Míriam Leitão
Míriam Leitão: Não é a economia, Donald Trump
O presidente Trump surfou ontem no número do PIB do terceiro trimestre. Já se esperava. A alta de 7,4%, ou 33% anualizados, na métrica confusa que eles usam, não recuperou a queda do ano. O segundo trimestre afundou 31,7%, ou 9% na comparação com o primeiro, que já havia caído 1,26%. Trump não tem programa econômico para o segundo mandato e passou a campanha distorcendo os dados do desempenho do seu governo. O balanço dos números mostra que ele pegou o país crescendo e manteve, mas disse que criou a prosperidade que herdou. Estimulou o curto prazo e aumentou os riscos de longo prazo. Prometeu reviver a indústria e não conseguiu, apesar do protecionismo.
A “Economist” publicou uma análise sobre o que chamou de “afirmações econômicas extraterrestres” de Trump. Segundo a revista, Casey Mulligan, que foi economista-chefe do Conselho Econômico de Trump, contou que o presidente exagera de propósito quando diz coisas como ter tido o melhor desempenho da história econômica do mundo. A estratégia é: ele mente, a imprensa vai corrigi-lo e, ao fazer isso, acaba disseminando a mentira que ele disse, segundo o economista que trabalhou com ele.
A verdade é que mesmo com a recuperação forte anunciada ontem para o terceiro trimestre o FMI prevê uma recessão de 4,2% para o país, um déficit primário de 18% e uma dívida que vai subir de 108% para 131% do PIB.
Ao fechar a economia com tantas tarifas e cotas, Trump foi o oposto de outro presidente republicano, Ronald Reagan, autor da virada liberal dos EUA. Essa foi uma das contradições de sua gestão. A outra é que ele prometeu reviver os anos dourados da indústria convencional. Impossível. O processo produtivo global já mudou muito nas últimas décadas.
A derrubada do desemprego na economia americana aconteceu no governo Obama, que herdou a crise financeira de setembro de 2008, nos últimos meses da administração Bush. Em uma longa recuperação que tomou os seus dois mandatos, a taxa desabou de 9,2%, em 2009, para 4,2%, em 2016. Trump entrou em 2017 e a reduziu para 3,8% em 2019. A melhor notícia do seu período foi a alta dos salários, com a demanda por mão de obra. Esse processo foi interrompido pela crise econômica da pandemia, e o desemprego deve fechar o ano em 9%. O “Financial Times” diz que há pelo menos 10,7 milhões de desempregados a mais no país.
De acordo com analistas do “New York Times”, Trump merece algum crédito no desempenho americano dos últimos quatro anos. Não pela redução de impostos que beneficiou apenas os mais ricos, mas por ter escolhido Jerome Powell presidente do Fed.
Seu forte corte de impostos aumentou o déficit primário, que subiu de 2,4% em 2016 para 4,1% em 2019. Trump também merece as críticas que recebe porque suas decisões durante a pandemia agravaram a crise. O desmonte da legislação de proteção climática e ambiental elevou os riscos futuros. Segundo o “NYT”, há um ano Joe Biden havia alertado que o país não estava preparado para uma pandemia, em parte porque Trump desfez as decisões do ex-presidente Obama.
A briga com a China foi feita para Trump manipular o sentimento do “inimigo externo”, o que sempre mobiliza o americano médio. Há uma grande simbiose entre as duas economias. Produtos chineses têm insumos americanos e vice-versa. A política de Trump fere a própria economia dos EUA.
Mas isso são os fatos, e Trump pode dizer: para que eles servem se eu posso criar os fatos alternativos? A dificuldade de analisar esse período de quatro anos do mandato Trump é que a separação entre o que aconteceu e a sua abundante produção de mentiras leva uma vida.
Os números, contudo, mostram que ele pegou a economia muito melhor do que o seu antecessor e encerra o mandato com ela muito mais endividada e deficitária. Isso já era verdade mesmo antes da pandemia.
Mas a mais importante conclusão sobre o governo Trump não tem que ver com percentuais de déficit, PIB ou mesmo desemprego, mas sim com o mal que ele fez ao estágio civilizatório do mundo. Ele saiu do Acordo de Paris, hostilizou os organismos multilaterais, estimulou o conflito interno, trouxe de volta fantasmas dos quais o mundo pensava já ter se livrado, como os grupos de defesa da supremacia racial, normalizou atitudes repulsivas. Trump exportou ao mundo seu extremismo e sua intolerância. Não é um indicador econômico que está em questão nesta eleição. É a humanidade.
Míriam Leitão: Banco Central e o alerta fiscal
O Banco Central decide hoje a taxa de juros em um cenário bem diferente da última reunião. Não há aposta em novo corte da Selic. A discussão no mercado financeiro é quando a taxa voltará a subir com a piora do quadro fiscal. A inflação acelerou. O setor de gás passará por uma onda de reajustes em patamar de 25% em muitos estados, como Bahia, Santa Catarina e Rio de Janeiro. Os juros futuros subiram porque há enorme dúvida sobre o financiamento da dívida pública.
Hoje a decisão está dada. A Selic será mantida em 2%. Ano que vem ela aumenta, dizem os bancos. Há poucos meses, o Banco Central passou a adotar uma comunicação com detalhamento mais claro sobre os seus próximos passos, o que eles chamam de forward guidance. O objetivo é evitar surpresas na condução da política monetária. Mas se for para seguir direito essa estratégia precisa dizer com todas as letras que as condições de financiamento da dívida pioraram, e as expectativas de inflação subiram. Terá o BC autonomia para dar um recado duro ao governo sobre a gravidade do momento? Não basta colocar na agenda do Congresso o projeto de independência do BC. Autonomia se mostra na prática. Adianta pouco falar mais uma vez que o cenário é “desafiador”. O FMI diz que o Brasil é o país emergente com pior desempenho fiscal nesta pandemia.
A inflação surpreendeu nas últimas semanas. As projeções dos bancos e consultorias perderam para a realidade. Os IGPs, que medem a inflação no atacado, estão com variações em dois dígitos. Os preços da soja (83%), do milho (75%) e do trigo (40,9%) dispararam para os produtores, e isso significa alta de alimentos importantes da cesta básica, como carnes, pães, massas e óleos de cozinha. Arroz (122%) e feijão (28%) também subiram muito no atacado. Segundo a MB Agro, a alta dos alimentos acontece pelo aumento do dólar, dos preços internacionais das commodities e pela demanda no Brasil turbinada pelo auxílio emergencial.
Na taxa em 12 meses, o IPCA acelerou de 1,88%, em maio, para 3,14% em setembro. Ainda está abaixo da meta. A prévia de outubro foi um espanto: 0,94%. A MB Associados projeta que a inflação continuará subindo até 5,4% em maio do ano que vem, segundo o economista Sérgio Vale. Ou seja, mesmo se o governo começar a enfrentar a crise fiscal, já há uma alta da inflação contratada. Se cometer erros, o risco é de uma nova disparada do câmbio, com pressão ainda maior sobre os preços. Ontem, o Bradesco reviu sua projeção para a inflação, com aumento da Selic pelo Banco Central a 3,5% até o final do ano que vem. O banco alerta, porém, que nesse cenário não está contando com “qualquer flexibilização do teto, postergação do estado de calamidade ou eventual extensão do auxílio emergencial fora do teto de gastos.” Ou seja, esse é o cenário benigno. Se o governo adotar qualquer saída populista, ou inventar uma contabilidade criativa, haverá uma mudança total no preço dos ativos.
Segundo a Abrace, Associação dos Grandes Consumidores de Energia, após as quedas nos preços do gás durante a pandemia o que se espera agora é uma enxurrada de reajustes em 18 estados. São Paulo deve ter alta de 8,8%, mas os demais terão aumento nas tarifas na casa de dois dígitos, chegando a 30% em Minas Gerais e Pernambuco, e 25% no Rio, Bahia e Santa Catarina. Essas altas seriam decorrentes da subida do dólar, que ontem chegou a R$ 5,68, e da elevação do preço do petróleo no mercado internacional. A reação ideológica do Itamaraty na eleição de Luis Arce na Bolívia torna mais difícil uma boa solução na renegociação do gás com o país vizinho.
A economia está na seguinte situação: a queda do PIB foi atenuada pelo auxílio emergencial, mas todo o gasto da pandemia piorou muito a situação fiscal. O governo não sabe ainda como vai financiar o novo programa social ou a ampliação do Bolsa Família. Neste momento de juros baixos, em 2%, há uma janela para fazer o ajuste. Mas o governo não enviou reformas que mudem o quadro de verdade. O presidente é populista e nunca teve real aderência à agenda de equilíbrio fiscal. Bolsonaro não mexeu no teto com medo de que isso o leve a um impeachment. Se seus conselheiros o convencerem do contrário, ele, sim, mexerá no teto. Aí a casa cai no mercado financeiro.
Míriam Leitão: Crimes no solo da Amazônia
Os grandes números impressionam, a descrição dos crimes encontrados no solo da Amazônia, também. A Operação Verde Brasil 2 aplicou de 11 maio até esta semana multas no valor total de R$ 1,696 bilhão. O Exército em solo e a Marinha nos rios apreenderam carregamentos de madeira suficientes para encher duas mil carretas. E isso foi até a última quarta-feira. Em apenas uma operação contra o garimpo ilegal foram encontrados 45 quilos de ouro. Ao todo nesses meses foram apreendidas oito mil toneladas de minerais ilegalmente extraídos, a maior parte manganês.
Os 45 quilos de ouro têm o valor de R$ 15 milhões. Foram encontrados dentro da Reserva Biológica de Maicuru, entre os municípios de Santarém e Itaituba, numa operação nos dias 9 e 13 de outubro. O local é definido pelos militares como “totalmente inóspito e de difícil acesso”. Foram por ar com a Força Aérea. Junto com os militares, a Polícia Federal e o Ibama. Lá, destruíram também 15 motores estacionários de garimpo.
Eles não saem assim às cegas. Em Brasília um grupo reúne todos os órgãos envolvidos com o tema. Um deles é o Inpe. Com imagens de satélite escolhe-se onde agir. Em videoconferências falam com os comandos militares na Amazônia. No resto é patrulha mesmo por terra, rio e ar.
Na manhã de 2 de setembro, as tropas das Forças Armadas chegaram numa fazenda que fica a leste da Terra Indígena Yanomami, ao norte da Estação Ecológica Niquiá, no município de Caracaraí. Estavam juntos técnicos do ICMBio, policiais militares de Roraima e fiscais ambientais do estado. Era uma atividade de combate ao garimpo ilegal. Eles apreenderam quatro aviões, mas havia outras aeronaves sendo consertadas e uma sendo montada. Havia uma pista de pouso e um hangar com espaço para cinco aviões.
As distâncias são enormes e só podem ser vencidas com o que eles chamam de “uma logística forte”, que apenas as Forças Armadas têm. Os militares dizem que precisam da cooperação dos órgãos ambientais. Na verdade, eles definem a Verde Brasil 2 como uma operação interagências. E a lista inclui, além das três forças, ICMBio e Ibama, a Funai, o Serviço Florestal Brasileiro, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Incra, órgãos ambientais estaduais e polícias locais.
No dia 25 de junho, um navio patrulha da Marinha encontrou carregamento de madeira na foz do Rio Tocantins, no Pará. Havia três empurradores e quatro balsas levando ao todo mil toras de madeira ilegal. A carga era tanta que punha em risco a navegação. Dois dias depois aportaram em Belém e o material foi entregue às autoridades ambientais do Pará.
— Quando a gente não consegue evitar o desmatamento, a gente apreende o resultado do crime para dar um prejuízo ao malfeitor e desestimular a continuidade do crime — disse um militar.
Ao todo, foram 765 os equipamentos inutilizados ou destruídos este ano. São veículos, motores de garimpo, balsas, tratores, escavadeiras e máquinas agrícolas. Isso, além das mais de mil embarcações apreendidas e 390 dragas. Em Humaitá, pegaram de uma só vez 64 dragas.
— Os garimpos são enormes, muitas vezes em áreas protegidas. Os servidores do Ibama e do ICMBio são poucos. Precisam ser levados, em geral pela Força Aérea. A multa é aplicada pelo Ibama e pelo ICMBio. O papel das Forças Armadas principal é logística, de levar esse fiscal para lugares que ele não conseguiria chegar, e ao mesmo tempo dar proteção a ele. Num garimpo enorme desses, o fiscal vai sozinho? É um perigo. É pouquinha gente (das agências ambientais) para umas coisas enormes e interesses muito grandes por trás — explica um oficial.
A Operação Verde Brasil 2 está prevista para terminar em 6 de novembro. Terão sido seis meses. As multas aplicadas foram muito maiores do que no ano passado.
— Até hoje foram combatidos 7.500 focos de incêndio e foram realizadas 44.900 inspeções navais e terrestres, vistorias e revistas. É bastante. É o suficiente? Não. Isso tudo é emergencial. A gente está com um problema grande e está aqui combatendo os efeitos para tentar reduzir. É necessário ter uma política de empoderamento desses órgãos ambientais — explicou o oficial.
O discurso do governo confunde, mas a ação do Estado diante da grandeza da Amazônia só dá certo quando há cooperação entre seus vários braços e os objetivos são permanentes.
Com Álvaro Gribel
Míriam Leitão: Congresso subserviente
Assunto constitucional não é interna corporis, é assunto constitucional. Pode-se alterar a Constituição, mas não descumpri-la. Esse é o ponto que está em questão no esforço dos presidentes do Senado e da Câmara de permanecer no cargo. Eles torcem para que o ministro Gilmar Mendes decida que a reeleição seja uma questão interna. O problema é que se a liminar do ministro disser apenas isso há o risco de se criar o seguinte e perigoso precedente: mudar o regimento interno para alterar-se a Constituição.
O STF será usado para a realização de ambições pessoais, mais explícitas no caso do senador Davi Alcolumbre, de permanecer onde está. Alcolumbre tem feito tudo, até calar-se diante do abjeto escândalo das cuecas e preparar o forno de pizza para assim ficar bem com todo mundo.
A análise de parlamentares e de um ministro do Supremo ouvidos pela coluna é a de que o relator pode dizer que é interna corporis e isso será interpretado como licença para apenas alterar o regimento interno das Casas.
— Questão constitucional nunca será um problema interna corporis — alerta um ministro do STF.
— A Constituição é claríssima, não cabe interpretação, não é possível a reeleição. Vão pegar o termo em latim que provavelmente estará na liminar para de forma apressada fazer o rito de alteração do regimento interno. Mas se o ato interno é regido pela Constituição esse não pode ser o caminho. Se o constituinte achou por bem normatizar, só por emenda pode ser alterada — explicou um parlamentar.
O Congresso tem dado nos últimos tempos um show de subserviência, pelas mais variadas razões e interesses. Ao fazer isso, deixa de cumprir seu papel com a independência prevista na Constituição. Na sabatina do agora ministro Kassio Nunes, quase todos fugiram ao seu papel. A sabatina não é um ato de louvação, mas sim uma forma de permitir que o país conheça quem tomará decisões que influenciarão nossas vidas nos próximos anos e décadas. O advogado Kassio Nunes abriu a fala usando um termo caro aos evangélicos. Falou que sentiu essa nomeação como um “chamado”. Disse que é católico e citou a bíblia e o rezar de mãos postas. Há ministros no Supremo extremamente religiosos que não usaram o nome de Deus para dissolver resistências. Isso não é argumento num estado laico. Ensaboado, escorregou de várias questões, mas, a não ser raras e valiosas exceções, não foi sabatinado. Foi bajulado.
Esta semana passaram sem contestação no Senado os nomes de três militares para a Autoridade Nacional de Proteção dos Dados. Isso não faz sentido. Teriam que ser nomes técnicos com conhecimento suficiente e vida profissional dedicada à questão em si. Os militares não podem ser vetados por serem militares, mas não devem ter maioria nessa agência.
O Congresso aceitou todas as pressões do Planalto para adiar a análise dos vetos presidenciais para que o governo consiga arregimentar mais apoios. Um desses vetos é aguardado por inúmeras empresas para fazerem seu planejamento de 2021.
Recentemente, o relator do Orçamento, ao sair do Ministério da Economia, disse que só terminaria seu trabalho quando o ministro Paulo Guedes concordasse com tudo. Ele estava tentando criar um programa social que o governo não consegue, mas agia como se fosse do Executivo. O Orçamento passa pelo Congresso para que seja analisado, alterado, confirmado ou acrescido dentro das regras fiscais, mas a relatoria não é o ato de buscar carimbos no Ministério da Economia. O senador bolsonarista Marcio Bittar foi escolhido a dedo para seguir ordens. Ele inaugurou seu mandato no Senado assinando junto com o senador Flávio Bolsonaro uma proposta do fim do mundo: queria acabar com toda a reserva legal da Amazônia. Ou seja, pôr a floresta abaixo. Essa delirante proposta acabou arquivada mas só a assinaria quem estivesse disposto a tudo para agradar o governo.
Os poderes são harmônicos, mas independentes. Quando um se submete ao outro está traindo seu papel institucional. As negociações, os acordos, a harmonia devem existir, mas não para encobrir malfeitos de parlamentares, blindar a família do presidente, atender aos interesses continuístas. O Congresso está escolhendo ser a casa do “sim, senhor” para um presidente que tem demonstrado não entender quais são os limites do poder da presidência numa democracia. Isso torna tudo mais perigoso.
Míriam Leitão: Estado geral da democracia
Não precisa fazer interpretações para concluir que a democracia brasileira vai mal. Basta juntar os fatos. Não são feitos mais os ataques verbais às instituições nem as passeatas pedindo o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso, mas isso não significa que o presidente Bolsonaro mudou. Ele é o mesmo que sempre desprezou valores democráticos. A paz com o centrão não é governabilidade, está mais para conluio. Partidos, políticos e o presidente têm o mesmo objetivo: manter o poder e suspender o combate à corrupção.
O episódio do senador Chico Rodrigues traz uma série de lições. Alguém pode concluir que tudo funcionou bem, afinal a Polícia o encontrou, o Supremo o afastou inicialmente, ele próprio pediu afastamento. É uma visão benigna, mas não realista. O fato é que o vice-líder do governo se sente tão à vontade que leva maços de dinheiro para casa. A PF que o encontrou continua trabalhando, mas ela está sendo esvaziada. Até quando terá essa autonomia? Até que ponto poderá chegar? O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, deixou no ar um silêncio eloquente sobre o escândalo. O ministro do Supremo que afastou Chico Rodrigues foi criticado por senadores. Eles não queriam julgá-lo no Conselho de Ética. Os colegas o aconselharam a dar um “jeitinho”: sair por 121 dias, entregar o mandato ao filho suplente e deixar tudo em casa. O presidente da República fingiu que não tinha com ele a anunciada “quase união estável”.
Há outros sinais preocupantes para onde se olhe. O governo inteiro vem sendo militarizado. Ontem, o Senado aprovou sem reclamar os nomes da diretoria da nova Autoridade Nacional de Proteção de dados. Ela será presidida por um militar, e eles serão três dos cinco diretores. O órgão precisa de autonomia em relação ao governo. Ele vai fiscalizar e editar normas da Lei Geral de Proteção de dados de todos nós. Os militares não têm em relação às informações a preocupação de proteger a privacidade. Por treino profissional, e pela ideologia do atual governo, eles tendem a ver isso dentro da doutrina que definem como “de segurança nacional”.
O governo mandou espiões para a última Conferência do Clima, em Madri, como informou o repórter Felipe Frazão do “Estado de S.Paulo”, e deu a eles status de negociadores. Desta forma estava mentindo para a ONU e constrangendo negociadores brasileiros. O general Heleno disse que isso foi feito para vigiar “maus brasileiros”. Essa é uma visão tipicamente autoritária. Quem outorgou ao general o direito de definir quem são os maus brasileiros? São os que desmatam ilegalmente a Amazônia ou os que denunciam que isso está sendo feito?
O Rio, como mostrou o relatório de diversas ONGs, tem 57% do seu território sob o controle da milícia. Isso é uma ameaça nacional. O presidente Bolsonaro e seus filhos têm todo um mar de ambiguidade em relação à milícia, que vai da ligação direta, como a mantida com o o ex-policial militar e líder de bando miliciano Adriano Nóbrega, morto na Bahia, até as frequentes declarações de apoio ao bando.
“Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se depender de mim terão todo o meu apoio”, disse Bolsonaro em 2003. Em 2018, reafirmou: “Tem gente que é favorável à milícia, que é a maneira que eles têm de se ver livres da violência. Naquela região onde a milícia é paga não tem violência”. O então candidato estava aprovando a extorsão a que estão submetidos os moradores das áreas controladas pelos milicianos. Quando um grupo criminoso tem o apoio implícito ou explícito de quem governa o país, isso é um imenso perigo.
O truque atual é capturar as instituições, esvaziá-las da sua autonomia, mas deixá-las em pé. Assim, alguém pode dizer: mas estão lá as instituições funcionando. A suposta “pacificação” de Bolsonaro não é respeito à autonomia e à independência dos poderes. Ele quer proteção para ele, seus filhos, sua família. Os parlamentares querem que a investigação de corrupção pare de importuná-los, porque já não sabem mais onde enfiar dinheiro quando a Polícia Federal chega. Diante de todos os sinais — e há muitos outros — só o desatento dorme tranquilo com a democracia brasileira.
Míriam Leitão: Plano para a economia
A economia brasileira vive uma crise gravíssima. O PIB está tendo a sua maior queda em um ano, o número de pobres aumentou, o desemprego aflige milhões de famílias, a dívida pública se aproxima do insustentável. Não há um plano para enfrentar esses flagelos. O comando da política econômica é errático e alienado. Em que mundo vive a pessoa que diz que a economia está se recuperando em “ritmo alucinante”? Paulo Guedes, quando fala, assusta pelo seu desapego à realidade.
Em um evento na semana passada no Instituto Brasiliense de Direito Público, Guedes discorreu sobre os erros cometidos na colônia, no Império, pelo “Estado hobbesiano” em mais uma daquelas repetitivas dissertações sobre o tudo e o nada. Em dado momento, defende os bancos estaduais que o governo de Fernando Henrique fechou, mas deveria ter deixado abertos, na visão dele. Em qualquer fala, Guedes precisa achar alguma decisão em que os economistas do real teriam errado. Há um quarto de século.
O ponto é: nunca se sabe qual é o ponto do ministro da economia. Em falas randômicas, ele foge para mundos outros, para tempos da história que interpreta de forma duvidosa, quando a sua matéria deveria ser o tempo presente e a sua tarefa dizer como tirar o país do atoleiro. Quando afinal chega ao mundo atual ele de novo descreve inexistências, como o fato de que a economia está no ritmo “alucinante”. Sobre a nova CPMF que pensa criar, ele fez uma acusação séria. “A Febraban é quem mais subsidia e paga todos os economistas brasileiros para dar consultoria contra esse imposto.”
Algumas falas dele seriam perfeitas se definissem a conjuntura. “Uma série de ações performáticas para tentar o equilíbrio macroeconômico quando era um tsunami o que estava acontecendo”. “Os economistas um pouco deslumbrados pela política”. “Continuamos com a fuga do diagnóstico correto”. Falava do passado, mas as frases seriam perfeitas para definir os eventos atuais.
Aqui e agora, o que está acontecendo é que a recuperação tem sido desigual. Seu grande motor é um auxílio insustentável. A alta é na margem. A maioria dos índices sobe em relação ao mês anterior mas é muito negativo em relação a um ano antes. E o que foi 2019? Um ano pífio, depois de outros anos fracos que se seguiram a uma recessão. O que significa que o PIB encolheu, não se recuperou e caiu de novo. Agora sobe um pouco, mas a economia é menor do que há um ano. Como enfrentar essa letargia é um dos desafios. Há outros.
O ministro Paulo Guedes minimizou o problema do desemprego. Disse que nos Estados Unidos perderam-se 30 milhões de empregos e no Brasil pouco mais de um milhão. A economia americana destrói e recria vagas com grande facilidade porque tem um mercado de trabalho extremamente dinâmico. Não dá para comparar. Mas aqui, 10 milhões de pessoas saíram da população ocupada. É a forma mais próxima para se dimensionar o problema. Existem contratos suspensos e salários reduzidos em empresas fragilizadas. O que acontecerá com esses trabalhadores? O que será das famílias que hoje dependem do auxílio emergencial? Há outros temores.
Um fantasma ronda o Brasil. A dívida pública. Alta demais, alimentada por um déficit persistente, a dívida é a espinha dorsal da economia. Se houver uma crise de confiança na capacidade do Tesouro de honrá-la desmancham-se as empresas, os fundos de pensão, as aplicações das famílias, a economia brasileira. É por isso, e não pelo humor do mercado, que o assunto precisa ser encarado com um plano crível, de longo prazo, de equilíbrio nas contas públicas. Um ajuste inteligente. Que reduza as despesas que concentram renda ou sustentem a parte velha da economia. Um pequeno exemplo. Esse ajuste deveria tirar o subsídio ao carvão em vez de cobiçar a verba do Fundeb. Nesse ajuste, a reforma administrativa seria digna do nome e não esse texto pálido que foi para o Congresso, a revisão das renúncias fiscais seria profunda e ampla.
É preciso um plano que restaure a confiança de que no longo prazo o Tesouro vai equilibrar a dívida, o Brasil ficará menos desigual, a economia será sustentável do ponto de vista ambiental e mais integrada ao mundo. Um programa sério que enfrente a crise e aponte para o futuro e não ideias malucas que nos visitam por algumas horas até serem negadas.
Míriam Leitão: Novo entrave na reforma tributária
Por Alvaro Gribel (interino)
A notícia de que o governo estuda acabar com a declaração simplificada do Imposto de Renda para financiar o Renda Cidadã já é um novo entrave na reforma tributária. Ontem, em audiência na Comissão Mista do Congresso, o secretário da Receita, José Barroso Tostes Neto, e a assessora especial do Ministério da Economia, Vanessa Canado, se recusaram a responder perguntas dos deputados e senadores que queriam saber detalhes da proposta. Se a Comissão já tinha dificuldades em avançar, ganhou mais um ponto de incerteza e discórdia.
“Vamos nos limitar a falar sobre os tributos sobre consumo”, justificou Vanessa Canado, referindo-se à primeira fase da proposta encaminhada pela equipe econômica há mais de dois meses. Ao mesmo tempo em que o governo não conclui o projeto, deixa vazar estudos para financiar o programa de assistência social com ideias que deveriam estar na reforma tributária.
A grande questão é: como financiar o Renda Cidadã? O governo tem três opções. Tira de alguém, aumenta tributos ou se financia no mercado, ampliando o déficit. Em cada uma delas, há consequências. Ampliar o déficit significa perder apoio do mercado, com disparada do dólar, queda da bolsa e encarecimento da dívida. Aumentar imposto, ou reduzir subsídios, vai mexer diretamente com o bolso das famílias ou das empresas. E fazer a consolidação de outros programas sociais nada mais é do que tirar de quem precisa para dar a quem também precisa. Ontem, como revelou O GLOBO, falou-se em cortar dos supersalários, o que demandaria comprar briga com a elite do funcionalismo.
Depois de encontro com o ministro Paulo Guedes, pela manhã, o relator do Orçamento, Márcio Bittar, prometeu para quarta-feira a divulgação da fórmula. Disse que será “dentro do teto”. Vindo de quem chamou de “hipócritas” os que criticaram a postergação do pagamento de precatórios, pode-se esperar qualquer coisa.
Na reforma tributária, ainda são muitas as discordâncias, segundo o secretário José Tostes. “Temos feito dezenas de reuniões com os estados, avançamos em alguns pontos, mas não conseguimos avançar em relação aos temas dos fundos, do comitê gestor, da transição para o novo tributo, imposto seletivo e o Simples”.
Em live semanal da Arko Advice, uma das consultorias mais ouvidas pelo mercado financeiro, o cientista político Murilo de Aragão brincou que o governo Jair Bolsonaro parece um carro velho, pois “faz muito barulho e anda pouco”. Sobre a reforma tributária, disse que ela “respira por aparelhos” e não vê possibilidade de aprovação de nenhum projeto relevante até a sucessão nas presidências da Câmara e do Senado, em fevereiro do ano que vem. Ao que tudo indica, o ano de 2020 já está perdido.
Ganha, mas não leva
Donald Trump é o candidato do mercado financeiro nas eleições dos EUA e sobre isso não há dúvidas. Ontem, após a saída do hospital, as bolsas subiram e o dólar se enfraqueceu no mundo, com aumento da confiança. Mas há investidores que já começam a ficar com a pulga atrás da orelha com a possibilidade de o presidente conseguir a reeleição, mas perder o comando das duas Casas. Hoje, os republicanos controlam o Senado mas desta vez a maioria pode ser democrata. Nesse caso, uma vitória de Joe Biden poderia ser bem recebida, pela maior chance de governabilidade, tendo o Congresso ao seu lado.
Baixo volume
Apesar da alta de 2,2% do Ibovespa, o volume de negócios continua baixo. Nos últimos 21 pregões, não chegou a R$ 20 bi, o que significa um clima de cautela. Ontem, mesmo com a valorização, foram negociados apenas R$ 17,8 bi em papéis. O risco de furar o teto fez voltar o temor de um novo rebaixamento do rating brasileiro no final do ano. Até a quinta-feira, última estatística disponível, os investidores estrangeiros retiraram R$ 88,27 bi da bolsa.
Sobrou para o café
A política ambiental do governo Bolsonaro põe sob desconfiança até quem não tem mais relação com o desmatamento. A ONG Rainforest Alliance Brasil, que certifica fazendas exportadoras de café com o selo sustentável, foi consultada por compradores europeus para saber se o setor cafeeiro tem derrubado florestas no Brasil. Se no passado o café foi o grande vilão, hoje esse papel está com a soja e a pecuária. “O café no Brasil não é hoje um problema de desmatamento. Primeiro que ocupa uma área relativamente pequena, depois porque está em áreas consolidadas há muito tempo”, disse Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas.
Míriam Leitão: Caos e confusão como método
Por Alvaro Gribel (interino)
Depois de mais uma semana de brigas e perda de tempo, fica a pergunta sobre o que pretende o ministro Paulo Guedes no governo Jair Bolsonaro. Nas redes sociais, houve quem lembrasse uma frase do economista Roberto Campos, de que chegou ao Congresso querendo fazer o bem, mas depois viu que poderia apenas evitar o mal. No caso de Guedes, há dúvidas, porque parte dos problemas tem origem no seu temperamento. Se a conversa de Rogério Marinho com investidores foi tida como desleal, também não se pode dizer que tudo que ele falou não faz sentido.
Paulo Guedes chegou a Brasília carregando a fama de que não tinha experiência como gestor de equipes e de ser uma pessoa de difícil convívio. Por isso, sempre se saiu melhor como investidor, consultor e palestrante, onde conseguia encantar plateias, especialmente formada por seus pares. No governo, tem demonstrado falta de foco na formulação e apresentação de projetos — como disse Marinho — e repete sempre frases feitas, qualquer que seja o seu interlocutor. Na relação com a imprensa, não entendeu o básico sobre comunicação institucional.
Apesar da formação de economista, Guedes não parece muito afeito aos números. É comum o ministro arredondar dados para cima e fazer contas de 10 anos para, em qualquer contexto, chegar à casa do trilhão. Na semana passada, usou o artifício para dizer que o país já tem garantido R$ 1,2 tri de investimentos nesta década pelos marcos legais em andamento, da cabotagem, setor elétrico, saneamento e privatizações. Antes da pandemia, enquanto as projeções do mercado para o PIB caíam, ele dizia que o país ia “crescer o dobro” e citava dados da arrecadação, como faz até hoje. Quem acompanha as coletivas da Receita sabe que esse não é o melhor indicador antecedente de atividade. A entrada de recursos no caixa do Tesouro pode variar com pagamentos extraordinários e de acordo com o calendário. É uma estatística poluída.
A última semana foi exemplar do comportamento errático do ministro. Na entrevista em que anunciou o Renda Cidadã, na segunda-feira, defendeu o programa, alegando que ele tinha encontrado o timing perfeito para entrar na pauta. Na terça, silenciou, enquanto o relator do Orçamento, Márcio Bittar, defendia a ideia, que teve forte reação negativa do mercado. Na quarta-feira, Guedes apareceu de última hora na apresentação dos dados do Caged. Chamou o uso de precatórios de puxadinho, embora Bittar tenha afirmado que a proposta tenha nascido no Ministério da Economia. Terminou a semana em nova troca de farpas com Marinho.
Por causa da pandemia, as comissões do Congresso estão paralisadas. A que está em funcionamento é a da reforma tributária, mas ela não anda porque Guedes não enviou a proposta do governo. Sendo hoje domingo, provavelmente ficará para a “semana que vem”.
‘Já está no preço?’
Na reunião com investidores na quarta-feira, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, ouviu de analistas que qualquer tipo de contabilidade criativa para se criar o Renda Cidadã seria visto como uma forma de furar o teto de gastos. O deputado, então, questionou: “Então esse risco já está no preço?” Querendo saber se o pior já teria acontecido com a bolsa, o dólar e o risco-país. Ouviu como resposta um sonoro “não”, porque os investidores ainda não creem que o governo fará isso. Mas se fizer, vai piorar.
Sinais trocados
Enquanto várias sondagens apontam recuperação da confiança, os indicadores do mercado financeiro estão mostrando um cenário mais negativo para o Brasil, principalmente pela questão fiscal.O superintendente de Estatísticas Públicas do Ibre/FGV, Aloisio Campelo Jr., explica que a indústria e o comércio estão melhores, enquanto a confiança dos consumidores e serviços ficou para trás. “É importante ressaltar que a recuperação nas sondagens de confiança é para um patamar pré-crise, que não é tão alto. A economia não estava bombando antes do vírus, no início do ano”, explicou.
Efeito 'denominador'
Paulo Guedes tem citado a recuperação da utilização da capacidade instalada (Nuci), que subiu de 57%, no pior momento da crise, para 78% em setembro. Ou seja, por esse número, a ociosidade estaria voltando a níveis de antes da pandemia. Mas nem tudo é tão bom quanto parece, explica Campelo. Com a crise, houve fechamento de fábricas, o que provocou um “efeito denominador”. As empresas que fecham saem da estatística e o Nuci fica mais alto.
Míriam Leitão: Juros vão afetar a recuperação
Por Alvaro Gribel (interino)
O aumento dos juros cobrados pelo mercado para rolar a dívida do governo não significa que o país esteja à beira de uma crise, mas terá consequências sobre a recuperação. Essa é a avaliação de um ex-integrante da equipe econômica que acompanha o assunto de perto. Ontem, o Tesouro realizou um leilão para a venda de títulos e novamente as taxas subiram. Vendeu R$ 30 bilhões de contratos com vencimento de curtíssimo prazo, seis meses, e o mercado exigiu retorno de 2,2% ao ano, acima da Selic, que está em 2%. Para vencimentos mais longos, as taxas chegaram a 5,8%, para janeiro de 2024.
Esses leilões funcionam assim: o Tesouro vai ao mercado e oferta os títulos da dívida. Os investidores fazem então uma proposta sobre o quanto querem receber de juros. O Tesouro decide se aceita ou não. Ontem foram ofertados 30 milhões de contratos com vencimento em abril de 2021 e apenas dois milhões para janeiro de 2024. Isso quer dizer que o próprio Tesouro optou por encurtar a dívida porque sabia que pagaria mais caro para prazos mais longos. Todos os títulos foram vendidos, mas com essa diferença de juros: 2,2% e 5,8%.
Quando os juros “abrem”, como dizem os economistas, os investimentos na economia real ficam mais incertos. A renda fixa passa a ter mais atratividade, e quem pensa em colocar dinheiro em uma nova planta industrial, por exemplo, tende a esperar mais um pouco. Projetos de infraestrutura e leilões de concessão ficam menos interessantes para o investidor. E essa é justamente a agenda em que parte do governo aposta para alavancar o crescimento do PIB.
— Se a Selic está em 2%, e a curva de juros sobe muito para títulos mais longos, o investidor pensa duas vezes antes de investir em uma planta nova — disse a fonte.
O custo da dívida está subindo porque o mercado desconfia da capacidade do governo de aprovar o ajuste fiscal. Além disso, os gastos com a pandemia ficaram acima de outros países emergentes, em grande parte pela omissão do presidente Jair Bolsonaro em coordenar o isolamento social.
Trump e as bolsas
Não é só pelo aumento de casos de Covid na Europa que as bolsas do mundo estressaram nas últimas semanas. Há também o efeito Donald Trump. O mercado entende que ficou mais difícil a aprovação de um novo pacote de estímulo fiscal pelo Congresso americano depois que Trump decidiu indicar um novo nome para a Suprema Corte do país, para substituir a juíza Ruth Ginsburg, que faleceu na semana passada. Pela proximidade das eleições, o normal seria deixar a indicação para o próximo presidente eleito, como fez Barack Obama em 2016. Outro ponto de desconfiança é que, em caso de vitória do democrata Joe Biden, Trump tem dito que não reconhecerá a derrota, o que pode judicializar as eleições nos EUA, aumentando as incertezas.
Cobertor curto
Dois especialistas em contas públicas ouvidos pela coluna só enxergam uma fonte de financiamento para o novo programa de renda social do governo: cortar do abono salarial, que custa quase R$ 20 bilhões por ano. A ideia já foi rechaçada pelo presidente Bolsonaro porque, segundo ele, não se pode retirar dos pobres para dar aos paupérrimos. “A frase do Bolsonaro até faz sentido, mas quem ganha abono não é miserável, não está desempregado e tem carteira assinada”, explicou um deles.
Ânimo do Banco Central
O Banco Central revisou de -6,4% para -5% a projeção de queda do PIB deste ano e apontou para uma alta de 3,9% no ano que vem. Além disso, o presidente Roberto Campos Neto disse que a inflação está sob controle e indicou que, embora pequena, há possibilidade de um novo corte da Selic, de 0,25 ponto. Com isso, o Ibovespa subiu, e o dólar caiu, com leve recuperação sobre os últimos dias.
(Míriam Leitão está de férias)
Míriam Leitão: Estados e os nós da reforma tributária
Quem está otimista com a aprovação da reforma tributária deve prestar atenção no que disseram cinco governadores. Ronaldo Caiado, de Goiás, alerta que o relatório do deputado Aguinaldo Ribeiro será “o Judas a ser malhado” e que os impasses começarão assim que o texto for apresentado. Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul, diz que o governo federal dificulta a tramitação do projeto, pela sua postura de confronto e má comunicação. Renato Casagrande, do Espírito Santo, acha a proposta da equipe econômica tímida. Helder Barbalho e Rui Costa temem que os estados percam autonomia sobre as suas receitas, com a criação de um fundo único de repasse dos recursos.
São muitos os nós da reforma tributária, e a visão dos governadores, que participaram de um evento promovido pela Febraban semana passada, mostra que o tema continua longe de consenso para votação. Além das dificuldades usuais de se passar uma PEC dessa natureza, há outros agravantes: o texto terá que ser votado em momento de crise, quando todos os entes da federação estão com perda de receitas, o governo federal não enviou sua proposta na íntegra, e uma coleção de projetos de emendas à constituição foi enviada ao mesmo tempo ao Congresso.
— Estamos todos de acordo com a necessidade da reforma tributária. Mas na hora que se redigir a primeira lauda será cada um para um lado. Já não concordo aqui, já não concordo acolá. A disputa começa mesmo quando se coloca no papel — alertou Ronaldo Caiado.
Os governadores se dizem traumatizados com as perdas que sempre alegaram ter tido com a lei Kandir, de 1996. A exportação foi desonerada, mas a União se comprometeu a compensar os estados pelas perdas com ICMS. Os estados foram ao STF por entender que a União pagou menos do que deveria, em uma disputa bilionária ainda em aberto. Por isso, veem com desconfiança a criação de um fundo para recolher o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), que seria repassado aos estados, simplificando impostos e acabando com a guerra fiscal.
— É preciso discutir a autonomia dos estados no comitê de gestão desse fundo. A proposta dá peso exagerado à União. Já que a maioria dos recursos é de ICMS, não é possível que os estados fiquem ainda mais reféns de um posicionamento da União — disse Rui Costa, governador da Bahia.
Helder Barbalho, governador do Pará, defende que a emenda 192, apresentada pelos secretários de fazenda estaduais, seja incorporada à PEC 45, ampliando a participação dos estados no fundo. Ele teme que o conselho sofra interferência política e lembra perdas que teriam tido com a lei Kandir:
— A compensação da lei Kandir chegou ao STF. O governo federal chegou a dizer que não devia nada, e os estados chegavam na conta de R$ 40 bilhões desde 1996. Se continuar no modelo de conta única, com repasse aos estados, isso pode se transformar em imbróglio institucional, podendo regredir o projeto e não avançar.
O governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, diz que o estado perderá R$ 1 bilhão por ano se a cobrança do IBS passar ao local de consumo. Lembra que seu estado começou a fazer o ajuste fiscal antes dos outros e que por isso é o único com classificação máxima no ranking fiscal do Tesouro. Não poderia se desestruturar financeiramente com a reforma.
— Tem que ter um fundo para apoiar as regiões, porque nem todos os estados têm a mesma capacidade de atrair empreendimentos. O incentivo fiscal hoje é muito criticado, mas é um instrumento para que possam atrair atividade econômica para os seus estados — justificou.
Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul, cobra liderança do governo federal na condução de uma proposta que mexe com interesses tão conflitantes.
— Nossos secretários de fazenda se mostraram favorável às PECs do Congresso, a disposição conjunta de governadores existe. Mas quem deve liderar é o governo federal. A postura belicosa do governo acaba sendo uma dificuldade adicional para uma reforma que já é difícil.
Tudo isso é sobre as propostas articuladas no Congresso — uma na Câmara, uma no Senado — sem a presença do governo federal, que discorda desse fundo. Até agora, o governo enviou apenas a fusão do PIS com a Cofins. E disse que outras mudanças virão em fatias. Com a desconfiança geral, e o governo federal arredio, é difícil acreditar que a reforma será aprovada.
Míriam Leitão: Os recados da posse de Fux
‘Baruch Hashem’, disse Luiz Fux ao encerrar um discurso que teve muitos recados institucionais. O som da música “Shalom” ocupou de forma inesperada o ambiente do Supremo Tribunal Federal. Fux é filho de um imigrante que veio para o Brasil fugindo do nazismo. É o primeiro judeu a assumir a presidência da mais alta corte do país. “O Estado é laico, mas a paz é uma necessidade”, explicou o ministro ao anunciar a música. Houve vários outros sinais do tempo. Os cumprimentos foram suspensos, os convidados eram poucos e estavam distanciados, as autoridades usavam máscaras em cabines de acrílico, e as primeiras palavras do novo presidente foram em homenagem às vítimas do coronavírus. “Esta página triste e devastadora da nossa história.”
O presidente Jair Bolsonaro ouviu Fux dizer que a intervenção do Judiciário precisa ser minimalista. Deve ter gostado, porque acha que o STF tem entrado em questões próprias do Executivo. “STF não é o oráculo, não detém o monopólio das respostas”, disse Fux e pediu que não houvesse tanta judicialização da política. Ao mesmo tempo, atravessou o discurso inteiro lembrando as virtudes da democracia.
O presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, fez discurso breve e forte. Elogiou Dias Tóffoli. “Soube reagir quando os ataques — virtuais e reais — ao Supremo Tribunal Federal tentaram solapar a autonomia do Poder Judiciário, constranger a independência dos juízes e ferir a democracia brasileira.” Filho de desaparecido político, cuja memória Bolsonaro atacou, Santa Cruz contou que a OAB se reuniu duas vezes nos últimos 18 meses em atos “em defesa dessa Corte e da Constituição”. Falou do direito ao meio ambiente e do combate a todo tipo de discriminação.
Fux, ao lembrar avanços recentes consagrados pelo STF, falou que o tribunal trabalhou pelo “resgate das identidades historicamente vulneráveis, reconhecendo direitos dos povos indígenas e dos afrodescendentes nas ações afirmativas em prol das minorias étnicas, legitimou as uniões estáveis homoafetivas e paternidades socioafetivas, rechaçou a trans e a homofobia e validou a Lei Maria da Penha”. Em qualquer outro momento, pareceria a natural comemoração de avanços civilizatórios, mas ao lado de Bolsonaro as palavras soavam como aviso de que a sociedade brasileira já escolhera os valores da aceitação das diferenças e do respeito às identidades. Ele falou em “altivez” do tribunal.
A transição no STF se dá num tempo muito difícil. Na escalada da pandemia, o presidente participou de atos que pediam o fechamento do Supremo. Na reunião ministerial cujo teor foi divulgado pela decisão do ministro Celso de Mello houve pedido de prisão dos ministros do STF, que foram definidos como “vagabundos”. Bolsonaro fez ameaças diretas à Corte em seus gritos matinais na porta do Alvorada. Ontem, contudo, estava de máscara e por algumas horas ouviu os elogios ao tribunal e a exaltação dos valores da liberdade, diversidade e democracia. “O mandamento da harmonia entre os Poderes não se confunde com contemplação e subserviência”, afirmou Fux.
Outro recado do discurso de Fux foi sobre o combate à corrupção. “Não mediremos esforços para o fortalecimento do combate à corrupção, que ainda circula de forma sombria em ambientes pouco republicanos em nosso país. Como no mito da caverna de Platão, a sociedade brasileira não aceita mais o retrocesso à escuridão e, nessa perspectiva, não admitiremos qualquer recuo no enfrentamento da criminalidade organizada, da lavagem do dinheiro e da corrupção”.
O STF dos próximos dois anos será diferente. Primeiro, porque o ministro Celso de Mello, que foi decano pleno, com senioridade e senso de urgência na defesa institucional, está saindo. Segundo, porque até meados do ano que vem o tribunal terá dois indicados de Bolsonaro. No seu plano de gestão, Fux colocou em primeiro lugar “a proteção dos direitos humanos e do meio ambiente”. Isso enquanto a Amazônia e o Pantanal ardem, e o governo nega que isso esteja acontecendo.
A posse de ontem exibiu a dissonância no país. O ministro Marco Aurélio Mello, o decano presente, lembrou a Bolsonaro o básico, “o senhor foi eleito por 57 milhões de votos mas é presidente de todos os brasileiros”. Bolsonaro nunca entendeu esse papel.
Míriam Leitão: Contas do Rio no meio do vendaval
O Rio entregou apenas um ofício com quatro páginas em vez de um relatório de prestação de contas ao conselho que acompanha o cumprimento do Regime de Recuperação Fiscal. O estado diz que cumpriu 80% do compromisso, mas não é assim que os técnicos avaliam. O acordo com o Rio está sendo resolvido politicamente? O vice-governador Cláudio Castro garante que não. O que ele explica é que os dados entregues agora foram apenas para negociar o adiamento, possibilidade aberta pela liminar do ministro Bruno Dantas do TCU, de manter o acordo enquanto se negocia.
— O que fizemos foi cumprir a liminar do TCU. A ideia do Rio a princípio era judicializar por entender que o regime é de seis anos, com renovação automática no meio. O Tesouro não pensava assim. Estava tudo preparado para entrar na Justiça, eu preferi exaurir toda a questão administrativa. A única questão política é que eu decidi não ir para o confronto, mas negociar — disse o governador.
Na Secretaria do Tesouro se fala que é de três anos, e que ao fim desse período só havia dois caminhos: rejeitar ou renovar. Mas de fato o TCU abriu uma terceira via, a de o estado permanecer no regime enquanto se negocia com o Conselho Fiscal. O governador Witzel foi afastado, o governador interino acabou indo a Brasília e quem marcou o encontro com o ministro Paulo Guedes foi o senador Flávio Bolsonaro.
— Não houve favorecimento político do Rio. Queria tranquilizar quem está com essa justa preocupação. A conversa foi técnica, com o ministro Paulo Guedes, com o Bruno Funchal e outros integrantes da equipe técnica que trata do assunto. O ministro teve que sair e eu fiquei lá tratando disso. Não é um arranjo político. O senador Flávio Bolsonaro foi o primeiro parlamentar do Rio que ligou oferecendo ajuda. Eu assumi mesmo na segunda-feira, sou governador interino, e o prazo era sábado (hoje), era urgente conversar sobre isso. E a decisão tomada foi a de continuar o diálogo técnico. Se ao final não houver acordo, podemos voltar à ideia da judicialização — disse Cláudio Castro.
O Rio deixou de pagar nesses três anos R$ 58 bilhões. A visão de quem acompanha as contas públicas do estado é de que muito pouco foi feito até agora. Esta semana mesmo a Alerj aprovou um projeto que concede benefícios fiscais ao comércio atacadista. A justificativa do governo é que outros estados, como o Espírito Santo, concederam esse benefício, e empresas estariam migrando do Rio.
Esse foi o sexto benefício fiscal concedido pelo governo do Rio em 2020. Em 2019, foram três, e em 2018 e 2017, um em cada ano. O governo também conseguiu autorização do Confaz — Conselho Nacional de Política Fazendária — para realizar um refis irrestrito, com anistia de multas e juros a crédito tributários até 31 de agosto.
A orientação do ministro Paulo Guedes é para que a decisão seja estritamente técnica. O temor é o de que o que for concedido ao Rio tenha que ser estendido a outros estados. Minas Gerais e Rio Grande do Sul estão na fila para entrar no RRF.
— O Rio Grande do Sul está também sem pagar a dívida desde o ano passado. Está numa situação melhor do que a nossa, porque não paga a dívida e não tem a mordaça do regime que nós temos. Aliás, neste momento da pandemia, ninguém paga e não tem que cumprir nenhum compromisso —disse Castro.
Caberá ao governador em exercício indicar o próximo procurador-geral de Justiça do Rio, o que pode afetar a condução das investigações contra o senador Flávio Bolsonaro nos esquemas de rachadinhas na Alerj e lavagem de dinheiro.
— O procurador-geral de Justiça tomará a decisão sobre a denúncia antes de haver a troca. Além disso, o PGJ só assina o trabalho que chega pronto do grupo de procuradores — diz o vice-governador.
Ontem, o Conselho do Regime de Recuperação Fiscal achou que as informações que recebeu do Rio foram poucas. Castro explica que essa não foi a prestação de contas, ela será feita ao longo do processo de negociação. O governo do Rio diz que fez um ajuste de R$ 21,2 bilhões dos R$ 26,6 bi previstos. E não fez mais em função do baixo crescimento do PIB nos últimos três anos, da crise no setor de petróleo, e da pandemia este ano. É bom que todos os dados sejam olhados com lupa.
Qualquer concessão ao Rio tem que ser muito bem explicada tecnicamente, para não se consolidar a impressão de um arranjo político.