Míriam Leitão

Míriam Leitão: A logística da Fiocruz

A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, trabalha de olho no calendário e nos números de produção. Sabe que a saúde e a economia dependem da capacidade de fornecimento de vacinas. Até sexta-feira o instituto deve entrar com o pedido emergencial de uso da vacina da Oxford-AstraZeneca. Até o dia 17, devem chegar as duas milhões de doses importadas da Índia. Em fevereiro, a Fiocruz entrega ao governo 10 milhões de doses e, em março, outras 15 milhões. Ao todo, o instituto vai produzir 100 milhões de doses. O país começará, com a vacinação, a entrar em outra fase. “O momento atual é de muita dor, muita desinformação”, lamenta.

Nísia conta que o espaçamento de doze semanas entre as duas aplicações foi, no caso da vacina da AstraZeneca, conclusão de pesquisa clínica. Com a primeira dose, a imunidade já é de 70%.

—Uma coisa a nosso favor é esse intervalo de 12 semanas, porque, se essa estratégia for adotada pelo Plano Nacional de Imunização, permitirá que mais pessoas sejam imunizadas — diz Nísia Trindade.

Ela participou na segunda-feira de reunião com a Anvisa, para saber de todos os documentos que faltam para o pedido de autorização emergencial. São documentos que devem vir da Índia, onde são fabricadas as vacinas compradas prontas. Ela não tem dúvidas de que o Instituto Serum vai respeitar o contrato feito e mandar as doses:

— Nós nem somos compradores de vacinas, somos produtores, mas neste momento de dor do país achamos bom fechar esse contrato. Ele deve servir para imunizar o pessoal da saúde, que está na frente de combate ao vírus.

A Fiocruz receberá as doses prontas da Índia. Depois passará a produzir com o Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), importado da China. O IFA é o núcleo da vacina. A AstraZeneca produz globalmente, mas o lote que fornecerá ao Brasil está sendo produzido na China. No segundo semestre a Fiocruz, graças à transferência de tecnologia, passará a produzir tudo aqui de forma independente:

— A partir de agosto teremos autonomia de produção. A tecnologia da Oxford AstraZeneca é muito adequada para nós, porque será a primeira vacina do mundo a usar a tecnologia do vetor viral, do adenovírus. A tecnologia tradicional usa o vírus atenuado ou inativado. Essa usa o adenovírus que carrega parte da proteína do coronavírus. O organismo reconhece e produz anticorpos e células imunes. É um duplo mecanismo. A Oxford estava trabalhando nessa plataforma para o ebola e outros coronavírus. A tecnologia vai ser útil para outras vacinas.

A Fiocruz, já em abril do ano passado, saiu prospectando fornecedores. O que Nísia explica é que a produção é global, mas muito concentrada, por isso é fundamental que o Brasil invista em ciência e tecnologia.

— É importante entender o fator econômico da vacina. E o geopolítico. Temos que nos preparar para o enfrentamento agora e no futuro investindo no desenvolvimento científico nacional. Está havendo desabastecimento até nos países desenvolvidos. No Brasil, os laboratórios que têm condições de suprir nossas necessidades são a Fiocruz e o Butantan.

Há grupos no Brasil pesquisando vacina para Covid. Não estão na fase de testes clínicos. A coordenação da Fiocruz em Minas Gerais está trabalhando com a UFMG. Há dois outros grupos de pesquisa na Bio-Manguinhos, um deles estudando a tecnologia do RNA mensageiro da Pfizer. Existe outro núcleo na USP.

— Alguém pode achar que isso não faz sentido porque já existem vacinas. Mas é fundamental acompanhar os aperfeiçoamentos — disse Nísia.

Se no mundo da política existe divisão entre as vacinas, na ciência, existe cooperação. A Fiocruz está participando dos testes clínicos da fase 3 da vacina da Janssen e também da Coronavac, do Butantan, no núcleo de pesquisas de Niterói.

A presidente da Fiocruz disse que a produção num primeiro momento poderá imunizar os grupos mais vulneráveis que são 80 milhões de brasileiros. Explica que crianças, adolescentes e grávidas não poderão, por enquanto, ser imunizados com essa vacina da Fiocruz porque não foram feitos testes nesses grupos. Ela acha que o melhor é que a vacinação tenha coordenação federal e que os brasileiros tenham acesso à vacina pelo SUS.


Míriam Leitão: O risco maior do ano é interno

O risco do Brasil este ano não é externo, é brasileiro mesmo, diz o economista Alberto Ramos, diretor de pesquisa econômica para América Latina do banco Goldman Sachs. “Não tem vacina e se tivesse não teria seringa”, disse. De fato, a crise aqui está pior do que a do mundo. Nos Estados Unidos a primeira semana do ano começa num alto grau de tensão institucional. Donald Trump transformou eventos que são apenas protocolares em atos tardios da eleição que já perdeu. Na política, a semana começa intensa na disputa da Câmara dos Deputados com o apoio do PT a Baleia Rossi (MDB-SP).

O que nos aflige é que dezenas de países já começaram a vacinar e o Brasil está parado. Ontem, a boa notícia, postada no meu blog por Ana Carolina Diniz, é que a indústria fornecerá 30 milhões de seringas e agulhas. E na próxima semana sairá o edital de 300 milhões de seringas.

— O Brasil tem um problema pandêmico e outro que é endêmico — falou o economista Alberto Ramos, de Nova York, ao jornalista Alvaro Gribel.

O pandêmico será resolvido mais cedo ou mais tarde, quando o país for vacinado. O endêmico é a lentidão das reformas macro e micro e o baixo crescimento crônico.

— A última vez que o Brasil cresceu mais de 3% foi em 2013. Já são quase 10 anos — disse Ramos.

O Congresso começou o ano intensamente por causa da disputa para a presidência da Câmara dos Deputados. Durante a manhã de ontem, vários parlamentares do PT receberam ligações de Baleia Rossi e nessas conversas ficou claro que haveria uma divisão na votação, mas que a maioria ficaria a favor de apoiar a candidatura de centro contra o candidato de Bolsonaro, Arthur Lira (PP-AL). Parlamentares que ouvi contam que o acordo da candidatura de Baleia Rossi com a esquerda não passou pelas reformas, mas sim nos pontos de defesa institucional e autonomia do legislativo. Contudo, a reforma tributária já havia sido discutida antes. A esquerda quer, com toda razão, que a estrutura de impostos seja mais progressiva e por isso pediu aumento de impostos sobre heranças e cobrança de tributos sobre lucros e dividendos. E isso foi incluído no projeto.

Da perspectiva do mercado, o Brasil teria que aprovar este ano ainda a reforma administrativa, apesar de Alberto Ramos considerar que a proposta do governo “deixou muita gente de fora”. A reforma tributária ele define como “minimalista”. A do governo, de fato, é. A proposta é apenas a unificação de PIS e Cofins:

— Há um grau de frustração muito grande com as reformas que não avançam e o conteúdo deixa a desejar. A da previdência deixou de fora os estados e municípios e manteve privilégios dos militares.

Ele acha que o Brasil pode crescer 3,8% este ano, grande parte por efeito estatístico da queda do primeiro semestre do ano passado. Mas o país tem chance de se beneficiar do cenário externo porque a vacina pode virar o jogo na recuperação econômica do mundo, os preços das commodities estão em alta, os estímulos monetários e fiscais de vários governos continuam. O problema brasileiro é que a pandemia agravou muito a crise fiscal e as respostas são fracas.

Nos Estados Unidos, o mercado já olha para o governo Biden, que começará no dia 20. Segundo Ramos, no curto prazo o presidente democrata significa mais atividade, porque haverá mais estímulo. A médio prazo, pode representar mais impostos e mais regulação. Mas ele disse que, sem expressar preferência política, o mercado reagiu bem à vitória de Biden porque Trump gerava ruído com o resto do mundo.

Os Estados Unidos deveriam estar vivendo agora apenas a formalidade da transição, mas está numa crise. O estarrecedor telefonema do presidente Donald Trump para o secretário de Estado da Georgia, Brad Raffensperger, que o jornal “Washington Post” divulgou, mostra como o país mais poderoso do mundo democrático está nesses últimos dias do governo Trump a um passo do abismo institucional. Trump queria que a autoridade estadual fraudasse a eleição. Ontem, analistas estavam avaliando, segundo o “Post”, se Trump violou as leis da Georgia. Ora, ele violou as regras básicas da democracia. Os Estados Unidos viveram, nestes quatro anos, tantos absurdos que ainda têm dúvidas se esse caso viola ou não a lei. Esse é o risco no Brasil de Bolsonaro. O país se acostumar com a anomalia institucional.


Míriam Leitão: A saúde da economia

No ano de 2021 o Brasil pode crescer sem crescer, e a principal variável da economia não será econômica. Mesmo se a economia ficar estagnada, haverá um número positivo na comparação da média contra a média do ano passado, em que houve uma queda forte no segundo trimestre. O que definirá a chance de alta real do PIB — e não apenas uma ilusão estatística — será a vacinação em massa dos brasileiros. O erros do governo na preparação para a vacina são falhas também econômicas.

O falso dilema que Bolsonaro alimentou no ano passado é um bumerangue que se volta contra seu próprio governo. Ele defendeu a tese de que era preciso manter a economia funcionando normalmente para garantir emprego e atividade. Não trabalhou para garantir a volta sustentada da economia. Este ano o choque entre a sua ideia e a realidade estará mais evidente, porque o atraso na vacina é o maior obstáculo para a recuperação econômica.

O país está vergonhosamente atrasado na vacinação. O fiasco do leilão de seringas feito pelo Ministerio da Saude foi sinal da sua incapacidade de gestão. As providências elementares para um programa de imunização não foram tomadas. Estados e prefeituras já se adiantam e compram seringas, agulhas e vacinas, enquanto o governo federal roda em falso.

O ano está começando com uma série de complicadores. A inflação está alta, o desemprego vai subir nos primeiros meses de 2021, as contas públicas estão num beco sem saída. O nó mais recente foi dado pelo aumento do salário mínimo. Houve um descasamento infeliz. O teto de gastos sobe pelo índice em 12 meses até junho, os benefícios previdenciários são corrigidos conforme a inflação do ano. Ocorre que a inflação acelerou no segundo trimestre. E isso pode custar, segundo o economista Fábio Giambiagi, R$ 15 bilhões a mais. Não por causa do salário mínimo, mas porque todos os outros benefícios, inclusive os mais altos, serão reajustados pelo INPC.

Esse é só um exemplo de nó nas contas públicas que 2021 herda de 2020. A sanção da LDO veio no último momento possível. A incerteza fiscal e as confusões do próprio governo explicam parte da alta do dólar. O real foi uma das moedas que mais perdeu valor.

O ano começa com o país prisioneiro de impasses criados pelo próprio governo. Mesmo quando todos os sinais eram os de início de uma segunda onda, a área econômica preferiu apostar em alguns indicadores setoriais de melhora de consumo, ou na queda do distanciamento social para montar o cenário de que a economia estava voltando ao normal. Não há normalidade à vista, e agora o país está sem instrumentos para enfrentar a nova etapa da mesma crise.

O que se diz no Ministério da Economia é que existe um plano, ele será implantado em fases, as primeiras sem custo fiscal. A estratégia será a de melhorar o conjunto de medidas já tomadas, corrigindo os excessos. E houve muito gasto excessivo no ano passado, como, por exemplo, no auxílio emergencial sem foco e distribuído sem controle.

O começo do ano será marcado pelo agravamento da crise sanitária, pelo impasse da vacinação, e pela incerteza fiscal. Para as famílias, haverá mais inflação. Sobem alguns itens importantes como energia, planos de saúde, remédios, ônibus. A taxa de desemprego cresce sempre no começo do ano e pode chegar a 17%.

A vacinação é a variável que poderá virar esse jogo no segundo semestre. E isso é tão sério que não deveria estar entregue às vacilações do Ministério da Saúde. Enquanto o Ministério da Economia não entender que a economia não será definida por pequenos pequenos detalhes dos indicadores econômicos, mas sim pelo grande cenário da saúde, o país ficará onde está.

O ano está só começando, e o PIB pode ter realmente uma recuperação, mas, para ir além de uma alta meramente estatística, o governo tem que ter um programa crível para lidar com a crise fiscal e ao mesmo tempo saber que estímulos dar à economia. Mesmo antes da pandemia, a agenda econômica da atual equipe tinha sido sabotada pelo presidente da República. A pandemia elevou todos os riscos. Em 2021, a única possibilidade de sucesso depende de que o governo, como um todo, entenda que não há escolha possível entre economia e saúde. A saúde é hoje a maior questão econômica.


Míriam Leitão: Acertos iniciais dos prefeitos

Nas três maiores cidades do país, os prefeitos assumiram com discursos claros em defesa da diversidade, da democracia, e da saúde. Em São Paulo e Belo Horizonte, Bruno Covas e Alexandre Kalil já estavam no cargo, por isso a atenção ficou mais concentrada no Rio. Eduardo Paes quis marcar a mudança radical de estilo de gestão com sua chuva de decretos e medidas emergenciais. Das três cidades, a situação do Rio é a mais dramática em todos os sentidos, do colapso fiscal ao descalabro administrativo.

Nem todas as cidades estão em situação de penúria fiscal porque as transferências diretas do governo federal, para compensar a queda de arrecadação e a suspensão temporária do pagamento da dívida com o Tesouro permitiram a várias capitais chegar ao fim do ano passado com dinheiro em caixa e capacidade de investir. Não é o caso do Rio. As capitais em geral são menos endividadas do que os estados, e a cidade de São Paulo foi a mais beneficiada pela renegociação de dívida feita no governo Dilma, que permitiu a troca de indexador, inclusive com efeito retroativo. Isso reduziu fortemente a dívida da capital paulista. Foi possível trocar o IGP-M mais 6% por IPCA mais 4%, ou por Selic, o que fosse menor. Imagina se não tivesse havido essa troca? O IGP-M em 2020 deu 23%. As dívidas estão sendo corrigidas pela Selic de 2%.

O Rio tem anomalias de toda ordem. Uma delas foi a transição feita entre uma equipe acéfala que estava saindo e a que estava chegando. No dia em que o ex-prefeito Marcelo Crivella foi preso, muitas reuniões da transição foram canceladas. Os dados passados aos novos secretários estão incompletos e muitas equipes começaram a saber ontem que tudo é muito pior do que imaginavam. A saúde e a educação estão em situação dramática. O aumento de leitos para pacientes de coronavírus e a criação do Centro de Operações de Emergência, anunciados ontem, foram medidas extremamente necessárias. O Rio passa a ter agora um gestor que tem noção da emergência sanitária que a cidade vive.

Em Belo Horizonte, o prefeito Alexandre Kalil disse que a capital mineira é “uma cidade de todos, de LGBTs, cristãos, evangélicos, negros”. E agradeceu a oposição pela pluralidade. Em São Paulo, o prefeito Bruno Covas começou citando a vice-presidente eleita dos Estados Unidos, Kamala Harris, para falar da fragilidade da democracia. Atacou o negacionismo, “os intolerantes e os lacradores”. No Rio, Eduardo Paes disse que fará um governo antirracista, e prometeu combater “essa chaga brasileira”.

Um prefeito do Rio tem que, antes de tudo, entender isso, e tomara que Paes vá além das palavras. Aqui as marcas da exclusão são muitos visíveis. Milhares de africanos escravizados desembarcaram no Rio para viver longo martírio e, ao mesmo tempo, construir o país. Que faça sim uma administração antirracista, porque é a única que honra o Brasil e a sua identidade plural.

Tudo o que disseram os novos prefeitos afasta as administrações locais da intolerância ao diferente e à diversidade de opinião que é a marca do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro. E houve na festa democrática de ontem simbologias importantes. Em São Paulo, a posse foi presidida por Eduardo Suplicy, do PT. Na cidade, a bancada da esquerda, somando-se PT e PSOL, cresceu bastante. No Rio, a posse dos vereadores foi comandada por Tarcísio Mota, do PSOL, o vereador mais votado, amigo de Marielle Franco. A viúva da vereadora assassinada, Monica Benício, também tomou posse.

Revigorados pelo voto, os prefeitos das capitais e principais cidades brasileiras estão mostrando que tomarão as decisões que o governo federal ignora no combate à pandemia. Foram posses cuidadosas, com pouco ou nenhum convidado, presencial com máscara, como no Rio, ou remota, como em Belo Horizonte. O cenário de precaução se repetiu nas outras capitais.

Bolsonaro, com sua atitude irresponsável de negar a doença, a ciência, espalhar mentiras sobre a vacina, promover aglomerações e atrasar decisões inadiáveis, chega ao meio de mandato com uma posse de prefeitos que dá mais um sinal do seu isolamento político. O que os eleitores disseram é que querem administradores que os protejam da pandemia. Por isso a pressão por um programa de imunização vai crescer nos próximos dias.


Míriam Leitão: General não sabe preparar a guerra

O general está errando na estratégia de guerra e falhando na execução de sua missão. Ao ministro general Eduardo Pazuello foi entregue a tarefa de proteger a saúde dos brasileiros em plena pandemia. Isso é uma guerra. O inimigo é altamente letal, já foram 179 mil os brasileiros mortos. Pazuello deveria usar toda a munição e todas as armas disponíveis, mas escolheu apenas algumas. Ele nos desarma diante de inimigo perigoso ao desprezar a vacina do Instituto Butantan e demonstra ter dúvidas se haverá demanda por proteção entre as potenciais vítimas do coronavírus.

Ontem Pazuello tentou consertar o que havia dito na véspera, mas os últimos dias foram esclarecedores para quem tinha alguma dúvida de que o governo escolheu mal o general desta guerra. E escolheu mal porque o próprio presidente demonstra não se importar com os efeitos da pandemia, desde o começo.

Na reunião com os governadores na terça-feira ficaram claros os erros de estratégia, de avaliação, de planejamento e de logística do ministro da Saúde. Diante de um inimigo perigoso e desconhecido, um bom comandante não faz o que ele fez. Até agora ele escolheu uma única vacina, a Oxford AstraZeneca, e admitiu comprar a da Pfizer. Só que ele mesmo disse que as quantidades de vacinas que os laboratórios podem oferecer são “pífias”. Nesse contexto de escassez de oferta, fica ainda mais difícil entender por que ele desfez o acordo que havia firmado em outubro com a vacina Coronavac. Na briga com o governador de São Paulo, João Dória, Pazuello disse que o Instituto Butantan não é de São Paulo, e sim brasileiro. A verdade é que ele é administrativamente paulista porque há um século foi fundado pelo governo de São Paulo. Ao mesmo tempo, é de todo o país pela confiança que a população brasileira tem no nosso maior fabricante de vacinas. Mas, diante da afirmação de Pazuello, ficou mais claro que o governador João Dória fez a pergunta certa. Por que discriminar a vacina na qual trabalha o Instituto Butantan?

Todo general sabe, por dever de ofício e longo treinamento, que é preciso, numa guerra, manter a união. Pazuello até falou que não devemos nos dividir. Perfeito. Mas quem tem dividido o país desde o começo é o presidente. Ou é preciso lembrar as vezes em que ele atacou governadores? A demora de tomada de decisão do governo federal está provocando essa divisão, com cidades e estados indo procurar diretamente a forma de proteger sua população. O prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, procurou o governo de São Paulo. Vários governos estaduais, também. O governador Flávio Dino foi ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Se o ministro tivesse desde o começo assumido o papel de liderança que o governo federal sempre teve em programas de imunização, se mantivesse diálogo contínuo com os governadores, se tivesse mostrado senso de urgência e discernimento, não precisaria pedir por unidade. Ela aconteceria naturalmente e sob o comando do Ministério da Saúde. Quando os governadores pedem uma reunião com o ministro para discutir o programa nacional contra o coronavírus é a prova de falha da liderança. O ministro já deveria ter transformado esses encontros em rotina, deveria ter apresentado seu programa, deveria ter adotado a estratégia comum em todos os países de apostar em várias vacinas viáveis. Ou seja, seu dever no cumprimento da missão era usar a melhor estratégia da guerra, manter todos unidos contra o inimigo comum e usar todas as armas e munições.

A referência bélica é em sentido figurado. Armas e munições são as vacinas que nos garantirão a vida e o funcionamento normal da economia. Não apenas o imunizante, mas as seringas, agulhas, cronograma, planejamento, capacidade de estocagem e de transporte. A logística da imunização, enfim. Mas a prioridade de Bolsonaro é literal. Ontem o governo levou a zero as alíquotas de importação de revólveres e pistolas.

O governo atende ao desejo dos clubes de tiros, mas o general da Saúde tem dúvida se há interesse da população em se defender do vírus. “Se houver demanda”, disse e repetiu Pazuello. Ele assim o fez para mais uma vez demonstrar que segue na tropa do presidente da República que sempre negou a gravidade da pandemia e a necessidade de proteção contra o inimigo. O general está perdido no tiroteio.


Míriam Leitão: Inflação em alta complica a vida

Os juros não vão subir nesta reunião do Copom, mas a inflação em alta está pondo todos no mesmo córner: o Tesouro, o Banco Central, as contas públicas e as famílias brasileiras. O INPC pode passar de 5% e esse é o índice que corrige várias despesas do Orçamento da União. Os gastos, portanto, subirão mais do que o calculado no projeto enviado ao Congresso, porque a inflação acelerou no segundo semestre. O Banco Central não elevará os juros nesta quarta-feira, mas esse fator novo, a taxa de inflação, tira o Copom da zona de conforto. Quando ele tiver que subir a Selic, a dívida fica mais cara.

Para as famílias, a alta da inflação atinge um nervo exposto. O IPCA subiu 0,89% em novembro. As maiores altas são dos preços de alimentos e de alguns serviços que não podemos deixar de consumir. Para o professor Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio, o que mais pesou nos índices divulgados ontem, depois dos alimentos, foi a luz. E ele calcula que dezembro deve trazer uma taxa de 1%:

— Com 1% em dezembro, o IPCA vai a 4,16%, mas pode ser um pouco mais. O INPC iria para mais de 5%, porque no ano o INPC acumula 3,93%, e o IPCA, 3,13%.

A inflação de alimentos e bebidas teve alta de 12,14% no ano e 15,94% em 12 meses. Quando se mede a alta só dos alimentos no domicílio a taxa chega a 21,13% em 12 meses. Ou seja, ela é maior nos itens que pesam mais no bolso. As famílias estão chegando ao fim do ano num país em que o desemprego subiu, a renda caiu, o auxílio deixará de ser transferido aos mais pobres, e a comida está mais cara. Visivelmente mais cara. E existem aumentos à espreita para o começo de 2021. Muito reajuste foi adiado porque a ideia é que a esta altura estaríamos livres da pandemia. Mas não. Estamos numa segunda onda de aceleração da doença. Planos de saúde, tarifas de serviços públicos, remédios subiram menos ou não foram reajustados em 2020. E essa conta chegará em 2021.

O projeto de orçamento que está no Congresso previa que as despesas indexadas — salário mínimo, benefícios previdenciários e assistenciais —seriam corrigidas por 2,09%. Se o INPC, que indexa, terminar o ano acima de 5%, teremos um aumento muito grande das despesas, como já alertamos aqui neste espaço na semana passada. Talvez R$ 17 bi ou mais. O teto de gastos é corrigido também, mas pelo IPCA em 12 meses até junho, que deu 2,13%. O teto subirá menos que a despesa fixa. Haverá, portanto, mais dificuldade para ajustar o orçamento. E há um problema extra: ainda não temos nem a LDO aprovada.

O Tesouro terá um vencimento de R$ 600 bilhões de dívida nos quatro primeiros meses do ano. O governo tem que estar bem atento a isso, exatamente porque a dívida deu um salto forte com a pandemia. É por isso que o Ministério da Economia está querendo deixar bem claro que pelo menos metade desses recursos de refinanciamento da dívida já está garantida.

— Teremos R$ 100 bilhões de pagamento do BNDES da dívida que o banco tem com o Tesouro, e vamos ficar com R$ 190 bilhões do lucro contábil do Banco Central — diz uma fonte da equipe econômica.

O Tesouro do Brasil tem uma dívida alta, e com muitos vencimentos no curto prazo. A grande vantagem é a Selic estar em 2%. Mas por quanto tempo mais a Selic ficará nesse patamar com a inflação subindo além do previsto? Um dos poucos pontos de alívio dos últimos tempos é a reversão da alta do dólar. O câmbio vinha pressionando muito os preços, mas nas últimas semanas o real se valorizou frente à moeda americana.

A inflação quando sobe de forma rápida sempre desorganiza tudo. Não era previsível que ela subisse, já que o país está em um contexto recessivo. A taxa não está em níveis tão altos quanto, por exemplo, em 2015, mas o que já subiu teve efeito de tornar mais apertado o orçamento das famílias, elevar o gasto público e alimentar a dúvida sobre quanto tempo mais o BC pode permanecer sem elevar a taxa de juros.

Pior do que a inflação de agora é a sensação de que outros preços vão subir quando o país ainda não se recuperou. De que eles estão à espreita, como eu disse. A vida de todo mundo fica mais difícil: do governo e das famílias. Até porque essa é uma inflação que tem muitas origens: a alta de alimentos, a falta de insumos na cadeia produtiva, os adiamentos de reajustes de preços administrados, a subida do dólar. A vida não ficará fácil tão cedo. Em todos os sentidos, mas hoje falo da inflação, aquela velha senhora.


Míriam Leitão: Truque da negação mantém o racismo

A estratégia mais velha do racismo brasileiro sempre foi negar a própria existência. Fica mais difícil combater um inimigo que se camufla. Por isso, as atitudes do presidente e do vice-presidente do Brasil na morte de João Alberto são tão lesivas, porque elas fortalecem a maneira como o racismo sempre prevaleceu no país. O caso revela também um defeito do mundo corporativo que é a inclusão em seus índices de qualidade, de sustentabilidade e diversidade, de empresas sem qualquer compromisso com os valores que aqueles indicadores representam. Engana-se assim o distinto público.

O Carrefour só agora foi expulso da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial e, apesar de não fazer parte do índice de sustentabilidade da B3, estava em outro indicador internacional, em parceria com a bolsa americana S&P, o Brazil ESG Index. Agora, terá a participação revista. A pergunta é o que a rede de supermercados, que já tem tantos antecedentes, fazia nesses indicadores. A B3 tirou a Vale do índice de sustentabilidade apenas depois do desastre de Brumadinho. Esses selos de qualidade acabam servindo para enganar.

Os indicadores corporativos atraem investidores e consumidores. O problema é a mistura entre empresas realmente comprometidas com o enfrentamento das desigualdades sociais, raciais, e com a defesa do meio ambiente, com empresas que usam esses índices e iniciativas apenas como maquiagem.

A desculpa do Carrefour de que o crime foi praticado por uma terceirizada não a exime. Toda empresa faz exigências na contratação de seus fornecedores e é responsável por eles já que a atuação se dá no ambiente de trabalho. Até por uma preocupação reputacional as empresas teriam que impor código de conduta às empresas fornecedoras. O que se viu naquela cena revoltante foi um conluio entre o supermercado e a firma terceirizada para o uso da violência contra um cliente. Nada há que diminua a culpa do Carrefour e tudo isso coloca em dúvida os critérios dos indicadores de responsabilidade corporativa. Existem para informar ou para enganar?

Quanto à dupla Bolsonaro e Mourão, ninguém ficou surpreso com essa reação, porque essa é a estratégia mais usada para a perpetuação do racismo. No governo militar chegou-se ao absurdo da eliminação da pergunta cor e raça no questionário do Censo de 1970, deixando uma cicatriz nas estatísticas. A invisibilidade do problema que atravessa a sociedade brasileira é a forma de dar sobrevida a ele.

As declarações de Bolsonaro e Mourão, mesmo previsíveis, não deixam de ser revoltantes. Elas agridem os negros e ofendem a realidade. Os pretos e pardos brasileiros têm os piores indicadores sociais, enfrentam as barreiras do preconceito onde quer que tentam entrar, são atacados por injúrias raciais que vão minando a autoconfiança e são os alvos mais frequentes da violência policial. Segundo os dados do último Atlas da Violência, um jovem negro tem 2,7 vezes mais risco de morrer vítima da violência do que um jovem branco. Antes de ser eleito, Bolsonaro referiu-se a moradores de quilombo usando uma medida de peso que se usa com animais e afirmou que nem para “reprodutor” eles serviam. Já Mourão disse que o brasileiro tem a indolência do indígena e a malandragem do negro. Mais racistas não poderiam ter sido.

São tantos, tão diários, tão frequentes e visíveis os atos de discriminação a que pretos e pardos estão expostos no Brasil que o presidente e o vice-presidente só conseguiram demonstrar que o governo vive divorciado do país. Governam de costas e agarrados a velhas desculpas esfarrapadas.

O racismo tem uma coleção de sofismas para continuar existindo no Brasil e fazendo seu trabalho de dividir os brasileiros pela cor da pele dando mais oportunidades aos brancos e mais riscos aos pretos. Um desses é que o Brasil é miscigenado e por isso não tem discriminação. É mesmo, o que torna ainda mais absurdo o preconceito. Outro é de que nos Estados Unidos houve segregação e aqui não. O Brasil criou um conjunto tão grande de barreiras que segregou os negros mesmo sem ter uma lei.

Não entender o racismo brasileiro é não entender o Brasil, é aliar-se ao que houve de pior na nossa história para que as desigualdades permaneçam. Há muito tempo tenho exposto neste espaço a minha profunda convicção de que lutar contra o racismo é tarefa de cada um de nós, brancos e negros. É uma luta em favor do Brasil e que tornará o país economicamente mais próspero, e com uma democracia mais sólida.

Não entender o racismo é não entender o Brasil, é aliar-se ao que houve de pior na nossa história para que desigualdades permaneçam.


Míriam Leitão: Erro amazônico de Bolsonaro

Oitenta por cento da madeira que sai da Amazônia é comprada pelo próprio Brasil. Há muitos anos o Imazon vem acompanhando o destino do que é extraído da floresta, e a exportação chega no máximo a 20%. Esse é o primeiro erro, mas não o único, da fala do presidente Bolsonaro ontem na reunião dos Brics. Seu próprio governo é responsável por ter facilitado a exportação de madeira ilegal ao eliminar exigências de verificações portuárias. O trabalho da Polícia Federal de desenvolver tecnologia para identificar a origem da madeira é excelente notícia, mas ela aumenta a responsabilidade do Brasil, ao contrário do que imagina Bolsonaro.

A imensidão amazônica do que o presidente da República desconhece da questão ambiental e climática se vê nas próprias palavras dele. Na frente dos chefes de Estado dos Brics ele exibiu seus complexos de perseguição e suas obsessões:

— Estamos comprometidos no tocante à emissão de carbono, um assunto muito particular do Brasil, tendo em vista os injustificáveis ataques que nós sofremos no tocante à nossa região amazônica.

O Brasil não tem sido atacado. O governo dele é que tem errado completamente na questão ambiental — entre outras áreas — por não ter entendido o tempo presente. Um tempo em que o Brasil só tem a ganhar se proteger o patrimônio ambiental. O que se perde de riqueza para o acúmulo de fortunas de bandidos é uma enormidade.

Na sua fala aos governantes da China, Índia, Rússia e África do Sul, Bolsonaro contou que em breve divulgará os nomes dos países que compram a madeira retirada ilegalmente da floresta. E o fez como quem tem um grande segredo. Disse que aí sim “estaremos mostrando que esses países, alguns deles que muito nos criticam, em parte têm responsabilidade nessa questão”. A primeira coisa que deveria fazer era se informar.

O pesquisador do Imazon, Beto Veríssimo, explica para onde vai a madeira:

— Desde os anos 1990 nós fizemos três grandes levantamentos do setor madeireiro em um relatório, “Acertando o alvo”, que mostra que em torno de 80% da madeira produzida na Amazônia é consumida no mercado nacional. O Brasil é um grande consumidor de madeira tropical e exporta menos de 20% do volume extraído da Amazônia. Exporta para a Europa e os Estados Unidos. Isso não mudou, fica nessa proporção de 80 para 20, até menos, porque Europa e Estados Unidos foram criando mais exigências para verificar a origem da madeira amazônica por suspeita de ilegalidades.

A segunda coisa que deveria entender é que se alguns países importam madeira ilegal é porque o Brasil está falhando em controlar o que se passa em seu próprio território. Em vez de tentar transferir responsabilidade, o governo deve coibir a ilegalidade. Se houver certificação de origem para toda madeira produzida será possível separar o que é produzido legalmente. Assim, o produto exportado brasileiro poderá ser aceito nos mercados internacionais que estão ficando cada vez mais exigentes. Se há uma nova tecnologia da Polícia Federal capaz de atestar o “DNA” da madeira, como disse o presidente, é boa notícia. Isso dará ferramentas para se controlar o crime aqui dentro.

O ex-presidente Barack Obama na entrevista aos jornalistas Flávia Barbosa e Pedro Bial lamentou que o Brasil deixou de ser o líder ambiental que já foi. Quem acompanhou reuniões internacionais do clima pode atestar o protagonismo do Brasil e a deferência com que os negociadores brasileiros, diplomatas e autoridades ambientais eram tratados. Esse poder foi perdido no governo Bolsonaro. Na última reunião, o ministro brasileiro andou por lá à deriva, e na delegação foram implantados agentes da Abin.

Com o patrimônio ambiental que tem, com sua matriz energética, o Brasil não tem razão alguma para pedir solidariedade à China, Rússia e Índia quando o assunto for emissão de carbono. Eles são grandes emissores. O Brasil deveria controlar sua principal fonte de emissão, o desmatamento, e liderar os esforços internacionais de combate à mudança climática.

Esse é o caminho racional, o mais inteligente a fazer. Não será seguido na atual administração. Bolsonaro deu mais uma demonstração ontem de que não entende em que mundo está, quais são as vantagens do Brasil, e até o que se passa no país que governa.


Míriam Leitão: Vitória da causa da humanidade

'A causa da América é, em grande medida, a causa de toda a humanidade.' A frase escrita por Thomas Paine em 1766 amanheceu ontem como nova. “O sol jamais brilhou sobre uma causa com maior importância”, escreveu Paine, o incandescente fundador da pátria, no “Senso Comum”. A vitória de Joe Biden e Kamala Harris tem múltiplos significados. O presidente eleito Joe Biden avisou no seu primeiro comunicado: “O trabalho adiante de nós vai ser duro.” E será. Ninguém expressou melhor o sentimento de deixar para trás um governo que pregou a intolerância e praticou a mentira do que o comentarista Van Jones. E o fez aos prantos. “É mais fácil ser pai esta manhã. Mais fácil falar aos filhos que ter caráter é importante.”

Quando Donald Trump, no primeiro debate, se negou a condenar um grupo que prega a supremacia branca, o negro Van Jones, comentarista da CNN, perguntou o que dizer às crianças, ao filho. Agora há muito a contar aos jovens sobre velhas lutas contra preconceitos. O homem mais velho a ocupar a Casa Branca vem junto com uma mulher negra, filha de imigrantes. “We did it, Joe”, disse ela, rindo no telefonema ao vencedor. Tudo é simbólico. Há 100 anos as mulheres americanas conquistaram o direito de voto. Kamala Harris é água desse rio que corre há um século e que abrigou em seu leito outros rios. Será lindo vê-la assumindo a vice-presidência do país escolhido por sua mãe indiana e pelo seu pai jamaicano. É o momento em que se pensa que não há impossíveis, não há “isso não é para você”.

O dia 7 de novembro é histórico para Joe Biden por lembrar sua posse como senador há 48 anos. Mas para toda a sua geração e as que vieram depois serve como quebra de outro preconceito, o que recai sobre os velhos. Nunca é tarde para um sonho. Essa é a mensagem.

Há, em qualquer eleição, duas direções para olhar o evento. Olha-se para o que virá e o que se deixa para trás. O passado agora é Donald Trump. Ele é o líder que exibiu os piores sentimentos como se fossem normais. “Há muita gente que não consegue respirar, acorda, vê os tuítes, vai a uma loja e vê que as pessoas que antes tinham medo de mostrar seu racismo estão ficando cada vez mais desagradáveis”, disse Jones. Um presidente sempre amplifica suas mensagens. Quando mente, ofende, discrimina, ele autoriza esse comportamento. Trump, certa vez, debochou de um jornalista por ter um defeito físico. Foram quatro anos expostos ao governante do país mais forte do mundo estimulando as piores atitudes. Como ensinar às crianças que ser decente vale a pena se o presidente debocha de valores, desrespeita códigos civilizatórios, descumpre as leis?

Em uma vitória há também o olhar para o futuro e esse é o mais relevante. O futuro não será azul. Será uma transição hostil para um governo que assumirá no meio de uma pandemia e de uma crise econômica. Há ainda as fraturas da América para serem curadas. Todos terão trabalho a fazer para reatar o país partido. Alguns republicanos cumprimentaram o novo presidente, como fez Jeb, da casa Bush, que por 12 anos governou o país. “Eu tenho orado pelo nosso presidente em grande parte da minha vida adulta. Eu vou orar por você e seu sucesso.” Um protestante republicano estava dizendo a um democrata católico que oraria por ele.

Filadélfia foi o berço da Constituição e foi simbolicamente o ponto do recomeço. O ex-presidente Fernando Henrique ressaltou a coincidência e lembrou que em dois séculos e meio nenhum presidente havia atacado os alicerces da democracia. “O atual o fez sistemática e deliberadamente”. No mundo, inúmeros líderes cumprimentaram Joe Biden. O primeiro-ministro inglês, Boris Johnson, falou da aliança na luta contra a mudança climática.

“Vejo as águas que passam e não as compreendo (…) Como poderia compreender-te América?”, Drummond lançou essa pergunta há 75 anos. A dúvida amanheceu ontem como nova. Como entender tudo o que houve nesses dias? Como entender os últimos quatro anos e os 70 milhões de votos em uma pessoa nefasta? “Tantas cidades no mapa… nenhuma porém tem mil anos.” O poeta parecia ver o que vivemos esta semana investigando a geografia americana para adivinhar a cor de cada cidade. É forçoso entender tudo o que houve porque, como ensinou Paine, essa é a causa da humanidade.


Míriam Leitão: Tempo suspenso e a democracia

O tempo parou nos Estados Unidos. O tempo parou no mundo. Por quase dois dias, intermináveis horas, os ponteiros marcando o número de votos dos candidatos ficaram congelados em 253 e 214, enquanto a apuração seguia em câmera lenta em cinco decisivos estados. Foi impossível não ser capturado por esse cipoal de regras estaduais, de tendências políticas de condados, do debate sobre os votos pelo correio ou presenciais. Toda eleição americana atrai atenção, esta parece ser uma decisão sobre o fim do mundo. A mais consequential eleição do nosso tempo, como definiu a revista “Economist”. O que a torna tão dramática atende pelo nome de Donald Trump.

Trump está disposto a ser até o fim um perigo para a democracia americana. Num discurso patético e criminoso, disse que a eleição está sendo roubada e que vai à Suprema Corte. Ele escalou a guerra jurídica, aumentou o tom das acusações de fraudes, sem qualquer evidência, continuou corroendo a credibilidade das instituições junto aos seus eleitores. Quanto mais o candidato democrata Joe Biden foi ampliando suas chances, mais Trump elevava sua reação, dando trabalho ao Twitter de ir retirando seus conteúdos com a explicação de que eles desinformavam sobre a eleição e o processo cívico. Quando alguém poderia imaginar uma rede social tendo que eliminar conteúdo de um presidente dos Estados Unidos por ele estar atacando o processo cívico de uma eleição?

As principais lideranças republicanas ficaram em silêncio. A má notícia é que não discordaram de Trump, a boa é que não fizeram coro com as suas alegações de fraude. O que é um sinal antecipado do que acontecerá quando ele sair da Casa Branca dentro de 75 dias. O poder que o aparato da presidência americana dá ao titular do salão oval é enorme, mas se esvai instantaneamente. Aos seus ex-ocupantes concede apenas influência e prestígio e na medida dos seus méritos.

O sistema do colégio eleitoral é obviamente disfuncional. As regras, criadas num tempo de representação limitada, teriam a virtude de impedir outsiders, segundo seus defensores. Desta forma, a democracia americana continuaria no seu movimento pendular entre os dois grandes partidos, blindado contra aventureiros. Ninguém mais pode dizer isso depois de Donald Trump, que despencou de um reality show de má qualidade direto para a Casa Branca. Nos últimos quatro anos atentou diariamente contra as bases da democracia americana, misturou os interesses e bens públicos com seus negócios privados, quebrou todas as regras de conduta que um chefe de Estado de país democrático deve seguir. Mentiu de maneira tão compulsiva e doentia que sua presidência não pode ser entendida pelos manuais de ciência política, mas sim pelos tratados de medicina ou por códigos penais.

Por isso, as falas de Joe Biden dão uma sensação de alívio. Elas são normais. Ontem, ele disse que o voto é sagrado, que todos precisam ser contados, que através do voto as pessoas expressam sua vontade. “É a vontade dos eleitores, e de ninguém mais, que escolhe o presidente dos Estados Unidos.” Biden é desprovido de carisma. Não tem o apelo magnético de um Barack Obama. Mas depois dessa tempestade de dissonâncias que tem sido a presidência Trump, seu tom monocórdico soa como uma harmonia.

Enquanto os votos eram contados numa lentidão enervante, o mundo teve que se informar sobre cada particularidade da geografia americana. Omaha, o condado de Nebraska dono de um voto, entrou no mapa da imprensa de vários países. Nevada parecia o centro do mundo na noite de quarta-feira, mas aí o estado decidiu suspender a contagem e ir dormir com os seus seis votos parados no ar. Na quinta de manhã, houve o “dilema no deserto”, segundo escreveu o “Financial Times”, na explicação sobre os 11 votos do Arizona que entraram e saíram da conta. No começo da tarde, Geórgia estava em todas as mentes. No fim do dia todas as calculadoras voltaram-se para o ponto inicial da República nascida das 13 colônias: Pensilvânia e seus 20 votos que teriam o poder de encerrar a longa agonia. Nunca a expressão “cada voto conta” fez tanto sentido. Foi assim que o planeta passou as horas paradas desta semana, enquanto se decidia o futuro da democracia.


Míriam Leitão: Hora de o país acertar o passo

O final desta eleição tensa e deste tempo infeliz pode ser o fortalecimento da democracia americana. Os Estados Unidos viram de perto os defeitos do seu sistema que permitiu a um presidente manipular os fatos, acirrar conflitos, dividir o país, tentar restringir o voto. O país chegou à eleição com tapumes nas lojas, cerca na Casa Branca e temor de escalada da violência. Nada disso é normal, como escreveu Dorrit Harazim.

Depois de duas eleições em 16 anos nas quais o vencedor do voto popular perdeu no colégio eleitoral, depois de um governo tão extremista quanto o de Donald Trump, está claro que os Estados Unidos precisam atualizar o legado dos fundadores da pátria. O federalismo não pode dar tanto poder às autoridades locais para restringirem o direito de voto, eliminando postos eleitorais. Não pode haver o temor de que o voto pelo correio vá para o lixo. Aumentaram as vozes respeitáveis nos Estados Unidos propondo reforma do sistema eleitoral.

Dias atrás, em conversa com o embaixador Rubens Ricupero, ouvi a sua expectativa:

— Eu tenho muita esperança de que as eleições provoquem uma reviravolta — ainda tenho medo de me decepcionar uma vez mais — mas se Trump perder nós vamos ter um verdadeiro terremoto, porque isso vai mudar todo o clima ideológico, político, psicológico do mundo. A eleição dele foi um choque de ruptura violentíssimo. A derrota dele não quer dizer que vamos voltar a uma situação maravilhosa, mas é como você despertar de um pesadelo, quando acorda você não está no paraíso. O fim do pesadelo não é o começo do sonho. É a volta à realidade.

A realidade tem uma recessão forte e uma pandemia descontrolada. Apesar disso, essa é a chance de um reencontro dos Estados Unidos com eles mesmos, se os líderes aproveitarem o momento para o recomeço.

Aqui também o melhor é acertar o passo. Quando Jimmy Carter foi eleito previa-se tensão com o Brasil porque ele defendia os direitos humanos e o fim da tortura nos países latino-americanos. O governo Ernesto Geisel torcia o nariz e se falava em intervenção em assuntos internos. Que país deve ser livre para torturar e desrespeitar os direitos humanos? Agora, se fala em tensão entre Joe Biden e Jair Bolsonaro. É, na verdade, a chance de Bolsonaro sair de duas posições erradas: o isolacionismo na política externa e o estímulo ao desmatamento da Amazônia.

Na sua série de tuítes ontem sem pé nem cabeça, Bolsonaro já estava em posição defensiva. Falou, no contexto da eleição americana, em ingerência estrangeira “visando às eleições de 2022”. E se referiu às “nossas riquezas, nosso futuro”.

A política ambiental do governo Bolsonaro até agora estimulou o desmatamento, o garimpo ilegal e a grilagem. Isso é que põe em perigo o nosso futuro e destrói a nossa riqueza. O ministro das Relações Exteriores do governo Bolsonaro acha bom o Brasil ser um “pária”. O cargo dele é cuidar das “relações exteriores”. Por óbvio, um país pária não as tem. Ernesto Araújo está no emprego errado. Biden prometeu um governo multilateralista, a volta dos Estados Unidos ao Acordo de Paris e defendeu a proteção da Amazônia. Tudo isso é ótimo porque o Brasil fez muito nas negociações do clima para que se chegasse ao acordo e somos os maiores beneficiários do combate ao desmatamento.

Uma pressão externa contra os crimes ambientais se somará aos grupos cada vez mais majoritários, até do agronegócio, que exigem mudança. Seria tão absurdo requerer soberania para desmatar quanto se Geisel tivesse defendido o direito soberano de o Brasil torturar.

A melhor resposta para a crise da democracia é mais democracia. Não se pode tolerar um presidente que pede a grupos supremacistas brancos que recuem e aguardem. Não se pode tolerar um presidente numa manifestação que pede fechamento do STF. Países lenientes com desvios dos seus governantes correm o maior dos riscos, o da perda da democracia.

A resposta da sociedade americana foi um comparecimento recorde às urnas. Uma senhora negra de 69 anos, da Carolina do Norte, entrevistada pela NBC, disse que votou pela primeira vez em sua vida. A repórter quis saber porque ela mudara de comportamento, e ela respondeu que ficou em casa por causa da pandemia, pôde se informou melhor e decidiu participar. Ela votou Biden-Harris. Os caminhos da democracia são sempre surpreendentes.


Míriam Leitão: Negros, latinos e jovens decidem

A eleição americana, que hoje tem seu dia D, está sendo marcada pelo acirramento do conflito racial. Foram mortes em série, desde George Floyd, e manifestações constantes. O que agravou a tensão foi a atitude do presidente Donald Trump de não manifestar solidariedade às vítimas e ainda se recusar a condenar grupos supremacistas brancos. O voto dos negros sempre foi majoritariamente contra os republicanos. Negros, latinos e jovens serão decisivos, indo ou não indo votar.

Os latinos também votam mais azul que vermelho, mas numa proporção menor que os negros. O banco de dados da Universidade de Cornell registra que, em 2016, 89% dos eleitores negros votaram na candidata democrata e 66% dos latinos. Juntos, negros e latinos são 34% do eleitorado. O grupo latino é tratado como unidade apenas para efeito estatístico, mas é muito heterogêneo. Há uma enorme diferença entre um brasileiro que foi para Nova York, um cubano de Miami ou o mexicano da Califórnia.

A tendência demográfica é de crescimento dos latinos. Para se ter ideia, 52% do acréscimo da população americana na última década foi de latinos. Eles são hoje 61 milhões, 10 milhões a mais do que em 2010, segundo o Census Bureau. E é o grupo étnico mais jovem, de idade mediana mais baixa. Os aptos a votar chegam a 32 milhões de eleitores, 18% do eleitorado. Nem todos votam, e nem todos os que podem votar estão interessados em fazê-lo. Uma pesquisa do Pew Research Center revela que apenas 54% da comunidade latina estava “extremamente motivada a votar”, enquanto no resto da população esse percentual chegou a 69%.

O que isso significará numa eleição em que o presidente é defensor dos valores mais radicais dos brancos não latinos, e que aprofundou a divisão racial, produzindo um movimento contrário de estímulo ao comparecimento às urnas?

Alguém pode concluir que, como sempre votaram mais nos democratas, isso não fará diferença. Mas nesta dramática eleição em que se joga o futuro do mundo, cada voto conta. Na Flórida, onde o eleitor latino tem mais inclinação republicana, houve um aumento de meio milhão de eleitores registrados em relação à última eleição, saíram de 2 milhões para 2,5 milhões. Porém há mais eleitores democratas entre os que se registraram. Há quase um milhão de eleitores latinos democratas na Flórida contra 640 mil republicanos. Flórida é um dos estados decisivos e é o terceiro em voto latino, depois da Califórnia e do Texas.

O eleitorado jovem deve bater este ano o recorde de comparecimento às urnas. O grupo etário não se dispõe muito para o ato de votar, mas as pesquisas feitas pelo Center for Information and Research on Civic Learning and Engagement (Circle) da Universidade de Tufts, mostravam, no dia 30, que em oito estados os eleitores jovens (18-29 anos) que anteciparam o voto já tinham superado o total de comparecimento desse grupo etário em 2016. Ao todo, sete milhões a mais do que os eleitores que compareceram às urnas na última eleição. Em 14 estados-chave eles podem decidir tanto a presidência quanto a disputa para o Senado. Um seminário em Harvard com vários especialistas chegou à mesma conclusão. Desta vez, os jovens estão indo às urnas.

Se não fossem todos os motivos para considerar que a derrota de Trump é o melhor desfecho para esta eleição, há ainda o fato de que a diversidade americana se amplia e o candidato republicano não consegue representar essa sociedade. Se os democratas vencerem, o posto de vice-presidente será ocupado pela primeira mulher, a primeira negra, a primeira pessoa descendente de mãe asiática e pai jamaicano a chegar nessa posição. E pela primeira vez haverá um second gentleman no país. Doug Emhoff será o primeiro judeu nesse quarteto, de presidente, vice-presidente e seus cônjuges. Emhoff deu uma pausa na sua carreira de advogado para se dedicar à campanha e é considerado uma das armas secretas por atrair também a comunidade judaica. O jornal “Washington Post” fez uma divertida matéria sobre ele, contando da amizade entre Kamala Harris e a ex-mulher dele, uma produtora de cinema de Los Angeles, Kerstin Emhoff. A matéria mostrava que ele tem feito perfeitamente o papel do “homem por trás de uma grande mulher”, invertendo a expressão sempre usada sobre as mulheres de homens públicos.