Míriam Leitão
Míriam Leitão: Guardia e as ideias em debate
Guardia diz que é totalmente inviável a ideia de isentar o IR de quem ganha até cinco salários mínimos. Pelas suas contas, a medida custaria R$ 60 bi
O ministro Eduardo Guardia disse que é falsa a informação de que o teto de gastos congela as despesas com saúde e educação e garante que elas continuarão sendo reajustadas. Ele comentou algumas propostas que estão sendo feitas durante a campanha eleitoral. Diz que a taxação sobre dividendos é apenas uma nova forma de cobrar tributos, que pode ser adotada. Sobre a isenção até cinco salários mínimos, Guardia afirmou que custaria R$ 60 bilhões. “No meu entendimento é absolutamente inviável.”
O ministro não quis falar diretamente dos partidos, mas aceitou dar a sua opinião sobre alguns projetos que circulam no debate político deste ano. Ele acha que há boas e más ideias sendo levantadas, mas alerta que não se pode tirar o foco do problema principal: a profunda crise fiscal que qualquer governante terá que enfrentar. O teto criticado pela maioria dos candidatos tem o mérito, na opinião dele, de impor uma disciplina em despesas que cresceram demais.
— A informação de que o teto congela as despesas de saúde e educação está errada e é importante frisar isso. Nessas despesas há um piso e não um teto. Essa é a diferença fundamental de outras áreas do governo. Essas despesas serão reajustadas pela inflação. O gasto com saúde e educação nos últimos 10 anos teve um crescimento de 7% ao ano, foi quase 90% de alta nesse período. Hoje a gente gasta mais do que a média dos países da OCDE como proporção do PIB. Além disso, 70% da despesa com educação não está no teto, mas sim no Fundeb, Fies, Prouni. Está errado dizer que há um congelamento dos gastos com saúde e educação por causa da emenda do teto de gastos — afirmou Guardia.
Ele acha que há um erro na condução do debate que o país tem travado sobre o assunto neste ano eleitoral:
— Estamos perdendo a perspectiva do que é relevante. O fato é que a despesa pública vem aumentando. De 1991 a 2015, cresceu 6% ao ano em termos reais. Todo presidente que assumiu desde 1991 entregou a despesa superior à que encontrou. Era 14% do PIB e é hoje 20% do PIB. O ponto central é que o Estado ficou grande e isso foi acompanhado de uma deterioração do resultado primário. Tínhamos um superávit primário de 2% do PIB e agora temos um déficit de 2% do PIB. O gasto obrigatório do governo cresceu 46% em termos reais de 2008 para cá. Gostemos ou não, teremos que enfrentar isso. O teto é um mecanismo que permite um ajuste gradual.
O ministro da Fazenda acha que a proposta que tem sido defendida pela maioria dos candidatos de cobrar imposto sobre dividendos é viável, mas alerta que teria que vir acompanhada de uma redução da tributação sobre Pessoa Jurídica, porque no mundo inteiro está havendo essa diminuição. Por isso, a nova taxação não teria muito ganho em termos de arrecadação.
Já a proposta de aumentar a faixa de isenção do IR até cinco salários mínimos ele diz que é inviável:
— Essa medida custará R$ 60 bilhões por ano. É absolutamente inviável no momento. Não tem como absorver o custo dessa proposta na situação em que o país se encontra.
Sobre o aumento do imposto de herança e doações, ele diz que o governo encaminhou essa proposta e está no Congresso, e traria uma receita de R$ 3 bilhões. Mas ele lembra que este imposto é dos estados e há dúvidas sobre se o governo federal deve avançar sobre esse tributo.
Guardia diz que não conhece em detalhes a proposta de reestruturar a dívida dos devedores que estão com o nome do SPC, mas tem algumas preocupações:
— Tenho muitas restrições a soluções ancoradas em bancos públicos porque já deu errado no passado.
Sobre a ideia de tributar mais o banco que cobrar spread maior, e menos de quem colocar juros mais baixos, o ministro Eduardo Guardia disse que é equivocada e contra a lei:
— A nossa Constituição não permite esse tipo de diferenciação dentro do mesmo setor.
Guardia acha correto reduzir os benefícios fiscais, que saíram de 2% do PIB para mais de 4%. Segundo ele, este governo já reduziu um pouco, mas alerta que não se pode fazer “da noite para o dia”. Contudo, acha que o caminho é este. Sobre a reforma da Previdência com a capitalização, ele disse que não resolve o problema mais urgente da atual Previdência e cria um custo enorme de transição. Guardia acha que se houver concordância entre a pessoa que for eleita presidente e a presidência da Câmara, pode-se votar ainda este ano a reforma da Previdência.
Míriam Leitão: O país parado no meio do caminho
PIB do segundo trimestre deve vir fraco e expor os efeitos da greve do setor de transportes e das incertezas da corrida eleitoral no país
Quando o IBGE divulgar na sexta-feira o PIB do segundo trimestre ficarão claros os pesos que puxam para baixo a economia este ano: a greve do transporte de carga, a incerteza eleitoral, o ambiente externo desfavorável. Tudo junto, o país ficou parado de abril a junho, apesar de o ano ter começado com a expectativa de um crescimento do PIB em torno de 3%. A saída da nossa mais profunda recessão tem sido também a mais lenta.
A greve parou o país por 11 dias, derrubou todos os indicadores de maio, encolheu a indústria e afetou a confiança de todos os agentes econômicos, o que continuou tendo efeitos. Ontem a Fundação Getúlio Vargas informou que a confiança da indústria em agosto caiu ao seu nível mais baixo desde janeiro. A paralisação também deixou como herança uma tabela de frete que está engasgada na cadeia produtiva, e um caríssimo subsídio ao diesel, de R$ 9,5 bilhões, que não é suficiente para impedir novos reajustes. Junto com o número do PIB, projetado para ficar em torno de zero no segundo trimestre, o país conhecerá o novo preço do diesel que, inevitavelmente, será mais alto.
O dólar subiu muito e há uma semana o repórter Alvaro Gribel, no meu blog, avisou que já havia atingido o ponto a partir do qual o subsídio de R$ 0,30 por litro não seria o suficiente para segurar o preço. Os primeiros três meses de preços estáveis terminam na sexta-feira e haverá nova fórmula e nova realidade para informar aos consumidores.
O problema não foi apenas a greve, por maior que tenha sido o impacto imediato da interrupção do transporte de carga do país. A eleição entrou na agenda e o que se vê é um quadro de enorme incerteza fiscal. O Orçamento de 2019 está indo esta semana para o Congresso com uma previsão de R$ 139 bilhões de déficit com despesas de pessoal e da Previdência crescendo mais uma vez em relação ao ano anterior.
Os indicadores setoriais de junho mostraram recuperação em “V” na indústria, a inflação também subiu e caiu em seguida, o comércio não conseguiu recuperar as perdas, e as exportações voltaram a subir. Mesmo assim, a queda foi forte e tudo contribui para que o resultado seja como registrou o “Valor” em sua pesquisa, na média, de 0,1%. Ou seja, estagnação. É sem dúvida boa a notícia de que a inflação tenha recuado e o IPCA caminhe para ficar um pouco acima de zero em agosto. Houve um tempo no passado em que a mistura de incertezas eleitorais, alta do câmbio e um choque na economia levava a inflação inexoravelmente para cima, e, com ela, a taxa de juros. A Selic permanece em 6,5%.
No mercado financeiro, há instituições que sequer fizeram o cálculo para o PIB do segundo tri, por causa da forte influência da greve sobre os números. A avaliação é que se os meses de abril a junho vierem muito fracos, isso será compensado de julho a setembro, em um efeito parecido com o que houve com a inflação.
— Temos que aguardar e depois fazer a média desse período todo. Não adianta olhar só para o segundo trimestre. O que mais nos preocupa neste momento é mesmo a incerteza eleitoral — explicou um economista.
O quadro externo também permanece incerto, ao sabor das idiossincrasias do presidente Donald Trump. Esta semana ele anunciou o “melhor acordo comercial do mundo” com o México, que é o mesmo Nafta com algumas exigências a mais feitas ao país, e com a exclusão do Canadá. Trump hostiliza os parceiros para depois oferecer o mesmo de antes, com algumas mudanças, e rebatiza o instrumento para ser o realizador. As exigências maiores de conteúdo nacional feitas aos mexicanos podem reduzir um pouco as exportações brasileiras de autopeças. Mas o pior efeito do trumpismo é mesmo a instabilidade e a incerteza que o presidente americano cria em todas as áreas.
As entrevistas com os economistas dos candidatos mais bem colocados nas pesquisas de intenção de votos mostram em maior ou menor grau a dificuldade de explicar na prática como farão para atingir os objetivos de reequilibrar as contas públicas e enfrentar os desafios fiscais gigantes que a pessoa que sair vitoriosa nas urnas terá que enfrentar. Por tudo isso, o ano de 2018 está sendo aquele no qual o país não consegue sair do chão, permanece parado no meio do caminho entre a grande recessão que vivemos e o crescimento que ainda não chegou.
Míriam Leitão: Bolsonaro e o uso da religião
Usar Cristo para justificar a proposta de armar a população brasileira é subverter a sua mensagem pacifista
O candidato Jair Bolsonaro fez o sinal da cruz antes de entrar no local onde seria entrevistado e o repetiu no início das perguntas. Esse é um gesto católico, que não é feito por evangélicos ou protestantes. Ele se diz “cristão”, mas deixa a definição imprecisa para ser aceito pelos evangélicos, como um deles, e não sofrer rejeição de outros grupos religiosos. Ao citar a Bíblia, demonstra falta de intimidade com o livro que chama de “caixa de ferramentas”.
Bolsonaro tem usado a religião de diversas formas. Afirma que está cumprindo “uma missão de Deus”. Colocar-se como um ungido, com uma missão divina, é uma forma de tentar atrair setores religiosos mais extremados.
Suas citações da Bíblia parecem mais repetição de algum trecho que lhe dão, do que conhecimento advindo da leitura do texto sagrado. Isso ficou claro ao fim do debate da Rede TV!, quando ele responde a Marina. “Leia o livro de Paulo.” Não existe um livro chamado Paulo. Existem vários livros escritos pelo apóstolo, no seu trabalho de construir as bases doutrinárias do cristianismo. São as epístolas às várias comunidades, os livros aos Romanos, Coríntios I e II, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses e Tessalonicenses I e II. Há também as endereçadas a Timóteo (duas), Tito e Filemon. Uma frase como essa de Bolsonaro revela desconhecimento elementar. Existem dois livros de Pedro, quatro com o nome de João — um do Evangelho e três epístolas — mas nenhum dos 66 livros da Bíblia protestante, nem dos 73 da Bíblia católica, chama-se Paulo.
Ao explicar o que tentara dizer a Marina, naquela indicação de leitura, Bolsonaro errou um pouco mais. Disse que se referia a uma passagem que diz “venda suas capas e compre espadas” e que teria sido dita por Paulo. O GLOBO informou que isso estava em Lucas. Bolsonaro foi além. “É que naquele tempo não existia arma de fogo, senão seria ponto 50 e fuzil.”
Existem diferenças grandes ao longo da Bíblia, principalmente quando se compara o Velho Testamento com o Novo Testamento. Jesus inicia, pela fé cristã, um tempo de perdão e paz. Se no primeiro há o “olho por olho”, no segundo há o “dai a outra face”. A mensagem pacifista de Jesus Cristo é inescapável. Usar Cristo para justificar a violência ou a proposta de armar a população não faz sentido algum. No momento da fúria no Templo, contra os vendilhões, ele não usou armas, mas sua autoridade moral. Mesmo quem jamais leu a Bíblia entende que não é de guerra, mas de paz, a principal mensagem de Jesus Cristo.
Que importância tem isso para a eleição? Nenhuma. Afinal, o Estado brasileiro é laico e, felizmente, assim deve permanecer. Mas a busca do eleitorado evangélico fez com que cada vez mais candidatos usem a Bíblia como marketing. Certa vez, Garotinho disse que houve violência até no céu, “onde Caim matou Abel”. Como todos sabem, isso ocorreu fora do paraíso. O prefeito Marcelo Crivella fez pior: depois de eleito, quis criar um caminho mais curto para os fiéis da sua igreja terem acesso aos serviços públicos.
A diversidade religiosa brasileira é muito maior do que está nas estatísticas, porque sempre esteve em parte encoberta pelo sincretismo. Princípios do cristianismo fazem parte do conjunto de valores da nossa sociedade. Algumas das ideias-força já estão incorporadas à sabedoria geral, como a que Marina utilizou, “ensina o teu filho no caminho que deve andar”, orientação de bem educar. Bolsonaro cita sempre em seu favor João 8:32, “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. É soberba usar assim, como se a verdade dele, Bolsonaro, é que libertasse. Jesus está se referindo à verdade divina.
O TSE acabou de cassar dois deputados por pedirem voto em ato religioso. Religião e questões de Estado não devem se misturar. Este foi um avanço civilizatório e um dos legados da Reforma Protestante. Certos líderes evangélicos têm feito essa mistura nos últimos tempos. Alguns sabem separar. Marina é evangélica mas lembra sempre que o governo é laico. Geraldo Alckmin não faz convocação aos católicos, apesar de ser um. Contudo, muitos postulantes têm alimentado essa mistura, indo pedir a benção de pastores em atos públicos. Essa mistura jamais dará um bom resultado. Púlpito e palanque devem estar distantes. O uso da Bíblia e da religião serve para atemorizar ou enganar eleitores. Isso ameaça a soberania do voto.
Míriam Leitão: Rede: metas altas em busca de lastro
Rede tem metas ousadas para um partido que não tem base parlamentar. Dificuldade para implementar o seu projeto será maior
O programa da Rede é ousado, mas vago em como alcançar os objetivos principalmente para um partido quase sem parlamentares. O projeto de Marina Silva é apostar na reforma da Previdência, que apresentará logo no começo de um eventual governo, e na chegada de investimentos do setor privado. Há medidas impopulares ou difíceis como conter salários do funcionalismo e aumentar imposto sobre combustíveis fósseis, que implicaria acabar, de cara, com o subsídio ao diesel.
A Globonews encerrou a semana de entrevistas com os assessores econômicos dos principais candidatos sabatinando o economista Eduardo Giannetti, um dos formuladores do programa da Rede. Ele esclareceu que apenas as diretrizes foram entregues ao TSE e agora elas serão detalhadas em programas para cada setor. Mesmo sendo apenas linhas gerais, há lá propostas concretas e difíceis.
A reforma da Previdência será com o estabelecimento de idade mínima, de 65 anos para homem, um tempo menor para mulher, mas convergindo no futuro. O rumo é enfrentar a enorme desigualdade do sistema. “O benefício médio no INSS é de R$ 1,3 mil, no Executivo federal é R$ 7 mil, no Legislativo, R$ 16 mil, no Judiciário, R$ 27 mil médio. Isso é um escândalo. São castas”, disse Giannetti. Para reduzir desigualdades passadas, e que o tempo consagrou como direito adquirido, ele propõe aumentar a contribuição dos que mais recebem.
No documento, a Rede mira até o servidor que entrou no serviço público antes da reforma do Lula, em 2003, o que juridicamente é muito difícil atingir. Sobre salário do funcionalismo, Giannetti lembrou que eles são, em média, 67% acima do setor privado. É áspero o caminho de quem quer combater privilégios no Brasil. Exige uma grande coalizão. Com quem Marina fará alianças? Esse é o maior ponto de interrogação de um programa que quer enfrentar o estabelecido.
Perguntado sobre o financiamento das universidades públicas, Giannetti citou Marx, no texto “Crítica ao programa de Gotha”, em que o pensador alemão analisou as ideias do Partido Social Democrata. “Quando fizeram essa proposta, Marx disse que significava financiar o estudo dos ricos com um fundo geral de impostos.” Ele sugere cobrar dos que podem pagar. Criticou a expansão insustentável do Fies, instrumento que deve ser usado com lastro e critério na busca da expansão do acesso ao ensino superior.
Segundo Giannetti, a Rede se propõe a zerar o déficit público em dois anos, mas sem aumentar impostos. Contudo, falou apenas em alguns tributos que subirão. Imposto sobre herança, defendido, segundo ele, por John Stuart Mill, em 1848. Imposto sobre dividendos. Isso tem aparecido em várias propostas associado à queda do Imposto de Renda sobre Pessoa Jurídica, mas Giannetti não confirmou essa queda.
Outro tributo que poderá subir é o ITR sobre grandes propriedades que não façam esforço para a “transição ecológica”. Não ficou claro o que isso significa. Há também o imposto de descarbonização. O programa chega a citar uma pequena elevação na Cide para desestimular atividades e combustíveis de alta emissão de gases de efeito estufa. Além disso, haveria a redução das renúncias fiscais. “Existe uma pletora de isenções tributárias no Brasil. Pouca gente sabe que água mineral, queijos, motocicletas, barcos, aviões particulares estão isentos de alguns impostos.” Rever os absurdos das desonerações e dos incentivos fiscais no Brasil – que têm o dobro do tamanho do déficit público do país – é de fato um caminho, aliás defendido por outros partidos, mas enfrentar o lobby de cada setor é que são elas.
Apesar da proposta de zerar o déficit, a Rede quer mudar o teto de gastos. Acha que começaram a casa pelo teto, sem ter fundamentos. Quer revogar a reforma trabalhista, mas defende uma simplificação da legislação, com o negociado valendo sobre o legislado. Está escrito nas diretrizes que o governo buscará a universalização do saneamento básico, o que é missão tão desejável quanto impossível no curto prazo. Segundo Giannetti, o dinheiro viria do setor privado. Ele aposta no crescimento pela volta da confiança que ocorrerá com a troca de governo. A Rede quer desconcentrar recursos fiscais, o que exigiria a inversão da tendência que vem do período militar e se manteve na democracia. As metas são altas, o caminho não está claro.
Míriam Leitão: PSL: o liberal e o capitão
Convicção de ideias liberais do economista Paulo Guedes vem da vida toda, já a do candidato Jair Bolsonaro, ainda não se sabe se existe
A grande dúvida econômica em relação à campanha de Jair Bolsonaro é se as ideias liberais de Paulo Guedes entraram na cabeça do candidato do PSL à Presidência. “Não sabemos o quanto disso vai se converter em ideias liberais”, admitiu Guedes. “O economista vai propor coisas duras, o presidente vai dar uma amaciada, o Congresso vai dar outra amaciada, e vai sair de lá um negócio que não é o que o economista quis, mas também não é o que a turma queria.”
Qualquer processo de negociação altera o teor dos projetos, mas neste caso a dúvida é maior. Não há qualquer ponto de contato entre o liberal e o capitão. Ao longo da vida pública, o deputado Jair Bolsonaro votou contra todas as propostas de privatização, quebra de monopólio, previdência e até o Plano Real. Votou a favor de privilégios de parlamentares e entrou na carreira política em defesa do soldo de militares e policiais. Nada que nem remotamente lembre a pregação liberal de Paulo Guedes em toda a sua carreira de economista e empreendedor.
E o que está no programa, ou tem sido defendido por Paulo Guedes, é radical. Na entrevista que concedeu à Central das Eleições da Globonews, ele confirmou que calcula em R$ 2 trilhões o valor da venda de todas as participações do governo em estatais e de 700 mil imóveis da União. Na lista dos bens a serem privatizados está a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa. Tudo. A Eletrobras, também. “Vamos fazer o que o Temer está fazendo, só que mais rápido do que ele. A convicção vem de muito tempo.” A convicção de Paulo Guedes é da vida toda, mas a de Bolsonaro não se sabe se existe.
O mais relevante são as contradições no presente. O candidato Jair Bolsonaro, na entrevista que concedeu à Globonews, havia defendido a recuperação do valor das aposentadorias e pensões em salário mínimo. Nos governos Fernando Henrique e Lula, houve sempre aumentos reais do salário mínimo. Por isso, muitos que se aposentaram com um múltiplo do mínimo hoje recebem menos, nessa conta, ainda que tenham tido correção pela inflação. Se fossem reajustados agora, nova bomba explodiria sobre a Previdência. Perguntado sobre se isso seria adotado, Guedes admitiu que há divergências. Disse que haverá uma coalizão de centro-direita que vai tentar “convergir os sistemas”. E avisou: “Ninguém terá superpoderes, muito menos um economista.”
Guedes disse que um eventual governo Bolsonaro manterá o teto de gastos, mas avisou que o teto vai cair porque não há parede. Ou seja, sem a reforma da Previdência ele é inviável. Afirmou que o sistema previdenciário está falido e comparou-o a um avião que está ficando sem combustível e vai cair, “e nós estamos tentando colocar nossos filhos lá, isso é um crime.” Com essa imagem forte, o que ele quer dizer é que tem de ser criado outro sistema de capitalização, de contas individuais. Quanto custará? Se os jovens vão contribuir para uma nova previdência, o combustível no velho avião acaba mais rápido. O programa fala em um fundo, mas não informa de onde sairá o dinheiro.
Na área trabalhista, ele quer também um novo sistema. O programa defende uma carteira de trabalho “verde e amarela”, em vez da azul, que cria um regime de trabalho sem CLT. Nele, as normas seriam negociadas entre patrão e empregado. Perguntado sobre os subsídios à agricultura, disse que o setor ficará fora de sua alçada, mas que se depender dele não haverá. Bolsonaro tem buscado apoio no agronegócio.
O programa do PSL promete zerar em um ano o déficit público e para isso Guedes faz contas de pegar recursos que estariam disponíveis, como o que pode vir da cessão onerosa com a Petrobras, o fim do abono salarial, a devolução do BNDES, redução de isenções fiscais. Mas para os anos seguintes ele acredita que conseguirá privatizar “em um ataque frontal”. Imaginando que houvesse acordo para privatizar Petrobras e Banco do Brasil, levaria tempo para preparar o processo. Perguntado sobre isso, ele diz que está “fora da caixa”, ou seja, do pensamento convencional. O dinheiro seria usado para reduzir a dívida pública e diminuir o gasto com juros.
Guedes defende tirar da Constituição todas as vinculações constitucionais para que se possa fazer o orçamento a partir do zero, inclusive saúde e educação. Mesmo quem acha que rearrumar as contas públicas exige decisões radicais tem noção da extraordinária dificuldade de fazer isso. Quando perguntado sobre a distância entre ele e Bolsonaro, Guedes diz que “todo mundo muda devagar”. Mas afirma que o candidato tem aprendido mais rápido do que os economistas brasileiros.
Míriam Leitão: País de líderes desatentos
No próximo mandato, o Brasil vai completar 200 anos de vida independente e não há projeto sólido nas agendas dos presidenciáveis para superarmos nossos atrasos
O Brasil não está preparado, nem se preparando, para os desafios das próximas décadas, e os sinais são exibidos pelas pessoas que exercem o poder ou pretendem exercê-lo. A mudança climática já está acontecendo, mas o tema passa batido na agenda, que nesse assunto até retrocedeu. No próximo mandato, o Brasil vai completar 200 anos de vida independente e não há projeto sólido nas agendas dos presidenciáveis para superarmos nossos atrasos. O país está num mar de desemprego e os ministros do STF pedem pelos seus salários.
Na área fiscal, ambiental e de projeto para o país, a visão da maioria das nossas autoridades é pequena ou pelo espelho retrovisor. É urgente o olhar longo à frente. Os problemas são imensos, as propostas de solução, acanhadas. Muitas vezes, equivocadas.
Na área ambiental e climática, o Brasil teve um claro retrocesso desde que, em 2009, na COP-15, em Copenhague, exibiu um número bom de queda de desmatamento e uma atitude ativa de superação dos riscos do país e do planeta. Desde então, pioraram os dados e as atitudes dos governantes. Este está sendo o quarto ano mais quente da história. Os outros três foram nos quatro anos anteriores. A Califórnia enfrenta o seu maior incêndio. Nesses dados se baseou o “New York Times” para publicar, na sexta-feira, uma longa reportagem sobre os perigos deste tempo. “Para muitos cientistas, este é o ano que eles começaram a viver as mudanças climáticas, em vez de apenas estudá-la”, diz o jornal. Um dos cientistas ouvidos, da Nasa, alertou que não é mais o caso de fazer uma chamada de despertar, porque os fenômenos estão acontecendo neste momento com milhões de pessoas no mundo.
No Brasil, a agenda é flexibilizar as licenças ambientais, cancelar multas aplicadas aos desmatadores, reduzir áreas de preservação, subsidiar o diesel e chamar agrotóxico de remédio. Isso sem falar nas propostas do candidato Jair Bolsonaro para os indígenas, que seria prudente não considerar apenas exótico. É perigoso pelo apoio que ele tem.
A economia global pode viver um período de turbulências se o presidente americano continuar com sua guerra comercial. Quando o mundo tem problemas, o Brasil já sabe que precisa estar com indicadores econômicos mais sólidos. Nas contas externas, o Brasil está bem, mas o rombo das contas públicas é alto demais e nos fragiliza. Mesmo se não houvesse problemas externos seria urgente olhar para o nosso precipício fiscal. O Orçamento terá em 2019 o sexto ano de déficit primário, e o novo governante não terá o mínimo necessário para o funcionamento da máquina. Apesar disso, só na última semana dois novos gastos foram criados. O STF aprovou o aumento dos salários dos ministros e isso já desencadeou o efeito cascata. Calcula-se o gasto em R$ 4 bilhões. No Congresso, os parlamentares em passagem relâmpago por Brasília alteraram a MP da dívida rural para, de novo, aumentar a renúncia fiscal de R$ 1,7 bi para R$ 17 bilhões. É uma história longa, que conto de forma curta: a proposta original da renegociação da dívida dos pequenos produtores foi alterada para aumentar os benefícios dos médios e grandes. O governo vetou partes. O Congresso derrubou os vetos. A Fazenda consultou o TCU e decidiu mandar uma nova MP para que o benefício fosse apenas para os pequenos produtores. O Congresso, agora, mudou a proposta e incluiu uma novidade: a redução da dívida alcança até quem não pagar até dezembro. É perdão ao calote futuro.
A população brasileira chegou ao ponto da mais decisiva travessia demográfica. Daqui para diante vai aumentar rapidamente o número de idosos. Basta olhar os dados do IBGE. Diante disso, o país não faz a reforma da Previdência, não estabelece a idade mínima e alguns candidatos a governar o Brasil negam a existência do problema.
Tanto às questões imediatas, quanto às tendências de longo prazo, os líderes do país estão desatentos, quando não equivocados. O nível do debate político de agora, com raras e breves exceções, é uma exibição de bandeiras velhas. Como estará o Brasil ao fim do próximo governo quando completará 200 anos? O futuro deveria nortear os que tomam decisões ou pensam em governá-lo. E o futuro, como dizem os cientistas ouvidos pelo “NYT”, já está entre nós.
Míriam Leitão: Quem venceu o debate da Band
Lula venceu o debate por uma espécie de W.O. às avessas. Por estranha estratégia dos candidatos, o PT foi poupado de cobranças sobre o mensalão e o petrolão. Naquele mesmo dia havia acontecido um evento emblemático: o Ministério Público, que o ex-presidente acusa de perseguição, devolveu à empresa mais R$ 1 bilhão desviado da estatal. O partido foi poupado da crítica de o governo Dilma ter provocado a pior recessão do país, ter transformado 16 anos de superávit primário no maior rombo fiscal em duas décadas e iniciado a mais dolorosa onda de desemprego. Dilma foi invenção de Lula mas a ele nada é imputado.
Ele não estava presente no debate da Band, mas as acusações sobre as mazelas do país foram jogadas sobre o “governo atual”. O governo de Michel Temer está no fim, sem força e sem capacidade de alavancar seu candidato, o ex-ministro Henrique Meirelles. Era preciso deixar claro quem nos trouxe a esta situação. A impopularidade de Temer faz dele um alvo tão fácil quanto inútil. Na economia, ele pode ser acusado de não ter conseguido vencer o déficit público e de ter diminuído apenas ligeiramente o desemprego. Mas ele herdou os dois problemas. Como o atual presidente é carta fora do baralho, os candidatos que pretendem confrontar Lula ou Fernando Haddad não podem mais tratar o PT como se ele fosse uma abstração.
Exceto por alguns momentos, os candidatos foram muito fracos e imprecisos ao explicar em nome do que estão concorrendo para dirigir o país. Marina teve um desses bons momentos quando se definiu como “um milagre da educação”. Ao falar do programa da área, defendeu proposta que recebeu do “Todos pela Educação”, um dos vários movimentos que têm tentado aproveitar esse período eleitoral para entregar aos candidatos projetos específicos. Ciro, que tem o que dizer no assunto, acabou facilitando a vida de Jair Bolsonaro no elogio às escolas militares.
Alckmin falou do seu grande trunfo que é ter derrubado o número de homicídios em São Paulo no mesmo dia da divulgação dos dados anuais do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O país tem uma taxa de 30 mortos por 100 mil habitantes, e São Paulo tem a menor, 11,1. A do Rio Grande do Norte é 68. O Ceará teve o maior crescimento de homicídios, 48,6%. Apesar de ter uma boa história para contar, Alckmin soou burocrático e frio diante do tema dramático. Não aproveitou sequer para se contrapor à proposta de Jair Bolsonaro de armar a população. Ele poderia dizer que o Estado, quando faz bem seu papel, pode reduzir esses números. Alckmin precisa ter também uma boa resposta para o crescimento do poder da facção criminosa paulista.
Se não fosse por Guilherme Boulos, do PSOL, o candidato Jair Bolsonaro sairia sem passar por qualquer constrangimento. Foi acusado por Boulos de ser racista, homofóbico e machista e de ter funcionário fantasma pago pela Câmara cuidando de seus cachorros. Bolsonaro devolveu o tempo de resposta. Um erro. Não se devolve tempo, porque cada segundo é uma oportunidade de falar com o eleitor.
A falta de proposta concreta dos candidatos ficou evidente logo na pergunta inicial feita pelo jornalista Ricardo Boechat sobre a primeira ação que tomariam para enfrentar o gravíssimo problema do desemprego. Álvaro Dias, do Podemos, inaugurou as falas e foi o melhor exemplo do desrespeito ao eleitor. Em vez de responder a pergunta, ele falou de si mesmo. Deveria, ao menos, tocar no assunto. Os outros também não deram respostas satisfatórias, preferindo a própria retórica, mas pelo menos chegaram ao tema mesmo que superficialmente.
Meirelles, para falar bem de si e, ao mesmo tempo, fugir de elogio ao governo Lula, disse que o Banco Central nos oito anos em que foi presidente criou “10 milhões de empregos”. Lula foi o vencedor do debate por não ter se desgastado. Fechado numa cela em Curitiba, mantido pelo PT como o candidato ficcional, não teve seu legado atacado. Seu governo acertou na economia ao não destruir, no primeiro mandato, a herança que recebeu. A boa lembrança que evoca é por um crescimento forte de 2010, que, no entanto, se desfez nos anos seguintes, pelos erros da política econômica que iniciou no segundo mandato e pela má gestão da presidente cuja vitória garantiu. O PT deixou o país em recessão, com as finanças arruinadas e o desemprego disparado. E não tem sido cobrado por isso.
Míriam Leitão: Uma eleição nada normal
A eleição deste ano tem várias singularidades. Pela primeira vez vai se testar a dimensão da força do digital contra as formas convencionais de comunicação. A maioria dos candidatos fez chapa de pessoas da mesma tendência. Entre os mais competitivos, só Ciro é do Nordeste, que tem 27% do eleitorado, mas o Rio Grande do Sul estará como vice no PSDB e talvez no PT. A maior das singularidades é Lula, o pré-candidato preso, liderando as pesquisas e que pode ser declarado inelegível.
Essa não é uma eleição normal, diz o cientista político Cesar Zucco, da Fundação Getúlio Vargas. Conversei com ele e com o cientista político Lúcio Rennó, da Universidade de Brasília, na Globonews, sobre a situação atual da disputa que acontecerá em menos de dois meses.
Rennó acha que os debates, como o de ontem da TV Bandeirantes, sempre foram importantes para confirmar decisões, dar mais argumentos para a defesa do candidato que o eleitor já escolheu, mas desta vez pode ser diferente:
— Estamos entrando no período eleitoral com uma taxa muito elevada de indecisos e também de pessoas que dizem que não vão votar em ninguém. Há um desgosto, uma insatisfação com a classe política generalizada. Os debates servem para ativar o interesse pelas eleições.
Cesar Zucco falou do paradoxo da eleição nos Estados Unidos. É mais fácil prever o resultado muito antes da disputa, mas a campanha acaba embaralhando, e por fim confirma-se o previsto originalmente:
— Numa eleição normal, acredito fortemente que a gente poderia prever com bastante precisão o resultado, mesmo sem a campanha e com eventos de campanha aleatórios. Mas esta não é uma eleição normal.
Zucco nota que agora um debate pode ser editado por todo mundo, fazendo-se memes ou escolhendo-se os piores e os melhores momentos de cada candidato e usando isso como propaganda na mídia digital.
Rennó lembra que desta vez se poderá contrapor candidatos que não têm recursos tradicionais, tempo de TV, prefeituras, dinheiro de financiamento de campanha, mas têm uma base de apoio relativamente sólida, com os que têm esses recursos, mas podem não ter a base digital:
— Hoje não há como responder o que exatamente vai pesar mais, porque de fato não sabemos.
O mais inusitado dos fatos nesta eleição é haver um candidato preso com dois vices. A grande dúvida é se a estratégia do PT vai dar certo. Zucco acha que há riscos, mas também chances:
— Nunca antes na história deste país tivemos uma situação como esta. Se Lula pudesse ser candidato, se não houvesse dúvidas sobre a candidatura dele, muito provavelmente seria o mesmo cenário de sempre. Alckmin teria posto a banda dele na rua há muito tempo porque teria um adversário bem definido. E haveria o mesmo cenário das últimas eleições. Do ponto de vista estratégico, eu acho que a decisão (do PT, de manter a candidatura de Lula) faz sentido. Não tinha como fugir dela, e ela tem alguma chance de sucesso no primeiro turno. Dependendo de como ocorrer a transição de Lula para o candidato, há um alto grau de probabilidade de transferência. Do ponto de vista mecânico, basta votar 13. E é muito difícil sujar a imagem de quem não vai debater. Há um risco nessa estratégia, mas também chance de retorno.
A estratégia de Alckmin, de fechar com o centrão apesar das acusações de corrupção contra os partidos, tem como retorno óbvio o tempo de TV e recurso de financiamento de campanha.
— Até hoje são os dois recursos que mais importam para o sucesso eleitoral de uma coligação. Saber se vai continuar assim é o elemento mais importante desta campanha e que poderá mudar inclusive a maneira como se constrói a coligação eleitoral no futuro — diz Lúcio Rennó.
Os cientistas políticos argumentam que sempre existiu o antipetismo. Ele cresce com o crescimento do próprio PT. A novidade desta vez é ter surgido uma força que atrai esse movimento à direita do PSDB, que é Jair Bolsonaro.
Eles acham que este ano a formação das coligações e das chapas foi bem mais complexo, e num tempo bem menor, e é isso que, de certa forma, explica as composições feitas nas chapas, como Bolsonaro com um militar; e Marina com um verde; PT e PCdoB. Tudo nesta eleição é experimento. Por isso ela será um momento de intensa atividade para os cientistas políticos. Uma eleição nada normal, num tempo de mudanças e inusitados.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Míriam Leitão: Malandros e indolentes
Ninguém ensinou ao general Mourão sobre a força cultural, a capacidade de trabalho e a luta de resistência dos brasileiros negros e indígenas
A declaração do general Hamilton Mourão sobre as raízes brasileiras é toda ruim. É uma ofensa ao país como um todo. Na visão que ele tem do Brasil, nossa herança africana nos legou a malandragem, nossa herança indígena nos trouxe a indolência. E dos portugueses teríamos recebido a tendência de gostar de privilégios. Essa maneira como o general apresenta o país é o que parece: racista.
Ele está na chapa do PSL, de Jair Bolsonaro. Uma chapa puro-sangue militar, e, pelo visto, de compartilhamento de valores e visão de mundo. Bolsonaro já usou uma medida de animais para falar de um suposto sobrepeso de pessoas das comunidades quilombolas, já ofendeu as mulheres com diversas afirmações, como a que explica ter tido uma filha como resultado de uma “fraquejada”, ou que elas têm que ganhar menos porque engravidam. Disse que se dependesse dele os índios não teriam terra no Brasil. Já fez declarações contra os homossexuais, informando que preferia um filho morto a aparecer com um “bigodudo”. Bolsonaro ofendeu as partes, Mourão ofende o todo. E assim eles formam esse par coerente que vai para a eleição como quem oferece ao país um expresso para o passado.
—Por isso essa crise política, econômica e psicossocial —explicou o general Mourão.
Além de ser uma explicação sem sentido para a crise, esse termo “psicossocial” lembra a linguagem usada na caserna dos anos 1970. No resto da declaração, o general traz para o presente um tempo ainda mais antigo, do estigma que recaiu de forma violenta sobre os brasileiros pelo racismo que se escondia atrás dessas explicações da nacionalidade.
Nada há que salve a declaração feita pelo candidato a vice de Bolsonaro. E ele a fez com tal espontaneidade que mostra que a repetiu sempre, sem qualquer contraponto. Ninguém o lembrou das verdades óbvias, das quais devemos nos orgulhar. Da força cultural, da capacidade de trabalho e da luta de resistência dos brasileiros negros e indígenas.
Ao tentar se explicar, o general Mourão repetiu que “só não gosta de privilégio quem não tem”, atribuindo isso à herança ibérica. Depois, tentou fugir com frases de sujeito indeterminado. “Essa coisa da malandragem, muitas vezes se fala que determinados habitantes de alguns estados brasileiros do país são malandros.”
Mesmo quando tenta atenuar a própria fala, ele repete a visão que tanto mal fez ao Brasil no começo do século passado com as explicações discriminatórias e racistas sobre nós e nossas origens culturais e étnicas. Por isso, o repúdio é a única reação possível a quem define dessa maneira o país que o general pretende governar como vice do capitão.
Na entrevista da sexta-feira passada com o candidato Jair Bolsonaro, na Globonews, lembrei a ele que o Brasil é um dos países com maior sociodiversidade do mundo, com mais de 200 povos indígenas e que isso é parte da nossa força e riqueza cultural. Falei também que as imagens de satélite mostram que as terras ocupadas pelos índios costumam ser as mais bem protegidas do ponto de vista ambiental. Diante disso, perguntei sobre uma declaração de que se dependesse dele os índios não teriam um centímetro de terra.
—Nem um milímetro —corrigiu. Acrescentou que o subsolo das terras indígenas é riquíssimo e elas foram demarcadas por pressão externa. Segundo ele, o risco é esse território ficar independente do Brasil, e sustentou que o país vai perder toda a calha norte, porque ela é vital para o mundo. Revela mais um desconhecimento. As terras indígenas são da União. Bolsonaro disse que manterá as reservas, mas os índios serão “incorporados” à sociedade e ao Exército:
— Eu já apresentei uma proposta para alguns generais, vamos fazer com que alguns índios partam para a estabilidade.
Foi essa mesma ideia que levou tantos índios à morte, como relata o escritor Rubens Valente em “Os fuzis e as flechas”.
Bolsonaro virou motivo de piada em Portugal ao dizer ao Roda Viva, da TV Cultura, que os portugueses não pisaram na África, já que os negros teriam sido escravizados por eles mesmos. Do alto dos cinco séculos de colonialismo no continente, Portugal sabe o que fez.
A dúvida é: como dois militares, um tendo feito a Aman, outro tendo chegado a general, conseguiram atravessar a vida sabendo tão pouco do país e da sua história. Só o preconceito, profundo e arraigado, explica essa visão tosca do mundo e do Brasil.
Míriam Leitão: Sinal do BC na dúvida eleitoral
Diante da incerteza eleitoral, que entrou no radar do BC, Copom decidiu não se comprometer com os próximos passos da Selic
Na reunião do Copom, os participantes se perguntaram se deveriam antecipar os próximos passos dando sinais sobre as futuras taxas de juros. Decidiram que não. Diante da incerteza eleitoral, que entrou no radar do Banco Central, eles optaram por não se comprometer com uma decisão que poderia ser alterada. Foi isso que o Copom disse na ata divulgada ontem, mais precisamente no parágrafo 24, de um total de 35, em que se conta a última reunião e a maneira como os diretores do Banco Central analisam a conjuntura.
Diz assim o parágrafo: “O Copom debateu, então, a conveniência da sinalização sobre a evolução futura da política monetária. Todos avaliaram que, na ausência de choques adicionais, o cenário inflacionário deve revelar-se confortável”. Até aqui, o que a ata diz é que, se nada acontecer de inesperado, a tendência será manter tudo como está, com a Selic de 6,5%. “Entretanto”, é aí que começa o recado, “o maior nível de incerteza da atual conjuntura gera necessidade de maior flexibilidade para a condução da política monetária, o que recomenda abster-se de fornecer indicações sobre os próximos passos da política monetária”.
O futuro, portanto, ao futuro pertence. Por isso o BC deu um sinal de que não dará sinais. Contudo, nos 23 parágrafos que antecedem, e nos 11 que se sucedem, há vários sinais. Primeiro de que há “evidências” de que o país está se recuperando da queda da atividade com a greve do setor de transportes e que os efeitos da inflação após a greve são temporários. Ou seja, só por aí já é sinal de nenhuma mudança na taxa de juros. Segundo, que, como a economia tem alto nível de capacidade ociosa, a inflação pode ficar até abaixo da previsão atual de 4,1%. Em toda a ata, aqui e acolá, há sinais de manutenção da taxa de juros, ainda que naquele parágrafo 24 o Banco Central se reserve o direito de ter “flexibilidade” e não se comprometer com decisão previamente.
Repetiu o que já virou um mantra nos documentos do Banco Central: se houver “frustração das expectativas sobre a continuidade das reformas” isso pode elevar a inflação no futuro, ou, como eles dizem, “no horizonte relevante para a política monetária”. É uma forma indiretíssima de falar do cenário eleitoral, porque esse tal “horizonte relevante” é 18 meses, ou seja, já no próximo governo. E se o eleito ou a eleita não quiser ou não puder fazer ajustes nas contas públicas e reformas, isso afetará as expectativas e a inflação subirá.
Sobre o cenário externo, eles dizem que continua “desafiador”. Os riscos de mudanças das taxas de juros das principais economia e de isso afetar os fluxos de capital diminuíram, mas há possibilidade maior de perturbação no comércio, com a guerra comercial de Donald Trump. Eles não falam desse jeito explícito, mas é isso que querem dizer. No entanto, dizem que o Brasil está forte para aguentar esses eventos porque as contas externas estão “robustas”. O país tem, como se sabe, saldo comercial forte, déficit em transações correntes pequeno e reservas altas. Mas se o governo não fizer “as reformas”, repetiu a ata, pode haver riscos.
Como o Copom deve reagir se houver uma alta forte do dólar? Na sua linguagem característica, eles avisam que só atuarão nos “efeitos secundários dos choques”. Ou seja, se a moeda americana se valorizar, não será motivo para os juros subirem. Mas se isso afetar de forma decisiva a inflação, aí os juros podem subir. Por enquanto, avisam, “as expectativas estão ancoradas”, ou seja, as previsões de inflação estão em torno do centro da meta.
Num cenário como o que o Brasil vive, de inflação na meta e alta capacidade ociosa na economia, qual é o melhor remédio? A ata avisa que a “prescrição” é de “política estimulativa”. Quer dizer: os juros permanecerem baixos por bastante tempo para que isso incentive o crescimento.
O Copom disse que não daria sinais sobre as próximas reuniões porque tudo está incerto, porém, acabou dando sinais de permanência da Selic em 6,5% pelo menos até a próxima reunião. E, de novo, pela terceira vez, lembrou que para os juros serem estruturalmente baixos é preciso fazer reformas na economia. Mas isso quem vai dizer é o próximo governo, e na cena política há muitas incertezas e alguns candidatos negando a necessidade de reformas e até propondo soluções mágicas para dilemas difíceis.
Míriam Leitão: O que é preciso saber sobre dívida pública
Até as eleições de 2002, o PT jogava a culpa dos problemas brasileiros na dívida pública. Essa bandeira, agora, foi levantada pelo candidato à Presidência pelo PDT, Ciro Gomes. A dívida é de fato alta e virou um problema, mas o caminho de reduzi-la é a penosa trilha do ajuste fiscal. Qualquer outra forma tem o potencial de criar muita perturbação na economia. E há soluções realmente perigosas.
A esquerda parecia ter entendido isso na Carta aos Brasileiros. O ponto óbvio é que o Tesouro não deve aos bancos, mas aos investidores de todo o país. Os fundos de pensão detêm 25% da dívida. Qualquer proposta voluntarista pode afetar essa poupança brasileira que está nas mãos das empresas, famílias, investidores institucionais e bancos. Afeta os aplicadores e o pagamento dos aposentados desses fundos de pensão.
Ciro Gomes já defendeu duas propostas. Estabelecer um teto para o pagamento da dívida. Além de um determinado valor não se aceitaria o custo financeiro. A segunda seria usar parte das reservas para comprar parte da dívida e reduzi-la.
A primeira solução provocaria uma crise de confiança. O investidor poderia temer pela segurança do seu ativo, da sua aplicação. Assim, procuraria outros ativos. O custo financeiro é de fato alto, mas o caminho para reduzi-lo é inverso a esse. O endividamento público está em R$ 5,2 trilhões, 77,2% do PIB. Desse total, R$ 1,1 trilhão são as operações compromissadas que o Banco Central usa para reduzir ou aumentar a liquidez do mercado, o dinheiro em circulação, e R$ 3,6 trilhões são a dívida mobiliária, ou seja, em títulos.
A dívida estava em 52% em 2014 e o que a fez subir para 77% foi o déficit primário no qual o país caiu no governo Dilma. O vermelho permanece. Quando o Tesouro fecha no negativo, precisa se endividar para fechar o ano. Isso eleva o endividamento. Durante muito tempo, ele caiu e ficou estabilizado exatamente porque o país teve superávit primário durante 16 anos.
As operações compromissadas vencem em prazo mais curto e por isso têm sido apontadas como o pior do problema. Mas não são em quatro dias, como tem sido dito. Vencem em até três meses, mas é curto prazo. Em 2006, eram 3% do PIB, e agora, 17%. O que fez aumentar foi exatamente a compra de reservas cambiais. No governo Lula, tomou-se a boa decisão de acumular reservas, mas quando o governo compra os dólares ele coloca reais no mercado e precisa depois vender papéis para diminuir os reais na economia, que poderiam alimentar a inflação. É isso que eles chamam de regular a liquidez.
E se o Tesouro decidir fazer a operação inversa, vendendo os dólares para resgatar a dívida? Vai trocar seis por meia duzia e ainda provocar um efeito colateral complicado. Se o governo vender os dólares em grande quantidade, o câmbio despenca. Ótimo para quem está endividado em dólar, ou tem uma viagem ao exterior, mas pode quebrar os exportadores se for um movimento brusco e superestimular a importação. Além disso, ao fazer a segunda etapa, que seria usar o dinheiro da venda das reservas para resgatar dívida antecipadamente, vai colocar mais reais na economia e precisará lançar títulos para enxugar.
O Brasil pagou nos 12 meses até junho, data do último relatório, R$ 397 bilhões de serviço da dívida, rolagem do principal e juros. É muito, mas já foi muito mais. O auge do custo do endividamento nos últimos seis anos foram os 12 meses terminados em janeiro de 2016, no governo Dilma, quando os juros estavam em 14,25% e a incerteza política cresceu com o processo de impeachment. Era 9% do PIB e agora é 6% do PIB, porque a Selic caiu. E só caiu porque antes foi derrubada a inflação.
Os caminhos da economia não podem ser tomados na direção inversa. É preciso primeiro zerar o déficit, porque o governo que tentar diminuir o endividamento ou seu custo na marra colherá inflação e pode provocar uma corrida para tirar as aplicações em título público. O voluntarismo, a demagogia eleitoral não cabem quando o assunto é a dívida, porque ela é a soma das economias de todos os brasileiros. Por mais antipatia que se possa ter dos bancos — e quem não tem? — eles não são os donos da dívida, são os intermediadores. O Brasil aprendeu dolorosamente isso no governo Collor. Não é possível tratar com leviandade esse problema 28 anos depois daquele trauma.
Míriam Leitão: Esboço dos programas
As propostas econômicas dos candidatos ainda estão muito embrionárias, mas tanto Marina Silva quanto Geraldo Alckmin e Ciro Gomes defendem a taxação de dividendos, com redução dos tributos sobre as empresas. Na semana de entrevistas com cinco dos candidatos na Globonews, foi possível ver convergências e muita imprecisão ainda sobre o que está sendo proposto na economia. O candidato Jair Bolsonaro falou em privatizar a Petrobras, mas por um motivo conjuntural: o preço do diesel.
A privatização da empresa ícone do Estado brasileiro não pode ser decidida assim por esse motivo. Segundo o candidato, já que o preço dos combustíveis está alto, é melhor privatizar a companhia. Disse e repetiu. Bom, ela ser vendida como está só transformará um monopólio estatal em privado. E quebrar o monopólio no refino, com venda de algumas das refinarias, pode ser o caminho mais seguro para quem quer competição nos preços. Isso foi defendido por Geraldo Alckmin.
O mais importante que fica da série de entrevistas em que, pela ordem, Álvaro Dias, do Podemos, Marina Silva, da Rede, Ciro Gomes, do PDT, Geraldo Alckmin, do PSDB, e Jair Bolsonaro, do PSL, falaram à Globonews é que ficou claro que alguns têm propostas econômicas mais definidas, mas há quem tenha apenas ideias desconexas.
O candidato Jair Bolsonaro teve que parar de se esconder atrás do economista Paulo Guedes e não soube muito bem explicar por onde vai nesse tema. Ninguém tem que ser economista, mas pessoas que se dispõem a governar o Brasil tem que saber o que estão oferecendo aos eleitores como projeto para tirar o país da bomba fiscal em que está. Eles é que tomarão as decisões.
Ciro Gomes tem propostas que no tempo da entrevista, duas horas, não conseguiu explicar muito bem, mas que embute riscos. Para o discurso político ele acusa “meia duzia de plutocratas banqueiros” de receberem os juros da dívida. Se fosse simples assim, bastava então não pagar. Mas a dívida é, como ele sabe, carregada por milhões de brasileiros e 25% dela está na mão de fundos de pensão. Acusar os banqueiros é fácil e soa bem na retórica eleitoral, porque há um consenso de que os spreads brasileiros são altos demais, e os lucros, exagerados. Mas decidir não pagá-la ou estabelecer teto para o pagamento é o caminho mais curto para o desastre.
Marina Silva repete o que já disse em outras campanhas, mas agora de forma muito mais segura, que o ajuste fiscal terá que ser feito e através do controle estrito das contas públicas, mas precisará detalhar mais, como todos os outros, o caminho do equilíbrio. Geraldo Alckmin e Ciro Gomes prometem zerar o enorme déficit público brasileiro em dois anos. Hoje, o déficit primário está em R$ 150 bilhões e o ano que vem, primeiro do próximo governo, será o sexto ano no vermelho no qual a presidente Dilma levou o país e do qual ainda não se sabe como sair. O rombo tem que ser enfrentado. Mas como? Ainda não ficou claro. A maioria fala em cortar incentivos e subsídios. Esse é de fato um dos caminhos, o de reduzir as transferências para o capital, mas ninguém diz que interesse vai contrariar. Ciro Gomes afirmou ao fim da entrevista que será um corte linear de 15% em todos os programas, mas ao mesmo tempo defendeu durante a entrevista a permanência e até o crescimento dos subsídios à indústria, o que é uma contradição.
O país está diante da mais difícil das suas eleições. A economia é um dos dilemas. Não é o único. É preciso saber como garantir a governabilidade, após as eleições. Geraldo Alckmin montou uma grande coalizão eleitoral, mas com partidos envolvidos no que houve de pior nos últimos anos. Marina Silva, Jair Bolsonaro, Ciro Gomes e Álvaro Dias estão em partidos pequenos. O PDT de Ciro é um pouco maior, claro. Mas nenhum deles tem dimensão para começar a organizar uma coalizão de governo. Ciro chegou à entrevista no dia em que o PT armara o plano de tirar dele o apoio do PSB, assunto que ainda provoca tremores no PT. Em Pernambuco, Marília Arraes mantém a candidatura ao governo pelo partido, e em Minas Gerais Márcio Lacerda se insurgiu contra a decisão do PSB.
Muito perto da eleição, sabemos pouco dos caminhos. Mas se Ciro ataca seres sem rosto como “o baronato” e os “plutocratas”, Jair Bolsonaro faz ofensas e ameaças diretas a parcelas do eleitorado: negros, mulheres, indígenas. Esta é a eleição que enfrentaremos.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)