Míriam Leitão
Míriam Leitão: Abandonar mitos e entender a história
De um ex-banqueiro, o que se espera é que entenda o mundo do capital, mas Paulo Guedes errou também nisso. Sua fala no Aspen Institute sobre a Amazônia e a questão indígena mostra que ele não se atualizou em assuntos decisivos para entender o mundo de hoje. Além disso, afugenta ainda mais os fundos de pensão e os fundos soberanos. Eles já avisaram que suas normas de compliance limitam investimentos, dos trilhões de dólares que administram, em países que desmatam e ameaçam povos originários.
Guedes tem com o presidente Bolsonaro total afinidade em assuntos como direitos humanos, liberdades democráticas e proteção da Amazônia. Não foi Guedes a convencer Bolsonaro das virtudes do liberalismo econômico, mas o presidente é que o conquistou para seu conjunto de crenças, aliás, incompatíveis com o liberalismo. Eis o paradoxo deste governo. Ele não pode ser liberal, pela simples inadequação desse ideário com o elogio do regime ditatorial, por natureza, inimigo de qualquer liberdade.
Ficou muito mal para o ministro sua sequência de erros conceituais. Como ele é uma autoridade pública, isso prejudica o Brasil. Guedes mostrou desconhecimento do estado atual das coberturas florestais em outros países, sustentou argumentos vencidos e confundiu estoque com fluxo, o que é constrangedor. No caso da floresta, nosso estoque é bom. O Brasil tem uma área considerável de mata preservada. Mas o fluxo é muito ruim. Estamos desmatando a um ritmo crescente nos últimos anos, chegando a 10 mil km2 no ano passado e abandonamos a política com a qual o país reduziu em 80% as taxas anuais de destruição entre 2004 e 2012. A partir daí, o fluxo é contra nós, e piorou muito no governo Bolsonaro. A objetividade e os argumentos sóbrios são mais eficientes para afastar os riscos de o país ser desprezado nas decisões de alocação de recursos. Estamos em um momento de disputa por capital de qualidade.
De um economista não se espera queixa contra as artimanhas da competição. O lógico é que entenda o jogo do capitalismo e não facilite a vida de eventuais competidores. Afirmar que países europeus “usam a desculpa ambiental” para nos barrar não ajuda em nada. O que funciona é não fornecer provas contra nós. E o ministro deu a eles farta munição com o seu destempero.
A frase “vocês mataram seus índios, não miscigenaram” é muito ruim. O ministro não deve desconhecer que aqui matamos também, infelizmente. Extinguimos inúmeras etnias, ameaçamos outras e, neste momento, estamos colocando povos em risco. O governo tem estimulado atividades que agora são mais perigosas do que nunca, e só por ordem do STF foi instalada uma sala de situação para as ações de proteção aos índios isolados.
Outra frase infeliz: “As grandes histórias de como matamos nossos índios são falsas.” Antes fossem mentirosas as histórias que pesam sobre a nossa História. Aimoré, Caeté, Tupiniquim, Tupinambá, Carijó, são tantos os que não podem confirmar a impressão do ministro por não estarem mais aqui. Seus nomes repousam na lista de povos extintos feita pelo IBGE. Ela é longa.
Uma indicação importante de leitura é o livro “As flechas e os fuzis” de Rubens Valente. Ele conta como os militares agiram na época da ditadura contra os índios. São eventos dolorosos como os que vitimaram os Waimiri-Atroari. É difícil saber quantos índios dessa etnia morreram para dar passagem à BR-174. Havia um cálculo de que eles eram 3.000 antes de 1970, quando as obras começaram. Em 1978, havia 350. Valente usou um levantamento feito de avião por indigenistas da Funai e registra que morreram pelo menos 240. Logo na abertura do livro ela fala da morte de um grupo de Kararaô, de gripe, de sarampo, logo nos primeiros contatos nos anos 1960.
Há casos reconhecidos oficialmente. Na Cabanagem, foram massacrados os Tapuia. Na luta contra as Missões, tombaram os Guarani. Uma carta régia decretou a “guerra justa”, no Vale do Rio Doce, contra os Krenak, chamados botocudos. Em 1901, o Exército fez três expedições contra os Guajajara da etnia Tenetehara. O massacre ocorreu em Alto Alegre do Pindaré, no Maranhão.
Abandonar mitos e conhecer a história, mesmo em suas páginas infelizes, não reduz o amor à pátria, apenas nos permite ter uma visão realista e, quem sabe, um compromisso com um futuro diferente e melhor.
Míriam Leitão: Os segredos de Mendonça
O ministro André Mendonça quer muito ser indicado ao Supremo e para pavimentar o seu caminho decidiu ser servil ao seu chefe, o presidente Bolsonaro. O problema é que ele acaba de negar ao STF o conhecimento de um documento sobre o qual paira a suspeita de ser inconstitucional, de ser um atentado aos direitos fundamentais numa democracia. E zelar pela Constituição é o coração do papel do STF. Sobre o dossiê, o ministro já teve várias posições: negou, defendeu, disse que não podia negar nem confirmar a sua existência, abriu sindicância, exonerou o chefe da secretaria e agora diz que se ele for divulgado o Brasil perde a confiança internacional.
André Mendonça está perdido em seu novelo de versões sobre o que afinal aconteceu na Secretaria de Operações Integradas (Seopi), do Ministério da Justiça. O órgão teria preparado um dossiê sobre quase 600 policiais e um grupo de professores que se declararam antifascistas, com nomes, endereços digitais e, em alguns casos, fotos, como informou no dia 24 de julho o jornalista Rubens Valente, do portal UOL. O ministro sabe o caminho reto, mas tem insistido em ficar no sinuoso. Por isso acabou derrapando: está descumprindo uma ordem judicial.
A ministra Cármen Lúcia é relatora de uma ADPF apresentada pelo partido Rede de Sustentabilidade e considerou a notícia da existência do dossiê um caso gravíssimo. E mandou que o ministro esclarecesse a questão. Ele confundiu ainda mais. Não mandou o dossiê ao STF e, ao negar esclarecimento, anexou pareceres da AGU e da própria Seopi. Num desses textos se diz que “a mera possibilidade de que essas informações exorbitem os canais da inteligência e sejam escrutinadas por outros atores internos da República Federativa do Brasil já constitui circunstância apta a tisnar a reputação internacional do país e a impingir-lhe a pecha de ambiente inseguro para o trânsito de relatórios estratégicos”. Em outro trecho, sustenta-se a tese de que seria “catastrófico” dar essa informação ao Poder Judiciário.
Então o ministro que quer uma cadeira no Supremo acha que o Supremo não pode conhecer um documento interno do governo sobre seus próprios funcionários. Documento que ele ora diz existir, ora não existir. Segundo Mendonça, “não compete à Seopi produzir dossiê contra nenhum cidadão e nem mesmo instaurar procedimentos de cunho inquisitorial”. Nisso estamos todos de acordo. O Ministério da Justiça tem uma lista de funções e entre elas não está a de fazer dossiês contra policiais, nem instalar procedimentos inquisitoriais. Só que ou o dossiê existe ou não existe. Se não existe, por que exonerar o coronel Gilson Libório? Ele trata o que houve no Ministério como um segredo tão grave que sua divulgação abalaria a república e as relações internacionais.
André Mendonça foi alçado ao cargo no vácuo da queda do ex-ministro Sergio Moro que, por sua vez, caiu porque o presidente queria controlar a Polícia Federal. Todo mundo ouviu os gritos presidenciais reclamando que seu sistema de informações e de inteligência não funcionava e que ele montara até um sistema próprio de informação. “Esse funciona, o meu”, disse Bolsonaro. Para ter uma PF sob seu controle, tinha também que ter um Ministério da Justiça submisso. Assim, com essa encomenda, André Mendonça assumiu. No dia da posse, bateu continência para o presidente e o chamou de profeta.
O presidente acha que todo o sistema de inteligência do país, e nisso ele inclui até a polícia judiciária, deve servir aos seus propósitos. O Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) é feito, sim, para preparar relatórios de inteligência e informar o governo sobre riscos para o país. Deveria, por exemplo, ter deixado o presidente minimamente informado sobre a gravidade da pandemia que se abatia sobre os brasileiros. Hoje, quando estamos perto de 100 mil mortos, ele continua demonstrando ignorância em relação ao assunto.
O risco desse dossiê é Bolsonaro estar usando a máquina do Estado para espionar seus supostos adversários políticos. E nesse caso é a democracia que corre perigo. O último país em que foi considerado crime ser antifascista foi a Itália de Mussolini. O ministro que quer ir para o Supremo não pode decidir que o Supremo não tem o direito de conhecer um documento com o qual ele pode estar ferindo princípios constitucionais.
Míriam Leitão: Os ricos e os pobres na visão de Guedes
O ministro Paulo Guedes vê a ação de ricos se escondendo atrás dos pobres nas críticas a um imposto sobre movimentação financeira. Na ida dele à Comissão Mista do Congresso sobre reforma tributária, o ponto mais tenso foi sempre a CPMF. Não aceitou o nome, mas diante de qualquer referência a ele Guedes ou se defendia ou atacava. Disse que só “maldade ou ignorância” levam as pessoas a comparar o imposto que ele quer criar com a velha CPMF. Ele falou isso num disparo contra o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), relator da reforma. A senadora Simone Tebet (MDB-MS) disse que no caso dela era “ignorância” porque ignora qual é a proposta do governo, dado que ela ainda não foi apresentada.
Somando-se todas as falas, fica claro que, sim, o ministro pensa em tributar as transações financeiras. Mas ele diz que é apenas um imposto sobre as grandes empresas de tecnologia. Paulo Guedes defendeu a tese de que os ricos no Brasil falam em regressividade da CPMF para se esconder atrás dos pobres.
— Se eu falar que há alinhamento com um imposto de movimentação financeira, Deus me livre. Já caiu o Secretário da Receita, cai todo mundo que fala disso. Parece que é um imposto interditado. Muita gente não quer deixar as digitais em suas transações. Escondido atrás do pobre. Se o pobre que ganha R$ 200 de Bolsa Família, e falar que é um imposto de 0,2%, são R$ 0,40. Qualquer aumento de R$ 10 ou R$ 30 já tirou. Não dá para rico se esconder atrás de pobre. O rico é o que mais faz transações, o que mais consome serviços digitais. E está isento. Esconde atrás do pobre — disse o ministro.
Tudo é mais complexo. O imposto distorce preços, camufla a carga tributária, é indireto. E quem demitiu o secretário da Receita que falou no assunto foi o presidente Jair Bolsonaro.
Logo no começo da sessão, o ministro criticou o relator. Disse que Aguinaldo Ribeiro havia cometido um excesso quando disse que o imposto (a CPMF) era medieval:
— Ele sugeriu que a Google e o Netflix existiam na Idade Média quando falou que o imposto digital é medieval. Os padres, os bispos nas catedrais góticas usavam Netflix, Google, Waze.
O deputado João Roma (Republicanos-BA) disse que o relator se referia ao “absolutismo” de um governo que impõe um tributo sem explicar qual é. A senadora Simone Tebet propôs que o governo mostrasse todo o seu projeto:
— Vossa excelência diz que quem está falando de CPMF é por maldade ou ignorância. Eu me incluo entre os ignorantes. Eu quero entender se essa contribuição vai atingir as plataformas ou qualquer um que com um cartão de crédito compre um remédio na esquina.
O ministro não tirou a dúvida da senadora. E reclamou da imprensa, que o faz, segundo ele, ficar o tempo todo se defendendo. Perguntado pelo senador Reguffe (Podemos-DF) se atualizaria a tabela do Imposto de Renda, ele disse que fez as contas:
— Custa R$ 22 bilhões elevar a faixa de isenção para R$ 3 mil. É um Fundeb. Se for estendido às demais faixas a conta vai para R$ 36 bi. A classe política tem de decidir isso. O congressista foi eleito para tomar decisão.
Guedes lembrou que não atualizar a tabela do IR é uma forma oculta de tributar, mas atualizar seria indexar. Em outros países, disse, “todo mundo entende inflação como perda”. Na época da campanha, a promessa era elevar a faixa de isenção para R$ 5 mil.
O deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) criticou o aumento do PIS-Cofins (CBS) sobre livros. Guedes de novo falou da divisão entre ricos e pobres:
— O deputado seguramente não quer ser isentado quando compra um livro, né? Ele tem salário suficientemente alto para comprar e pagar imposto como todo mundo. Ele está preocupado com as classes baixas. Essas, se nós aumentarmos o Bolsa Família, vamos estar atendendo. Agora, acredito que eles estão mais preocupados em sobreviver do que em frequentar as livrarias que nós frequentamos.
O ministro disse que “quem tem poder em Brasília” consegue pagar menos imposto e por isso “há R$ 300 bilhões de desoneração”. E quem tem dinheiro “não paga imposto e vai pra Justiça” e assim há um contencioso de R$ 3,5 trilhões.
O que o ministro não explica é por que não cumpriu a promessa de campanha de acabar com os R$ 300 bilhões de renúncias fiscais e por que manteve as isenções da Zona Franca de Manaus, já que me disse que “não deixaria o Brasil todo ferrado” para manter a Zona Franca. Entre os conflitos verbais do ministro e os fatos há uma certa distância.
Míriam Leitão: Floresta no chão e fumaça no ar
O ministro do Meio Ambiente quer floresta no chão e fumaça no ar. Em plena crise de imagem do Brasil por causa do desmatamento, que gerou uma onda de alertas dos investidores contra o país, ele propõe suspender a meta de diminuição de queimada e desmatamento ilegais. O que o Brasil perde se Ricardo Salles ganhar? Riqueza natural, qualidade do ar, investidores internacionais, biodiversidade, futuro. Além de Salles, quem ganha com o desmatamento? Alguns poucos criminosos, como mostrou a revista “Veja” na edição desta semana, dando seus nomes e endereços.
A impressionante reportagem fez o ranking dos dez maiores desmatadores segundo as multas do Ibama. Imagens de satélite indicaram o antes e o depois. O campeão é Edio Nogueira, da Fazenda Cristo Rei, em Paranatinga, Mato Grosso, onde ele derrubou 24 mil hectares de mata nativa, equivalente a 22 mil campos de futebol. Ele usou aviões para jogar gigantescas quantidades de agrotóxico para matar as árvores, o que faz o fogo espalhar mais rapidamente.
Edio recebeu uma multa de R$ 50 milhões, que dificilmente pagará, até porque o presidente Bolsonaro critica isso que ele chama de “indústria da multa”. A empresa de Nogueira, a Agropecuária Rio da Areia, coloca no site que fornece para a JBS, Marfrig e Minerva. A “Veja” procurou os frigoríficos, que negaram compras recentes. A Minerva disse que a última compra foi feita em 2015, a JBS admite que comprou, mas de outra empresa do mesmo grupo em Mato Grosso do Sul. A Marfrig parou de comprar deles em 2017. Seja como for, está lá no site. E como disse a revista, na reportagem de Edoardo Ghirotto e Eduardo Gonçalves, “é esse tipo de confusão que está estraçalhando a imagem do Brasil lá fora”.
O ponto é: quem ganha com o abandono da meta de reduzir o desmatamento e as queimadas ilegais? Esse empresário, que joga agrotóxico para matar as árvores antes de queimá-las, ganha. Não é o único, a revista dá a lista dos 10 maiores. No Pará, Amapá e Mato Grosso. Quem perde? O resto da sociedade brasileira.
O repórter Mateus Vargas, do “Estado de S. Paulo”, teve acesso ao documento em que Salles tenta contornar a meta de reduzir até 2023 o desmatamento e a queimada ilegais em 90%. Em troca, ele quer a aprovação do seu projeto, que definiu de Floresta+. Seria melhor chamá-lo de Floresta-, porque é proteger uma área de 390 mil hectares. O documento quer urgência na aprovação dessa ideia. Os técnicos do Ministério da Economia não gostaram. Oficialmente, o Ministério concordou com a proposta de redução da meta. A lorota que eles contam é que será para “adequar aos compromissos de zerar o desmatamento ilegal até 2030”. Ou seja, o plano plurianual pode ir mais devagar, em vez de ter a meta de reduzir a 90% em 2023 o desmatamento ilegal.
No Acordo de Paris, o Brasil propôs zerar em 2030, mas tem metas intermediárias. Em 2020, o Brasil teria que ter derrubado o desmatamento para o nível de 3 mil km2. Hoje, está em 10 mil e subindo. Mesmo se tivesse cumprindo o compromisso que firmou com outros países, destruiria uma área equivalente a duas vezes a cidade de São Paulo. O Ministério da Economia deveria pensar duas vezes antes de concordar.
Ricardo Salles também completou o trabalho de desmonte da presença de qualquer representação nos conselhos ambientais. Desta vez foi reduzida a participação de entidades civis e conselhos estaduais e municipais na comissão executiva para o controle do desmatamento ilegal e recuperação de vegetação nativa, Conaveg. Eles poderão ir, se convidados, mas sem direito a voto.
Esse é só mais um passo do programa “mais Brasília e menos Brasil” em cada conselho ambiental. Uma das decisões acabou travando o Fundo Amazônia. Salles tirou todas as ONGs, entidades científicas, empresariais e representantes dos nove estados amazônicos do conselho. Resultado: demoliu a governança.
O vice-presidente Hamilton Mourão recebe educadamente os investidores, empresários, banqueiros. Promete a todos que o governo vai melhorar o combate ao desmatamento ilegal. Com isso, ele ganha tempo e tenta reconstruir a credibilidade do governo. Quando saem propostas assim, de reduzir a meta que foi estabelecida no plano plurianual de redução do desmatamento ilegal, Mourão fica falando sozinho. Ou ele está falando só para inglês ver?
Míriam Leitão: A velha CPMF de roupa nova
O governo tem fantasiado o novo imposto que pretende propor com roupas modernas. Segundo dizem os economistas da equipe econômica, seria o mesmo que está sendo pensado na Europa para as transações digitais. Na verdade, o que está em debate em várias partes do mundo é totalmente diferente de um imposto sobre as movimentações financeiras — eletrônicas ou não — dos consumidores. Tenta-se saber como taxar as grandes empresas da tecnologia, as mesmas que dias atrás foram interrogadas na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos para se defender da acusação de poder excessivo.
Quem explica a diferença entre uma nova versão da CPMF e o que se tenta na Europa é o economista Pedro Henrique Albuquerque, da Kedge Business School, em Marselha, na França. Ele trabalhou no Banco Central, esteve na equipe que implantou as metas de inflação e é autor de um estudo de referência sobre a CPMF e seus impactos na economia brasileira:
— O objetivo na Europa não é tributar transação financeira ou a compra e venda por cartão de crédito. É fazer as grandes corporações americanas pagarem mais impostos. Apple, Google, Facebook, Microsoft, Amazon, ir atrás das receitas dessas empresas. Uma das ideias seria um imposto eletrônico, mas se for feito, vai ter que ser de uma forma que a Amazon pague mais, mas o pequeno comerciante que vende produtos eletrônicos, não. Do contrário, seria injusto. O problema é o poder de monopólio dessas companhias, esse é o centro da discussão.
Pedro Albuquerque fez mestrado e doutorado nos Estados Unidos e há 10 anos é professor na França. No seu estudo sobre a CPMF, publicado em 2001, ainda no Brasil, ele mostrou várias das distorções provocadas pelo tributo: aumento do spread bancário, estímulo à informalidade, custo maior para os mais pobres e peso excessivo sobre as empresas menores.
— O primeiro problema desse imposto é que a base de arrecadação não é estável, pelo contrário, é altamente reativa. Quanto maior a alíquota, mais a base encolhe. É como se o Imposto de Renda tivesse como efeito diminuir a massa salarial. Não é isso que se espera de um bom imposto — disse.
Um dos argumentos que a equipe econômica tem dito, agora com a permissão presidencial para defender o imposto, é que a base de tributação é ampla. Assim paga-se pouco porque todos pagam.
Não foi o que aconteceu no Brasil com a CPMF. Ela era cumulativa, virava uma grande taxação sem transparência, e dava aos maiores a chance de escapar. Grandes empresas levaram vantagem porque usavam a sua capacidade de verticalização. Ou seja, uma grande companhia podia aumentar o número de processos produtivos internamente, para evitar a compra e venda de produtos de terceiros.
Com isso, os pequenos negócios acabavam sendo sobretaxados. Além disso, criou-se um estímulo à informalidade. Albuquerque lembra que no Brasil começou a haver muitas trocas de cheques, que passaram a exercer função de moeda:
— As grandes empresas estavam criando quase que bancos internos com sistemas de compensação. Tentaram proibir isso, mas as pessoas são criativas, e quanto maior a alíquota maior o incentivo. É um imposto regressivo.
As propostas de taxação sobre movimentação financeira vêm da esquerda europeia, explica o economista, mas como forma de impostos regulatórios, como por exemplo sobre o mercado especulativo de ações. Ou inspiradas na Taxa Tobin, do economista James Tobin, que propunha tributar grandes movimentações financeiras internacionais:
— Há várias propostas de impostos eletrônicos na Europa, mas não são impostos que vão fazer o professor pagar mais. Não é para incidir sobre aluguel, sobre compras em geral, o objetivo não é esse.
Ele explica que o que se tenta é um tributo que incida sobre uma empresa grande como a Amazon, mas não sobre uma pequena. Não é para tributar cada transação eletrônica, é para tentar de alguma forma pegar a receita de grandes empresas de tecnologia.
— Com o Google a coisa complica ainda mais. Seria ir atrás da renda de propaganda, da publicidade, que é a fonte da receita da empresa. Não é para taxar a compra do cafezinho na esquina. Seria muito difícil politicamente na União Europeia se alguém tentasse colocar um imposto na conta-corrente do europeu. Seria um escândalo — afirmou.
A expectativa é que o ministro Paulo Guedes explique nos próximos dias e semanas o que pretende, afinal.
Míriam Leitão: Economia global em escombros
De Genebra, o embaixador Roberto Azevêdo me disse ontem que o comércio no mundo vai cair 13% em 2020. Em volume, o comércio encolheu 18% no segundo trimestre e ele acha que a recuperação será modesta nos próximos meses. Ao final, o mundo terá no ano uma crise maior do que a de 2008/2009. Ficou claro esta semana o tamanho do tombo. O número americano parece cataclísmico, mas o 32,9% é anualizado. O PIB americano diminuiu, na verdade, 9,5% em relação ao trimestre anterior, no indicador a que estamos acostumados.
A Alemanha caiu 10,1%, ou seja, um pouco mais do que os 9,5% dos Estados Unidos. Nos EUA, a maneira de apresentar o número é pegar o resultado do trimestre e extrapolá-lo para o ano inteiro, como se aquele resultado fosse se repetir por quatro trimestres. Aí deu esse fim de mundo. Mas a queda, mesmo vista na comparação com o trimestre anterior, já assusta. O PIB americano havia encolhido no começo do ano. A dúvida é se as tensões entre os Estados Unidos e a China vão aprofundar ainda mais a recessão.
— O impacto da pandemia, com a virtual paralisia das principais economias, é tão expressivo que o efeito das tensões entre Estados Unidos e China, ainda que importante, fica apequenado. A redução das tensões entre as duas potências terá um papel bem mais importante durante a etapa de recuperação econômica. Uma distensão entre os dois países ajudaria a economia global a crescer mais fortemente no pós-pandemia — diz Azevêdo.
No Brasil, há vários problemas extras. Um deles é qual é o limite dos erros que o governo Bolsonaro pode cometer na sua relação com a China? Na quinta-feira, houve a demonstração pública de desprezo por parte do presidente. Ele elogiou a vacina que está sendo desenvolvida, mas avisou que falava da Universidade de Oxford, “e não daquele outro país”. Bom, aquele outro país é o responsável por ter amortecido o tombo do nosso comércio no primeiro semestre. O mundo comprou menos 15% do Brasil, a China comprou mais 15%. A economia chinesa apresentou números positivos no segundo trimestre, de 3,2%. Depois de ter encolhido 6,8%.
Do ponto de vista de investimentos, eles são importantes também. Esta semana mesmo o Ministério da Infraestrutura começou um roadshow virtual para atrair investidores para a Ferrogrão, projeto que liga Sinop (MT) a Mirituba (PA). Dois dos investidores contatados foram a CCCC e a CRCC. Chinesas.
Não é a primeira vez, não será a última, que o governo Bolsonaro lança ofensas gratuitas sobre os chineses. Parece um teste para saber até que ponto eles aguentarão. Mas nessa roleta chinesa nós somos a parte vulnerável. Dos ataques racistas de Abraham Weintraub aos delírios persecutórios de Ernesto Araújo, passando pelas grosserias de Bolsonaro&Filhos, o governo agride diariamente o nosso maior parceiro.
Na saída dos escombros deste ano difícil, o Brasil precisará também dos organismos financeiros multilaterais. Abraham Weintraub é inimigo confesso das boas maneiras, do foco em questões relevantes, e do que ele define como “globalismo”. Os bancos multilaterais seriam instrumentos desse inimigo. O ministro Paulo Guedes cedeu às pressões para indicá-lo. Ele ficará no cargo até outubro, pelo menos.
Ontem saíram os dados de outras economias europeias. No segundo trimestre, a França caiu 13,8%, acumulando 19% de queda no ano, a Itália, 12,4%, a Espanha, 18,5%, acumulando 22%. Na Espanha, o único setor a crescer foi a agricultura, como aqui no Brasil. A zona do euro encolheu 12%. Segundo o “Financial Times”, a retomada está sendo ameaçada pelos riscos de novas ondas e será “lenta e desigual”.
O ano está difícil para todos. A China, que teve indicadores melhores no segundo trimestre, voltou a ter alta de casos de Covid-19 em algumas áreas. Diante desse quadro, Azevêdo disse à Christiane Amanpour, na CNN, que o mundo está assistindo à maior contração em tempos de paz desde os anos 1930. E a grande questão que está posta é quão rapidamente o mundo pode se recuperar. Perguntei ao embaixador, que está deixando a OMC, como ele vê a situação do Brasil:
— Com muita preocupação, porque o desempenho econômico do país no futuro imediato estará inevitavelmente ligado à sua capacidade de controlar a pandemia, cujo quadro atual no país é muito inquietante.
Míriam Leitão: CPMF: ‘Me chame pelo meu nome’
A CPMF tem má fama. Por isso o governo tenta outros nomes. O ministro Paulo Guedes ora fala em “imposto digital” ora diz que será sobre “transações eletrônicas”. Na verdade, o governo está tentando desde o começo trazer de volta o tributo que provocou muitas distorções. Ele incidiria sobre todos os pagamentos da economia, pesaria sobre todas as compras e transações financeiras, e dos dois lados, o que na prática vai duplicar a alíquota. O governo adoça o nome e oferece os prêmios, como a dizer: tudo isso será seu se aceitares o meu novo imposto.
A primeira coisa a fazer é apresentar a proposta e chamar tudo pelo nome certo. A palavra “digital” soa moderna e parece embutir uma porta de saída: se eu for analógico, poderei fugir do imposto? Se fosse isso, seria um incentivo ao retrocesso e uma punição a qualquer transação eletrônica. Ou seja, o governo estaria estimulando a que todos fossem fisicamente aos bancos, mesmo podendo fazer pagamentos online, e se dirigissem pessoalmente às lojas, mesmo preferindo compras online. Não é disso que se trata, mas se fosse já seria absurdo.
O ministro Paulo Guedes sempre quis introduzir na economia a proposta do ex-secretário da Receita Federal Marcos Cintra, desse imposto sobre pagamentos nos moldes da CPMF. Quando Cintra foi claro sobre a natureza do seu projeto tributário, ele foi demitido por decisão do presidente Jair Bolsonaro. Na época, Guedes lamentou: “Morreu em combate nosso valente Marcos Cintra.” Depois, Cintra disse numa entrevista que o governo continuava querendo exatamente aquele imposto. Verdade. A ideia ainda é a primeira.
A má fama da CPMF vem da experiência de quem a pagou por dez anos apesar de o “P” ser de “provisório”. Um imposto que engana. Parece uma pequena alíquota. Alguém pode achar pouco pagar 0,2%. Mas é sobre todas as compras, contratações, serviços prestados, vendas, aplicações, resgates, a infinidade de transações que ocorre dentro da economia. Até chegar na sua mão quantas etapas de pagamentos um produto já cumpriu? O imposto é cumulativo. É regressivo. Rico e pobre pagam o mesmo. Vai no caminho oposto do que se quer modernamente que é saber quanto de tributo há em cada mercadoria ou serviço.
Há outros efeitos colaterais. A CPMF incide sobre impostos já pagos, ou seja, promove bitributação. Também leva à perda de competitividade na economia ao estimular a verticalização. Empresas passam a incorporar todas as etapas do processo produtivo internamente, para fugir do imposto pago pelo serviço de terceiros. A informalidade cresce, e o spread bancário pode ficar maior, provocando aumento das taxas de juros.
A vantagem para o cobrador de impostos é que ela arrecada muito. Fica tentador. Da outra vez, o provisório foi ficando permanentemente na economia até ser derrubado dez anos depois pelo Congresso, em 2007. Se a ideia é repetir a história, que a proposta — como disse o presidente da Câmara, Rodrigo Maia — seja apresentada integralmente. Assim, acabarão as suposições, as meias verdades, os nomes de fantasia, a impressão de que a taxa recairá sobre outro contribuinte. Não, recairá sobre todos.
O governo montou um pacote de bondades e frequentemente saca de lá algum bom bocado para seduzir o contribuinte. Fala em desonerar a folha para estimular o emprego, ou no mínimo a retirada parcial de encargos. Promete elevar a faixa de isenção do Imposto de Renda Pessoa Física. Fala em fazer um novo Bolsa Família, maior e mais amplo. Acena com um IPI menor. Paulo Guedes chegou a fazer até uma pilha. “Você pode até reduzir cinco, sete, oito ou dez impostos”.
Que as contas sejam mostradas, que os nomes próprios apareçam. Esse jogo de balão de ensaio cansou. Todo governo gosta de CPMF. Em janeiro de 2016, meses antes de deixar o cargo, a então presidente Dilma Rousseff disse que “diante da excepcionalidade do momento” a CPMF era “a melhor opção disponível”. Agora, Guilherme Afif, assessor de Guedes, diz: “A resposta a quem critica é: me dê uma alternativa melhor do que essa. Ainda não vi.” Afif ficou conhecido reclamando dos impostos excessivos e agora manda o contribuinte arranjar uma ideia melhor. Ora, deve dizer claramente qual é a conta que pretende enviar para o pagador de impostos.
Míriam Leitão: Aras realiza o sonho de Jucá
Decisão de Aras não têm clareza e não são correção de rota, mas sim o desmonte do edifício que investiga a corrupção no país
Quando se divulgou a gravação na qual o então senador Romero Jucá falava em “estancar a sangria”, foi um escândalo. Mas hoje o que o procurador-geral da República faz é o que Jucá tinha em mente. De um lado, Augusto Aras realiza a sua explícita ofensiva contra Curitiba e a Lava-Jato, de outro, enfraquece a Polícia Federal. Aras estimula o temor da existência de um Estado policial montado no MP, quando o perigo real está sendo instalado no Ministério da Justiça com sua lista de monitorados.
Aras aproveita uma preocupação da sociedade brasileira de que a Lava-Jato teria ultrapassado os seus limites. É um sentimento legítimo. Na democracia não se pode admitir a quebra de regras nem para o mais justo dos propósitos. Mas essa supervisão tem que ser feita pelo sistema judiciário, sem se subverter a natureza do Ministério Público. O MP não convive com a centralização que Aras tenta impor, porque ele não é órgão da burocracia que tenha hierarquia explícita. O procurador-geral é chefe do MP, mas não pode tirar a autonomia dos procuradores. Não é o comandante de uma tropa. Mas é o que está tentando ser.
A Lava-Jato ameaçou toda estrutura política, e parte importante do mundo empresarial, com as investigações que mostraram a troca de financiamentos ilegais por favores dos detentores de cargo ou de mandatos públicos. Por isso, com esse movimento ele alivia muita gente. Principalmente o presidente que o escolheu e que pode nomeá-lo ministro do Supremo. O que Aras está fazendo não é correção de rota, mas sim o desmonte do edifício que investigou a corrupção. Ele alega que está agindo em nome da transparência, quando seus atos não têm qualquer clareza.
Enquanto isso, no Ministério da Justiça, como vem revelando em seu blog no Uol o jornalista Rubens Valente, está sendo montada uma estrutura para investigar servidores públicos, policiais e intelectuais que se declaram antifascistas. A Rede pediu ao STF que impeça o governo de continuar com essa estranha investigação. O deputado Eduardo Bolsonaro reagiu postando em seu Twitter uma frase que mostra, em poucos toques, várias distorções deste governo. “Ué querem que o governo tenha em seus quadros pessoas ligadas ao movimento Antifa?” O filho do presidente acha que é errado ser contra o fascismo. O bom seria ser fascista? Está convencido de que a máquina do Estado pertence ao governo Bolsonaro. Portanto, nela não podem trabalhar os servidores que não estejam alinhados com o pensamento dos atuais governantes. De acordo com a primeira das colunas de Valente sobre o assunto, há um dossiê de 579 pessoas, com nomes, fotos e endereços feitos pela Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça. O relatório registra que há “policiais formadores de opinião que apresentam número elevado de seguidores em suas redes sociais, os quais disseminam símbolos e ideologias antifascistas”.
O Ministério da Justiça considera suspeito o fato de alguém ser antifascista. O filho do presidente acha que eles não podem estar no governo. Então esses policiais espionados devem ser demitidos por disseminarem tal ideologia? Há momentos em que o país parece ter sido tragado por uma inversão total dos valores. Na ditadura havia em todos os ministérios, órgãos, autarquias e universidades departamentos que vigiavam servidores, alunos, professores. Eram os inúmeros braços do Serviço Nacional de Informações (SNI). Esse é o perigo real.
Aras está preocupado é com a Lava-Jato. De um lado, quer enfraquecer a Polícia Federal e por isso reaviva uma velha disputa de poder que já havia sido arbitrada pelo Supremo. De outro, afirma que a Lava-Jato é uma “caixa de segredos”, que tem dados de milhares de pessoas medidos em terabytes. Conseguiu levar todas as informações para Brasília e diariamente diz algo para quebrar a confiança no trabalho dos procuradores.
O presidente Jair Bolsonaro jamais teve como bandeira a luta contra a corrupção. Usou-a para se eleger, mas sempre quis limitar as investigações, principalmente as que se aproximam de sua família. O gravador do ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado captou uma conversa com Romero Jucá em que ele propunha um pacto para estancar a sangria desatada pela Lava-Jato. Isso é o que Aras está conseguindo.
Míriam Leitão: BB e a relação com o governo
Presidente do conselho do Banco do Brasil garante que desde que assumiu não houve interferência do governo em decisões do banco
O presidente do Conselho de Administração do Banco do Brasil, Hélio Magalhães, garante que desde que ele assumiu “não houve nenhum evento de influência do controlador do banco”. Muitas polêmicas têm cercado a administração do BB, principalmente na área de marketing, várias vezes criticada, inclusive aqui na coluna de ontem. A explicação que ele dá para a publicidade em sites de fake news, ou bolsonaristas, é que a escolha é feita aleatoriamente pela “ferrramenta” do Google. Hoje, está sob o controle de qualquer empresa escolher não anunciar em determinados sites.
A polêmica em torno da publicidade do Banco do Brasil surgiu por bons motivos. Teve o alerta de que os anúncios estavam em sites que divulgavam fake news e discurso de ódio. O primeiro movimento do banco foi de recuo, mas, depois de ser criticado por Carlos Bolsonaro, o BB manteve os anúncios:
— Infelizmente as notícias foram distorcidas. Não houve ingerência alguma, posso garantir como presidente do conselho. O que aconteceu foi que a notícia chegou, o analista da área de marketing tentou tirar do ar, mas aí se viu que nem tem como tirar do ar.
Na verdade, o TCU mandou, em 27 de maio, que o BB suspendesse a publicidade em determinados sites, blogs, portais e redes sociais. O plenário do tribunal referendou uma medida cautelar proposta pelo ministro Bruno Dantas a pedido do procurador de contas Lucas Furtado, que apontava suspeita de interferência do secretário de comunicação do Planalto, Fábio Wajngarten. O secretário chegou a postar — depois da reclamação do filho do presidente — que iria atuar para que o banco voltasse atrás. E o banco de fato recuou.
Magalhães tem uma longa carreira no mercado bancário, tendo se aposentado no Citibank. Ele disse que, quando foi chamado pelo ministro Paulo Guedes para presidir o conselho de administração, recebeu três tarefas:
— A melhor governança possível, preparar o banco para “desinvestimentos”, e maior eficiência para aumentar o valor dos ativos do banco.
Ele acha que o que aconteceu, a entrada do TCU, as notícias, as idas e vindas do banco não tiveram a conotação que todo mundo entendeu:
— Hoje, com o mundo digital, o banco tem que estar presente nas redes. Como funciona? Escolhe o público alvo e a sua agência, faz um contrato com o Google. A ferramenta do Google é que analisa as páginas e os sites — disse Hélio Magalhães.
Toda a atuação de páginas como Sleeping Giants, por exemplo, tem sido a de indicar às empresas onde os anúncios delas estão. E inúmeras empresas brasileiras já atuaram para decidir onde não anunciar, exatamente para proteger sua imagem. Portanto, essa escolha não é aleatória e fora de controle da empresa. Ninguém quer hoje estar vinculado a páginas que têm discursos de ódio. Essa virou uma campanha mundial. O Stop Hate for Profit.
Ontem surgiu outro problema. O subprocurador-geral de contas, Lucas Furtado, fez uma representação para o TCU apurar a venda de uma carteira de crédito do Banco do Brasil para o BTG. O valor nominal era de R$ 2,9 bilhões, e o BB a vendeu por R$ 371 milhões, ou seja, 13% do valor. Furtado apontou falta de transparência sobre os critérios.
Magalhães explicou que, como toda instituição financeira, o Banco do Brasil tem que lançar a prejuízo dívidas não pagas depois de um certo tempo. Essa carteira era, segundo ele, de dívidas de mais de cinco anos:
— Essa cobrança é mais dura. Há empresas especializadas nisso. E foi mandado para três delas. A proposta é que ela paga na frente um valor e depois divide com o banco o sucesso da cobrança. Quando se consegue vender por 5% já é bom. Foi um excelente negócio para o banco, talvez tenha faltado explicar direito.
As empresas que participaram da disputa foram a Enforce, do BTG, que venceu, a Jive, a Canvas e a Ativos. Essa última uma subsidiária integral do BB. No mercado, os analistas não acharam o valor pequeno, levando-se em conta que já era dívida antiga, mas faltou de fato transparência.
Magalhães repetiu várias vezes que o modelo de governança não permite interferência do acionista controlador. O ideal seria então que houvesse menos sinais explícitos de ingerência por parte do presidente da República, seu filho e seu secretário de imprensa na publicidade do Banco do Brasil.
Míriam Leitão: Do liberalismo ao antiliberalismo
Não há méritos na gestão Rubem Novaes no Banco do Brasil, mas sua saída revela que há planos no governo de aumentar a influência estatal sobre a instituição
O problema da equipe econômica do governo Bolsonaro não é se está ou não havendo debandada ou que a pauta liberal está sendo arquivada. É pior. Agora segue-se uma pauta antiliberal. A Caixa Econômica virou um braço do bolsonarismo e parte da propaganda oficial. O Banco do Brasil já fez concessões que deveriam corar qualquer liberal, porque a instituição de economia mista passou a ter ingerência direta do governo até nas decisões de marketing. E tem ainda os ensaios de pedaladas. O governo consultou o Tribunal de Contas da União (TCU) se pode fazer investimento em infraestrutura contornando o teto de gastos, e na semana passada o Congresso evitou que o teto fosse burlado.
A saída de Rubem Novaes tem que ser vista de duas formas. Ele permitiu a interferência do governo na instituição, mas quando ele sai revela-se que há mais tentativa de intervenção. Não há mérito em sua gestão, mas a saída mostra que há planos de entrar mais fundo nesse modelo que impõe ao banco a presença governamental.
A Caixa foi beneficiada com o monopólio da distribuição do auxílio emergencial, fez um trabalho cheio de falhas e aproveita cada espaço para afirmações de exaltação bolsonarista como “nunca na história da humanidade”. É a figurinha mais repetida do álbum das lives presidenciais. Uma coisa é o presidente Bolsonaro fazer o seu marketing, outra é usar os bancos públicos como parte dessa estratégia ou como tentáculos do governo. É uma estratégia claramente antiliberal.
O TCU, que Novaes definiu como “usina de terror”, na verdade fez seu trabalho de órgão de controle que é. O relatório do ministro Bruno Dantas, referendado pelo Tribunal no dia 27 de maio, vai diretamente ao ponto. A gestão de Novaes na área da comunicação do banco foi considerada gravíssima pelo tribunal, que disse estar havendo por parte do acionista controlador, no caso o governo, ingerência sobre uma instituição financeira com ações em bolsa. O BB vinha anunciando em sites que divulgavam fake news. Suspendeu, depois do alerta, mas voltou atrás por pressão do vereador Carlos Bolsonaro. O TCU ressaltou a fragilidade da governança do banco e lembrou as orientações da OCDE, “no sentido de que as empresas estatais tenham liberdade para atuar e não se submetam a ingerências indevidas do governo ou mesmo de familiares do chefe do poder executivo, à mingua de orientação técnica que justifique essa interferência”. Esse episódio, ressaltado pelo tribunal, se soma ao veto do presidente a uma propaganda onde havia jovens negros e descolados e que já estava no ar. Novaes não apenas a tirou do ar, como defendeu a posição de Bolsonaro.
O TCU lembrou também que no primeiro ano de Novaes no Banco do Brasil, apesar da prometida austeridade, ele gastou R$ 119 milhões com publicidade na internet e com uma escolha muito controversa de sites, como se viu. Houve outras polêmicas na sua gestão. Ele nunca defendeu os ideais liberais, na prática aceitou a intervenção, mas dizia que seu sonho era privatizar o banco. Poderia ter começado evitando que a instituição fosse usada pelo governo de plantão.
Bolsonaro jamais defendeu uma única proposta liberal, mas Paulo Guedes e todos os outros economistas que trabalharam no comitê de campanha, como Rubem Novaes, transplantaram para dentro do programa vazio do então candidato do PSL um rio de promessas. Não as entregou. Isso não surpreende quem não cedeu ao autoengano. Mas agora o risco é fazer o exato oposto do prometido e seguir uma agenda antiliberal com o objetivo eleitoreiro. Naquela famosa reunião ministerial, o ministro Paulo Guedes falou claro: “vamos fazer todo o discurso da desigualdade, vamos gastar mais, precisamos eleger o presidente.”
Está sendo formatado o novo programa — que eles chamam de Renda Brasil — para preencher o vazio de política social na gestão de Bolsonaro. Pelo visto, é o passo final da politização da economia. A pandemia empobreceu os pobres, será necessário ampliar o Bolsa Família e fortalecer as políticas sociais, mas tem que ser com um debate contábil transparente, com limites fiscais definidos e sem o uso dos recursos públicos para um projeto político que, além de tudo, nunca escondeu sua convicção autoritária.
Míriam Leitão: Vamos falar de negócios
O interessante na conversa dos executivos dos três maiores bancos privados com o vice-presidente Hamilton Mourão é que eles disseram que não estavam ali para falar de responsabilidade socioambiental. Queriam tratar do “negócio bancário”. Avisaram, assim, que o assunto da conversa não era a lista de boas ações, mas a sustentabilidade como centro do negócio na Amazônia. Se estiverem falando sério, terão que exigir rastreabilidade do gado, não poderão financiar rodovias e hidrelétricas que agridam o meio ambiente ou ameacem as comunidades indígenas. A lista de mudanças é grande e, se a seguirem, acabarão batendo de frente com o governo.
O ministro do Meio Ambiente ficou à deriva na reunião, repetindo coisas como “adote um parque”, depois de ter ameaçado todos eles por um ano e meio. O vice-presidente ouviu os banqueiros com atenção e fez de conta que ali não havia um problema. A ministra da Agricultura disse a este jornal que há uma “orquestração” contra o Brasil e defendeu a fala de Ricardo Salles sobre passar a boiada, com o estranho argumento de que era uma reunião “fechada” e “interna”. Era a mais alta instância do Executivo. Portas fechadas não autorizam ilícitos.
Há um conflito direto entre a proteção da Amazônia e o projeto Bolsonaro. Ou o governo tem a “grandeza moral de se retratar” ou continua valendo tudo o que o presidente e seu ministro falaram e fizeram neste um ano e meio e que levaram à destruição de dez mil km2 de floresta no ano passado. Na quinta-feira, Bolsonaro voltou a mostrar seu entendimento torto no assunto e culpou indígenas e caboclos pelas queimadas. É obra dos grileiros, como se sabe.
Bradesco, Santander e Itaú-Unibanco são competidores. Se fizeram um plano conjunto é porque sabem o que está acontecendo no mundo deles, o do capital. Sem isso, terão dificuldade em qualquer operação financeira em que a marca Brasil estiver envolvida. Haverá menos capital e o dinheiro será mais caro para o país, mesmo neste tempo de muita liquidez e juros negativos no mundo. O que os fundos vêm avisando há algum tempo, e estão sendo mais claros desde Davos, é que as suas regras de conformidade impedem o investimento em países que destroem florestas e colocam em risco os indígenas. Preservar a Amazônia e proteger os povos indígenas é também do máximo interesse nacional.
Os bancos dizem que vão detalhar depois, mas que o plano conjunto quer induzir boas práticas e “promover o desenvolvimento sustentável da Amazônia”. Entre as dez medidas está o financiamento de cadeias produtivas como açaí, cacau e castanha. Ótimo. O climatologista Carlos Nobre costuma incluir esses produtos no projeto amplo denominado Amazônia 4.0. Disseram que fomentarão um “mercado de ativos e instrumentos de lastro verde”. Bom. Com isso formatam produtos financeiros com grande potencial de captação. São boas ideias. O diabo está nos detalhes.
Quando falam em financiar infraestrutura sustentável na região, dão o exemplo de hidrovias. E as rodovias? Há algumas bem polêmicas. E quando falam em energia, surge outra dúvida. A hidrelétrica é considerada energia limpa, mas a construção das usinas na Amazônia raramente o é. Exemplo: Belo Monte. Essa afetou a floresta, os indígenas e ainda teve corrupção.
Os bancos disseram que suas ações só podem ser efetivas se houver proteção da floresta. Perfeito, “por isso a atuação dos bancos será coordenada com o governo”. Imperfeito. Nesse ponto a banca privada terá que escolher. Ou faz o que diz ou dá a mão ao governo no momento em que ele está sendo pressionado por fundos e por empresas.
Só há um caminho certo. O governo reconhecer que errou, demitir o ministro que nunca teve credibilidade, arquivar essa bobagem de conspiração internacional, retomar o roteiro seguido de 2004 a 2012, que derrubou o desmatamento em 80%, perseguir a meta do desmatamento líquido zero e voltar a ser o interlocutor confiável nas negociações do clima. O outro caminho é mudar um pouco para deixar tudo como está.
O governo cometeu crime ambiental, estimulou grileiros e garimpeiros, que invadem terras indígenas, ameaçando etnias. Bolsonaro não mudou, Salles ficou, Tereza Cristina põe um pé em cada canoa, Mourão lustra o discurso. Os bancos precisam explicar a mágica de junto com este governo fazer um plano verde.
Míriam Leitão: Regime fiscal de um estado só
Quando setembro vier, o Rio deve ir ao Supremo Tribunal Federal. No Ministério da Economia a aposta que se faz é que o estado vai judicializar a sua recuperação fiscal. O Rio chegará ao fim do período ainda mais endividado e sem ter vendido sua principal estatal, a Cedae. O secretário de Fazenda garante que o estado cumpriu todas as exigências, em Brasília o entendimento é que não cumpriu e que portanto não poderá haver uma renovação do contrato.
Para ser renovado, o estado teria que apresentar um novo plano de equilíbrio, e ele precisaria ser aprovado em tempo recorde pela equipe técnica do ministério da Economia, com aval do ministro Paulo Guedes e do presidente Jair Bolsonaro. Dificilmente acontecerá.
Três anos após a sua criação, o Regime de Recuperação Fiscal contou com a adesão de um único estado, o Rio de Janeiro, mas mesmo antes da pandemia ele não tinha reequilibrado as suas contas. O Rio deixou de pagar mais de R$ 50 bilhões em dívidas à União — ou com aval do Tesouro — e ainda assim o seu endividamento aumentou em relação à sua receita corrente líquida. O Rio Grande do Sul estava tentando entrar no Regime de Recuperação quando veio a crise. Minas Gerais sequer tentou e foi à Justiça, que suspendeu o pagamento dos juros. Depois, outros conseguiram o mesmo direito. Por fim, todos as parcelas foram suspensas até o fim do ano. Se não fosse isso, o Rio teria que voltar a pagar a sua dívida em 5 de setembro.
Em entrevista à coluna, o secretário de Fazenda do estado, Guilherme Mercês, defende que o Rio cumpriu todos os requisitos na última avaliação feita pelo Conselho de Supervisão do regime fiscal, em junho. Mas no governo federal o entendimento é de que o balanço desses três anos é desfavorável ao estado, e o Rio já deveria ter apresentado um novo plano de reestruturação.
— A lei não é clara. A Procuradoria-Geral de Fazenda Nacional (PGFN) tem o entendimento de que o estado precisa apresentar um novo plano. Já o governo do Rio acredita que a renovação deveria ser automática. E com isso caminha-se para o pior dos mundos, que é a judicialização do tema, como aconteceu com Minas Gerais — afirmou um técnico do governo.
Guilherme Mercês avalia que o estado já cumpre todas as condições para ter a renovação e diz que a lei foi pensada para um período de seis anos, com uma avaliação no meio do caminho, o que aconteceria em setembro.
— Em termos econômico-financeiros, o Rio de Janeiro está mais do que quite. O conselho exigiu R$ 600 milhões de compensações e aprovamos R$ 635 milhões. Estamos com R$ 35 milhões de sobra. Agora, a discussão é jurídica. O nosso entendimento é que o Rio continua tendo as mesmas necessidades para continuar no Regime — explicou.
Para complicar o quadro, com a pandemia, o Congresso autorizou a suspensão do pagamento da dívida de todos os estados à União até o final deste ano. O governo do Rio, dessa forma, foi o único obrigado a cumprir medidas de ajuste fiscal em plena recessão. Mercês diz que o governo Witzel bloqueou o preenchimento de 10.500 cargos públicos dos três poderes no estado e negociou a suspensão no pagamento de royalties que tinha securitizado, o que evitou a antecipação de uma despesa de quase R$ 6 bilhões em dívidas nos anos de 2020 e 2021.
— Todo os estados têm o mesmo benefício, mas só o Rio é cobrado. Esse é um ponto de discussão interessante — afirmou Guilherme Mercês.
Depois de três anos, a venda da Cedae foi empurrada para dezembro deste ano, mesmo mês em que o Rio terá que pagar uma dívida de R$ 4,5 bilhões ao banco francês BPN Paribas. Guilherme Mercês diz que a expectativa é que agora o leilão ocorra, após a aprovação do novo marco do saneamento pelo Congresso. A empresa continuaria estatal, como produtora de água, mas privatizaria a distribuição de água e a coleta e o tratamento de esgoto.
Se tivesse as contas reprovadas pelo Conselho de Monitoramento, o Rio teria que quitar de uma só vez os mais de R$ 50 bilhões que deixou de pagar ao Tesouro. A medida é tão dura que torna a punição praticamente inexequível, no entendimento do próprio governo federal. Caso o programa expire em setembro, as parcelas voltariam gradativamente, mas a partir de janeiro do ano que vem, quando acaba o estado de calamidade pública. A crise fiscal dos estados está longe de terminar.