Míriam Leitão

Míriam Leitão: Chances e riscos do superministro

Superministério da economia pode dar certo, mas submeter ao ruralismo as questões ambientais e climáticas é sair do século XXI

A união de ministérios da área econômica pode dar certo, a dos ministérios da agricultura e meio ambiente não tem essa chance. O superministério da Economia exigirá de Paulo Guedes capacidade administrativa no setor público. Ele só tem experiência no setor privado. Guedes defende Banco Central independente e ao mesmo tempo está falando sobre assuntos privativos do Banco Central. A briga com a indústria pode levar à modernização da economia brasileira, mas só se for bem feita.

O futuro ministro Paulo Guedes precisará de bons quadros nas áreas satélites, capacidade de gestão, foco nas principais tarefas e inteligência na comunicação. Terá que ter habilidade para desarmar as bombas do campo minado que é a administração pública. Além das muitas funções da Fazenda, estarão sob o controle dele orçamento, gestão, planejamento, indústria, comércio internacional. Pode agir como um bom maestro ou ser engolido pela máquina.

Houve duas experiências de superpoderes. Delfim Netto foi o czar da economia e os ministros setoriais se submeteram a ele, com alguns atritos. Na democracia, o mandonismo czarista não funciona. O que dá certo é liderança eficiente. No governo Collor houve a única experiência semelhante à que será tentada agora. Deu paralisia administrativa e uma gestão caótica. Tudo vai depender de como será feito.

O presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, superou durante a campanha momentos de estresse no câmbio com operações de swaps cambiais e não se ouviu uma palavra sobre o assunto do ministro Guardia. E isso porque, apesar de não ser independente de fato, o BC tem tido autonomia. O futuro ministro fala que sempre defendeu o BC independente, mas ao mesmo tempo deu entrevistas explicando como administraria as reservas em caso de crise cambial. Essa decisão caberia ao presidente do BC que não pode ficar sob a tutela do ministro, se for mesmo independente.

Paulo Guedes está correto quando fala que a indústria brasileira tema tendência de defender protecionismo e subsídios. Isso é mesmo uma agenda velha e persistente no Brasil. Atravessou incólume períodos autoritários e democráticos. Aqui neste espaço critiquei várias vezes as ideias de proteção e favorecimento de grupos. De fato, como diz Paulo Guedes, a ordem agora é a integração competitiva comas cadeias globais de suprimento. Isso é mais fácil falar do que fazer.

Produzir no Brasil tem um custo alto demais, por causa de impostos, burocracia, custos de capital e de trabalho. Ele tem prometido mudar tudo isso também, mas o que os industriais estão dizendo é que se forem tiradas todas as barreiras abruptamente as empresas podem não aguentar. Da mesma forma, os regimes especiais da tributação. A indústria diz que o risco é ficar sem eles e não ter uma ampla reforma tributária que reduza custos. No caso do velho lobby industrial brasileiro é preciso separar o que é choro do que vale ser avaliado.

Paulo Guedes terá que ter capacidade de separar o que é a trincheira da primeira guerra mundial e o que é reclamação procedente do setor produtivo. O potencial de conflito é enorme, a resistência dos lobbies é imensa. O governo. Temeres tá lutando há um ano para reduzir o subsídio ao xarope de refrigerante na Zona Franca de Manaus.

Juntar os ministérios da agricultura e meio ambiente, contudo, é de um risco extremo e pode ter efeito bumerangue. O país que for visto como desmatador, e atrasado na área ambiental, perderá mercado internacional. Por isso, submeter ao ruralismo as complexas questões ambientais e climática sé pedir para sair do século XXI. Mas essa transição está meio confusa. Abancada ruralista chegou a indica rum deputado do PP, deputado Jeronimo Goergen (PP-RS), para a pasta. Ele já chamou de “terrorismo” as multas do Ibama sobre agricultores e teve forte atuação para que o Congresso perdoasse dívidas do agronegócio no Funrural. O ideal seria a conciliação entre o agronegócio e o ambientalismo.

Mas durante a campanha o que foi dito pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro, e os seus assessores sobre o assunto não deixaram margem a dúvidas de que não sequer a conciliação, mas a submissão. Isso sem falar que parte da agenda ambiental é urbana. No início da noite, a informação era que a ideia de junção estava sendo abandonada.

A primeira lição que o governo Bolsonaro terá que aprender, em qualquer área, é quais são os limites legais para a vontade do administrador público. O poder ilimitado ficou, felizmente, no passado.


Míriam Leitão: Cada cabeça, uma reforma

Previdência já provoca bateção de cabeça entre a cúpula do futuro governo Bolsonaro. A boa notícia é que dizem que farão a reforma

A reforma da Previdência já provoca falas dissonantes no governo que nem começou de Jair Bolsonaro. A boa notícia é que dizem que farão reforma. A partir daí começa a Torre de Babel. A batida de cabeça entre Paulo Guedes e Onyx Lorenzoni era previsível. Aqui mesmo alertei que o cotado para chefe da Casa Civil, unido ao PT, fora um aguerrido adversário da proposta do governo Temer. Guedes lembrou ontem que sempre disse “aprovem a reforma”, e agora não pode dizer o contrário, e alfinetou: “é político falando de economia.”

São os políticos que aprovam as propostas dos economistas, portanto os dois precisam se entender. Há três ideias na mesa: aprovar a reforma de Temer, fazer um projeto mais amplo para o ano que vem, apresentar uma fórmula para mudar do regime de repartição para o de capitalização. Cada uma tem sua vantagem, mas também tem seu problema.

Se a decisão for aprovar a reforma do Temer, só será possível votar na Câmara, mas ganha-se tempo. No ano que vem, ela poderia ser modificada no Senado e teria que voltar à Câmara. Ela tem a vantagem de estabelecer a idade mínima, coisa que está se tentando no Brasil desde o primeiro governo Fernando Henrique. O problema é que a proposta perdeu substância em parte pela ação de políticos como Onyx Lorenzoni e o Major Olímpio, da base de Bolsonaro. Ontem mesmo, Olímpio avisou que, se o texto for a plenário, votará contra.

Aí viria a segunda proposta. A do político Lorenzoni. Ele diz que a atual é remendo e sugere que seja ampliada e que dure para os próximos 30 anos. Ótima ideia. O futuro chefe da Casa Civil pode começar por incluir de volta os policiais militares e bombeiros que foram retirados pela pressão dos defensores dessas corporações, entre os quais está o presidente eleito. Inclua-se também as Forças Armadas. Se é para valer por 30 anos precisa ser ampla, geral e irrestrita. O déficit das três Forças vai ser de R$ 42 bilhões no ano que vem. O valor foi retirado da conta da Previdência, e levado para a Defesa, sob a alegação de que militar não se aposenta, vai para a reserva e pode ser chamado a qualquer momento. Balela. Déficit é a despesa maior do que a receita. Mudar de nome ou de escaninho não resolve o problema.

A terceira ideia também é boa. É mudar do sistema de repartição, em que cada ativo contribui para o pagamento dos inativos, para o de capitalização, em que cada um contribui para si mesmo em contas individuais. Esse sistema foi muito falado pela campanha de Ciro Gomes, que se debruçou sobre a proposta, mas nunca ficou claro o custo dessa transição. E esse é o problema.

Se quiser preparar a migração de um modelo ao outro, Paulo Guedes precisará de meses de estudo e recomenda-se ouvir mais especialistas. Há várias questões sem resposta, mas a maior delas é que, se cada um vai poupar para si, isso reduz o financiamento para os que já estão aposentados. Aí o déficit aumenta no curto prazo. Guedes tem usado como parâmetro o modelo chileno de 1981. Só que ele foi implementado na ditadura de Pinochet e foi fácil cortar direitos adquiridos. Naquela época, a pirâmide etária era mais favorável e a previdência chilena estava bem mais equilibrada que a nossa. Tem que se escolher como, quando e com que velocidade se faria a migração. A propósito: a do Chile tem dado problemas.

O deputado Onyx Lorenzoni quer separar sistema de aposentadorias e pensões de seguridade social. Teria que mudar a Constituição, que criou dois orçamentos, o fiscal e o da seguridade. No primeiro, a fonte de renda são impostos, e quase todos eles são compartilhados com estados e municípios. O da seguridade social, financiado por contribuições, está dividido em previdência, saúde e assistência social. Nesse último estão Bolsa Família e benefícios para os muito pobres e mais velhos que nunca contribuíram (Loas e BPC). Mas o déficit da Previdência mesmo é o resultado do que os trabalhadores e patrões recolhem e o custo das pensões e aposentadorias. Portanto, separar previdência de assistência pode tornar os dados mais compreensíveis, mas não reduz em nada o déficit. Mesmo quando se tira da conta a saúde e a assistência social, há um enorme rombo. Quem não quer fazer reforma costuma falar que a mistura é que causa o déficit. Essas contas estão no vermelho quando estão juntas ou separadas.

Enfim, que reforma o governo Bolsonaro quer fazer e sob o comando de quem? Isso ainda não se sabe, mas, também, o governo não começou.


Míriam Leitão: Como acabar com o vermelho

Déficit este ano deve ser R$ 40 bilhões menor, ainda assim, não será fácil para o próximo governo acabar com o vermelho nas contas públicas

O governo Jair Bolsonaro vai assumir tendo que enfrentar um vermelho forte nas contas públicas, o ajuste que precisa ser feito é de quatro pontos do PIB ou R $300 bilhões. O espaço para corte de gastos existe, mas é pequeno. Haverá uma boa notícia, de certa forma, a atual administração deve terminar o ano comum déficit de R $120 bilhões, que é R $40 bilhões menor do que está previsto no Orçamento. Se a nova equipe quiser dar um sinal bom e realista poderias e comprometerem levar para R $100 bilhões. Mas o programa prometeu acabar como vermelho em um ano. Isso é mais difícil.

A análise detalhada das armas para vencer o vermelho, que se espalhou nas contas públicas a partir de 2014, mostra um caminho penoso. Nada mudará de cor apenas porque o governo será outro.

O economista Paulo Guedes falou durante a campanha que havia mais dinheiro do que se imagina em alguns lugares e deu exemplos.

Um deles é a privatização, mas agora as empresas que poderiam dar bons ganhos saíram da lista. O Orçamento do ano que vem prevê R$ 12 bilhões de receita com a venda das ações da Eletrobras, mas até isso o presidente eleito Jair Bolsonaro já disse que não fará. Bolsonaro fará o oposto do que quer: aumentará o vermelho, que já é bem tinto. Assim, se não vender a estatal, terá que cortar em outras despesas bem no começo do ano.

Outra ideia que o economista Paulo Guedes chegou a mencionar como arma contra o vermelho não vai funcionar: a devolução de parte do dinheiro que foi transferido para o BNDES. A devolução está sendo feita, isso é bom e uma parte virá no ano que vem. O problema é que o dinheiro só pode ser usado para abatimento da dívida. Isso ajuda indiretamente, e tem que ser mesmo a meta, mas não é arma para reduzir o vermelho no Orçamento.

Há uma grande expectativa em torno do leilão do excedente da cessão onerosa. Um mega leilão de 9 bilhões de barris. Coisa grande mesmo, que pode arrecadar R$ 100 bilhões. Porém —e os recém-chegados vão logo descobrir que há muitos poréns na luta contra os vermelhos — o TCU pode decidir que o leilão não seja feito na forma de concessão. O TCU tem entendido que qualquer área próxima de um campo que já foi licitado pelo regime de partilha tem que ser pelo mesmo regime. Pode parecer meio extraterreno esse argumento, mas foi assim no campo de Saturno. Sendo por partilha, reduz muito o ganho inicial. Qualquer que seja o regime, esse tipo de receita, extraordinária, na melhor das hipóteses vence o vermelho temporariamente. Para realmente atacar o vermelho será preciso fazer reformas mais permanentes.

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, disse ontem, nas suas diversas entrevistas, que tentará aprovar este ano a reforma da Previdência. Mas em parte. Não disse qual. O futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, é contra quase todas as partes da atual reforma. De qualquer maneira, se fosse aprovada este ano na Câmara teria que ir ao Senado. E se tudo for aprovado terá pouco ganho de curto prazo. Mas, de fato, a reforma da Previdência é uma grande arma contra o vermelho de longo prazo.

Outra ideia que foi pensada no QG do novo presidente é a de reduzir o abono salarial para os que ganham um salário mínimo. Isso pode reduzir o gasto em R$ 20 bilhões por ano, mas se for aprovado no ano que vem só valerá em 2020 porque o que é pago num ano é o devido do ano anterior. Ou seja, o de 2019 já está garantido.

E cortar despesas pura e simples? Tesoura afiada nos gastos? Bom, o total do que o governo pode mexer é um percentual cada vez menor, como se sabe. O resto é despesa obrigatória. Tem uma ideia que fez muito sucesso na campanha eleitoral em todos os programas: acabar, ou diminuir, as renúncias tributárias. É difícil e dá muita dor de cabeça. Temer tentou acabar com o subsídio ao IPI de xarope de refrigerantes na Zona Franca de Manaus, que custa R$ 1,6 bilhão. Cortou e teve que recuar. Vai cair, mas mais devagar. O maior custo nessa lista é o Simples. Bolsonaro comprará essa briga?

Acabar com o vermelho —das contas públicas —é importante e beneficiaria o país. Mas é preciso um plano inteligente, uma estratégia de longo prazo, e operações táticas para desarmar as bombas fiscais que vão sendo armadas pelo fogo amigo no Congresso.


Míriam Leitão: Discursos após a vitória expõem duas faces do presidente eleito

Eleição deu força e corpo à direita, mas, pela própria dinâmica da campanha, acabou fortalecendo a democracia

O presidente Jair Bolsonaro teve uma vitória convincente, que permite a ele levar com sucesso a sua agenda ao Congresso e ao país. Mas na festa de ontem houve alguns problemas. Primeiro, o presidente eleito mostrou duas faces nos pronunciamentos iniciais. Primeiro, falou de improviso, usando palavras de divisão com ataques à imprensa e aos “comunistas”. No segundo discurso, escrito, falou seguidamente em liberdade, democracia, Estado de Direito. Só em uma terceira fala é que ele foi mais explícito ao falar de conciliação e se referira todos os brasileiros.

Esse era um gesto importante aos 47 milhões que não votaram nele e que se assustaram com o tom da sua campanha contra as minorias. Por outro lado, o candidato derrotado, Fernando Haddad, falou apenas para os que votaram nele, um discurso ainda de combate, e não de respeito aos 57 milhões de eleitores que preferiram Jair Bolsonaro.

Esta foi uma eleição tão intensa que demoraremos a processar todos os aspectos. Ela tirou inúmeras peças do lugar. Revogou as velhas clivagens e deu força e corpo à direita. Provocará um realinhamento partidário. Convocou os cidadãos a reencontrar as questões esquecidas. Mas pela própria dinâmica da campanha, ela acabou fortalecendo a democracia. As instituições se pronunciaram, como ontem o presidente do STF, Dias Toffoli, e o compromisso com a democracia continuará sendo cobrado do vencedor.

A movimentação dos eleitores nos últimos dias, melhorando a votação do candidato derrotado, foi fundamental para reforçar os limites constitucionais no qual o presidente eleito governará. Ele, em termos de diferença para o segundo colocado, só ganha da Dilma no segundo mandato. Bolsonaro não recebeu uma donataria, mas sim a chefia do executivo de uma República, por um tempo e com regras estabelecidas há 30 anos na Constituição.

O novo presidente precisará urgentemente tratar de economia, sem os clichês com que o tema foi tratado até agora. Ontem no discurso ele fez boas promessas, de ataque ao ajuste fiscal e de reversão da trajetória da dívida. O Brasil, é bom que a política não esqueça, está enfrentando a sua pior crise da era do real. O ajuste terá que ser de R$ 300 bilhões para que o país saia do vermelho.


Míriam Leitão: Democracia nunca foi uma planície

Foi muito longa e penosa a estrada que nos deu o voto direto. Quem for eleito hoje governará nos limites da ordem democrática que construímos

Hoje, 147 milhões e 300 mil brasileiros farão História. São os que estão aptos a votar. Quem não for, ou votar nulo, também está dentro desse universo de decisão. Jamais deixarei de me emocionar em momentos assim. Foi muito longa e penosa a estrada que nos deu o voto direto. A democracia brasileira nunca foi uma planície. É como se tivesse que ser conquistada de novo a cada momento. Ela se expande, toma susto, é desafiada, volta a crescer, encontra obstáculo, supera. Sempre será essa incompleta obra coletiva. Como um tecido que fiamos juntos e os pontos às vezes se rompem.

Temia-se, desta vez, o desinteresse. Não foi o que tivemos. Houve momentos desta campanha em que parecia não haver outro assunto possível. O envolvimento é parte fundamental da renovação dos laços com o regime democrático. Saímos desta jornada exaustos, mas o país se engajou nesta escolha e o tema central passou a ser a própria democracia. Pelos cenários feitos, havia uma lista dos temas que certamente seriam os mais relevantes — e continuam sendo — segurança, educação, crise fiscal, desemprego. Mas o país se dividiu, discutiu, brigou pela democracia em si. Ela foi boa até aqui? Fez um bom trabalho? Tem defeitos? É frágil? É robusta?

A resposta é sim para todas as perguntas acima, apesar de parecer contraditório. É boa, fez um bom trabalho, tem defeitos. É frágil e robusta ao mesmo tempo. Fatos assustadores pareciam ser o prenúncio de volta do que o Brasil viveu. Sexta-feira foi o dia de ver de perto algo impensável. A repressão aos protestos em universidades. É da natureza dos jovens o debate acalorado que os mais velhos podem até achar radical, mas a ausência de liberdade de pensamento e manifestação nega a própria essência da universidade. O tempo cuidará de moderar o jovem, mas nada resgatará o que, alienado, não tiver olhos para nenhuma causa coletiva.

Tivemos, ao longo da República, períodos de democracia interrompidos por surtos autoritários. Foi assim no Estado Novo. Foi assim no regime de 1964-1985. Alguns preferem chamar de ditadura civil-militar. Respeito os argumentos, mas só os generais foram presidentes. O máximo a que um civil chegou foi à Vice-Presidência e o destino de Pedro Aleixo não nos deixa ter ilusões de que o poder fosse compartilhado.

Não falarei da dor dos que viram a face mais dura daquele governo, mas evidentemente a tenho em mente neste momento. O que parece mais relevante, contudo, foi o caminho que nos levou de volta à democracia. Houve fatos memoráveis. Falarei de um. O “Não” de Ulysses Guimarães e de Barbosa Lima Sobrinho, na anticandidatura de 1973-74, parecia um ato quixotesco, até exótico. Para que fazer campanha por todo o país para uma escolha que já fora tomada? Era uma luta tão perdida. O próximo presidente seria Ernesto Geisel. Estava decidido. Por que o deputado discursava pelo Brasil? Só quem, em momento pessoal de grande aflição, ouviu Ulysses prever a volta da democracia — “Alvíssaras, meu capitão, terra à vista” — pode entender o valor daquele ato político. As urnas se encheram de voto no antigo MDB na eleição seguinte. Além de acalmar os aflitos, o cálculo eleitoral do velho funcionou perfeitamente. Mas, depois, veio novo susto: o fechamento do Congresso, em 1977. E outros. E bombas no Riocentro.

Nunca houve planície. Foi de altos, baixos, solavancos e quedas a caminhada até a votação dentro daquele mesmo colégio eleitoral, usando a arma do regime contra o regime, que Tancredo Neves foi eleito. E, de novo, veio o susto. O que impediu as Forças Armadas e os porões ainda abertos a voltarem após a morte de Tancredo? A democracia já era forte ao nascer.

O Brasil fez então sua Constituinte. E, de novo, a palavra de Ulysses: “Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição. Trancar as portas do Parlamento. Garrotear a liberdade. Mandar patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério.”

A democracia renegociou a dívida externa deixada pelos militares, venceu a hiperinflação, aumentou a inclusão de brasileiros, ampliou o espaço de decisão, tem combatido a corrupção. Há ainda uma lista interminável de tarefas. Nunca será um caminho plano. Será sempre trabalhoso e desafiador viver a democracia. Mas a alternativa é o “caminho maldito”. O que for eleito hoje governará nos limites da ordem democrática que construímos.


Míriam Leitão: As idas e vindas de Bolsonaro

Todo líder pode e deve mudar de ideia depois de ser convencido. Mas é desconcertante a lista de idas e vindas de Bolsonaro nesta campanha

Ao longo dos últimos meses, Jair Bolsonaro disse o maior volume de coisas estranhas já ouvidas numa campanha. Em agosto ele prometeu tirar o Brasil da ONU, porque a organização seria “uma reunião de comunistas”. Dias depois, alegou que foi um ato falho. Afirmou inúmeras vezes que se eleito o país sairia do Acordo de Paris argumentando que “o que está em jogo é a soberania nacional, porque são 136 milhões de hectares que perderemos ingerência”. Esta semana voltou atrás. Disse que vai levar a embaixada do Brasil para Jerusalém, e a diplomacia já foi avisada que haverá retaliações dos países árabes.

O que ele fará de fato caso seja eleito? Não se sabe. O Brasil está no pior dos mundos: o líder das pesquisas por impedimento físico, por esperteza política, por estratégia deliberada esconde o que pensa. Bolsonaro mandou seus assessores e seu candidato a vice ficarem no máximo de silêncio até depois das eleições. Ele está pedindo ao país que vote no desconhecido.

A lista do disse-desdisse é enorme, em qualquer assunto. Na área internacional, ele revela um desconhecimento constrangedor. O Brasil foi um dos países fundadores da ONU. Como deferência é sempre o primeiro país a falar a cada Assembleia Geral, desde o chanceler Oswaldo Aranha. Como ele pode ter achado em algum momento que a ONU é uma “reunião de comunistas”? O Acordo de Paris foi resultado de negociação exaustiva, longa, depois de 21 Conferências das Partes, COP, um esforço que nasceu na Rio-92. Deixar o acordo é escolher ficar fora do mundo, como lembrou o embaixador Rubens Ricupero. É preciso ignorar muita coisa, não ter visto o que aconteceu em duas décadas de negociações, para achar que o Acordo de Paris é uma conspiração internacional para tirar a soberania do Brasil sobre o seu território.

Um embaixador brasileiro já foi informado por um representante de países árabes que se a embaixada brasileira mudar para Jerusalém o Brasil sofrerá retaliações comerciais. O país tem um superavit de US$ 7 bilhões com os árabes e nenhuma razão para se meter nessa briga na qual os Estados Unidos estão. É estupidez. A política externa brasileira nem no regime militar se alinhou aos Estados Unidos. Até isso ele não sabe?

Esta semana Jair Bolsonaro ouviu pedido de um grupo de vários setores da indústria e avisou que desistiria de unir ministérios da área econômica sob o comando da Fazenda. Parece um detalhe burocrático e era a derrubada da espinha dorsal do que tem dito na economia. Depois ele teria avisado que recuaria do recuo. O Ministério do Desenvolvimento sempre foi um centro de defesa da indústria brasileira como a conhecemos: com proteção e subsídios.

Uma coisa é querer ter uma indústria forte, inovadora, competitiva, isso é desejável e ótimo para o Brasil. Outra bem diferente é defender os velhos esquemas de proteção que há muito caducaram. O economista Paulo Guedes avisou que reduziria os mais de R$ 300 bilhões de incentivos às empresas por ano. O governo Temer conseguiu diminuir o Repetro, o incentivo à exportação. Os empresários foram pedir a Bolsonaro que aumentasse o Repetro e que não reduzisse barreiras ao comércio de forma abrupta. Ele disse que depois de ouvi-los entendeu melhor o assunto e prometeu recuar. Ou seja, Bolsonaro não tem qualquer compromisso com o que o economista Paulo Guedes andou dizendo sobre abrir a economia, reduzir os subsídios e enfrentar os lobbies.

Todo líder pode e deve mudar de ideia depois de negociar ou ser convencido. Isso é democrático. O problema é que o programa do candidato Bolsonaro defende uma coisa e ele diz outra. Na área social, tem um discurso de exclusão. Na política externa, de isolamento. Na política ele promete não governar com as forças das quais já está se cercando.

O lamentável esfaqueamento que sofreu — o mais trágico episódio desta campanha, do qual felizmente ele se recuperou — reduziu o grau de informação sobre o seu programa e suas ideias. Com as suas constantes mudanças de opinião e, principalmente, com a sua decisão de não esclarecer o que pensa para não afugentar eleitores, sua campanha ficou entre brumas. É líder das pesquisas, com grande vantagem ainda, apesar da queda recente, mas a escolha está sendo feita no escuro.


Míriam Leitão:Feitos da equipe do tempo difícil

Equipe econômica trabalhou sob condições adversas e em um governo impopular, mas conseguiu se blindar e deixar legados importantes

Esta foi uma grande equipe econômica que trabalhou em condições adversas. O resultado fala por si. A inflação caiu e chega ao fim do período de tensão política no centro da meta. O déficit foi reduzido ainda que o rombo deixado pelo PT não tenha sido vencido. A Caixa solucionou seu enorme desequilíbrio através de uma revolução silenciosa. A Petrobras voltou ao lucro e construiu mecanismos de proteção contra a corrupção. O Banco Central tomou decisões com autonomia e levou as taxas de juros ao mais baixo ponto desde o Plano Real.

O candidato do PT diz que não vai mantê-la caso ganhe porque ela é a equipe “que não pensa em geração de emprego, só pensa em lucro pra banqueiro”. Falso e demagógico. A escalada do desemprego começou no governo do PT e os juros pagos pelo Tesouro eram mais altos no governo Dilma. A equipe do candidato do PSL diz que manterá quem se manifestar que quer ficar. Faz, portanto, a proposta com a arrogância dos vencedores de véspera, como se fosse uma concessão, e o faz por oportunismo porque sabe que eles têm boa reputação.

O mérito inicial cabe ao ex-ministro Henrique Meirelles que foi excelente formador de equipe. O ministro Eduardo Guardia agiu discretamente junto com o competente Mansueto Almeida oferecendo aos economistas dos candidatos que os procuraram as informações necessárias sobre a situação fiscal e os desafios econômicos. Jamais polemizaram com as propostas descabidas que surgiram. De forma republicana têm trabalhado pela transição, seguindo o modelo que Guardia aprendeu com seu ex-chefe Pedro Malan na passagem do governo tucano para o PT em 2002.

Ana Paula Vescovi, figura de rara competência, brilhou neste período. Primeiro como secretária do Tesouro e depois como secretária executiva. Discreta e eficiente, ela cumpriu missões quase impossíveis. Refez a credibilidade do Tesouro abalada desde a maluca contabilidade criativa de Arno Augustin e Guido Mantega. Como presidente do conselho de administração da Caixa Econômica solucionou, sem dinheiro do contribuinte, o enorme rombo deixado pela desastrosa condução anterior.

Na gestão petista foi feito o ruinoso negócio da compra do banco quebrado do Silvio Santos. A Caixa foi usada para dar empréstimos a empresários como Joesley Batista. O FIFGTS gerou escândalos com seus créditos negociados por indicados de Eduardo Cunha no governo de Dilma Rousseff e que estão sob investigação do Ministério Público nas operações Greenfield, Sepsis e Cui Bono. Vescovi trabalhou em estreito contato com o procurador da Fazenda Claudio Xavier.

Ela venceu a luta contra as perigosas indicações políticas e recrutou, através de head hunters, quatro vice-presidentes. Eles seriam nomeados, mas houve pressões da candidatura de Jair Bolsonaro junto com a turma da fisiologia do próprio governo Temer para que se deixasse os cargos vagos. Ontem, ele manteve as indicações, mas se voltar o loteamento político, pode ser o primeiro retrocesso. O trabalho de Ana Paula se completaria com a profissionalização da gestão. Se voltarem


Míriam Leitão: O kit oferecido por Bolsonaro

Cada grupo de eleitores projeta em Bolsonaro a solução para o seu problema, ainda que ele não esteja oferecendo uma proposta que indique a solução

Os eleitores de Jair Bolsonaro foram atraídos por uma das várias promessas que estão incluídas em seu apelo eleitoral. Mas cada um fez sua escolha no kit que o candidato do PSL ofereceu. Alguns acreditam que ele tem uma solução milagrosa contra a violência, como um dia houve quem apostasse que Collor mataria a inflação com um tiro. Outros acham que o conservadorismo dos costumes vai prevalecer. Há os que votam nele porque os pastores mandaram. Muitos votam com raiva da crise econômica e do desemprego. Uma grande parte dos eleitores está com ele por ser antipetista. Alguns imaginam que ele acabará com a corrupção.

Todo candidato que chega tão confortável à reta final da campanha é porque conseguiu se vender bem como produto eleitoral. Pela soma de seus acertos e dos erros dos adversários. Mas cada grupo de eleitores projeta em Bolsonaro a solução para o seu problema, ainda que ele não esteja oferecendo uma proposta concatenada que indique saber o caminho para aquele drama. A violência, por exemplo, é assunto complexo que não será resolvido com liberação de posse e porte de armas, nem com redução da maioridade penal. Ele não deu qualquer resposta para quem quer de fato saber como vai enfrentar e vencer o poder das facções criminosas, do tráfico, das milícias, da falta de integração entre as polícias, dos presídios. Para nada disso houve respostas nas entrevistas, no programa ou na mídia social. Mas, o sinal dos dedos do candidato simulando uma arma passou a ideia de que ele dará “um tiro” e tudo estará resolvido.

A corrupção vem sendo enfrentada pelas instituições que o Brasil construiu ao longo dos últimos 30 anos, as mesmas que tantos na sua campanha afrontam, como fez seu filho Eduardo contra o STF. O governo ajudou quando não interferiu na Polícia Federal. O Ministério Público e a Justiça Federal continuarão seu trabalho de investigação e punição dos casos de desvios, mesmo os que venham a acontecer num eventual governo Bolsonaro. Mas sua campanha tem o discurso mítico de que vai resolver tudo rapidamente, só por chegar lá. Não há uma proposta de transparência e controle que confirme racionalmente essa ideia. É apenas o marketing de que vai limpar tudo, como prometeu Jânio Quadros com sua vassoura, ou Collor com os seus marajás. É da natureza das campanhas eleitorais que as propostas sejam simplificadas pelo marketing, mas uma democracia já amadurecida como a do Brasil merecia ter mais do que meia dúzia de clichês sem significado concreto.

Na economia, Jair Bolsonaro promete tirar o Estado “do cangote de quem produz”. Mas até agora tudo o que falou não mostra como o governo vai reduzir impostos na atual crise fiscal. Pelo contrário, algumas ideias aumentam o rombo. O mercado financeiro começou a aderir com alguma reserva, mas agora o discurso que se ouve é consensual. Jair Bolsonaro virou o capitão dos liberais. Ele não tem qualquer track record, para usar palavras deles, de um liberal, mas quando o mercado monta uma posição, azar dos fatos. Até fora da área financeira há eleitores dizendo que votam nele porque ele é um liberal. As contradições entre o que dizem e pensam os núcleos político e econômico do candidato são conhecidas, mas aqui a crença de poderes mágicos é transferida para o economista Paulo Guedes.

Há também os que se identificam com as declarações do candidato que reforçam os preconceitos. Eles sempre existiram, evidentemente, do contrário não estariam mulheres e negros em condições de desigualdade. Gays em situação de fragilidade. Negros sendo as maiores vítimas de homicídio. Mulheres com problemas que vão das distorções no mercado de trabalho ao feminicídio. Bolsonaro diz agora que acabará com o “coitadismo” desses grupos. Nunca deve ter olhado uma estatística das desigualdades brasileiras.

O que ocorre é que muitos eleitores explicam seu voto não pelo kit Bolsonaro inteiro. Um diz que é porque está desempregado, o outro, revoltado com a corrupção, ou é contra o PT, outro porque acha que ele representa os valores da família, há os que acreditam que os impostos vão cair ou que ele é um liberal. E assim vão para as urnas com partes do seu candidato.


Míriam Leitão: Haddad em busca da identidade

Haddad se distancia de Lula e chega até a elogiar o sistema americano em que ex-presidentes se afastam da política

O candidato do PT, Fernando Haddad, chega nos dias finais da campanha mais Haddad e menos Lula. Na sabatina, ele elogiou o sistema americano em que o presidente ao fim do mandato sai da política para contribuir de outra forma. Essa não foi a escolha feita por Lula. Haddad fez gestos em direção aos adversários que não chegaram ao segundo turno, demonstrou segurança na sua linha de raciocínio que desenha um PT mais aberto na política. Na economia, contudo, ainda falta um longo caminho.

Haddad cometeu o erro de repetir a informação que recebera, sem fazer uma conta simples: em 1969, o general Hamilton Mourão era um adolescente, não podia, portanto, ser torturador. Para criticar Mourão, bastaria a Haddad lembrar a fala do próprio general, vice de Bolsonaro, que defendeu em entrevista à Globonews o coronel Brilhante Ustra, definido como seu herói, mesmo diante do fato de que 47 pessoas foram mortas dentro do DOI-Codi no período em que o coronel o comandava. “Heróis matam”, disse. Com essas palavras de Mourão, Haddad poderia ter defendido seu ponto de vista de que a chapa do seu oponente representa “o rebotalho da ditadura”, “os porões”. Usou adjetivos fortes para definir Jair Bolsonaro: “bárbaro”, “um bicho", “um tolo”, “uma pessoa vazia”, “soldadinho de araque”, “fascista”.

Na entrevista ao GLOBO, o candidato do PT disse que preparou pessoalmente a proposta da segurança. Ele propõe dobrar o efetivo da Polícia Federal, ampliar seu poder no combate ao crime, dar mais foco às polícias, liberar os estados de algumas funções e combater a violência usando dados:

— É a inteligência que vai vencer o crime. Tentar reduzir a violência armando as pessoas só vai aumentar as mortes.

Haddad disse que a proposta de Jair Bolsonaro para a violência é vazia, é ele dizendo que “vai endurecer”, sem explicar o que seja isso. Lembrou que em 27 anos como deputado não fez nada pela segurança.

Na sua visão dos fatos, o fenômeno Bolsonaro é como uma queda de avião, acontece por várias causas. Na relação que faz estão as fakenews, a transformação de púlpitos em palanques e o “Bispo Macedo usando uma concessão pública para promover um candidato”.

Haddad se definiu como o petista mais bem relacionado com os tucanos. “Eu já fui a público para defender tucano”. E ali na entrevista defendeu Geraldo Alckmin. Em determinados momentos, ele soa professoral como certos tucanos, parecendo mais fazer análise dos fatos que política.

A explicação que ele dá para a trajetória do PT, ou os acontecimentos recentes, deixa muitos espaços em branco. Ele disse que as elites reagiram à criação do PT por ele ser um partido de massa de esquerda que nasceu contra o autoritarismo da direita e da esquerda. Isso não conversa, por exemplo, com o aumento do subsídio e das transferências para as grandes empresas que aconteceu nos governos do PT. Ele diz que está fazendo autocrítica, e passa superficialmente sobre alguns erros do governo Dilma. Diz que sua crítica à Lava-Jato é apenas a alguns erros cometidos contra Lula, mas o partido ainda ontem postou no site da campanha: “Lula, preso político há 200 dias”. Ora, se for isso, não temos democracia.

Haddad explorou bem, na entrevista, a contraposição entre ele, que se define como “pessoa do diálogo”, e a defesa do autoritarismo feita pelo seu adversário, estabelecendo a clivagem democracia contra ditadura. Explicou pouco a agenda social que tem apoio para além do petismo. Hoje, Haddad recebe voto de não petistas que rejeitam a defesa que Bolsonaro faz do regime militar ou que têm afinidade com a pauta de combate às injustiças sociais e de proteção ao meio ambiente. “Me causa repulsa a desigualdade desse país”, disse, mas não desenvolveu o tema, no qual ele tem argumentos de sobra.

O que falta a Haddad entender é que não se combate desigualdades sem equilíbrio fiscal. O erro maior do PT não foi Dilma ter tomado “medidas não consistentes”, como ele definiu, seja lá o que for isso. Mas ter aberto um rombo nas finanças do país, ter elevado a inflação a 10%, ter provocado a recessão. Isso desfez parte do trabalho de inclusão do próprio PT. O partido ainda não entendeu que só em solo firme se constrói um país mais justo.


Míriam Leitão: Risco Venezuela não tem ideologia

O risco Venezuela não é de esquerda nem de direita, é do autoritarismo que desrespeita as instituições. PT já desmereceu o STF. Filho de Bolsonaro fala em fechá-lo

A reação à declaração do deputado Eduardo Bolsonaro foi forte, pela grande probabilidade de eleição do seu pai, mas também porque o candidato sempre foi associado ao pouco apreço pelas instituições democráticas. O temor é de que a ida do seu grupo ao poder signifique o início de um processo de cerco à democracia, que na Venezuela do coronel Hugo Chávez começou pelo enfraquecimento do Judiciário. O risco Venezuela sempre esteve associado ao PT, e o partido fez por merecer, mas na verdade o perigo não é de direita nem de esquerda. É do autoritarismo.

A ameaça sobre a democracia atualmente não é a de um assalto. É a de ver seus pilares minados por atos de um governante populista e autoritário como foi Chávez. O ataque se dá por aproximações sucessivas e não mais como vimos nos anos 1960 no Brasil. Hugo Chávez tentou um golpe no estilo clássico, em fevereiro de 1992. Alegava ser contra a corrupção. Conseguiu o apoio de uma parte das Forças Armadas, mas fracassou. E esse Chávez é que recebeu elogios de Jair Bolsonaro. O coronel foi preso, indultado, mas, em 1998, chegou ao Miraflores pelo voto, dizendo que faria uma revolução socialista. E foi esse Chávez que recebeu o apoio do PT.

Ao contrário do que acha o PT, não existe ditadura do bem. É o que o chavismo mostrou. Fui à Venezuela em 2003. Havia uma greve geral no país, comandada por empresários, contra o governo. Eu o entrevistei no Miraflores. Era uma presidência militar. Ele vivia cercado de militares de alta patente em seu gabinete e ministério. O ambiente no Palácio me lembrou o clima do Planalto na ditadura brasileira. Chávez brandia a Constituição que acabara de aprovar. E depois mudou várias vezes. Ele já havia alterado a composição do Conselho Nacional Eleitoral. Depois fez o mesmo com a Suprema Corte.

Perseguiu e fechou órgãos de imprensa. Sua escalada sobre a ordem constitucional se deu por mecanismos que pareciam democráticos: quando a economia melhorava, as benesses com o dinheiro do petróleo aumentavam, ele convocava um plebiscito. Os que perdia, não respeitava. Os que ganhava, aumentavam seus poderes e enfraqueciam um pouco mais a democracia venezuelana, até que nada restou dela. Mas o ex-presidente Lula chegou a dizer que havia “excesso” de democracia na Venezuela. O PT apoiou o regime venezuelano de diversas formas, fingindo não ver seu caráter cada vez mais autoritário. Jair Bolsonaro, que se identificara com aquele coronel impulsivo, passou a criticá-lo quando ele se definiu como socialista, mas nunca reprovou seus métodos antidemocráticos.

A inaceitável fala do deputado Eduardo Bolsonaro não surge do nada. Ela reflete o ambiente político no qual seu pai sempre esteve imerso, de defesa do regime militar. Era ele atrás do pai, repetindo em mímica, o nome do torturador homenageado durante o voto do impeachment. Essa é a sua formação. Quando ele diz “a gente até brinca lá...” Lá onde? Antes de dizer que “sem desmerecer” o cabo e o soldado, bastava mandar os dois para fechar o Supremo. No meio do caminho do cabo e do soldado tem a Constituição que completa 30 anos, que nos custou uma luta de décadas, mas o deputado Eduardo Bolsonaro sequer entende que é essa a força moral que impede dois militares sem patente de fechar o órgão máximo da magistratura. Por isso, o ministro Celso de Mello chamou-o de golpista — aqui sim a palavra faz sentido — e o ministro Dias Toffoli afirmou que atacar o Judiciário é atacar a democracia. Alias, petistas também falaram em reduzir poderes do STF.

Quando estive na Venezuela, falei com os dois lados em conflito, visitando inclusive famílias divididas. Os que se opunham ao chavismo alertavam que havia o risco de o Brasil virar uma Venezuela. As instituições brasileiras foram fortes o suficiente e impediram o primeiro movimento, quando o ex-ministro José Dirceu quis instaurar um órgão de controle da mídia. O PT permanece com esse item na agenda. Por outro lado, os métodos de Bolsonaro de defender a relação direta com o eleitor são os mesmos do chavismo. O populismo, de esquerda e de direita, sempre desmerece as instituições. Por isso é que o pai Jair Bolsonaro acha que basta “advertir o garoto”. Na fala do deputado Eduardo Bolsonaro há uma ameaça gravíssima. Foi um alento a reação forte do STF.


Míriam Leitão: Agenda definirá rumo de 2019

Há chance de o país crescer mais em 2019, mas apenas se o eleito souber aproveitar bem os primeiros seis meses. E há dúvidas sobre a agenda dos dois

Os números do terceiro trimestre estão melhores do que o esperado, e a economia pode terminar o ano mais forte do que se previa. Há chances reais de um ano que vem melhor, mas tudo vai depender da pauta de quem for eleito. No caso de Jair Bolsonaro, a economia espera que ele inicie com as reformas, mas a sua principal agenda é a de mudar a maioridade penal, proteger policiais e liberar armas. O que viria primeiro? No caso de Fernando Haddad sua prioridade é desmontar o que foi feito por Michel Temer, e não se sabe ainda o que fará.

O economista-chefe da MB Associados, Sérgio Vale, argumenta que o novo governo herdará uma série de reformas microeconômicas que podem ajudar a impulsionar o país. Até porque há a chance concreta de que o ano que vem seja melhor do que o atual. Vale está com um número mais otimista do que a média do mercado para o PIB deste ano (1,6%). E acha que em 2019 o crescimento pode ser de 2,2%, com criação líquida de 800 mil a um milhão de empregos formais.

Tudo vai depender, contudo, do caminho anunciado pelo eleito. Para ele, pessoalmente, ainda é uma incógnita o comprometimento de Bolsonaro com a questão fiscal e com a agenda liberal, mas ele nota que a visão do empresário em geral é que o candidato do PSL faria um governo de continuidade das reformas do governo Temer. Já com Fernando Haddad a percepção é que ele não conseguiu rever as teses que levaram ao desastre do governo Dilma.

— A economia está com tudo pronto para voltar a crescer mais fortemente e chama atenção os dados do terceiro trimestre. Mesmo com a incerteza eleitoral e o choque da greve dos caminhoneiros, os números estão bons. E 2019 pode ser melhor. Esta semana, o Banco Central divulgou o índice de atividade econômica IBC-Br de agosto, com alta acima do esperado e a terceira consecutiva.

As vendas de automóveis em outubro estão muito fortes. Mas o ritmo da retomada dependerá do que o novo presidente pretende fazer no melhor momento, que são os primeiros seis meses, a chamada lua de mel. O governo FH usou esse tempo pra fazer a reforma do capítulo econômico da Constituição, que deu o rumo ao seu governo. No caso de Haddad, o candidato tem falado em desfazer as reformas feitas pelo governo Temer, principalmente o teto de gastos.

Com Bolsonaro, há a incógnita: o que virá primeiro, sua pauta de segurança ou os pacotes econômicos dos economistas? Bolsonaro tem uma pauta preferencial que vai exigir mudanças legais ou constitucionais: a redução da maioridade penal, a liberação de posse e porte de armas e o que é definido como excludente de ilicitude, que protege policiais que matam em serviço.

Há receio de que esses projetos sejam os primeiros a ocupar a pauta da Câmara. —Em caso de vitória de Bolsonaro, que parece ser o mais provável, o mercado espera que o projeto da Previdência seja encaminhado logo nos três primeiros meses e que seja um texto tão duro quanto o do governo Temer. Dois anos de reforma já foram perdidos. Não dá para ser mais leve e nem esperar demais —explicou Vale.

Se seu pacote de segurança for a prioridade, as mudanças como reforma da Previdência, podem ficar em segundo plano. E nesse assunto há divergências entre os economistas e o núcleo econômico. No caso de a vitória ser de Haddad, a lua de mel seria gasta no desmonte do governo Temer. Sérgio Vale tem uma visão positiva do governo Temer: acha que fez muito em pouco tempo.

Há, por exemplo, reformas microeconômicas em andamento que ajudam a destravar o crescimento. Na quarta-feira, o Senado aprovou o projeto que regulamenta a duplicata eletrônica, e agora o texto vai a sanção presidencial. Isso deve reduzir custos do capital de giro das pequenas e médias empresas. O economista João Manoel Pinho de Mello, da Assessoria Especial de Reformas Microeconômicas do Ministério da Fazenda, faz um balanço das medidas aprovadas que vão ajudar o próximo presidente:

—A reforma trabalhista já está diminuindo o número de litígios. A agenda BC+ conseguiu diminuir um pouco o spread. Revisamos a obrigatoriedade do conteúdo local no setor de óleo e gás. A Câmara já aprovou o cadastro positivo e o distrato imobiliário. Os dois projetos estão bem avançados no Senado.

O ano que vem terá o impulso da recuperação cíclica e a vantagem da confiança de um novo governo consagrado pelas urnas. Dependerá do presidente eleito focar no principal


Míriam Leitão: Do pouco que até agora se sabe

Economistas de Bolsonaro preparam programa em segredo para, se ele ganhar, ser divulgado ao eleitor apenas depois das urnas

O pouco que se sabe do candidato que está na frente das pesquisas já está causando preocupação em alguns empresários. Jair Bolsonaro tem mostrado reservas em relação à China, sem explicar o que isso significa. O país é o investidor estrangeiro mais ativo na economia brasileira com projetos em energia e agora na conclusão do Comperj. O presidente da Vale alertou para a importância do país asiático como parceiro para a empresa e o Brasil. A Unica está preocupada com o abandono do Acordo de Paris. A reforma da Previdência é uma incógnita.

O que se sabe sobre a economia num eventual governo Jair Bolsonaro é excessivamente vago e estamos a 10 dias das eleições. O programa está sendo preparado por grupos temáticos sob o comando do economista Paulo Guedes, mas pouca coisa sai, até porque a estratégia é falar o mínimo possível para não atrapalhar a campanha. O Brasil fica assim na estranha situação de estar prestes a escolher um presidente — ontem ele disse na Polícia Federal que está com a mão na faixa — e sua equipe prepara um programa que será surpresa pós-urnas. Isso se houver concordância entre o candidato e os economistas, coisa que até agora não parece haver. “Não queremos flertar com o desconhecido”, disse ele ontem, mas na economia é exatamente isso que o pacto de silêncio dele e de sua equipe está oferecendo ao país.

Do pouco que se sabe, há esse temor sempre repetido pelo candidato em relação ao investimento chinês no Brasil. A China estaria “comprando o Brasil”, segundo ele. O país é o maior comprador de produtos brasileiros, o maior mercado da soja brasileira, portanto o agronegócio precisa manter essa relação estável e sem ruídos. O presidente da Vale, Fabio Schvartsman, empresa que opera em 16 portos chineses, disse que há uma dependência mútua entre Brasil e China, e que em qualquer governo a Vale continuará tendo uma boa relação com eles. É ao capital chinês que a Petrobras está recorrendo para concluir o investimento no Comperj. A expectativa da estatal é concluir em dois anos as obras da refinaria de Itaboraí, a partir do momento em que fechar o acordo com a CNPC chinesa.

O medo que Bolsonaro nutre pela China remete a um pensamento nacionalista ultrapassado e está em total divórcio com qualquer ideia liberal. Se ela compra uma participação numa hidrelétrica, ou numa refinaria, em que isso nos ameaça? Ela levaria fisicamente as usinas para a China? Qualquer país precisa ter um quadro regulatório estável e transparente para os investimentos, mas discriminar alguma empresa pela origem do capital é um debate resolvido desde que no governo Fernando Henrique, em 1995, foi retirada da Constituição a diferenciação entre empresa nacional e estrangeira.

Os produtores de etanol estão preocupados com a possibilidade de rompimento do Acordo de Paris porque isso reduz as perspectivas dos biocombustíveis, segundo disse a presidente da Unica, Elizabeth Farina. A reação dos usineiros mostra como a economia de baixo carbono tem muito mais aliados do que se pensa.

Em entrevista à “Folha de S. Paulo” ontem, um dos economistas que estão trabalhando para o programa de Bolsonaro, Luciano de Castro, disse que será dada uma guinada de 180º no setor de energia. Esse é um setor que precisa mesmo de muitas mudanças e correções, mas a primeira parte do seu projeto, que é a diminuição da presença do Estado na geração e privatização da Eletrobras, bate de frente com a teoria econômica do galinheiro e do ovo defendida recentemente por Jair Bolsonaro. Ao falar que não quer a privatização da Eletrobras, ele disse que se vender as galinhas do quintal ficará sem o ovo cozido de manhã. Outra parte do programa de energia feito para Bolsonaro é a de manter a política da Petrobras de paridade de preços internacionais, proposta da qual o candidato discorda.

A reforma da Previdência é uma incógnita. A que está no Congresso foi muito criticada e combatida pelo que será o núcleo político de Bolsonaro. Tanto Onyx Lorenzoni quanto Major Olímpio acham que ela é dura demais, quando outros críticos acham o oposto. Afinal, a idade mínima de 62 e 65 anos só estará em vigor em 2038. Se não for feita alguma reforma não há possibilidade de pôr ordem nas contas públicas. O que Bolsonaro tem dito em economia é sobretudo desconexo.