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Míriam Leitão: Sinais de melhora no mundo em crise
Há cinco semanas tem melhorado a previsão da recessão deste ano, no Boletim Focus do Banco Central, e o tamanho da queda ficou quase um ponto percentual menor. A mediana era uma retração de 6,5%, agora é de 5,6%. A confiança empresarial subiu. A bolsa acumula alta de mais de 60% desde o seu piso em março. O que significa tudo isso? O país está vivendo a maior crise da sua história, os ativos variáveis sobem por falta de opção de rentabilidade, mas a economia tem tido pequenos alívios. Está, contudo, muito longe do fim desse túnel no qual entrou com a pandemia. O mundo todo está com uma recuperação muito desigual e volátil.
A alta das bolsas dá a falsa impressão de que a economia voltará rapidamente ao que era antes da crise, até porque as ações costumam antecipar os movimentos futuros da conjuntura. Mas o que está acontecendo tem a ver com outro fenômeno. É resultado de uma injeção de recursos nunca vista por parte dos bancos centrais mundo afora. Para se ter uma ideia, na crise de 2008, o banco central americano demorou cinco anos para elevar em 8,2 pontos percentuais o seu balanço monetário. Desta vez, em apenas quatro meses o volume de dólares despejados pelo Fed na economia chegou a 13,7 pontos do PIB dos EUA. É essa montanha de dinheiro, que foge dos juros baixos em todo o mundo, que corre em direção às bolsas. E também ao ouro — considerado um ativo de proteção — que na semana passada bateu novo recorde. No Brasil, a bolsa já subiu 61% desde o seu pior momento em 23 de março, mas ainda está 16% abaixo do que estava em 23 de janeiro.
Várias instituições estão revendo os dados da queda do PIB, atenuando a recessão prevista antes. Isso é bom, evidentemente. Mas não se pode perder a visão de que se for 4,7%, como o governo prevê, ou 5,6%, que é a atual mediana do mercado, continua sendo a maior recessão da história. E o país ainda não havia se recuperado das quedas de 2015 e 2016.
Na balança comercial, a corrente de comércio do Brasil em julho ficou 18% abaixo do mesmo mês do ano passado. As exportações tiveram uma queda leve, de 3%, na mesma comparação, porque houve forte aumento nas vendas de produtos agropecuários e da indústria extrativa, especialmente para a China. A exportação para os chineses, diga-se de passagem, cresceu 24%, enquanto para os EUA despencou 37%. Já a venda de produtos manufaturados teve forte recuo de 12%. A queda de 35% nas importações sugere que o consumo interno continua fraco, e a indústria permanece sem fôlego para importar matéria-prima. Foi pela queda mais intensa da importação que se atingiu o saldo de US$ 8 bilhões na balança.
Esta semana vão sair diversos indicadores, indústria, desemprego, inflação e o Banco Central decidirá o que fazer com os juros que estão em 2,25%. Há uma parte do mercado que acredita em nova queda de 0,25%, mas há quem aposte em permanência apesar de a inflação dos últimos 12 meses estar bem abaixo da meta de 4%. O IBGE divulga hoje o resultado da indústria em junho, que deve vir com uma forte alta, na comparação com maio, mas uma grande queda em relação ao mesmo período do ano passado. A estimativa do banco ABC Brasil é de crescimento de 9% de um mês para o outro, mas um recuo de 10% sobre o mesmo período do ano passado. Isso tudo quer dizer que o setor recuperou apenas parcialmente as perdas que teve com a pandemia. Entre março e abril, a retração na produção industrial chegou a 26%. Em maio, houve alta de 7%. O crescimento de junho será o segundo consecutivo.
Dados positivos apenas atenuam a grande crise vivida no país e no mundo. Mais do que a coleção de números de cada semana, o fundamental é que o Brasil e o mundo ainda vivem os rigores de uma pandemia e a enorme incerteza que isso traz. A economia mundial está superando seu pior momento, mas não se sabe quando voltará a ser o que era antes da pandemia. Na Europa, países industriais como a Alemanha estão melhores do que os que são mais dependentes do turismo, como França, Espanha e Itália. A recuperação por lá está sendo assimétrica. Os Estados Unidos estão discutindo um novo socorro de um trilhão de dólares, no meio da polarização do processo eleitoral no qual o presidente Trump, em queda nas pesquisas, cria conflitos para ver se melhora nas intenções de voto.
Míriam Leitão: Governo derrapa na pista de teste
Governo teve derrota humilhante no Fundeb. Se seu plano vencesse, haveria o caos na educação em 2021 e pedalada na despesas do fundo
Foi tamanha a trapalhada do governo no Fundeb que ficou difícil até explicar. A decisão foi a de fazer dele o primeiro teste da sua base ampliada com o centrão. Terminou num fracasso tão grande que ao governo só restou a mentira. Bolsonaro comemorou como sendo seu o plano contra o qual conspirou. Planeja outros testes nas próximas votações. Foi tentada a estratégia de manter o presidente em silêncio. Não tem dado muito certo, e as emas do Alvorada sabem disso.
O Ministério da Economia fez uma manobra brusca para atropelar na reta final um projeto que vem de longa estrada sendo articulado com parlamentares, especialistas, sociedade civil, educadores. O governo ficou fora da pista durante todo o tempo e entrou daquele jeito. Tentou tirar dinheiro do Fundeb para um programa inexistente com o qual pretende substituir o Bolsa Família. Foi pela contramão fiscal porque era para burlar a lei do teto, já que o fundo da educação não está incluído nele. Se oficialmente os recursos fossem do Fundo, poderiam ser usados no programa Renda Brasil.
O governo fez tudo contra o Fundeb. Arthur Lira, o líder informal, quis adiar a votação na reunião dos líderes e, no plenário, tentou obstruir a sessão. Mas a aprovação foi consagradora com duas votações de emenda constitucional numa única noite. Houve apenas sete votos contrários, todos bolsonaristas. Depois dessa o governo deveria ter tido a prudência de recolher seu carro. Bolsonaro preferiu trombar com a verdade. Disse que havia sido uma vitória do seu governo. “A esquerda não engole mais uma derrota. Não engole. Não fizeram nada.” O ministro da secretaria de governo, Luiz Eduardo Ramos, havia feito um esforço para reduzir o tamanho da derrota, mas derrapou no Twitter: “Aprovamos. O que os governos anteriores não fizeram o presidente Bolsonaro deu o primeiro passo em menos de dois anos.”
Os fatos: os governos anteriores fizeram. O Fundef, na época de Fernando Henrique, e o Fundeb, no período Lula. Bolsonaro ignorou o assunto e na reta final veio com um projeto doido e tentou impedir a votação. O Fundeb resistiu e está a um passo de entrar para a Constituição. Falta o Senado.
O governo colocará seus carros na pista para novos testes. Um deles é a votação do veto da desoneração da folha. O ministro da Economia entregou seu imposto com uma alíquota alta e acenou com uma desoneração mais ampla que depende da aprovação de um novo imposto que ele ainda não quer chamar pelo nome próprio.
Nessa e em outras votações o governo tenta saber quantos votos tem. Se for derrotado, dirá que venceu, se o filho for bonito, é dele, se for feio, é da oposição. Com os quase 200 votos que supõe ter com o centrão no banco do carona, Bolsonaro quer barrar eventual processo de impeachment ou denúncia contra ele na Câmara.
Desde que Fabrício Queiroz foi preso na casa do seu advogado e do seu filho, Bolsonaro tenta ficar em silêncio e abandonar a tática de agredir pessoas, instituições e sobretudo os fatos, diariamente. Já não está com a boca fechada, como se viu nos últimos dias.
Fazendo um exercício contrafactual, o que teria acontecido se o governo tivesse conseguido aprovar o projeto que improvisou contra o Fundeb? O ano que vem o Brasil viveria um caos na educação. O ensino básico em quase dois mil municípios entraria em colapso. As escolas teriam que ser fechadas no ano seguinte a uma pandemia em que elas serão mais necessárias do que nunca. E, depois, no ano eleitoral de 2022, começaria a sair dinheiro oficialmente do fundo para um programa de voucher creche que seria, além de tudo, uma pedalada no teto de gastos. Outro ponto da proposta poderia deixar professores sem pagamento em municípios de todas as regiões do país.
O governo que faz uma gestão criminosa na saúde tem tentado tudo contra a educação também, da omissão à ação irresponsável. O plano que fez demonstra que seus autores sequer olharam os dados, não tiveram o cuidado de se informar minimamente sobre o funcionamento do país. O Brasil venceu no final, mas está ficando exaurido de ter que lutar para sobreviver a este governo. A sensação que se tem é que ele testa a paciência das instituições até o limite do tolerável, esperando quem sabe a ruptura que o filho do presidente disse que é uma questão de tempo.
Míriam Leitão: Aumento de gastos e defesa de valores
Armínio Fraga recomenda aumento de despesas porque há uma calamidade. Governo baixou pacote com pouco dinheiro novo
Armínio Fraga acha que o país vai entrar em recessão, que o governo deve aumentar o gasto público porque as leis que fixam limites de gastos preveem espaço para quando há uma calamidade. “E para isso acho que não deveria haver limites.” No Banco Central, algumas formas de estimular a oferta de crédito foram anunciadas e o Ministério da Economia soltou um pacote que foi quantificado como de R$ 147 bilhões, mas na verdade pouco desse valor é dinheiro novo. No intenso dia de ontem, houve de tudo, inclusive o presidente Jair Bolsonaro voltando a escalar nos ataques ao Legislativo, numa entrevista de manhã.
O pacote de Paulo Guedes é insuficiente e ele sabe disso. Tanto que avisou que voltará a anunciar novas medidas. No conjunto de ontem, há as decisões de antecipação de pagamentos que o governo teria que fazer aos aposentados e pensionistas, ou a trabalhadores de baixa renda. O 13º será pago todo até maio, e o abono, até junho. Em outro lado das medidas, o governo permite que o FGTS seja recolhido com atraso e adia também a parcela federal do Simples Nacional. Isso não é dinheiro novo.
Para o economista Armínio Fraga, o país pode e deve aumentar as despesas públicas para evitar o pior na área da saúde e na economia. Armínio sempre fez parte do grupo de economistas que defende o controle fiscal. Mas agora a situação é diferente, na visão dele. O país vai entrar em recessão e é preciso foco no principal que é a política de saúde para tentar reduzir a propagação do coronavírus.
— Está previsto na lei, em todas as leis, de responsabilidade fiscal, do teto de gastos, todas preveem espaços para gastos em situações de calamidade. Esta é sem dúvida uma calamidade. Penso que todo gasto temporário que tem a ver com medicina, com reduzir o impacto social da crise, o impacto nas empresas, muitas terão que fechar temporariamente, deve ser feito. Cabe uma resposta muito enérgica, específica para esse caso. E para isso acho que não deveria ter limite — disse Armínio.
Essa noção de que a crise tem uma dimensão sem precedentes chegou nos principais países do mundo. O presidente Donald Trump, que sempre desdenhou a ciência, estava ontem, compenetrado, dizendo que todo mundo “tem um papel crítico a exercer” neste momento para “parar o avanço da transmissão da doença”. Só o Brasil tem um presidente nesse grau delirante de irresponsabilidade que Bolsonaro demonstrou nos últimos dois dias. Num dia, passeata com ataques a outros poderes, no dia seguinte, entrevista em que ataca os presidentes do Congresso.
O mundo está vivendo uma crise de duas cabeças. De um lado, a da saúde, de outra, a economia, que está parando. Armínio lembrou que o mundo está diante de uma crise raríssima. “Calamidade não acontece a toda hora.” Por isso acha que é preciso ser tratado de forma rápida, técnica e firme. “E custa dinheiro, não tem jeito.”
Perguntei a ele se 2020 pode ser considerado um ano perdido na economia. Ele disse que “está com cara”. Por isso, neste ano talvez perdido, é que ele recomenda mais gasto público:
— Um remédio tradicional, vamos dizer keynesiano, para a recessão é reduzir juros, aumentar despesa. Parte dessa receita se aplica agora, mas há uma urgência absoluta. É preciso atacar na veia. O investimento de longo prazo é bom, mas não é o assunto do dia.
O governo anunciou ontem que mudará a meta fiscal, que é de R$ 124 bilhões de déficit para ampliar as despesas, o que é considerado por todos os especialistas como inevitável. Ao mesmo tempo, o ministro Paulo Guedes ameaçou fazer um contingenciamento de R$ 16 bilhões caso não fosse aprovada a privatização da Eletrobras até sexta.
O Brasil tem um problema extra no meio de toda essa crise. As ameaças à democracia. E isso tem diretamente a ver com a economia. Mesmo antes desta crise, Armínio disse que os ruídos provocados pelo governo têm afastado investidores. Não basta, segundo ele, ter uma agenda liberal em meio ao “obscurantismo” e à “falta de cuidado com temas relevantes como o meio ambiente”:
— Acho impossível o Brasil se desenvolver plenamente sem contar com uma democracia plena, vibrante, aberta, plural. E isso hoje está sob ameaça. Não dá para medir as palavras. Esse é um período de resistência. As instituições estão resistindo e os sinais recomendam não relaxar.
Míriam Leitão: A diversidade nas empresas
Jovem executiva negra conta a sua história, explica como as empresas devem ter diversidade e estimula outros jovens a sonhar alto
A jovem gaúcha de Pelotas Lisiane Lemos entrou na sala do executivo da Microsoft, em São Paulo, no meio do processo de seleção. Ela acalentava há tempos o sonho de trabalhar numa multinacional, e na área de vendas, apesar de ter feito Direito. Aos 23 anos, tinha acabado de chegar de Moçambique onde fora em busca de suas origens. No Rio Grande do Sul, que recebeu várias ondas migratórias, os brancos sabem de onde vieram seus antepassados, mas os negros ouvem uma história triste sobre Pelotas ter sido “o inferno dos escravos”. Ao olhar para quem a entrevistaria, ela sentiu um alívio.
— Eu fui entrevistada por um executivo negro, e aquilo foi uma grande virada na minha vida. Eu vi que queria estar naquele lugar. O fato de ele estar sentado na minha frente... Talvez quem nos assista não tenha noção da importância da representatividade. Simplesmente ter um executivo negro na frente me mostrava: eu posso — contou.
Lisiane acabou assumindo um cargo de chefia na Microsoft e hoje, aos 30 anos, é gerente de novos negócios da Google. Nesse meio tempo recebeu duas consagrações internacionais. Em 2017 foi apontada pela revista “Forbes” como uma das pessoas de menos de 30 anos mais influentes do Brasil e em 2018 a ONU a escolheu como uma das pessoas negras mais influentes do mundo, na área de negócios, com menos de 40 anos.
Eu a entrevistei na Globonews sobre diversidade no mundo corporativo. Ela é um caso de sucesso, mas raro.
— O topo é muito solitário. Você chegar onde ninguém chegou estatisticamente. O Instituto Ethos em 2016 mostrou numa pesquisa que nas 500 maiores empresas do Brasil apenas 4,6% dos cargos de liderança são ocupados por pessoas negras. E quando o recorte é mulheres negras é 0,5%. Então é meio que um lugar impossível — disse Lisiane.
As políticas de ações afirmativas ajudaram no esforço de redução do fosso social no Brasil, mas é muito grande a distância, são séculos de construção da desigualdade. Hoje há muitas empresas preocupadas em ter mais diversidade no seu quadro de funcionários, mas nem sabem por onde começar. Lisiane acha que no mundo corporativo funcionam as conexões. Por isso ajudou a fundar a Rede de Profissionais Negros, e depois foi para o Mulheres do Brasil, da empresária Luiza Trajano, para ajudar a montar o pilar da igualdade racial. Ela acha que as empresas deveriam fazer o “recrutamento ativo” e pensar também na carreira das pessoas negras:
— É importante pensar num programa de estágio? Sim. Mas nesse caso é mais fácil. Mas quem é que está no topo? Quem você lembra em algum conselho de uma grande empresa que seja negro? Ou uma mulher negra?
Lisiane recomenda que as empresas comecem a ter diversidade nas suas peças de publicidade, para que as pessoas negras se vejam:
— O segundo ponto é ser intencional, ter métodos e políticas de ação afirmativa nos programas de contratação. Depois, é ter um serviço de mentoria. Eu sou de uma família de professores, como saber como me vestir e me preparar para uma reunião de executivos estrangeiros, por exemplo? Há muito conhecimento a ser compartilhado.
Lisiane fala com objetividade sobre os códigos do mundo corporativo. Como gerente de novos negócios da Google ela tem trabalhado com marketing digital. Diz que nessa área trabalha com tudo que mais gosta, de uso de dados à inteligência artificial. Pode ajudar tanto o pequeno empreendedor quanto a grande empresa.
Ao falar da questão racial, ela se empolga. Na infância, sofreu preconceito. Mais tarde, entendeu que era herdeira de uma história difícil. Os escravizados de outras regiões eram enviados para Pelotas como punição: na charqueada, enfrentavam o frio, o castigo e o sal. Em exame de DNA descobriu que é 40% de povo originário de Angola. Quer passar um tempo lá este ano.
Aos jovens negros que sonham em entrar no mundo corporativo e fazer carreira ela deixou um recado emocionado:
— O grande recado é ‘você pode’. Por mais que a sociedade diga que não é o seu lugar, que as estatísticas estejam contra, você é protagonista da sua história e existem pessoas que podem ser seus aliados. Vai ser difícil, o racismo existe, e você muitas vezes vai pensar em desistir, mas vai valer a pena e você vai abrir portas para outras pessoas chegarem onde elas nunca imaginaram.
Míriam Leitão: A reforma em terreno minado
Aprovar a reforma é fortalecer a espinha dorsal da economia, mas o projeto tramitará em terreno político minado pelos erros iniciais do governo
Três ministros do governo são do DEM, mas o DEM não se sente governo. Os dois presidentes do Congresso são desse mesmo partido e vão crescer na articulação política, principalmente o experiente Rodrigo Maia, até porque não existe espaço vazio em política. O ministro Onyx Lorenzoni tem dificuldades de diálogo com Maia, mas é o articulador civil que sobrou no Palácio. Gustavo Bebianno tinha mais canais com o confuso PSL. Esse é o quadro que analistas do próprio governo desenham como parte da complicação de tramitação da reforma da Previdência.
Esse é um governo que já foi atingido por denúncias de irregularidades. Mesmo assim ele quer parecer diferente de todas as outras administrações na relação com o Congresso. O problema é não saber diferenciar, com precisão, o que são os recursos políticos usados numa articulação no Congresso e quais são os mal feitos que deve rejeitar. Um exemplo dado por um político foi o seguinte: o presidente Jair Bolsonaro escolheu Luiz Mandetta para ser ministro da Saúde. Se ele, antes de convidar formalmente, tivesse ligado para o presidente do DEM, ACM Neto, e avisado, conseguiria fazê-lo sentir-se parte da decisão. Mas Bolsonaro acha que isso é a velha articulação com os partidos que ele condena.
É natural que deputados e senadores defendam os interesses de sua base, como uma obra, um projeto, explicou um parlamentar. O errado seria haver corrupção na obra, ou ela não ser necessária. O presidente tem que saber quais os pleitos pode atender para costurar a sua base de apoio e que outros trazem os vícios do passado do qual prometeu se dissociar. A bem da verdade, os fatos recentes mostram que ele nunca se distanciou de fato da velha política.
A reforma da previdência é agora criticada por servidores que a consideram dura demais com eles e querem entrar na Justiça contra as alíquotas. Por outro lado, tem sido criticada por ter sido fraca com algumas categorias ou por ter inflado os cálculos do ganho. Os servidores começaram a dizer que a alíquota é de 22%. Essa é a taxa bruta para quem se aposenta com mais do que R$ 39 mil hoje. A efetiva é menor. E esse valor de aposentadoria é alto demais para o Brasil ou qualquer país do mundo.
Daqui em diante o projeto ficará prisioneiro de dois tipos de críticas opostas. Alguns dirão que ele é duro demais. Outros, que ele é insuficiente e favorece alguns grupos. O adiamento do projeto dos militares será usado como pretexto para quem quer fazer corpo mole como forma de pressionar o governo na área política. Há também dúvidas jurídicas sobre o caminho escolhido de desconstitucionalizar futuras mudanças nos parâmetros da Previdência.
A reforma é, como escrevi aqui, o mais amplo projeto já apresentado ao país. Todos os presidentes tentam reformar a previdência desde o Plano Real. A diferença é que alguns quando estão na oposição são contra a reforma com argumentos demagógicos ou corporativistas. Foi o que aconteceu com Lula. Foi o que aconteceu com Bolsonaro. “Eu errei”, admitiu o presidente ao entregar seu projeto e apelar ao patriotismo dos parlamentares. Errou muitas vezes, quando deputado do baixo clero. Nunca demonstrou ter capacidade de ver o interesse do país num projeto de outro grupo político. Sempre agarrou-se a pautas menores, de interesse das categorias que defendia. Seu chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, foi outro adversário da última reforma.
Com todos esses passivos, o governo tentará fazer andar seu bom projeto de reforma, necessário ao país e fundamental para que outros passos sejam dados no caminho da retomada do crescimento. Por erros do governo Dilma, a dívida pública retomou o crescimento e entrou em rota perigosa. O rombo estrutural da previdência alimenta o temor de que a dívida não será paga pelo Tesouro em algum momento. E são os títulos públicos que sustentam as aplicações financeiras de pessoas, fundos e empresas do Brasil. Fazer a reforma é reforçar a espinha dorsal da economia.
No minado terreno político brasileiro, num governo precocemente envelhecido, essa importante reforma tramitará nos próximos meses. A economia depende de que Bolsonsaro, o improvável reformador da previdência, tenha sucesso em sua missão.
Míriam Leitão: Rio de Janeiro e da dúvida
É quase uma aberração, uma corrupção resiliente, que resiste a tudo. Destemida. É isso que temos no Rio se mais esse caso for confirmado
O estado amanheceu ontem diante de um rio de dúvidas. E o mês de janeiro, quando haverá troca de governo, ainda nem começou. O governador Luiz Fernando Pezão, preso logo cedo, foi acusado pelo Ministério Público Federal (MPF) de ter sido sucessor do ex-governador Sérgio Cabral no comando da mesma organização que tirou recursos dos cofres públicos. A prisão teria sido necessária, 32 dias antes do fim de sua atormentada administração, porque provas estariam sendo destruídas, segundo disse o MPF.
A dúvida econômica do Rio de Janeiro é se ele conseguirá ficar de pé depois do longo tombo que sofreu em suas finanças nas últimas administrações. Nelas esteve Pezão. Primeiro, como vice-governador e homem de confiança de Sérgio Cabral e, depois, como governador.
O Rio é o único estado que conseguiu entrar no Regime de Recuperação Fiscal e o governador Pezão estava reduzindo a relação da despesa como proporção da receita corrente líquida. Em parte, pelo esforço do ajuste, empurrado pelo Tesouro, em parte, pelo petróleo. E agora? O Rio entrará num desvio? A informação de Brasília é de que o acordo não é com uma pessoa, mas com o estado. A questão é que tem que ser cumprido.
— Se o vice-governador, ou o novo, não cumprir o acordado, o estado do Rio perde o direito de continuar no Regime de Recuperação e perde todos os benefícios — informou uma autoridade federal.
Sem o benefício da suspensão do pagamento dos juros da dívida à União, o Rio se afundará ainda mais na crise. E ontem mesmo, no vazio de poder que houve logo após a prisão, o novo governador Wilson Witzel disse que não concorda com a privatização da Cedae porque acha que só as empresas deficitárias devem ser vendidas. A venda da Cedae é parte do acordo para sanear as finanças do Rio.
O problema é que o Rio tem uma enorme dívida. Os números mais recentes são: R$ 15,3 bilhões de dívidas refinanciadas e R$ 6,3 bi de honras de aval, que são dívidas que o estado não pagou e que a União teve que honrar. Ao todo, um endividamento de R$ 21,6 bilhões. Como houve aumento da receita, e ajuste nas despesas, o Rio está chegando ao fim do ano atingindo algumas metas, entre elas a de gasto de pessoal. Mas tem que continuar cumprindo as obrigações do acordo para permanecer no regime de recuperação fiscal.
A grande dúvida em relação ao Rio de Janeiro é como foi que ele chegou nessa situação? O ex-governador Sérgio Cabral é multicondenado, dois outros ex-governadores já foram presos. O presidente da Assembléia Legislativa cumpre prisão domiciliar, depois de um tempo em regime fechado, e cinco dos seis conselheiros do Tribunal de Contas do Estado foram presos. Isso sem falar em ex-secretários e deputados que foram presos ou respondem a processos. A corrupção no Rio foi imensa. E ontem soubemos que os esquemas estavam ainda ativos e operantes. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, disse que o crime não cessou, e em razão da “atualidade do esquema” é que foi necessário pedir a prisão para “garantir a ordem pública”.
O governador do Rio, mesmo diante das provas cabais de que o crime do seu ex-chefe Sérgio Cabral não compensou, já que ele foi condenado em sucessivos julgamentos e permanece preso, estaria mantendo o esquema. Essa é a acusação que faz o Ministério Público. Se isso for comprovado, é quase uma aberração. A corrupção resiliente, que resiste a tudo. Destemida. É isso que temos no Rio se mais esse caso for confirmado.
Há não muito tempo, nos primeiros anos de Cabral, então governador, o Rio parecia ter encontrado a trilha que o levaria ao sucesso. Houve queda dos homicídios, a política de pacificação das favelas tinha avanços importantes, e na educação, ele saltou de 26º lugar no Ideb para o quarto lugar. Os investimentos chegavam, e os royalties enchiam os cofres públicos. Ele se preparava para sediar eventos esportivos com obras pela capital. Aquele momento parecia ser o fim de um longo período de decadência, o início da reunificação da cidade partida. Parecia um sonho.
O Rio acordou ontem em mais um dia do nosso pesadelo. Lindo e ensolarado Rio de Janeiro, cercado de vergonha, dívidas e dúvidas.
Míriam Leitão: Falsos problemas dividem o país
Na eleição em que tanto havia para se discutir sobre o país, o debate da campanha virou o perigo do “comunismo”, uma volta aos anos 1970
Todas as eleições são difíceis. Nem todas são infelizes. Ao fim, o verdadeiro vencedor não é necessariamente o que tem mais votos, mas o que, vencendo, consegue pacificar o país. Até agora não há sinal de que teremos isso. Não é o resultado que infelicita um processo eleitoral, mas sim o que acontece no meio do caminho. E houve muitas irregularidades que as autoridades não conseguiram coibir, e muitas fraturas que prenunciam um tumultuado depois.
O país havia se preparado para que essa eleição fosse uma oportunidade de mudança. Especialistas em várias áreas, dos tributos à educação, da indústria ao combate à corrupção, formularam projetos para apresentar aos candidatos. O Banco Mundial fez um estudo profundo das despesas públicas brasileiras e apresentou, também como oferta a todos, as ideias por um “ajuste justo". Houve até uma convergência. Vários programas de candidatos falaram em rever os subsídios e gastos tributários com setores empresariais. Mas não explicaram o que ou como fazer. Em alguns casos era apenas rótulo.
Mesmo que o próximo governo desperdice o esforço do país, as instituições seguirão com seu ativismo. A propósito: ativismo nunca foi uma palavra feia. Significa a mobilização de alguém por alguma causa coletiva na qual acredita.
O que torna essa eleição infeliz é a total falta de foco nos nossos reais problemas. As divisões e brigas entre os candidatos não se deram em torno do que nos aflige, mas por uma agenda artificial, fora do tempo e lugar.
O Brasil voltou aos anos 1970, em plena Guerra Fria, pelo esforço de Jair Bolsonaro de recriar a era do seu saudosismo. A propaganda no horário eleitoral fala de um suposto perigo do comunismo. Os mais velhos reconheceram o tom do marketing daquela época. O comunismo acabou no mundo por falta de quorum. Nem a China é mais. É bizarro que no Brasil tenha se recriado a divisão de mundo cujo último símbolo desabou com o muro de Berlim em 1989. O Brasil está cheio de inimigos reais — como o atraso na educação, a violência, a logística deplorável, a falta de saneamento, a emergência na saúde, o alto desemprego e a corrupção — e inventou que o importante é fazer uma extemporânea caça aos “comunistas”. Convenhamos.
As Forças Armadas recuaram décadas em seu esforço de serem instituições apartidárias. Nos últimos 30 anos elas serviram a todos os presidentes. É verdade que nunca aceitaram rever criticamente seu papel na ditadura militar, mas estavam comprometidas com o seu novo papel distante da briga política. O erro não é militares de pijama trabalharem nas campanhas e virarem candidatos a ministros. Se estão aposentados podem fazer o que quiserem de suas vidas. O problema foi a ambiguidade dos comandantes da ativa, especialmente do Exército. Diante de um silêncio aquiescente dos militares, Jair Bolsonaro sustentou ser o candidato das Forças Armadas, o que é uma aberração na democracia.
A Justiça Eleitoral falhou porque tardou a combater a mentira e a manipulação. Não é fácil fazer essa vigilância na era da mídia social. É um desafio para todos. Mas o TSE estava alertado que teria que enfrentar os que agem nas sombras, os que se escondem atrás de robôs, os que fingem ter um exército de voluntários, mas podem estar tendo o apoio ilegal de empresas. Demorou demais a agir. Só dias atrás negou a existência do chamado “kit gay”, mentira usada desde o começo pela campanha de Bolsonaro. Além disso o TSE fechou os olhos para várias assimetrias na exposição dos candidatos.
O ataque a Jair Bolsonaro em Juiz de Fora mostrou de forma aguda o pior lado dessa eleição em que se falou mais do ódio ao outro, do que do sonho para o país. Essa eleição é infeliz não pelo resultado que terá, seja ele qual for, mas pelo que houve no meio do caminho. Inúmeras pessoas se sentiram liberadas a assumir o preconceito ao outro, ao diferente de si, em plena era da superação de barreiras e da aceitação da diversidade.
Quem for eleito só governará bem se respeitar os limites institucionais e aceitar as críticas normais numa sociedade aberta. Dentro de uma semana o eleitor escolherá o governo, mas também a oposição. Quem perde uma eleição recebe do eleitor um papel: o de ser oposição. A democracia precisa que ambos saibam cumprir o seu papel.