo”.
O corolário do que está descrito acima é que o populismo é espécie de política identitária excludente, ou, tribal. Outro renomado cientista político e professor da Universidade da Georgia nos EUA, Cas Mudde, define populismo assim: “O populismo é uma ideologia superficial que separa a sociedade em dois grupos antagonistas – as pessoas “puras” e as pessoas “corruptas” – e afirma que a política deve ser a expressão da vontade geral do “povo”.” Contudo, como na definição de Müller, o povo não inclui toda a sociedade, mas apenas aqueles que se autoproclamam seus verdadeiros representantes.
Fim da digressão. “Este é o dia em que o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do politicamente correto, do gigantismo estatal”. “Esta é a nossa bandeira, que jamais será vermelha, só será vermelha se for do nosso sangue derramado para a manter verde e amarela”. Essas duas frases foram proferidas por Bolsonaro em seu discurso de posse. Examinadas sob a ótica das definições acima, entender quem representa “nós” e quem representa “eles”, uma das perguntas do início desse artigo, fica mais fácil.
“Nós” são todos aqueles que não criticam o novo governo, ainda que as críticas possam ser construtivas. “Eles”, o resto, são “comunistas”, “socialistas”, “vermelhos”, e todos esses termos estão inequivocamente associados a gente corrupta, sem escrúpulos, ou que apoia gente corrupta e sem escrúpulos. O bolsonarismo que se instala no País e se manifesta nas redes sociais incansavelmente é identitário e excludente, suas táticas não são apenas semelhantes às táticas do petismo. São as mesmas táticas já que a retórica petista sempre foi populista, ao menos de acordo com a definição atual do termo que nada tem de suas origens no século 19, quando despontou nos EUA. O bolsonarismo é o petismo no espelho com o sinal trocado – não fosse assim, as eleições de 2018 teriam sido diferentes.
Nosso Brasil passou por um ciclo populista “de esquerda” e agora passará por um ciclo populista “de direita”. Dessa frase, a única expressão que importa é “ciclo populista”, pois para populistas de linhagem, “direita” e “esquerda” são apenas acessórios descartáveis a depender da conveniência. Nosso Brasil, ainda que com “Deus acima de todos”, nada tem de acolhedor.
*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Monica De Bolle: Bolsonaro em Davos
Há ideologia de sobra, apenas não exatamente a que preponderou durante boa parte dos governos petistas
Foram oito minutos e mais um tantinho de perguntas e respostas com o anfitrião Klaus Schwab. Com o cenho fechado e nítido desconforto, o capitão-presidente apresentou-se à elite globalista na montanha durante a abertura da sessão plenária do Fórum Econômico Mundial.
O discurso conteve algumas mensagens sobre as reformas econômicas, sobre as intenções de abrir a economia brasileira, sobre a necessidade de acabar com o viés ideológico no País, apesar do viés ideológico estar presente, saudável, e viril no Ministério das Relações Exteriores. Houve, também, tentativa de sublinhar os compromissos do Brasil com o meio ambiente, apesar dos sinais contraditórios desde a campanha. Empenhou-se Bolsonaro em afirmar que seu governo pretende compatibilizar a preservação do meio ambiente e o compromisso com a biodiversidade com o avanço econômico, apesar das atitudes já tomadas em relação à demarcação de terras indígenas – de responsabilidade, agora, do Ministério da Agricultura. Contudo, nada disso compõe a real história do discurso de Davos em meio aos escândalos de corrupção que rondam a família do presidente no Brasil. A real história são os ecos do passado, sobretudo de um passado não muito distante.
Disse Bolsonaro que assumiu o Brasil “em uma profunda crise ética, moral, e econômica”, o que é verdade. Seus eleitores depositaram nele a confiança de combater a corrupção e a violência, o que levou o presidente a citar a escolha de Sergio Moro para a pasta da Justiça e da Segurança. Em Davos, Sergio Moro e Paulo Guedes foram apresentados ao mundo como os pilares de sustentação de muitas esperanças. “Tenham certeza de que, até o final do meu mandato, nossa equipe econômica liderada pelo ministro Paulo Guedes nos colocará no ranking dos 50 melhores países para se fazer negócios”. Apesar de algumas melhorias, o Brasil ainda amarga a 109ª posição dentre 190 países de acordo com o índice Doing Business do Banco Mundial. Subir ao menos 59 posições em 4 anos é a tarefa hercúlea que Bolsonaro acaba de dar ao seu superministro perante a comunidade internacional.
Mas, vamos aos ecos do passado. “Pela primeira vez no Brasil um presidente montou uma equipe de ministros qualificados”. Espécie de “nunca antes nesse país”? Aos fatos: a ministra da Agricultura, do DEM, é a ex-presidente da Frente Parlamentar Agropecuária, ou da bancada do boi; também filiado ao DEM do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e da ministra da Agricultura, o ministro da Saúde é investigado por fraude e licitação de caixa dois; Osmar Terra, ministro da Cidadania, é do MDB, ex-ministro de Temer, e será responsável pelo Esporte e a Cultura, além do Desenvolvimento Social; para o Meio Ambiente, temos Ricardo Salles do Novo, anteriormente do PP – partido que é antigo parceiro de corrupção do PT e do MDB –, além de réu por improbidade administrativa; a ex-assessora de Magno Malta do PR – outra sigla com passado nada reluzente – é a ministra de Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. Durante a campanha, Bolsonaro afirmou que reduziria para 15 o número de ministérios. Não conseguiu fazê-lo justamente em razão do inevitável toma-lá dá-cá que deu cargos a cerca de um terço do Ministério de 22 pastas. Todos qualificados? Há dúvidas ponderáveis.
“Nossas relações internacionais serão dinamizadas pelo ministro Ernesto Araújo, implementando uma política na qual o viés ideológico deixará de existir”, disse o presidente. Para quem se lembra do assessor especial para assuntos internacionais de Lula e de Dilma, Ernesto Araújo é uma espécie de Marco Aurélio Garcia invertido. Ou seja, há ideologia de sobra, apenas não exatamente a que preponderou durante boa parte dos governos petistas. Quando perguntado por Schwab como seriam as relações com a América Latina, Bolsonaro exaltou a ascensão recente de regimes de direita e de centro-direita: “Não queremos bolivarianos no continente, não queremos a esquerda no continente”. Será curioso ver como esse “novo Brasil” supostamente não ideológico lidará com o México de Andrés Manuel López Obrador.
Por fim, a imprensa. Lembram-se dos ataques de Lula e de Dilma à imprensa? Lembram-se dos “pessimistas adversativos” da ex-presidente, forma como ela se referia aos seus críticos contumazes dentre os quais me incluo? Pois Bolsonaro frisou em Davos que é alvo constante de ataques injustificados, preferindo deixar nas entrelinhas seus culpados favoritos – aqueles para quem negou-se a dar entrevistas. Em frente porque há um novelo de Queiroz nas costas.
*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Monica De Bolle: Guerra de atrito
Em um embate público — como uma guerra ou uma barganha política —, há sempre uma terceira parte envolvida que influencia o toma lá dá cá indiretamente
Em 2016, a polarização crescente pariu o Brexit e a vitória de Donald Trump. Em 2019, o nacionalismo deturpado responsável pela composição genética desses dois eventos transformou-se naquilo que estrategistas militares, matemáticos e economistas chamam de guerra de atrito. Dito de modo simples, a guerra de atrito é a tentativa de ganhar uma batalha — seja na esfera política, no âmbito da negociação privada, ou no campo militar — exaurindo o oponente por meio de um período prolongado de perda de recursos. Na esfera política, os recursos perdidos são o capital político e o apoio do eleitorado; nas negociações privadas, os recursos perdidos são geralmente financeiros; no campo militar, os recursos perdidos são armamentos e soldados. Sai “vitorioso” da guerra de atrito o lado que possui mais recursos ou que tem mais capacidade de aguentar as perdas prolongadas, contínuas e exageradas. Não é difícil construir cenários em que o lado “vitorioso” acaba amargando perdas maiores do que os ganhos de ter vencido a guerra.
Para entender o Brexit e a birra de Trump pelo muro que fechou partes do governo americano, é útil formular estrutura simples para reflexão. Em uma barganha privada, onde as partes envolvidas tentam obter concessões umas das outras, impasses são geralmente resolvidos com perdas e ganhos racionalmente distribuídos.
Em um embate público — como uma guerra ou uma barganha política —, há sempre uma terceira parte envolvida que influencia o toma lá dá cá indiretamente.
Esse terceiro participante é a população, ou o eleitorado. Considerando apenas o embate político, quando o eleitorado está mais alinhado ao centro ideológico, a batalha entre extremos acaba envolvendo concessões de ambas as partes, o que quebra eventuais impasses de forma mais rápida. Para os que conhecem a literatura técnica sobre o assunto, esse resultado é uma espécie de corolário do teorema do eleitor mediano — o teorema afirma que, se o eleitor mediano for representativo das posições ideológicas da população, prevalecerão medidas e agendas políticas mais ao centro. O centro é o local que abriga as concessões capazes de quebrar impasses.
Contudo, quando aumenta a polarização do eleitorado, o teorema do eleitor mediano vai para o espaço. Além disso, quando os eleitores e observadores da barganha política estão entrincheirados nos extremos ideológicos, eles tenderão a endurecer as posições daqueles que negociam diretamente, aumentando as chances de uma guerra de atrito. Sob essa espécie de formalização teórica meio simplória, é possível entender tanto as causas do Brexit e do shutdown americano quanto entender por que os impasses dos dois lados do oceano devem não só perdurar, mas acabar gerando perdas muito maiores do que se poderia conceber para todas as partes envolvidas direta e indiretamente.
Theresa May perdeu o voto sobre seu plano para o Brexit após dois anos de intensas negociações com os parceiros europeus porque os defensores e opositores da saída do Reino Unido da União Europeia (UE) não querem ceder milímetro para o outro lado. Como o plano de May necessita de inevitáveis concessões, foi veementemente rechaçado pelos engalfinhados na guerra de atrito, o que não isenta a primeira ministra de críticas a sua atuação. No embate entre a UE e a Grã-Bretanha, parece que a ilha tem mais a perder do que o continente, o que aumenta a chance de que em 29 de março, prazo estabelecido para o Brexit, o Reino Unido saia da UE desunido e sem acordo — o pior cenário para todos.
Algo semelhante ocorre aqui nos EUA. Trump esperneou e disse que sem financiamento para o muro não apoiará qualquer medida legislativa para reabrir o governo. Por outro lado, o Partido Democrata, que hoje lidera a Câmara, afirmou que o muro como medida de segurança para a fronteira não faz sentido e que portanto não dará a Trump nenhum tostão a mais do que já fora oferecido. Fortalecidos pelos eleitores de ambos os lados, estão dadas as condições para a guerra de atrito. Como acaba, ninguém sabe. Não é fácil saber qual o lado mais fraco nessa história. Contudo, é certo que o impasse prolongado seguirá uma espécie de princípio de Hemingway: os custos serão lineares e graduais e, subitamente, exponenciais e abruptos. Não é impensável que a economia americana em final de ciclo de expansão acabe sendo duramente atingida, levando consigo o resto do mundo. Araújos à parte, da última vez que conferi, o Brasil ainda fazia parte do resto do mundo.
*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
Monica De Bolle: Encurralados
Não tardará para que conflitos em torno das reforma da Previdência apareçam com mais clareza
“Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder.” A frase, como muitos devem saber tamanha sua notoriedade, é de Dilma Rousseff. Na época em que a ex-presidente a proferiu em 2015, a opinião quase unânime era de que o amontoado de palavras sobre ganhar ou perder não fazia sentido algum, em linha com outros discursos e frases célebres de Dilma. Contudo, as reviravoltas no Brasil e no mundo que ocorreram nos últimos quatro anos tornaram o dito profético, sobretudo a asserção final: “Vai todo mundo perder.”
Quando esse artigo for publicado, já conheceremos o veredicto do Parlamento britânico sobre o plano de saída da União Europeia – o Brexit – negociado pela primeira-ministra Theresa May. Ao que tudo indica, May está encurralada. De um lado porque escolheu alijar das discussões parlamentares contrários ao Brexit tanto dentro de seu próprio partido, quanto na oposição. Tal estratégia para aplacar a base ruidosa de defensores do Brexit dentro do Partido Conservador deixou todos desconfiados: Theresa May, afinal, votou contra o Brexit. Portanto, seus correligionários sentem-se ou traídos ou ressabiados após a negociação de um acordo que, argumentam, não entregará o que tanto queriam.
Os argumentos sóbrios e os números frios, que mostram inequivocamente como sofrerá a economia do Reino Unido com a saída da UE estão sendo sumariamente ignorados pelos parlamentares dos dois partidos ante o estratagema de autoencurralamento que a primeira-ministra se impôs. Em caso de derrota do plano, todos perderão. No caso da menos provável vitória, todos também perderão – afinal, o Brexit é para lá de custoso em termos econômicos para a Grã-Bretanha.
Outro caso de autoencurralamento está em ampla evidência do outro lado do oceano. Há mais de três semanas, partes do governo norte-americano estão fechadas, funcionários públicos sem receber salários, por causa da intransigência de Trump com seu muro. Há notável quantidade de estudos técnicos mostrando que a imigração ilegal nos últimos anos tem sido menos pelo cruzamento da fronteira que separa o México dos EUA e mais por visitantes que entram no país pelos aeroportos com vistos válidos e permanecem após a expiração desses vistos.
Outros estudos revelam que barreiras físicas não são suficientes – ou mesmo viáveis em partes da fronteira, por isso não existem – para evitar, por exemplo, a entrada de drogas. É preciso ter aparato tecnológico mais sofisticado para tanto. Contudo, Trump prometeu entregar o muro durante a campanha, e agora finca o pé para tentar aplacar sua base de eleitores enquanto enfrenta democratas ávidos por investigá-lo em diversas frentes e por impedir qualquer de seus esforços legislativos. Enquanto não surge solução para o impasse, perdem todos. Quando surgir a solução, qualquer que seja, todos deverão também perder. A culpa pela paralisia prolongada e pela incapacidade de levar adiante uma negociação política deverá ser dividida entre Trump, republicanos, e democratas.
Voltando à frase de Dilma, ela remonta a uma reflexão interessante. A barganha privada, em que os dois lados tentam extrair algo do outro quando suas posições divergem, é mais simples do que a barganha política. Na barganha política há sempre um terceiro lado – os eleitores – a vigiar as negociações. Quando esses eleitores estão mais alinhados ao centro, a barganha política naturalmente acaba envolvendo concessões, ajudando a formar consensos e soluções para os embates. Contudo, quando esses eleitores estão polarizados nos extremos do debate, eles acabam agindo como força que enraíza posições duras. Nenhuma concessão no caso do Brexit, e portanto uma potencial derrota para May. Nenhuma concessão na questão do shutdown/muro de Trump, prolongando a angústia daqueles que sofrem diretamente e indiretamente os efeitos do fechamento parcial do governo. Conjecturo que nesses dois casos os impasses só poderão ser quebrados quando os custos de fincar o pé se tornarem excessivamente altos. Ou seja, quando ficar evidente que todos perderam, ainda que queiram posar de vencedores.
Encerro com uma breve nota sobre o Brasil. Não tardará para que conflitos em torno das reformas econômicas, sobretudo da contenciosa reforma da Previdência, apareçam com mais clareza. Temos no País um eleitorado polarizado diante do qual não foi exposta uma agenda econômica clara durante a campanha. Creio que estamos prestes a ver nossa própria versão dos encurralados do norte.
*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Monica De Bolle: O que pode avançar?
A reforma do sistema financeiro pode ajudar a destravar o financiamento de médio e longo prazo
Na última semana, dúvidas que já haviam surgido durante a campanha presidencial voltaram à tona. Qual a reforma de Previdência apoiará Bolsonaro? A defendida por Paulo Guedes, que almejaria – corretamente – restaurar a sustentabilidade e combater as desigualdades e privilégios do sistema atual? Ou a reforma fatiada, começando pela idade mínima da aposentadoria, alinhada com o que Bolsonaro defendera durante a campanha? Quem fala pela área econômica do governo: o ministro da Economia, o presidente, membros de seu círculo íntimo? É natural que no início de um novo governo haja alguns problemas de coordenação. No entanto, dada a ausência de uma discussão mais aprofundada sobre a agenda econômica durante toda a campanha presidencial, é importante que o governo supere rapidamente problemas de coordenação e a sempre inevitável disputa por holofotes.
Confesso que tenho dúvidas quanto à capacidade imediata de dar a clareza necessária aos temas relativos ao ajuste fiscal de médio e curto prazo, incluindo os enormes desafios das contas públicas estaduais, até aqui ignoradas – inclusive no bom pronunciamento de Paulo Guedes na ocasião de sua posse. Dito isso, parece-me que uma área em que pode haver avanços imediatos é na necessária reforma do sistema financeiro sobre a qual tenho insistido há algum tempo. Essa semana foram empossados os novos dirigentes da tríade responsável por muitas distorções microeconômicas e macroeconômicas na economia brasileira durante governos anteriores, a saber, o BNDES, a Caixa Econômica Federal, e o Banco do Brasil.
Sobre o BNDES em particular, perdi a conta do número de artigos que escrevi para esse espaço sobre o tema. Embora reconheça a importância das reformas de Temer, há muito ainda por fazer. Com a introdução da TLP, Temer eliminou um dos principais canais de subsídios do Tesouro para o BNDES. Tal canal fora responsável por considerável opacidade nas contas públicas durante o final do segundo mandato de Lula e praticamente todo o governo Dilma, abrindo flanco não apenas para o aumento das vulnerabilidades fiscais, como também para práticas nebulosas no uso do dinheiro dos contribuintes. É importante destacar que, ao contrário da demonização constante que sofre o BNDES, a culpa não foi do banco – ao menos não do corpo técnico extremamente qualificado que lá está. A culpa foi dos governos que o utilizaram para atingir objetivos que nem sempre atenderam aos interesses do País. A TLP de Temer foi um bom começo para evitar recorrências dessas práticas, mas foi apenas um começo.
Em seu discurso de posse, Joaquim Levy destacou a necessidade de continuar ajustando o balanço do banco, mas, mais relevante foi a ênfase em repensar sua forma de atuação. Como tenho dito e escrito ao longo dos últimos anos, o BNDES precisa de um mandato claro, delineando o papel moderno de uma instituição de fomento que não apenas ocupe indevidamente o espaço das instituições privadas, mas que saiba ajudá-las a alavancar o financiamento para objetivos intrinsicamente complicados, como o desenvolvimento de infraestrutura. Há muito capital humano no corpo técnico do BNDES para ajudar Levy nessa empreitada, incluindo muita gente que passou anos discordando das diretrizes adotadas por líderes indicados pelo PT para presidir a instituição.
Como demonstrei em pesquisa publicada em 2015 pelo Peterson Institute for International Economics, parte relevante das distorções causadas pelos bancos públicos resulta na segmentação dos mercados de crédito, na imensa discrepância dos spreads bancários, nas taxas de juros anômalas para os tomadores de crédito. Com base nessas evidências, argumentei que uma profunda reforma do sistema financeiro deveria estar entre as prioridades de qualquer governo realmente reformista. Ao que parece, essa reforma ganhou maiores chances de se concretizar se capitaneada for pelos novos dirigentes das três instituições financeiras públicas, que reúnem competência e experiência para tanto. A reforma do sistema financeiro pode ajudar a destravar o financiamento de médio e longo prazo, a produtividade, o crescimento, ainda que o bate-cabeça da reforma da Previdência persista.
Há enorme oportunidade para avançar a agenda dos bancos públicos, sobretudo sob novas lideranças e com o apoio incondicional do ministro da Economia. Que o governo Bolsonaro não a desperdice.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins Universit
Monica De Bolle: A Venezuela
Para entender e opinar sobre a Venezuela, é preciso primeiro compreender o arco histórico
A confusão sobre o convite-não-convite de Nicolás Maduro para a posse de Bolsonaro deu o que falar nos últimos dias. Maduro teria sido convidado pelo Itamaraty para a posse, a chancelaria da Venezuela recusou o convite, e em seguida Ernesto Araújo o desconvidou. É claro que a ditadura venezuelana deve ser rechaçada. Contudo, o uso constante do colapso venezuelano como arma ideológica é não apenas um equívoco, mas demonstração de profunda ignorância. São poucos os que realmente sabem alguma coisa sobre a história da Venezuela. Ao que parece, o próprio chanceler brasileiro prefere os espantalhos ideológicos a um entendimento sério de como o país chegou ao atual descalabro. Não é com desconhecimento que se faz boa política externa.
Começo lá atrás, no pós-guerra. Entre 1948 e 1958 a Venezuela era uma ditadura. Removido o ditador presidente Marcos Pérez Jiménez em janeiro de 1958, os três maiores partidos políticos do país – AD, Copei e URD – firmaram um pacto que ficou conhecido como Ponto Fixo (“Punto Fijo”). O pacto tinha como objetivo enraizar e proteger a democracia em um país que havia sido governado por ditadores praticamente desde sua independência, em 1830. O Ponto Fixo deu origem ao sistema bipartidário formado pela AD e pelo Copei que permaneceu em vigor até a ascensão de Hugo Chávez nos anos 1990. Durante as quatro décadas decorridas entre 1958 e 1998, a Venezuela foi essencialmente uma democracia estável, tendo chegado a ser um dos primeiros países latino-americanos a ser classificado como país de renda média alta pelo Banco Mundial.
Entre 1960 e 1977, a renda por habitante crescera mais de 30%, alcançando US$ 16 mil por pessoa. Contudo, entre o fim dos anos 70 e meados dos anos 80, a renda por habitante perdera todo o ganho anterior, passando de US$ 16 mil para pouco menos de US$ 12 mil. Ou seja, o país sofreu um colapso brutal do crescimento em virtude de vários problemas, inclusive da queda dos preços do petróleo. Colapsos dessa magnitude costumam estar associados a guerras e graves conflitos internos, o que não foi o caso da Venezuela. Até hoje estudiosos se debruçam sobre o dilema do crescimento venezuelano durante os anos 80 e 90.
A insatisfação popular com o desempenho da economia e a percepção de que o Ponto Fixo engessara o sistema político, com os dois principais partidos envolvidos em escândalos de corrupção e práticas clientelistas, abriram o caminho para que um militar de baixa patente tentasse um golpe de Estado em 1992 – sim, Hugo Chávez. O golpe falhou, mas em 1993 foi quebrada a hegemonia bipartidária com o enfraquecimento dos dois principais partidos. Após período de intensa turbulência entre 1993 e 1994, Rafael Caldera, um dos arquitetos do Ponto Fixo e da Constituição de 1961, presidente entre 1969 e 1974, foi novamente alçado à presidência.
Caldera foi sucedido por Chávez, vitorioso em 1998, ano em que as eleições foram marcadas pela ausência de partidos e de candidatos tradicionais. Os partidos haviam caído no mais absoluto descrédito. Chávez e os demais presidenciáveis de 1998 se posicionaram como indivíduos com clara posição antissistema, capazes de atender aos anseios do povo venezuelano. Chávez foi eleito em 1998 e horas após a vitória anunciou referendo sobre a reforma constitucional que seria a base de sua “Revolução Bolivariana”. A reforma foi aprovada e a Assembleia Constituinte foi formada com maioria chavista, dando a Chávez o poder de reescrever a Constituição que encerrou de vez o pacto Ponto Fixo. A nova Constituição, que ampliava o mandato presidencial de 5 para 6 anos, entrou em vigor pouco mais de um ano após a vitória de Chávez. Em 2000, anos antes da eleição presidencial prevista pela nova Constituição, Chávez conseguiu antecipar o pleito e se “reeleger” por seis anos. A partir daí estavam montadas as bases que permitiriam seu plano de permanência não democrática no poder.
Portanto, para entender e opinar sobre a Venezuela, é preciso compreender o arco histórico. É fácil demais plantá-la como espantalho para assustar ingênuos e desinformados, sobretudo no contexto brasileiro atual.
Tamanho desconhecimento em nada ajudará a política externa brasileira a dar conta do imenso desafio que a Venezuela de Maduro representa para a região. Dizem que o Brasil não é para principiantes. Menos ainda a Venezuela.
*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Monica De Bolle: Um conto chinês
Apesar da queda da produção de petróleo, o regime de Maduro tem sido capaz de se sustentar
Quando se trata da China, o que se destaca na América Latina são os lados positivos de relação por vezes tão disparatada quanto a cena de abertura do filme de Sebastián Borensztein: uma vaca cai do céu matando uma jovem – após a cena inicial, lê-se “baseado em fatos reais”. Os fatos reais geralmente destacados são a maior integração comercial entre a China e a região, a realidade de que a China já ultrapassa os EUA – em alguns casos – no peso que tem na América Latina, os volumosos investimentos chineses. Segundo dados compilados pelo Inter-American Dialogue, o banco de desenvolvimento da China (China Development Bank, CDB) e o China Ex-Im Bank, duas das maiores instituições financeiras do país, têm sido responsáveis pelo envio de recursos para conjunto seleto de países desde 2005. São eles: Argentina, Brasil, Equador e Venezuela.
Do que é possível saber – transparência não é o forte dos investimentos chineses – a China fez 17 empréstimos para a Venezuela, totalizando cerca de US$ 63 bilhões. Para o Brasil, foram 12 empréstimos no montante de US$ 42 bilhões. Para a Argentina, US$ 18 bilhões por meio de 11 empréstimos. Os dados provavelmente subestimam a presença do investimento chinês na região, sobretudo na Venezuela, onde os arranjos entre os dois governos estão encobertos por véu de mistério.
O que se sabe é que a China, transacional e pragmática, não está mais dando dinheiro ao regime de Nicolás Maduro. Ao contrário, os chineses andam mais preocupados em receber o que lhes é devido, seja na forma de pagamentos diretos, seja por meio de barris de petróleo. Apesar da queda sistemática da produção de petróleo, o regime de Maduro tem sido capaz de se sustentar. O PIB em queda livre e a hiperinflação que engoliu a Venezuela não prenunciam o fim da ditadura.
Mas este não é mais um artigo sobre a Venezuela. Este é um artigo sobre a atuação da China na Venezuela para além do comércio, dos investimentos e das transações opacas entre o país asiático e a PDVSA, a empresa de petróleo venezuelana. Dia desses, assisti a um dos vídeos mais perturbadores que já havia visto sobre a atuação dos chineses na Venezuela. Tratava-se de uma reportagem investigativa do New York Times sobre o que a China anda fazendo na região. Intitulado “O Equipamento Antiprotesto que os Déspotas Amam” (“The Anti-Protest Gear that Despots Love”) e disponível no YouTube, a reportagem mostra como os imensos protestos que tomaram as ruas de Caracas em abril e maio de 2017 foram eliminados. Reparem: não há mais protestos daquela magnitude desde então, ainda que a situação de penúria, miséria, tragédia em que vive a população só tenha piorado. Por quê?
Norinco, a empresa estatal chinesa especializada em equipamentos militares, vendeu para o governo Maduro tanques e veículos desenhados para montar barreiras e arremessar mísseis de gás lacrimogêneo e canhões de água nas multidões. As mortes – muitas não reportadas – e os milhares de feridos nos protestos do ano passado resultaram do uso do aparato antiprotestos fabricado e vendido pelos chineses. O sumiço das multidões desde então deve-se ao medo de ser vítima de um sofisticado equipamento para suprimir demonstrações legítimas e pacíficas. Como soube disso? Não por meio dos jornais, ou por ampla divulgação da reportagem do New York Times pela mídia. Soube diretamente de um jovem político venezuelano hoje exilado aqui em Washington que teve a sorte de escapar – pela fronteira entre o Brasil e a Venezuela – das garras de Maduro. Ele estava lá, nos protestos de 2017. Enfrentou os tanques e foi derrotado por eles.
Esse é apenas um dos relatos chocantes sobre a atuação da China na Venezuela. O outro diz respeito à empresa de tecnologia ZTE, alvo de sanções dos EUA, que vendeu para Maduro os chips da nova carteira de identidade anunciada em novembro. Para ter acesso a medicamentos, comida, aposentadorias, venezuelanos têm de adquirir a nova carteira, cuja tecnologia permite que cidadãos sejam rastreados e monitorados todo o tempo pela ditadura homicida. Qualquer semelhança com Orwell é mais do que mera coincidência. É a implantação da mais perversa distopia debaixo dos narizes de todos. Onde estão as denúncias?
* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Monica De Bolle: A falsa dicotomia
O mercado, como bem sabem os estudiosos do tema, não tem o alcance de reduzir desigualdades
Entre acadêmicos e não acadêmicos, economistas e não economistas, jornalistas e não jornalistas, esquerda e direita, prevalece a ideia de que Estado e mercado são entidades separáveis, por vezes opostas. A ideia de separação tão entranhada está que há quem diga que tudo o que não é Estado é mercado, como se houvesse uma linha concreta a partir da qual ambos fossem claramente definíveis. Na América Latina, região que sempre oscilou entre a mão pesada do Estado e as tentativas de reduzir sua influência na economia, a dicotomia parece fato incontestável.
No Brasil, onde alguns resolveram enxergar uma “revolução das ideias” com a ascensão de Bolsonaro e da ortodoxia de Paulo Guedes, a divisão entre Estado e mercado é muitas vezes tida como uma certeza. Dicotomias são muitas vezes simplificações da realidade, e simplificações da realidade costumam gerar muita confusão mental, sobretudo nas inexatas ciências sociais.
Como tantas outras coisas, o segredo para se pensar o papel do Estado está no reconhecimento de que é preciso haver um equilíbrio na relação Estado-mercado. Se o Estado é capaz de sufocar, o mercado é capaz de destruir.
Pensem na crise financeira de 2008 cujas ramificações ainda não desapareceram por completo. Há muitas explicações para as causas da crise, mas poucos especialistas discordam de que a política de laissez-faire em relação aos mercados financeiros defendida por Alan Greenspan, presidente do banco central norte-americano, o Fed, entre 1987 e 2006, tenha sido fator propulsor fundamental.
A crença pueril de que os mercados seriam capazes de se autorregular na busca por “prosperidade”, controlando seus próprios devaneios e ímpetos, provou-se profundamente equivocada. Às vésperas da quebra do banco Lehman Brothers, o mercado estava em situação de extrema fragilidade – e a descrença e desconhecimento dos investidores e dos gestores de política econômica acerca dessa situação era brutal. Não fosse a atuação do Estado na absorção das perdas e redistribuição dos recursos por meio da política econômica, talvez tivéssemos testemunhado o absoluto colapso dos mercados de crédito e da economia mundial que deles depende.
Ou seja, Estados falham quando se deixam tomar pela corrupção, quando permitem que seus pilares sejam cupinizados, como ocorre hoje na Venezuela, na Nicarágua, só para citar exemplos latino americanos. Mas, se Estados falham, mercados também falham. E, muitas vezes mercados falham por falta da presença do Estado – por falta de regulação adequada – assim como Estados podem falhar, ou falir, após terem engolido os pesos e contrapesos do mercado. Como disse o poeta francês Paul Valéry, “se o Estado for forte, seremos esmagados; mas se for fraco, padeceremos”.
Estado e mercado não são, portanto, separáveis, mas simbióticos. Encontrar a relação perfeita em que ambos se beneficiem ainda que em proporções desiguais é o desafio dos economistas e dos bons gestores da política econômica. Essa relação não é estática, mas dinâmica e evolutiva. O equilíbrio entre o mercado e o Estado se altera de acordo com a ecologia do mercado e as necessidades da economia. A ascensão das empresas de fintech nos países emergentes, por exemplo, necessita de modificações nas estruturas regulatórias, como pôs em prática recentemente o México.
Desigualdades profundas capazes de causar graves abalos políticos e institucionais precisam ser atenuadas por um Estado que redistribua adequadamente sem causar grandes distorções que prejudiquem o crescimento econômico. O mercado, como bem sabem os estudiosos do tema, não tem o alcance, tampouco o objetivo, de reduzir desigualdades. Assim como também não têm o propósito, necessariamente, de avaliar o impacto, no longo prazo, de algumas de suas decisões. Dia desses lia artigo de Mario Sergio Conti em que o autor falava de entrevista nos anos 70 com o madeireiro que derrubou boa parte da floresta do Espírito Santo. Perguntado pelo jornalista se ele pensava na consequência do que fazia, respondeu o madeireiro: “A consequência é o lucro”.
No Brasil de hoje, na América Latina de hoje, temos grandes igrejas, grandes negócios que estão se apoderando do Estado por meio da participação crescente nos poderes legislativo e executivo – esse é o tema de pesquisa com coautores aqui na Universidade de Johns Hopkins. Qual tipo de relação entre Estado e mercado disso resultará é ainda grande dúvida. Entre dúvidas e falsas dicotomias, é possível apenas afirmar uma coisa: o Estado tem letra maiúscula pois é soberano. O mercado, não.
* Monica De Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Monica De Bolle: Não fossem o gogó e os pés...
Seu objetivo era descobrir em que medida diferenças de temperamento entre os sexos eram culturalmente, não biologicamente, determinadas.
Não fossem o gogó e os pés... Sai a figura oculta que é um cachorro atrás, entra o marxismo cultural. Sai a saudação à mandioca, entra a ideologia de gênero. Ricardo Veléz Rodríguez, filósofo, teólogo e futuro ministro da Educação do governo Bolsonaro, condena a tal da ideologia de gênero, que, segundo ele e todos os ultraconservadores de sua estirpe que hoje pipocam mundo afora, é uma afronta aos valores tradicionais cristãos. Trata-se, segundo ele, de ideologia “destinada a desmontar os valores tradicionais de nossa sociedade, no que tange à preservação da vida, da família, da cidadania, em soma, do patriotismo”. Assim como o novo chanceler de Bolsonaro, o futuro ministro da Educação mantém, desde 2009, um blog em que expõe suas ideias. Apropriadamente, o blog chama-se “Rocinante”, cavalo virtual em que monta Vélez Rodríguez para lutar batalhas quixotescas contra moinhos de vento como a “doutrinação de esquerda nas escolas”. Vélez Rodríguez, quem poderia imaginar, quer estocar o vento da ideologia de gênero, trancando-o num armário bem fechadinho.
Mas o que é ideologia de gênero? De acordo com alguns estudos e análises — sérios — da área de gender studies, a ideologia de gênero condenada por setores ultraconservadores mundo afora seria a visão de que gênero não tem relação com diferenças biológicas e de que pode ser simplesmente fruto de uma escolha individual. Segundo os detratores da ideologia de gênero — expressão cunhada por eles —, ela seria linha de pensamento perigosa que poderia contaminar as crianças e destruir a democracia. O movimento anti gênero e anti-ideologia de gênero marcou presença nos ataques à visita da filósofa Judith Butler ao Brasil há pouco mais de um ano, no repúdio ao referendo sobre o acordo de paz do ex-presidente colombiano Juan Manuel Santos com as Farc em 2016, nas campanhas pela reforma da constituição distrital no México em 2017 e durante a votação final sobre a lei que acabaria com a proibição da interrupção da gravidez promulgada por Augusto Pinochet no Chile, também em 2017 . Esses são apenas alguns exemplos de como o rechaço à chamada ideologia de gênero vem se espalhando na América Latina com o fervor ultraconservador que se alastra como epidemia de fé e de rejeição à ciência.
Sobre a ciência, não resisti e fui reler trechos do fabuloso livro da antropóloga Margaret Mead publicado em 1935, Sexo e temperamento. Para escrever sua obra, Mead viajou para a Papua-Nova Guiné, espécie de paraíso dos antropólogos devido à imensa diversidade étnica e cultural do arquipélago ao norte da Austrália. Meu interesse pelo país é antigo — o visitei em quatro ocasiões diferentes no ano de 2001 e lá permaneci durante um mês a cada visita. Portanto, passei quatro meses na Papua-Nova Guiné, país que muitos brasileiros provavelmente não saberão localizar no mapa. Fui parar lá pois na época trabalhava no Fundo Monetário Internacional e precisávamos monitorar o empréstimo que havíamos dado ao governo da Nova Guiné. Foi o país mais fascinante que visitei, mas divago.
Margaret Mead foi para lá no início dos anos 30 e ficou por dois anos para conduzir uma pesquisa pioneira sobre a consciência de gênero. A Papua-Nova Guiné é o país ideal para estudar culturas isoladas, pois o terreno montanhoso da ilha principal, a densa floresta e a falta de infraestrutura — até hoje, só há estradas num raio de cerca de 20 quilômetros da capital, Port Moresby — tornavam muito difícil o contato entre diferentes povos primitivos.
Ao estudar três culturas diferentes, Mead encontrou divergências significativas nos padrões de temperamento observados em homens e mulheres. Em um dos povos, homens e mulheres mostravam-se dóceis, gentis e cooperativos. Em outro, a mulher era agressiva, dominadora, enquanto o homem era submisso e emocionalmente dependente. No terceiro, tanto homens quanto mulheres mostravam-se violentos e agressivos, em luta constante por poder e posição hierárquica. O trabalho pioneiro de Mead revelou as profundas diferenças entre o sexo biológico e a construção cultural do que entendemos por gênero. Desde então, a literatura científica corroborou sua pesquisa e a ampliou enormemente.
Concluo esse artigo com duas reflexões. A primeira: como seria bom se o novo ministro da Educação passasse dois anos na selva da Nova Guiné. A segunda: “Super vitamina dos reflexos, tão complexos de ambos os sexos”. Dá um Close nela.
Monica De Bolle: Relações alucinadas
Na próxima reunião do G-20, em Buenos Aires, estará exposta a rivalidade entre a China e os Estados Unidos
Às vésperas da reunião de cúpula do G-20 na próxima sexta-feira, o novo chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, escreveu para a Gazeta do Povo artigo em que explica a importância de ser Ernesto no atual momento. Dentre as razões listadas, diz ele que “algumas pessoas gostariam que o presidente eleito Jair Bolsonaro tivesse escolhido um chanceler que saísse pelo mundo pedindo desculpas”.
“Queriam uma espécie de ministro das Relações Envergonhadas”, diz ele, que pedisse desculpas a todos pela eleição de Bolsonaro. Alucinações exteriores à parte – que o dito artigo contém de sobra – o que me fez parar nesse parágrafo foi a incrível percepção distorcida da importância do Brasil no mundo. Sim, o noticiário internacional cobriu a eleição de Bolsonaro. Sim, a imprensa externa ficou abestalhada com as falas do ex-capitão sobre a democracia, a tortura, Augusto Pinochet, e tantas outras coisas mais. Mas daí a achar que o Brasil tem relevância geopolítica global a ponto de desculpas serem necessárias aos supostos parceiros é salto quântico do futuro ministro das Relações Exteriores.
O Brasil é uma das economias mais fechadas do planeta, está atrasadíssimo nos temas de convergência regulatória para o comércio e o investimento, não tem grande presença nos fóruns mundiais, o que ficará mais uma vez em evidência na reunião de Buenos Aires no dia 30 de novembro. Contudo, o novo chanceler julgou premente escrever um artigo cujo principal objetivo foi atacar de modo pueril os comentaristas da imprensa – aqueles que são “nutridos pela convivência com diplomatas pretensiosos”, ofendendo seus colegas de Itamaraty – e a ONU, deixando entrever o complexo de vira-lata que ainda está entranhado em algumas cabeças brasileiras. Afinal, se Trump ataca a ONU, o Brasil tem de atacar também. Se Trump ataca o New York Times, o Brasil tem de atacar também. Se Trump ataca a China...Sobre isso o futuro ministro resolveu não falar, por enquanto. As bravatas contra o jornal americano e a organização internacional são apenas isso – nem o New York Times, nem a ONU darão ouvidos à sinceridade de Ernesto. Mas a China, bem a China é diferente.
Na próxima reunião do G-20, estará exposta a rivalidade entre a China e os Estados Unidos. A América Latina como anfitriã do encontro, estará entre a cruz e a espada. Não têm condições os países latino americanos de escolher lado – os Estados Unidos têm grande importância para a região, mas hoje a China tem relevância maior.
Após quase duas décadas de ausência de uma política externa que priorizasse a região, a China ocupou o vácuo com investimentos e parcerias crescentes para tudo que é lado. Quando Bolsonaro ensaiou retórica trumpista em relação à China, o Brasil levou um chega-pra-lá imediato. A deduzir da admiração intensa que têm Ernesto Araújo e Eduardo Bolsonaro – que por ora, passeia aqui por Washington a discorrer sobre a política externa do novo governo para variadas audiências – pelo governo Trump, é provável que o discurso anti-China volte com alguma força. Assim como é bastante possível que o governo Bolsonaro queira adotar o estilo linha-dura do assessor de Trump para assuntos de segurança nacional, John Bolton, com Cuba e Venezuela.
Em tempo: o estilo linha-dura nada mais é do que um tanto de retórica inflamada misturada com ameaças de mais sanções financeiras na Venezuela e medidas semelhantes em relação a Cuba. Até o momento, as sanções tiveram pouca ou nenhuma eficácia no enfraquecimento do regime ditatorial de Maduro, que enxerga na beligerância a sua própria sobrevivência ao atacar os “imperialistas”. Se algum efeito tiveram as sanções, esse foi o de agravar a crise migratória venezuelana que atinge a Colômbia, o Brasil, o Peru, entre outros países latino americanos. Por fim, a China tem interesses econômicos tanto em Cuba, quanto na Venezuela. Difícil imaginar que ficarão quietos ante tentativas do governo Bolsonaro de comprar a briga ineficaz dos norte-americanos.
É difícil exagerar a importância de Ernesto ficar calado nesse momento tão delicado. Mas o novo chanceler, assim como o filho do presidente eleito que o entrevistou, tem sonhos de grandeza sincera. “Em matérias de grave importância, estilo, não sinceridade, é o que é vital”. Já dizia Oscar Wilde. Preparem-se para grandes alucinações externas e relações externas bastante alucinadas.
*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University