Míriam Leitão
Míriam Leitão: Teoria e prática de uma reforma
A proposta de reforma administrativa dá ao presidente o poder de extinguir órgãos, reorganizar autarquias e fundações. Isso teoricamente parece razoável, porque daria ao gestor mais flexibilidade para uma administração mais eficiente. O problema são os atos do próprio governo Bolsonaro. Eles conspiram contra a ideia de concentrar tantos poderes no presidente da República. Bolsonaro quis entregar a demarcação de terras indígenas aos ruralistas, o cuidado com os índios a religiosos, esvaziar o Coaf, calar o Inpe, tirar autonomia da Polícia Federal e espionar as tendências políticas de servidores. Isso dá poder ao chefe do executivo sobre a administração direta ou indireta. As universidades são fundações.
O Brasil está numa situação estranha. É claro que é preciso limitar os altos salários, acabar com aumentos automáticos, dar mais flexibilidade ao gestor, reduzir o número de servidores com estabilidade, diminuir as disparidades de salários para as mesmas funções e reformar o Estado para que ele seja mais eficiente. Mas esta administração nos lembra quão corrosivo pode ser o poder de destruição de um governo ideológico se não houver limites para a sua atuação. Imagine o que Bolsonaro faria, se pudesse, com o Ibama, ICMBio, Funai. Pense no que ele já fez à Fundação Palmares.
O governo decidiu fatiar a reforma, por isso não se sabe exatamente que perfil da administração ele tem em mente. Ontem foi divulgada a PEC que acaba com o Regime Jurídico Único, cria as cinco formas de vínculo e apenas para os futuros servidores. Só depois virão os projetos de lei que entrarão nos detalhes. A senadora Simone Tebet (MDB-MS) acha que essa estratégia foi inteligente.
— Eles acertaram. Não vai resolver o problema fiscal, mas pelo menos garante alguma coisa para o futuro. A decisão de ser apenas para os novos servidores diminuirá a resistência. Não haverá servidor na porta falando sobre o seu direito adquirido. Os princípios e a essência vão para a Constituição. Mas a regulamentação vem por PLs e Lei Complementar. Quanto à questão da extinção de órgãos, não acho que o Congresso vai abrir mão do poder de veto, seja em relação a esse governo ou qualquer um. Você vai dar essa autonomia para o presidente de plantão? Nosso poder é fiscalizar o executivo — diz a senadora.
Os secretários que apresentaram a reforma falaram em princípios de impessoalidade, transparência, meritocracia, proteção do servidor contra o governante e separação entre governo e Estado. Bom ouvir isso. O que destoa é a realidade. O secretário de desburocratização e gestão, Caio Paes de Andrade, abriu a entrevista negando na prática essa separação:
— Hoje estamos aqui para vencer o atraso. Esse é um momento histórico. O presidente Bolsonaro cumpre uma promessa de campanha. Hoje vocês vão conhecer mais uma mudança estrutural proposta pela dupla Jair Bolsonaro e Paulo Guedes. Para mim é uma honra servir ao presidente e ao ministro da Economia numa agenda reformista que coloca o Brasil no caminho da vitória contra o atraso. Eu pessoalmente odeio o atraso com todas as minhas forças —disse o secretário.
Pouco tempo antes, o presidente ao qual ele serve estava descendo com helicóptero da Força Aérea para se encontrar com um grande grupo de pessoas aglomeradas, muita gente sem máscara, inclusive ele, no meio da pandemia, num ato típico de campanha eleitoral.
A última reforma no serviço público foi feita pelo ministro Bresser Pereira no governo Fernando Henrique, em 1999. Ela aprovou na época o fim da licença-prêmio, dos anuênios. Criou o período probatório de três anos antes da estabilidade. A proposta agora é transformar esse prazo de experiência em um prolongamento do concurso. A demissão por insuficiência de desempenho foi criada na reforma de 99, mas nunca foi regulamentada. Até hoje existe progressão automática, que é uma ideia esquisita de avanço na carreira apenas porque o tempo passou.
Há muita coisa a aperfeiçoar na administração pública. Na Constituinte, celetistas foram transformados em estatutários. Isso foi um erro que custou caro aos cofres públicos. Mas antes de concentrar poderes no presidente, sob o argumento da agilidade e eficiência administrativa, é preciso que se saiba a resposta para a pergunta: como proteger o Estado do mau governo?
Míriam Leitão: O raio de abril e outras histórias
Antes de o raio cair em abril, o país já estava despencando. É o que ficou claro nos dados de ontem. No primeiro trimestre, o PIB encolheu 2,5% segundo dado revisto pelo IBGE. Isso é impressionante porque só na segunda quinzena de março o país começou a fechar as portas por causa da pandemia, e mesmo assim houve essa queda forte. Não podem ser só os 15 dias, a economia já vinha mal. Então o que o ministro Paulo Guedes disse ontem — “é o impacto de um raio que caiu em abril” — é verdade, mas há mais informações nos dados. O PIB caiu 9,7% no segundo trimestre, mas sem o auxílio emergencial o PIB poderia ter caído cinco pontos a mais, segundo cálculo da MB Associados. Há unanimidade de que o terceiro trimestre será de recuperação e haverá outra alta, mais leve, no quarto trimestre. Mesmo assim, a crise está longe do fim.
O dado divulgado ontem pelo IBGE é um desses acontecimentos que já nascem históricos. Sempre que olharmos para a série estatística haverá esse colapso do segundo trimestre de 2020 como uma cicatriz. Foi mais penoso pela maneira como o governo lidou com tudo, com o presidente criando conflitos, disparando ameaças às instituições, ofensas à imprensa e ataques aos governadores. Isso não está nos números, mas aumentou a infelicidade do Brasil.
Olhando para os índices é possível ver que há gradações no tombo. Dentro da indústria, o setor de construção caiu 5%, a indústria de transformação, 17%. Os serviços foram puxados para baixo pela queda do consumo das famílias. O agronegócio e o setor exportador tiveram números positivos. Um está ligado ao outro, e ambos ao dólar, que subiu muito, elevando a remuneração das vendas ao exterior. Nosso maior comprador foi a China, que apesar disso ouviu críticas disparadas pela política externa.
A MB Associados alertou para dois fatos importantes. Há mais desigualdade regional e mais pobres no Brasil. A consultoria fez uma conta entre 2015 e 2021, o que já ocorreu e a projeção futura. Ao fim desse período, o Nordeste terá queda de 7,5%, e o Centro-Oeste, alta de 3,2%. “O Nordeste, de novo, será o centro da disputa política regional em 2022.” Brigam pelo coração do Nordeste, mas o país empobreceu e ficou mais desigual. A distribuição de renda está piorando, diz a MB. As classes D e E, as de renda mais baixa, estão aumentando em 11,9 milhões de pessoas. A classe média está encolhendo.
Os economistas ouvidos pela coluna concordam em vários pontos. O número veio um pouco pior no segundo trimestre, mas houve aqui e ali um resultado melhor do que o esperado. Mesmo assim, há muita gente melhorando as projeções do ano. Fernando Honorato, do Bradesco, acha que não muda a visão de recuperação que vinha desde maio. Ele acredita que as projeções continuarão entre –5,5% e -4,5%. A MB refez a previsão, de uma queda de 5,3% para -4,8%. Mas houve também quem piorasse as estimativas.
O presidente Bolsonaro anunciou quase que na mesma hora da má notícia do PIB a extensão do auxílio emergencial até o fim do ano. É um truque antigo para criar uma agenda positiva num dia ruim. Tudo foi feito de tal forma a ser mais um momento do culto à personalidade. Cercado dos seus líderes, o senador Fernando Bezerra (MDB-PE), o deputado Ricardo Barros (PP-PR) e o senador Eduardo Gomes (MDB-TO), Bolsonaro deu a notícia da extensão do auxílio. Depois, com o olhar parado no horizonte, ouviu os elogios. Paulo Guedes repetiu que “o presidente não deixou ninguém para trás”. Dos parlamentares, alguns velhos conhecidos, o mais eloquente foi Bezerra.
— Todos vão se surpreender com os dados da economia no final do ano, porque o Brasil acertou, o presidente Bolsonaro acertou. Alguns falavam em retração de 10% e será menor que 4,5% — disse Bezerra, acrescentando que depois do auxílio vem o Renda Brasil. “É o presidente Bolsonaro protegendo os mais pobres.”
Para o mercado financeiro também foi enviado um auxílio emergencial: o anúncio de que a reforma administrativa sairá da gaveta do presidente para o Congresso. O ministro Paulo Guedes disse que “as reformas” voltarão à pauta. A bolsa subiu, e o dólar caiu. A proposta só muda a situação para os futuros servidores, avisou Bolsonaro. Isso, segundo a economista Ana Carla Abrão terá impacto imediato zero nas contas públicas. Ela disse que esse é o problema: “não há ganho fiscal nem para o curto, nem para o médio prazos.”
Míriam Leitão: O impossível nó do gasto público
O Brasil não está cumprindo a regra de ouro e o teto de gastos não entregou o que prometeu. No ano que vem será necessário pedir um crédito extraordinário de quase meio trilhão de reais para fingir que se cumpre a regra de ouro. Mesmo se não houvesse a pandemia, o problema existiria. O Brasil está há seis anos com déficit primário e só deverá voltar ao azul em 2027, no governo do sucessor do próximo presidente. É perigoso manter rombo por tanto tempo. Erros do passado e incapacidade no presente nos mantém nesse atoleiro.
Pela regra de ouro só se pode endividar para investimento ou amortização da dívida. Não pode ser para pagar despesas de custeio, e nisso entram os juros. Só que o Tesouro terá um custo alto no ano que vem com vencimento de papéis antigos. No começo do segundo governo Dilma, a taxa de juros disparou e foi a 14,25%. Naquela época, o Tesouro vendeu muita LFT, corrigida pela Selic, e por prazo de seis anos. Esses papéis estão vencendo em 2021, e terão que ser pagos. Agora, com os juros baixos, o Tesouro só consegue vender títulos de seis meses. Essa é uma das várias confusões do orçamento.
O teto de gastos foi apresentado com a promessa de reduzir a despesa lentamente. Ele foi aprovado em 2016. O Brasil reduziria a despesa primária em meio ponto percentual a cada ano, segundo as projeções. Em dez anos essa queda seria de 5 pontos percentuais do PIB. Então, teoricamente, se sairia de 2,5% do PIB de déficit em 2016 para um superávit de 2,5% em 2026. Só que não. Em 2016, quando o teto foi aprovado, a despesa era de 19,9% do PIB. Para o ano que vem, ela está projetada em 19,8% do PIB. E isso se o país crescer em 2021 os 3,2% que o governo está prevendo. O que deu errado? O país perdeu receita tributária. Exatos dois pontos percentuais do PIB. Primeiro, porque cresceu pouco, e depois veio novo tombo. No ano do teto, o déficit foi 2,6% do PIB, no ano que vem deve ser de 3% do PIB. Economistas dizem que sem o teto teria sido pior.
O Orçamento de 2021 traz alguns mistérios. Não tem dinheiro para o Renda Brasil, nem para o programa Pró-Brasil. Há apenas um aumento da verba do Bolsa Família. Insuficiente para o novo programa. Para os ministérios de Rogério Marinho e Tarcísio de Freitas há redução de verbas. Imagine que o presidente Bolsonaro mude de ideia e deixe o ministro Paulo Guedes fazer o que ele havia planejado, acabar com o abono salarial e levar o dinheiro para o novo programa. Mesmo assim não resolveria. O dinheiro do abono do ano que vem já é devido a quem está trabalhando no mercado formal em 2020. O fato gerador ocorre este ano. Além disso, o Orçamento foi feito com o pressuposto de que será mantido o veto à desoneração dos setores que mais empregam. Se o Congresso derrubar o veto, abre-se um novo buraco de R$ 5 bilhões.
Apesar de não ter dinheiro para nada, o governo gastará R$ 4 bilhões capitalizando estatais. É que para vender a Eletrobras precisará transformar a Eletronuclear numa empresa 100% do Tesouro. E depois o plano é ela se endividar com garantia do governo. Esse buraco sem fundo tem nome: é Angra 3. Tem uma dívida de R$ 8 bilhões e não construiu nem metade da usina. Terá que gastar, segundo cálculo de um especialista, mais R$ 16 bilhões. E se a opção for desistir dela, terá que reconhecer um prejuízo de R$ 10 bi.
Por onde se olhe nos gastos públicos só há problemas. Aí o Ministério da Economia faz uma proposta que parece simples: quebre-se o piso. O secretário Waldery Rodrigues explicou que R$ 700 bilhões são despesas indexadas por índice de inflação, por salário mínimo ou pela receita corrente líquida. O que ele quer dizer com isso? Que educação e saúde não seriam corrigidos, que os benefícios previdenciários ficariam congelados. Se houver também a desvinculação seria obrigatório fazer várias mudanças na Constituição.
E se o governo conseguir criar um novo imposto? Mesmo se a receita crescer por causa de um novo tributo, não resolve, porque o teto só permite que as despesas cresçam pelo índice da inflação em 12 meses até junho. Foi de 2,1%. Para sair desse beco sem saída, era preciso ter um governo unido, com uma proposta clara, e base sólida no Congresso. Não se tem nada disso. O governo tem apenas um presidente correndo atrás da reeleição.
Míriam Leitão: Águas do Rio e conflito federal
Até as águas do Rio Jordão sabem o que está se passando no Rio de Janeiro. Há uma guerra entre os que se banharam nas mesmas águas. O que levou Wilson Witzel do traço na intenção de voto ao Palácio Guanabara foi a onda bolsonarista. O mesmo discurso anticorrupção, o uso da religião, e a apologia das armas. Bolsonaro fazia o gesto da arma na mão, Witzel dizia que daria “tiro na cabecinha”. Bolsonaro passou pelo PSC, onde lançou sua pré-candidatura e foi batizado pelo Pastor Everaldo, Witzel foi eleito pelo PSC. Hoje os dois lados se acusam mutuamente. Witzel acha que está sendo perseguido pelo presidente, através do Ministério Público Federal, Bolsonaro acha que seus filhos são perseguidos por Witzel, através do MP estadual e da Polícia Civil.
A política do Rio de Janeiro tem água turva demais. Quatro governadores passaram pela prisão, um permanece entre grades e outro está em prisão domiciliar. A PGR chegou a pedir a preventiva de Wilson Witzel, o ministro do STJ Benedito Gonçalves apenas o afastou. De tarde, o ministro Alexandre de Moraes permitiu a continuidade do processo de impeachment, o que pode afastá-lo definitivamente do cargo. Bolsonaro já disse que “o Rio é o estado mais corrupto do Brasil”, mas foi onde fez a sua carreira, na qual jamais se mobilizou contra a corrupção. Fez sua vida política defendendo bandeiras corporativas das forças de segurança e emitindo sinais de simpatia à milícia. Com essas alavancas e usando o sentimento anticorrupção, foi mais longe do que qualquer outro do estado. Jair Bolsonaro é o primeiro político do Rio a ser eleito presidente da República. Antes dele, apenas Nilo Peçanha, o vice de Afonso Pena, ocupou a presidência, de 1909 a 1910, após a morte do titular.
O Rio vive a sua tragédia de cenas repetidas. “Nós nos sentíamos num túnel do tempo”, disse o procurador federal Eduardo El Hage, sobre o que pensaram os procuradores diante dos indícios do envolvimento do escritório de advocacia da primeira-dama na passagem do dinheiro de propina. O Rio está preso no túnel de um tempo circular que repete sempre as mesmas cenas.
Chega a ser bizarro ler como o governador mandou um email com o contrato do escritório de Helena Witzel com uma empresa que se comprometia a pagar valores mensais, e um grande adiantamento, à primeira-dama. “Observa-se que a primeira-dama, apesar de ser advogada e ser quem figurava como contratada, não participou diretamente do próprio contrato de prestação de serviços advocatícios”, diz a acusação. Além disso, não há sinal de serviços prestados.
Witzel tem muitas explicações a dar, mas Bolsonaro também deve respostas. Durante a campanha, o elo de ligação entre Bolsonaro e Witzel foi o senador Flávio Bolsonaro. Meses depois de ter sido eleito, o governador começou a indicar que sonhava com a cadeira de presidente. A um dirigente de empresa federal, logo no primeiro encontro, o governador contou que sua mulher falara da vontade de ter um apartamento na Zona Sul. E ele teria dito que ela deveria se acostumar a morar em palácios. Primeiro o Laranjeiras, depois o Alvorada. Histórias assim foram chegando a Brasília, até que o próprio governador admitiu que concorreria. Foi isso o que os separou.
Bolsonaro acusou Witzel de ter vazado investigações que estavam em segredo de justiça, do depoimento, depois desmentido, do porteiro do condomínio do presidente sobre o assassinato de Marielle. Acusou o governador de usar a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio contra seus filhos Flávio e Carlos. “Armaram há pouco tempo uma busca e apreensão na casa do meu filho Carlos, já com provas forjadas para jogar para cima dele, com dinheiro lá dentro, com armas, com drogas”, disse o presidente em uma transmissão ao vivo no dia 4 de janeiro, sem indicar a origem da informação.
Witzel, desde a primeira operação de busca e apreensão, culpa o presidente de o estar perseguindo; no começo, usando a Polícia Federal e ontem através da sub-procuradora Lindôra Araújo, que seria ligada a Flávio. O pastor Everaldo, que batizou Bolsonaro no Rio Jordão para atrair o eleitorado evangélico, foi ontem levado à prisão. O espetáculo exibido nesta sexta-feira pareceu ao cidadão do Estado do Rio um filme antigo. Com uma peculiaridade: é um faroeste sem mocinho.
Míriam Leitão: Economia tem escolhas difíceis
Não há mágica na economia. O presidente Jair Bolsonaro terá que escolher entre quebrar o teto ou propor ao Congresso medidas amargas para ampliar programas sociais. Mesmo criando impostos ele pode ter dificuldade de gastar mais porque o teto estabelece que as despesas só podem crescer de acordo com a inflação. O que ele vai escolher? O presidente quer combustível para o seu populismo e, portanto, o teto tende a cair. O ministro Paulo Guedes vai dizer que quem recebeu os votos foi Bolsonaro, portanto é ele que decide.
Ontem formou-se o tipo da situação em que ninguém tem razão. O presidente Bolsonaro jogou para a plateia, na sua agenda cada vez mais eleitoreira, ao dizer que suspendeu o projeto da equipe econômica, porque não tiraria “do pobre para dar ao paupérrimo”. O ministro Paulo Guedes erra sempre o mesmo erro: achar que é fácil o que é politicamente muito difícil. Acabar com programas sociais antigos, no meio de um recessão e alta de desemprego, só se tivesse muito apoio do presidente e grande articulação política. No ano passado tentou diminuir os beneficiados pelo abono salarial e o Congresso rejeitou.
O presidente está em campanha, é populista e nunca teve como agenda a austeridade fiscal. Em 2018, repetiu algumas frases que aprendeu com Paulo Guedes para vender a ilusão do liberalismo austero que o mercado financeiro comprou, com enorme dose de autoengano. Bolsonaro quer o bônus das bondades que o governo fizer, mas não quer ficar com ônus algum de eventual medida amarga. Na reforma da Previdência deixou que outros pagassem o custo de defendê-la, e lavou as mãos: “por mim não faria”. Guedes avalizou um político que durante sua carreira de deputado jamais demonstrou entender a importância do controle das contas públicas. Para completar, nem Bolsonaro como político, nem Guedes como economista têm intimidade com políticas sociais. A pandemia criou a necessidade de políticas de socorro para a população.
O auxílio emergencial nasceu de uma pressão da sociedade, o valor se elevou por decisão do Congresso. Mas agora, feliz com a popularidade, o presidente credita tudo ao governo e já prometeu: “resolvemos estender até dezembro”. E depois disso ele quer uma política social para dizer que é do seu governo, como fez com o Minha Casa, Minha Vida. Os juros caíram meio ponto percentual, mas na cerimônia do Planalto foi vendida a ideia de que era um programa novo.
O que a equipe econômica quer explicar é que uma pessoa que recebe abono salarial não é um “excluído”. Tem carteira assinada, 13º salário, FGTS. A política pública seria mais focalizada se estivesse voltada para quem está agora sem renda. A dúvida: é o único lugar de onde se pode tirar para ampliar o Bolsa Família? O Ministério da Economia já sabia que teria que brigar no Congresso, mas foi nocauteado pelo próprio presidente, que em vez de discutir internamente, expôs a divergência de público para faturar politicamente. Assim ele pode fingir a sensibilidade social que nunca teve.
O Big Bang Day do ministro Paulo Guedes é um conjunto de ideias que ele vem defendendo, mas nunca elaborou para apresentar. Vamos ver se agora consegue. Ele fala em desvincular, desindexar, e desobrigar o Orçamento como se fosse algo simples e inédito. Todas as equipes econômicas tentaram desengessar o Orçamento, e tudo o que conseguiram foi a flexibilização parcial com a DRU, a Desvinculação de Receitas da União.
Outra proposta que está sendo formulada é a da criação de um imposto. A assessora especial do Ministério da Economia, Vanessa Canado, explicou que o novo tributo que está sendo pensado será amplo.
– A contribuição sobre pagamentos ganha nova conotação em relação à CPMF por conta da digitalização da economia. Quando se torna a economia menos corpórea, a forma de rastrear a economia sem dúvida é mais fácil por meio de pagamentos. Para ser um tributo de base ampla, ele não captura só as transações da economia digital. Tem que capturar todas as transações da economia.
Não é fácil fazer isso. Nada é fácil no Ministério da Economia em época de crise. Por isso é preciso se preparar para o debate político. Mas antes de tudo o presidente da República tem que saber se quer pagar o preço de governar, ou se quer apenas fazer demagogias de palanque.
Míriam Leitão: Palavras torpes e mente autoritária
O presidente Jair Bolsonaro deveria ter se antecipado e prestado contas ao país das muitas dúvidas sobre as finanças da sua família. A nação tem o direito de saber. O jornalista do GLOBO fez a pergunta certa e necessária. A ameaça de “encher a sua boca de porrada” que ele disparou ao repórter é recorrente e reveladora. Ele quer uma imprensa domesticada que o exalte, como todo ditador. Bolsonaro tem um projeto autoritário de poder, já demonstrou inúmeras vezes, verbaliza com frequência, distorce, mente, atropela limites institucionais, e usa as Forças Armadas como escudo para ameaçar os outros brasileiros. As autoridades do Congresso e da Justiça que não querem ver essa realidade, colaboram com esse projeto.
Ontem o país ultrapassou os 115 mil mortos pela pandemia. Na cerimônia “Brasil vencendo o Covid-19” — fora do tom e sem propósito — o presidente foi aplaudido de pé dentro do Palácio do Planalto depois de agredir os fatos, a imprensa e o ex-ministro da Saúde. Congratulou seu governo por ter indicado o uso da cloroquina, disse que muitas das 115 mil vidas perdidas poderiam ter sido salvas com o remédio, jogou culpas sobre Luiz Henrique Mandetta, repetiu que o Supremo “o alijou” do combate à pandemia e depois ofendeu de novo os jornalistas.
— Aquela história de atleta… que o pessoal da imprensa vai para o deboche. Mas quando pega num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor. Só sabe fazer maldade, usam a caneta com maldade.
Além de tentar atingir os jornalistas com mais uma palavra torpe, o que ele faz é ofender os doentes e até os mortos. Se ele define como bundões os que têm mais risco de morrer, se ele vive se referindo ao seu passado de atleta e diz que a doença tem que ser enfrentada “como um homem”, os que perderam a batalha têm culpa de seu próprio destino?
A pessoa pública deve prestar contas e esclarecer zonas de sombra e dúvidas. É inerente aos cargos que ocupam. Não há motivo aparente para que Fabrício Queiroz e sua mulher Márcia façam depósitos na conta de Michelle Bolsonaro. Eles eram funcionários do gabinete do filho mais velho do presidente. O caso todo é uma coleção de dúvidas. Os excessos de depósitos em espécie na conta de Flávio Bolsonaro, os funcionários fantasmas que ocupavam aquela folha salarial, ter parentes do miliciano Adriano da Nóbrega entre esses falsos servidores. De um lado, o senador Flávio Bolsonaro em vez de se explicar, faz chicana. De outro, o presidente da República, em vez de responder, ameaça de agressão física o jornalista que perguntou. Mais de um milhão de tuítes repetiram a mesma pergunta e ela permanece no ar. Por que aqueles depósitos foram feitos na conta da mulher do presidente?
O risco de o país se acostumar está presente o tempo todo. Nos pouco mais de 60 dias em que Bolsonaro falou menos barbaridades, muitos passaram a considerar que agora ele estava estabilizado, teria sido enquadrado pelas instituições. O ministro Jorge Oliveira disse ao “Valor” que o presidente é “veemente”. Ora, ministro, procure outra palavra que defina com mais exatidão a arrogância, a agressividade, os ataques do presidente aos que ele escolheu como inimigos.
Quando Bolsonaro moderou o tom não foi por ter entendido o decoro do cargo, mas porque teve medo. Ele submergiu logo após Queiroz ter sido encontrado na casa do advogado Frederick Wassef que defendeu o presidente e era advogado de Flávio quando abrigou a peça-chave para esclarecer o que se passava no gabinete do agora senador.
Bolsonaro tem usado as Forças Armadas no mesmo estilo de Hugo Chávez. Como Chávez, ele chegou ao governo pela via democrática, como o ex-ditador venezuelano ele também não tem apreço pelas instituições democráticas. Na Venezuela, o orçamento privilegiou os gastos da Defesa para costurar essa lealdade militar. Essa história não terminou bem lá, não terminará bem aqui, a menos que o país se defenda de um jogo já conhecido. O passo agora é usar os recursos públicos para cimentar seu populismo. Na Venezuela foi assim também. O dinheiro dos nossos impostos deve chegar a quem mais precisa, mas não pode ser apresentado como doação do líder magnânimo às massas. Contudo, é para sustentar essa visão que se trabalha no governo em todas as áreas, inclusive na economia.
Míriam Leitão: Risco democrático é o ponto central
“Esta eleição é sobre preservar a democracia”, disse o senador americano Bernie Sanders na convenção do Partido Democrata. A mensagem foi passada até nos cenários escolhidos. O ex-presidente Barack Obama falou diretamente do icônico “National Constitution Certer”, museu da Constituição, na Filadélfia. O candidato Joe Biden confirmou no seu discurso que essa é a luta principal. No Brasil, o Supremo deu o mesmo recado. Proibiu o Ministério da Justiça de fazer dossiê contra funcionários que não apoiam o governo. “É incompatível com a democracia”, segundo o ministro Luiz Roberto Barroso. A Corte condenou a espionagem de adversários feita pelo Ministério da Justiça, confirmando, por nove a um, o voto claro da ministra Cármen Lúcia.
A democracia, que parecia garantida, passou a ser ameaçada por governantes sem valores democráticos e com desprezo pelas instituições. O importante no dossiê contra policiais antifascistas e pessoas notáveis, como os professores Paulo Sérgio Pinheiro e Luiz Eduardo Soares, é que ele não pode ser feito. É inaceitável. Simples assim. Alguns ministros ressaltaram que o relatório tinha péssima qualidade como documento de inteligência. Isso é assunto lateral. O relevante é a atitude do Ministério da Justiça, de usar a máquina para investigar servidores que não concordam com o governo.
O ministro André Mendonça é o maior derrotado, mesmo tendo sido poupado, e até defendido pelo presidente Dias Toffoli. O país viu seu contorcionismo. A ministra relatora quis saber: existe ou não existe o dossiê? Ele tentou escorregar, mas a realidade se impôs. O pior momento do ministro da Justiça foi alegar questão de segurança nacional para negar ao STF o acesso ao documento. Felizmente, a ministra Cármen não se deixou enganar pela mentira embrulhada na bandeira. Exigiu conhecer o teor e fundamentou seu voto: “O Estado não pode ser infrator, menos ainda em afronta a direitos fundamentais que é sua função garantir e proteger.”
A existência dessa atitude infratora do governo, de montar um dossiê identificando servidores contrários ao fascismo, foi revelada pelo jornalista Rubens Valente no UOL. O país não caiu no erro de deixar passar para ver como é que fica. A Rede Sustentabilidade foi ao Supremo. O STF estabeleceu que o Ministério da Justiça não faça mais esse tipo de investigação, porque isso ameaça a democracia e é “desvio de finalidade”.
Na discussão, duas coisas ficaram claras: mesmo que seja nomeado ministro do Supremo, André Mendonça não merece a cadeira. Ele se comportou mal com suas versões conflitantes, mas o pior foi não entender a função constitucional do Supremo. Outro ponto a ficar explícito foi a constrangedora submissão do procurador-geral da República ao executivo. Colocando-se, na prática, como assistente do advogado-geral da União, Augusto Aras traiu o papel que a Constituição entregou ao chefe do Ministério Público.
Nos Estados Unidos, a convenção democrata, toda virtual, trouxe um recado real. Obama disse que Donald Trump representa a maior ameaça às instituições americanas. “É isso que está em jogo neste momento, a nossa democracia.” E por fim avisou sobre a dureza da luta dos próximos 70 dias: “Essa administração já mostrou que destroçará a nossa democracia, se é isso que precisa para ganhar.”
O candidato democrata Joe Biden confirmou a mensagem de toda a convenção. Falou dos tempos sombrios que Trump representa. “O caráter nacional está em disputa nas urnas. A decência, a ciência, a democracia.” Falou em “salvar nossa democracia”. Em tempos de descrença, alguém pode perguntar para que ela serve afinal? Para ter líderes que tragam uma palavra de conforto quando o país atravessa período de sofrimento. “O melhor caminho para superar a dor, a perda e a desolação é encontrar um propósito”, disse o candidato democrata, que em sua vida pessoal viveu o que diz. E o propósito final tem que ser sempre ampliar a inclusão de todos os grupos da sociedade. A convenção democrata trouxe de volta à cena a nova demografia da América, colorida, diversa, multicultural, ecumênica, que está explícita na exuberante diversidade de Kamala Harris, negra, filha de imigrantes — mãe indiana e pai jamaicano — e que estará na chapa que enfrentará Donald Trump.
Míriam Leitão: Festival de sandices que exaure o Brasil
Este governo é uma fábrica de ideias péssimas. Algumas delas parecem, no primeiro momento, mentira. Taxar desempregado para financiar um programa de emprego e ainda batizá-lo de verde e amarelo. Adiar de 65 para 70 anos a idade na qual o idoso da extrema-pobreza terá direito a receber integralmente o Benefício de Prestação Continuada. Pegar dinheiro do Bolsa Família para financiar propaganda do Planalto. Todas essas ideias já foram derrotadas, felizmente. Mas o que elas têm em comum? Uma insensibilidade social que chega a ser caricata.
A nova péssima ideia, que no primeiro momento pareceu fake news, é a de adiar o Censo para 2022 e usar os recursos para reforçar o orçamento do Ministério da Defesa. O país simplesmente não pode mais atrasar o registro do seu retrato demográfico, de todas as múltiplas informações que só se consegue com o Censo. Ele fica mais urgente porque já foi adiado por um ano, por causa da pandemia, e porque em 2015 não foi feita a contagem da população.
O vice-presidente Hamilton Mourão admitiu que isso está em análise. O IBGE nada tem a dizer oficialmente sobre o assunto. O temor cresce porque, apesar do excelente quadro técnico do IBGE, a atual direção do órgão sofre de excessiva submissão ao Ministério da Economia, como ficou demonstrado no episódio dos cortes no orçamento do Censo. Mourão argumentou que os projetos do Ministério da Defesa estão atrasados. Se a construção de uma fragata for adiada o país não vai naufragar. Mas sem dados para orientar as políticas públicas ficará à deriva.
Algumas ideias mostram um governo sem rumo, que atira a esmo. Aliás, como gosta de atirar. Ele decidiu vetar máscaras em comércio, escolas, igrejas. Felizmente o Congresso derrubou. Tentou tirar a obrigatoriedade de cadeirinha de segurança para criança e aumentar a quantidade aceitável de infrações do trânsito. O Ministério da Economia quis adiar a vigência do Fundeb para 2022, o que criaria um caos no ano que vem. O presidente mandou o Exército produzir milhões de comprimidos de cloroquina e o presidente chegou a correr atrás de uma ema para persuadi-la a ingerir a medicação. O Ministério da Justiça fez um dossiê contra policiais que se declaram antifascistas, ato que serve como autodeclaração da tendência política desta administração. Falou-se em reduzir de 8% para 6% o recolhimento do FGTS, tirando do trabalhador para ajudar o patrão. Cada uma que parece duas.
Há ideias que são fixas. A melhor representante dessa categoria persistente é a CPMF. Não há uma proposta que saia do Ministério da Economia que não seja condicionada à criação do imposto de nome não dito, mas de feição fácil de reconhecer.
Quando as sandices são empilhadas e analisadas percebe-se que não há um centro gerador das más ideias. Há método na coisa. O governo segue as modernas técnicas de gestão descentralizada. De cada ponto pode sair maluquice. Essa de trocar o Censo por armamento, por exemplo, não se sabe de onde surgiu. É tão ruim que seu autor não teve a coragem de defendê-la publicamente. Mourão falou porque foi perguntado e deu uma esperança: dependerá do Congresso.
O ex-presidente do IBGE Roberto Olinto definiu a proposta como “escândalo inaceitável” e explicou algo que não ocorreu aos nossos governantes. “Ter o Censo é também fazer a defesa do país”, porque, como explicou à repórter Adriana Fernandes do “Estadão”, “é muito mais estratégico ter o conhecimento do país”. O Brasil muda muito, é complexo, tem enormes desigualdades e carências, e sairá ainda mais desigual desta pandemia. Que cabeça pode conceber a proposta que, como disse Olinto, “rompe qualquer protocolo de produção de estatística mundial de qualidade”?
Muitas das ideias ruins são derrotadas depois de batalhas no Congresso, na Justiça ou no debate público. Mas elas todas juntas mostram que, se vivo fosse, o genial Sérgio Porto, Stanislaw Ponte Preta, poderia reinaugurar o que ele batizou de “festival de besteiras que assola o país”. Hoje, o termo “sandice” define mais precisamente certas ideias governamentais. E em vez de assola, talvez a palavra “exaure” seja mais exata. O país está esgotado de tanto brigar pelo que é óbvio, pelo que deveria estar claro, pelo que já estava garantido. Agora será necessário lutar para que o IBGE faça o Censo. Que insensatez.
Míriam Leitão: O veto, o governo e as contradições
O Senado errou e, felizmente, a Câmara corrigiu a tempo, mantendo o veto do presidente Bolsonaro à permissão de aumento de salário de certas categorias de servidores. Mas esse caso é complexo e emblemático das contradições do governo. Há um fenômeno no Brasil que poderia ser definido como sensibilidade fiscal seletiva. Atinge a equipe econômica, o próprio ministro Paulo Guedes, e principalmente o presidente Jair Bolsonaro. Guedes disse que o Senado cometeu crime contra o país. Bolsonaro declarou que não poderia governar se o veto fosse derrubado, num exagero bem conveniente. Quando o presidente cria despesas corporativas é também crime contra o país e impedimento a que se governe?
Bolsonaro é errático em matéria fiscal. Ele inicialmente não queria que houvesse proibição de reajustes a servidores federais. O ministro da Economia então incluiu esse ponto no acordo de transferência de recursos para estados e municípios para valer para toda a federação. O presidente decidiu proteger alguns. Demorou 20 dias para sancionar a lei dando tempo, assim, de aprovar aumentos de salários de policiais civis e militares do Distrito Federal, Amapá, Roraima e Rondônia, e também para votar uma reforma na carreira dos policiais federais. Os adicionais dos salários das Forças Armadas estavam fora dessa proibição de reajuste, sob o argumento de que haviam sido garantidos pela reforma da previdência dos militares.
Quando eleva as despesas públicas para beneficiar os grupos que protege, Bolsonaro não considera que isso inviabilize o governo, nem o ministro Paulo Guedes acha que é traição ao Brasil. A ambiguidade fiscal do presidente é sempre justificada pelo ministro da Economia. Ele repete que o presidente teve “60 milhões de votos”, por isso é natural que ele tome essa ou aquela medida, mesmo que seja o oposto do recomendável. Bolsonaro podia ser deputado dos militares e policiais, mas não pode ser o presidente de algumas categorias. Um presidente corporativista é uma contradição ambulante.
O número com o qual o governo tentou assombrar o Brasil não fica de pé. Ninguém sabe de onde saíram aqueles R$ 130 bilhões de custo. Parlamentares que defendiam o veto não entenderam o cálculo e falavam em algo em torno de R$ 10 bi ao governo federal em 18 meses. Economistas do setor privado que concordam com o veto também faziam contas nessa faixa de estimativa. Seja qual for o dado, o Senado estava errado por dois motivos. Haveria impacto nas contas públicas, ainda que não fosse trivial calcular. O outro ponto que mostra o quanto o Senado errou é ignorar o que está acontecendo no mercado de trabalhadores do setor privado. Há uma devastação de emprego e renda em curso. Dez milhões de pessoas deixaram a população ocupada porque seus empregos sumiram. Outros dez milhões de trabalhadores com carteira assinada tiveram redução de salário. Os servidores, que estão protegidos do risco de demissão, teriam ainda reajustes?
A história inteira desse projeto mostra a quantidade de problemas que o governo consegue criar pela sua articulação trôpega e os improvisos do ministro da Economia. A Câmara aprovou uma proposta de transferência de recursos para os estados e municípios, dado que o governo não tomava qualquer iniciativa para ajudar os estados, além do aumento do FPE. Paulo Guedes reagiu à proposta dizendo que era uma irresponsabilidade fiscal, um cheque em branco. Rodrigo Maia, que tem orgulho de sua agenda em prol da estabilidade fiscal do país, ficou ofendido. Guedes foi então ao Senado para mudar o projeto da Câmara. Levou ao senador Davi Alcolumbre um projeto próprio. Ele foi aprovado, mas nele os senadores incluíram que haveria exceções para algumas categorias na proibição de reajustes e foi isso que Bolsonaro vetou.
Agora, o Senado, ao qual o ministro acorreu na sua briga com o presidente da Câmara, acabou derrubando o veto, e ontem, por ironia, o governo precisou do deputado Rodrigo Maia para manter o veto. Desde cedo, o presidente da Câmara trabalhou para articular a manutenção do veto, fez uma declaração criticando os termos usados por Guedes para se referir à decisão do Senado e fez uma sustentação do microfone no lugar do líder com uma argumentação simples: alguém pode dar aumento? Não. Então por que derrubar o veto? Tudo teria sido mais fácil, simples, se houvesse uma boa negociação e o governo não fosse essa fábrica de atritos em todas as áreas.
Míriam Leitão: Entre cheques, gastos e votos
A semana passou entre eventos polares para o presidente da República. Novos fios envolveram o novelo das suspeitas de corrupção em torno da família Bolsonaro. Os muitos cheques cruzando contas e os pagamentos em dinheiro vivo definem um método de lidar com as finanças que não resiste a qualquer auditoria. No final da semana tumultuada, Bolsonaro pôde comemorar uma melhora substancial na sua aprovação. Isso abrirá mais seus ouvidos para os que o aconselham a ampliar os gastos. O ministro da Economia, Paulo Guedes, terminou a semana mais fraco.
Um dia depois de ter feito a cena do espelho d’água, Bolsonaro mostrou que suas palavras a favor do teto de gastos não refletiam a realidade. Repetiu o mesmo argumento que o levou a dizer em setembro passado que rever o teto era uma questão matemática. “O piso sobe anualmente.” Depois, passou a desfilar as razões pelas quais as despesas são todas meritórias. Disse que Tarcísio de Freitas, o ministro da Infraestrutura, tem pouco para investir em estradas. “A Defesa, a nossa Defesa, tem cinco projetos estratégicos”, afirmou sobre a pasta de Fernando Azevedo. E, agarrado ainda à profissão que exerceu por apenas 11 anos, disse que lhe perguntam: “Você é militar e esse ministério vai ser tratado dessa maneira?” Depois, defendeu “o nosso querido Marinho”, que também precisa de mais recursos. Um dos projetos, explicou, é água para o Nordeste. Dilma sustentava que despesa é vida e disse que ampliou gastos para pagar o Bolsa Família. Tudo naquela fala de quinta-feira de Bolsonaro lembrou um velho filme cujo final conhecemos. “Aí o Paulo Guedes diz: está sinalizando para a economia, o mercado, que está furando o teto, dando um jeitinho.”
Diante das conclusões de que ele estava falando em romper o teto, criticou a imprensa que não teria visto a parte principal da fala: “Paulo Guedes é 99,9% com ele, mas tem 0,1% de poder de veto”. Modesto. Seu poder de veto empurrou Joaquim Levy e Marcos Cintra para fora da equipe, engavetou a reforma administrativa, acabou com o programa de privatização, desnomeou o diretor de mercado de capitais do BNDES, incluiu vantagens para categorias protegidas na reforma feita para cortar vantagens. Bolsonaro usou bem os seus 0,1%. Com esse percentual mínimo desmontou o programa econômico da campanha.
Agora, embalado pela recuperação da popularidade, apesar de todos os absurdos que fez durante esta pandemia, Bolsonaro quer ampliar despesas. Falta a Paulo Guedes um programa claro para a superação da crise. Ele chegou ao governo sustentando que faria o que não fora feito em “40 anos de social-democracia”. O número não está correto, os governos não foram iguais, e fizeram muito, mas era assim que ele apresentava a história recente.
Gastar sempre foi da natureza do centrão, com o qual Bolsonaro se acasalou. E precisará desse cônjuge para se proteger das sombras que o cercam. A primeira ex-mulher comprou um apartamento com dinheiro vivo, a segunda ex-mulher também usou o numerário em mão como meio de pagamento na aquisição de imóveis, a atual recebeu quase R$ 90 mil em cheques depositados por Fabrício Queiroz. Outros cheques foram parar na conta da mulher de Flávio que, por sua vez, se enrola cada vez mais em pagamentos em espécie de imóveis e na contabilidade da sua loja de chocolates. A filha de Queiroz trabalhando no gabinete de Jair Bolsonaro também entregava o dinheiro ao pai, como todos os funcionários fantasmas de Flávio, inclusive a mãe e a ex-mulher do miliciano Adriano da Nóbrega. Essas histórias dos Bolsonaro têm dois pontos em comum: as transações não parecem normais, as explicações da família não respeitam a inteligência alheia. Qual versão ganha o campeonato de inverosimilhança? A de que os cheques foram para a conta de Michelle porque o presidente estava em Brasília, a de que ninguém sabia que Queiroz era hóspede de Frederick Wassef ou a daquele boleto pago por um amigo porque Flávio não queria sair da festa?
Num roteiro como esse não cabem ajustes amargos e reformas polêmicas. Por isso, é tão incerta a permanência de Paulo Guedes no governo. Ele já demonstrou que aceita as desfeitas que recebe de Bolsonaro com o argumento de que o presidente é que teve os votos das urnas. Guedes não entendeu que as equipes que venceram em momentos decisivos, de lutas entre grupos de interesses, foram as que tiveram a coragem de dizer não aos presidentes, ainda que fossem eles os detentores dos votos.
Míriam Leitão: Bolsa Família e Bolsonaro
“O voto do idiota é comprado pelo Bolsa Família”, disse Jair Bolsonaro, certa vez. Ele já definiu esse programa como a forma de “tirar dinheiro de quem produz para dar para quem se acomoda”, e pediu que fosse extinto. Em 2017, em Barretos, afirmou que “para ser candidato a presidente tem que falar que vai ampliar o Bolsa Família”. No mundo inteiro, o Bolsa Família sempre foi elogiado por ter foco, baixo custo, e porque através dele foi criada uma rede de proteção social aos mais vulneráveis no Brasil. Esse presidente, que tem tal desprezo por essa política social, fará agora o Renda Brasil. Seu objetivo é um só: o de se reeleger.
Todas as ações anteriores de Bolsonaro negam qualquer compreensão da importância de políticas de transferência de renda. Em março, foram cortados 158 mil beneficiários do Bolsa Família, 61% eram no Nordeste. Os governadores, então, foram ao Supremo, que na semana passada confirmou a decisão do ministro Marco Aurélio de proibir novos cortes enquanto durar a pandemia. Em junho, o governo tentou tirar dinheiro do Bolsa Família para gastos com publicidade do Planalto. Na quinta-feira passada, o ministro Paulo Guedes, em entrevista a um instituto espanhol, revelou que haverá um acréscimo de seis ou sete milhões de beneficiários. No dia da reunião sobre o teto, Guedes gastou um bom tempo falando no Alvorada que o Renda Brasil será criado. Era uma forma de dizer para o presidente que cortaria gastos, mas daria para ele o Bolsa Família com outro nome.
O mais popular e mais bem-sucedido programa social do Brasil foi tecnicamente bem feito, resultou de estudos de especialistas e nasceu dos programas definidos como Bolsa Escola. Algumas vezes, foi usado nas campanhas, quando se disseminavam boatos de que um determinado candidato acabaria com ele. No caso de Bolsonaro, parecia possível porque ele sempre fez críticas. Mas hoje o programa foi incorporado ao rol das políticas públicas que permanecerão. O que se quer agora é reempacotá-lo para servir à reeleição de Bolsonaro. A equipe econômica tem trabalhado com esse objetivo declarado.
Num vídeo postado por Bolsonaro na segunda-feira, o presidente da Caixa Econômica Federal (CEF), Pedro Guimarães, está no aeroporto, faz uma chamada de vídeo para o presidente e diz: “Tem uma história interessante da dona Maria José aqui.” E, pelo celular, mostra o presidente à mulher. Ela diz que é “apaixonada, louca” por ele. E agradece “tudo o que você tem feito por nós, principalmente os amapaenses”. Pedro Guimarães, no papel de garoto-propaganda, pergunta: “E quanto você vai receber hoje aqui?” Ela diz que são duas parcelas. “Eu vendo bombom trufado aqui no Amapá e tem me ajudado muito a sua ajuda”, ela fala se dirigindo ao presidente. Conta que é evangélica. No encerramento do vídeo, Guimarães, em voz bem alta, em local público, para confirmar com quem está falando, diz: “E aí presidente tudo bem?” Tudo foi filmado por um outro celular, talvez de um assessor de Guimarães. Bolsonaro postou o vídeo com o texto: “Auxílio de R$ 600 salvando vidas.”
Dona Maria José está gerando renda com o auxílio que recebeu, ao fazer o bombom trufado. Um caso realmente interessante, mas Bolsonaro e Guimarães mostram que estão interessados em propaganda eleitoral, em tirar proveito da história dela. O uso político da CEF supera os abusos do passado.
O país precisará de uma ampliação do Bolsa Família. E seria bom que ele ocorresse dentro de um planejamento técnica e fiscalmente bem feito, para continuar sendo sustentável. O palanque, contudo, vai desvirtuar o programa. A pesquisa do Datafolha mostra que o auxílio emergencial, que era de fato necessário, reduziu sua rejeição e aumentou a aprovação.
Bolsonaro é um populista. E tem um projeto autoritário. Como no chavismo, que distribuía o dinheiro do petróleo para se perpetuar. Bolsonaro esqueceu o que dizia do Bolsa Família e usará qualquer programa social que for formatado como alavanca eleitoral. Não é possível deixar os pobres sem proteção. Não é aceitável ver um candidato a ditador usando recursos públicos como se fosse dinheiro dele doado aos pobres, como Bolsonaro e Pedro Guimarães quiseram fazer crer à dona Maria José.
Míriam Leitão: A encenação no espelho d’água
A discussão em torno do teto de gastos não nasceu esta semana e não é um dilema criado pela pandemia. A ideia de que estava tudo indo bem e que a crise na saúde fez desandar a economia é falsa. Em setembro do ano passado, o presidente disse que o teto de gastos precisaria ser flexibilizado, do contrário, em dois ou três anos ele teria que apagar a luz de todos os quartéis. “É uma questão matemática”, concluiu. Ontem, ele apareceu com ministros, os presidentes das duas Casas do Congresso e garantiu que vai respeitar o teto. Até o espelho d’água do Alvorada entendeu que a cena foi montada para acalmar o ministro da Economia, Paulo Guedes, mas o presidente continua prisioneiro de sua indecisão.
Na época, em setembro de 2019, o ministro Paulo Guedes reclamou da declaração do presidente contra o teto, e ele recuou, mudando sua matemática. Disse que respeitaria o teto. Sua convicção, no entanto, não mudou. Tanto que nos meses seguintes engavetou a reforma administrativa, defendeu interesses corporativos, ignorou as propostas de emendas que mandou para o Congresso, não se mobilizou por projeto fiscal algum. Teve olhos apenas para as medidas que aumentavam o acesso às armas. Esta semana, mesmo em meio à pandemia, ele voltou às armas e justificou dizendo que é uma promessa de campanha.
A agenda da economia também foi promessa. Mas era artificial. Foi implantada em seu programa ocupando o vazio de ideias. Nesta crise, todos criam versões distantes da realidade. O ex-secretário Salim Mattar disse que está saindo porque não se acostumou com a burocracia de Brasília, e que os sindicatos, os corporativistas, a esquerda impedem a privatização. Tinha tudo isso no governo Fernando Henrique e ele privatizou. A verdade é que Mattar, apesar dos autoelogios sobre a sua capacidade administrativa, não foi um bom gestor. E, além disso, o presidente Jair Bolsonaro vetou a venda de algumas estatais e não se interessou por outras. No meio tempo, criou uma estatal.
No mercado, ontem, os ativos mostravam instabilidade. O Banco Central vendeu logo cedo US$ 500 milhões no mercado futuro para conter a elevação do dólar. O real já abriu sendo a moeda emergente que mais se desvalorizava. Os juros futuros — contratos negociados por investidores que tentam estimar a taxa básica de juros — bateram em 5,75% com vencimento em janeiro de 2025. Nos últimos três dias, houve aumento de 0,6 ponto percentual nessa taxa, o que significa que eles estão apostando em aumento na Selic no médio prazo. O Bradesco enviou relatório para alertar que mesmo com o cumprimento do teto de gastos a dívida pública permanecerá em 98% do PIB até 2025. Se ele for furado, e isso afetar o crescimento do país, a dívida poderia chegar a 110% no mesmo período. Houve um momento em que Nathan Blanche, da Tendências, disse à coluna que teria que haver uma reunião entre Bolsonaro com os dois presidentes do Congresso para fazer um pacto pela reforma. A reunião acabou acontecendo no fim da tarde. Quanto durará essa declaração conjunta? Menos que o tempo de um pregão.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, querem que alguma agenda ande no Congresso, mas no mesmo dia de ontem a mobilização no parlamento era em torno dos vetos do presidente. Maia falou no Alvorada na aprovação dos “gatilhos” que dariam possibilidade de gerir o orçamento. Ele se referia aos projetos de corte de certos gastos, como a suspensão de aumento de salário de funcionalismo, previstos na PEC emergencial. Havia uma proposta de iniciativa do Legislativo. O ministro da Economia preferiu ignorá-la e mandar sua própria proposta. Que está parada.
Os ministros gastadores dizem para o presidente que essa é a única forma de salvar o governo dele e melhorar sua popularidade. Paulo Guedes avisa que isso levará ao caos, às pedaladas, e que ele terá o mesmo destino da presidente Dilma. Bolsonaro tem medo de perder Paulo Guedes, mas não acredita na agenda dele. Gosta do que ouve dos ministros fura-teto, mas não quer ficar sem sua placa do Posto Ipiranga. Os erros de Guedes o enfraqueceram, a pandemia fortaleceu o argumento do aumento de gastos. Indeciso, Bolsonaro tem apenas um alvo: a reeleição em 2022.