Míriam Leitão
Míriam Leitão: A equipe começa a ser formada
Mansueto fica e Campos Neto é indicado para comandar um projeto de BC independente como defende Ilan, que está de saída
Ilan Goldfajn ficou fechado, em total silêncio, enquanto se especulava se ele permaneceria ou não. Havia interesse em que ele ficasse até pela convergência natural entre a defesa do Banco Central independente pelo futuro ministro da área econômica, Paulo Guedes, e por Ilan, que ontem prometeu em nota continuar a apoiar o projeto nesse sentido em tramitação no Congresso. Mas um dos critérios para seguir no cargo era demonstrar interesse em ficar, o que não foi o caso do atual presidente do BC. O secretário do Tesouro Mansueto Almeida fica e mantém toda a sua equipe. Ana Paula Vescovi tem dito a todos que a procuram que quer ir para o exterior estudar.
Com a escolha de Roberto Campos Neto para presidir o BC, a equipe econômica começa a tomar forma. A ideia de Paulo Guedes sempre foi aprovar o Banco Central independente, o que é um passo adiante na autonomia que tem havido no órgão em alguns momentos. Ilan Goldfajn teve total autonomia e entregou o excelente resultado, reconhecido na área econômica do futuro governo, e comprovado pelo menos em dois indicadores. A inflação que estava perto de dois dígitos caiu abaixo do piso da meta e, com toda a turbulência do processo eleitoral, chega ao fim do ano no centro da meta. O segundo é a queda da taxa de juros para o menor nível da história do real, uma redução consistente, que atravessou estável esse período tenso. Ilan foi também ágil e firme nos momentos de maior tensão no mercado cambial. Avisou que só os efeitos secundários da mudança do patamar do câmbio seriam combatidos, ou seja, não subiria juros na vã tentativa de criar um patamar para o dólar.
Dentro da equipe que prepara o governo Bolsonaro há dois critérios para os convites, segundo um desses integrantes. “É preciso ter feito um bom trabalho", o que é o caso de Ilan e estar com vontade de permanecer no novo governo. Ontem no fim do dia, o presidente do BC explicou que “seu afastamento do cargo se dá por motivos pessoais" e que ficará no BC até que a indicação de seu sucessor seja aprovada pelo Senado.
Roberto Campos Neto é definido com uma palavra na equipe de transição: “excelente”. Atualmente no Santander, ele tem bastante experiência no mercado financeiro e já vinha colaborando com a equipe do novo governo. Foi escolha pessoal de Paulo Guedes, como tinha que ser. Chega com o desafio de manter a política monetária, mas ao mesmo tempo criar as condições para o aumento da competição no mercado bancário. Paulo Guedes vem dizendo desde a campanha que tem interesse em reduzir o custo da dívida pública e a própria dívida. Chegou a falar, depois da eleição, em vender parte das reservas cambiais com esse objetivo. Esta não é uma operação trivial.
O nome foi bem aceito pelos investidores. O fundo que acompanha os principais papéis de empresas brasileiras em Nova York acelerou a alta durante o dia, com as notícias sobre a indicação de Campos Neto. O EWZ subia mais de 2% à tarde. Isso indica que a bolsa por aqui deve abrir a sexta-feira em alta.
A permanência de Mansueto no Tesouro é importante por inúmeras razões. É um grande economista, com sólido conhecimento da máquina pública, e está tocando assuntos complexos como o quadro fiscal nos estados. Ele acompanha com o cuidado devido as bombas fiscais que estão armadas no Congresso e sabe como lidar com temas espinhosos que normalmente suscitam reações políticas. Depois dos grandes erros cometidos pelo governo Dilma na Secretaria do Tesouro, Mansueto, e antes dele, a economista Ana Paula Vescovi, tiveram que resolver problemas de muitos anos antes.
Não haverá solução fácil para o rombo fiscal do governo federal e dos governos estaduais, mas a atual equipe melhorou a qualidade das políticas públicas, dos indicadores e está fazendo uma correta transição administrativa, só comparável à que foi feita entre os governos Fernando Henrique e Lula. No caso dos estados, a convicção na equipe do governo Temer é que sem a reforma da Previdência não haverá melhora duradoura. Mas há formas de atenuar, como se pôde ver no Rio de Janeiro.
O governador Luiz Fernando Pezão conta que reduziu os gastos de pessoal como proporção da Receita Corrente Líquida de 70% em 2017 para 46% em outubro de 2018. E garante ter cumprido 12 das vinte metas. No governo federal a expectativa não é assim tão boa, mas os técnicos estão convencidos de que o estado se enquadrará abaixo do limite de 60%. O caso do Rio é importante porque é o único estado que entrou no Regime de Recuperação Fiscal. O Rio Grande do Sul não conseguiu e Minas nem foi conversar, preferindo tentar as liminares na Justiça. A melhora no Rio é em parte pela alta do petróleo — que a propósito voltou a cair —, mas também porque a partir do enquadramento no RRF houve mais disciplina. Não são poucos os desafios que esperam a nova equipe econômica que está sendo formada.
Míriam Leitão: Ideologia volta ao Itamaraty
Bolsonaro partidarizou a política externa brasileira em grau elevado. Alinhamento ao governo Trump terá custo econômico
O presidente Jair Bolsonaro pode fazer uma política externa ideológica de direita. Foi eleito para governar e escolher os caminhos do país. Só não pode acusar os governos petistas de terem partidarizado a política externa, porque é exatamente isso que ele está fazendo em grau muito mais elevado. O embaixador Ernesto Araújo como ministro das Relações Exteriores, por tudo o que disse até agora em seu blog de ativista, indica que o governo escolheu um alinhamento entusiástico a Donald Trump e isso tem um custo econômico.
Os artigos que postou no blog dele têm ideias definidas pelos seus colegas como “exóticas” e “constrangedoras”. Como a de que o “globalismo” seria uma conspiração cultural marxista contra o cristianismo, e que apenas Donald Trump poderia salvar o Ocidente.
Na vida real, os Estados Unidos estão num dos piores momentos de sua política externa, com conflitos com vários aliados e em muitas frentes, uma diplomacia de ofensas e brigas. Os EUA com o tamanho que têm podem errar. Um país como o Brasil não poderia. O risco é o de comprar as brigas americanas, sem o poder de barganha que eles têm, perder mercados e se isolar. Como o presidente eleito Jair Bolsonaro disse que agora será uma “política externa sem viés ideológico”, só se pode concluir que ou ele concorda com o que o novo chanceler diz em seus textos de ativista da extrema-direita ou ele não os leu.
Não é natural também que, num local tão disciplinado como o Itamaraty, um diplomata tenha um blog de militância política partidária. Nele, escreveu que o PT é o Partido Terrorista. Escreveu em defesa do “nacionalismo”, que ele define como “um anseio por Deus, o Deus que age na história”. Nessa mistura de ideias é que ele acaba concluindo que o Trump é o condutor dessa ordem ocidental cristã. Em um dos trechos de um dos artigos ele propõe: “A luta pela soberania econômica e política dos países, contra o domínio das cadeias produtivas de bens e contra o monopólio da circulação de informações por uma elite transnacional niilista, contra uma economia globalizada maoísta-capitalista centrada na China.”
O caminho que ele tentará influenciar o governo, se presume dos textos, é o de ser caudatário dos Estados Unidos. Isso aconteceu algumas vezes no Brasil, como no período de Eurico Gaspar Dutra. A última vez que houve uma diplomacia seguidora dos EUA foi no governo Castelo Branco, que chegou a enviar tropas brasileiras para República Dominicana. Mas até ele tinha reservas a seguir tudo o que os Estados Unidos mandavam. Ele votou contra, na reunião do Conselho de Segurança Nacional, o rompimento das relações com Cuba. Nos governos militares seguintes, o Brasil se distanciou desse alinhamento e depois teve uma política externa independente, seguida em governos civis. Imagina-se que por esse pensamento contra o domínio “maoísta-capitalista chinês” as relações com a China, nosso maior parceiro comercial, possam ter problemas.
O ministro Aloysio Nunes Ferreira soltou uma nota entusiasmada com a escolha e alinhando os cargos que ele exerceu no Itamaraty. Mas não é essa a opinião que se ouve com frequência na Casa. O diplomata Ernesto Araújo foi promovido a embaixador recentemente, nunca chefiou uma missão no exterior. O Itamaraty já teve inúmeras vezes ministros não diplomatas, mas, quando é da carreira, o que se espera é que não se quebre tão fortemente a hierarquia. Mesmo assim, a decisão dos diplomatas é não reagir e esperar a “força e a durabilidade” dessa escolha, como definiu um experiente diplomata.
Nesta nomeação, houve também outro fato inusitado. Parte do processo de triagem de ministros foi feita pelos filhos do presidente eleito. Não é normal do ponto de vista institucional que isso seja delegado a pessoas por seus laços familiares com o presidente. Os dois filhos que sabatinaram o candidato a ministro das Relações Exteriores foram Flávio, senador eleito, e Carlos, vereador. O que os qualifica como sabatinadores é serem filhos. O presidente Bolsonaro informalmente sempre ouvirá os filhos, mas quando isso ganha status de equipe de triagem para o Ministério é uma confusão entre família e governo que não deveria existir.
Míriam Leitão: Nó fiscal estadual ficará de herança
Tesouro divulgou que a crise fiscal dos estados piorou. Esse é mais um problema que o próximo governo terá que enfrentar
A situação fiscal dos estados piorou no ano passado, apesar da grande ajuda dada pelo governo, quando renegociou as dívidas deles e dos grandes municípios. A União deu mais 20 anos para pagar e reduziu o valor dos débitos para que a situação fiscal melhorasse. E o déficit primário dos estados saltou de R$ 2,8 bi para R$ 13,9 bilhões. Os governadores vão querer da administração Jair Bolsonaro mais ajuda para superarem atrasos com fornecedores e com funcionários. Esse será um dos dilemas do futuro governo.
Nem todos foram mal. O Espírito Santo foi o único a tirar A, a melhor nota de crédito dada pelo Tesouro. Em 2015, governadores e prefeitos de grandes cidades convenceram o governo Dilma a renegociar a dívida que já fora revista no período Fernando Henrique. Na época da pressão para a renegociação, o único governador a se opor foi Paulo Hartung. Ele dizia que a medida não resolveria o problema, como de fato não resolveu. A negociação ficou inconclusa por causa do impeachment. O governo Temer já começou pressionado por uma liminar do STF para fechar o acordo. Ele foi fechado, mas vários estados elevaram o gasto de pessoal acima da inflação. Isso tem sido recorrente. Nos últimos sete anos, o aumento real das despesas de pessoal nos estados foi de 31,58%.
Especialistas dizem que medidas fundamentais para enfrentar o problema são a reforma da Previdência e a mudança dos critérios de reajustes, com o fim dos aumentos automáticos. A folha salarial e a conta de pensões e aposentadorias é que pesam. Para se ter uma ideia, a despesa total dos estados aumentou R$ 48 bilhões, e a maior parte disso foi o gasto com ativos e inativos, que subiu R$ 25 bilhões. Esses dados são de 2017, comparados a 2016. Alguns estados ainda pioraram em 2018.
Essa é uma das várias bombas que o governo Jair Bolsonaro herdará. Como ele a enfrentará? A administração Temer melhorou a situação fiscal federal e aumentou a transparência dos indicadores. A realidade das contas “dos entes sub nacionais” está mais explícita a partir do relatório divulgado ontem com os números de 2017. Muitos estados registravam de forma incompleta os gastos com pessoal e inativos. O Rio Grande do Norte, por exemplo, contabilizava um gasto de pessoal de apenas 52,4% da Receita Corrente Líquida, mas o dado verdadeiro é 72%.O Tribunal de Contas do Estado (TCE) mandou o governo corrigir, mas nem todos os TCEs tiveram a mesma iniciativa. Em alguns casos, a diferença entre o que eles dizem gastar, e o que o Ministério da Fazenda calcula, chega a 20 pontos.
A Lei Complementar 156, da renegociação, além de mais prazo, permitiu a troca do indexador com retroatividade. A contrapartida era o cumprimento de limites de gastos. Sete dos 19 estados que renegociaram a dívida já avisaram que não vão cumprir o teto no ano que vem. O compromisso era limitar o crescimento da despesa primária ao IPCA de 2018 e 2019. O investimento não entra como despesa. O relatório divulgado ontem mostrou o quadro de problemas do ano passado, mas a situação continua a piorar e não por queda de receita. Em 2017, a receita subiu com o fim da recessão, mas as despesas aumentaram R$ 11 bilhões a mais do que a arrecadação.
Alguns estados como Rio, Maranhão, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais tiveram aumentos fortes nas despesas dos ativos. Em outros, como Ceará, Espírito Santo e São Paulo, o aumento maior foi dos inativos. Seja num caso, seja no outro, é necessário que sejam feitas reformas. A da Previdência cria as condições para que os governadores aprovem as suas próprias reformas.
Há muita diferença de situação. O quadro da despesa líquida vai desde crescimento real de 20% no caso do Mato Grosso do Sul, até uma queda real de 4% no Espírito Santo, que junto com Pará, Paraíba e Amapá foram os únicos estados que tiveram redução de gastos. Os piores casos continuam sendo Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, mas a esse grupo se juntou o Rio Grande do Norte, que deve piorar quando forem calculados os dados de 2018. Goiás também está na fila.
Alguns governadores foram eleitos agora e estão herdando a crise, por isso a tendência será correr para Brasília. Se o governo Bolsonaro ceder, ele pode descobrir que a conta só vai aumentar. Se não ceder, será um ponto de tensão na Federação.
Míriam Leitão: Moro no país das urgências
Moro deu entrevistas esclarecedoras, mostrou convergências com Bolsonaro, mas ainda há enigmas sobre como lidará com temas difíceis
Há uma enorme expectativa sobre como o novo ministro da Justiça e Segurança, Sergio Moro, vai lidar com questões inteiramente novas para ele, que vão dos índios às prisões, passando pela migração nas nossas fronteiras. Sobre os pontos polêmicos da agenda do presidente eleito, o futuro ministro já mostrou muitas convergências e algumas dissonâncias. Ontem, o Cade saiu da alçada dele, mas a lista do que ele terá que assumir é imensa.
Num governo que tem improvisado além do razoável na comunicação, e tropeçado demais na relação com a imprensa, Moro tomou a decisão correta, de dar, no primeiro momento, uma entrevista longa, organizada, clara e aberta a todos os veículos. Na entrevista do fim de semana, ao “Fantástico” ele esclareceu outros pontos das dúvidas levantadas pela ida dele para o governo Bolsonaro.
Nos dois momentos exibiu sua capacidade de pensar antes de falar, e de procurar palavras que arredondem as arestas. Mas não dá para contornar o incontornável. Disse que nunca viu de Bolsonaro “uma proposta de cunho discriminatório” contra minorias. Elas foram desrespeitadas em várias declarações do deputado. Ele foi bem explícito.
Nas entrevistas, Moro esclareceu suas convicções, para além da pauta sobre a qual ele sempre falou. Demonstrou que concorda que haja um reforço legal de proteção ao policial ou o militar nos confrontos com criminosos. Acha natural que o presidente eleito proponha a flexibilização da posse de armas já que defendeu isso em campanha, mas alertou para o risco de as armas servirem de suprimento para o crime. O futuro ministro disse que é favorável à redução da maioridade penal e do aumento do rigor na progressão de pena. Ele qualifica o que pensa. Diz que quem continua pertencendo a uma organização criminosa não deveria ter o benefício da redução da pena. E não concorda com a tipificação de movimentos sociais mais aguerridos como grupos terroristas, apesar de achar que não podem ser inimputáveis.
A grande pauta de Jair Bolsonaro jamais foi o combate à corrupção. Ele foi parlamentar de ideia centrada numa agenda de conservadorismo, político e de costumes, e de defesa do regime militar, mesmo dos seus piores erros. A luta anticorrupção é inclusão recente pela oportunidade aberta pela Lava-Jato, na qual ele surfou atrás de eleitores.
Moro entendeu o convite, como ele tem dito com clareza, como a oportunidade que se abriu para que ele salvasse a Lava-Jato, por assim dizer. "Passei os anos pensando que a mesa poderia ser virada a qualquer momento. Era uma realidade presente", disse. De fato, não faltou desejo em Brasília de barrar a Lava-Jato, mas a operação sempre teve muito apoio da imprensa, da opinião pública e de estudiosos de diversas áreas. Existem muitas ideias já amadurecidas em debate da sociedade civil, por isso não será difícil fazer o pacote anticorrupção. A dificuldade dele será negociar com alguns dos partidos que estarão na base de apoio do governo.
Há inúmeras outras questões esperando por Moro e não há qualquer informação sobre o que ele pensa de algumas delas. Quando perguntado sobre índios, ele deu uma não resposta. O Brasil tem uma extraordinária diversidade étnica, com mais de 200 povos, a maioria preserva a sua língua original, há grande cobiça de fazendeiros, muitos deles grileiros, em avançar sobre terras indígenas. Tudo o que o presidente eleito falou até agora sobre índios revela espantoso desconhecimento da complexidade do tema e ideias que, se transformadas em política pública, terão efeitos desastrosos. Esse assunto caberá a Moro.
Na edição de domingo, este jornal trouxe reportagem do excelente jornalista Antônio Werneck com a lista dos vários barris de pólvora que passarão a integrar a agenda do futuro ministro: a guerra entre facções criminosas em 14 estados, o tráfico de drogas através de fronteiras porosas, rotas marítimas e aéreas do tráfico de armas pesadas, regras para o contato de presos com parentes, amigos e advogados, relação com os estados que são, no fim das contas, os responsáveis pela política de segurança pública. Quando houver rebeliões em presídios o assunto sempre cairá sobre o colo do ministro da Justiça e Segurança.
Sergio Moro tem grande capacidade de trabalho como já mostrou na 13ª Vara Federal. Precisará dessa competência para não se perder em assuntos tão díspares. Ele vai descobrir que não poderá apagar algumas agendas para focar apenas no que elegeu como sua missão. O Brasil é o país das muitas urgências.
Míriam Leitão: A vitória da diversidade
Pode-se atrasar o futuro, mas não se pode impedir que ele aconteça. O recado das urnas americanas vale para outros países: este é o século da diversidade
O que houve de mais importante na eleição americana foi a vitória da diversidade. Em um governo hostil às diferenças, dirigido por um presidente intolerante com os imigrantes, o voto trouxe para a cena política pessoas de origens, religiões, orientação sexual, idades diferentes entre si. O recado que ficou é que o futuro inevitável é o do alargamento da representação política porque todas as vozes querem ser ouvidas e é isso que fortalece a democracia.
A nova maioria democrata na Câmara dos Deputados será fundamental para a continuidade da investigação sobre os subterrâneos da eleição do presidente Donald Trump e a nunca devidamente explicada participação russa na campanha na internet. É importante também por fortalecer os pesos e contrapesos da democracia, diante de um presidente que é capaz de afrontar a primeira emenda da Constituição, a da liberdade de imprensa, como fez com o jornalista Jim Acosta que cobria a Casa Branca. Depois de ouvir as acusações do presidente, teve sua credencial cassada. Curioso como a atitude de Trump lembra a do coronel Hugo Chávez. Ele também acusava alguns jornalistas e jornais de serem “inimigos do povo”, quando não gostava do que lia ou das perguntas que ouvia. As mentes autoritárias se parecem, independentemente da ideologia que afirmam ter. Os autoritários em qualquer país acusam seus críticos de serem contra o país e o povo. A diferença está na força das instituições que se contrapõem a eles. Infelizmente a Venezuela nunca teve uma democracia sólida e ela foi sendo demolida paulatinamente por Chávez e Maduro.
O que a eleição americana traz de mais importante é a força da diversidade. Duas “native americans”, ou indígenas, chegaram à House: Sharice Davids e Deb Haaland. A primeira é homossexual e filha de mãe solteira; a segunda, da tribo Pueblo Laguna, é ativista comunitária no Novo México. Duas outras congressistas são as primeiras muçulmanas eleitas. Ilhan Omar nasceu na Somália e Rashid Tlaib nasceu nos Estados Unidos, mas de pais palestinos. O Colorado elegeu o primeiro governador gay assumido. Jared Palis é casado e tem dois filhos. Vários outros estados elegeram pessoas negras. Massachussetts, por exemplo, mandará para a Câmara a primeira mulher negra a representar o estado. A juventude também teve avanços. Alexandria Ocasio-Cortez, de Nova York, é a deputada mais jovem a ser eleita. São muitos os casos de vitória de pessoas diferentes do padrão tradicional dos poderosos de Washington. Na campanha, o “The New York Times” já havia registrado que essa era a eleição com maior diversidade. Publicou uma coleção de rostos que mostrava o colorido e a beleza do painel humano que se oferecia ao eleitorado.
Pode-se atrasar o futuro, mas não se pode impedir que ele aconteça. Esse recado das urnas americanas vale para os muitos países onde cresce a onda conservadora, que tem a visão tradicional de família como a única possível e nos quais, por gestos e palavras, mulheres, índios, negros, homossexuais são tratados como inferiores. Este é o século da diversidade, da ampliação da representação democrática para todos os grupos, do diálogo entre pessoas diferentes entre si, da proteção do planeta por todos os meios possíveis.
Há quem acredite, ainda hoje que o melhor para tratar a desigualdade é não falar nela e repetir o bordão de que somos todos iguais. Somos, mas encarar as desigualdades e conhecer-lhes as causas é a única forma de superar as distâncias. Quem divide não é quem fala da desigualdade, é quem finge não vê-la. Essa política de avestruz ainda tem seguidores.
Não se pode avançar no século XXI carregando convicções arcaicas. Qualquer vitória do atraso é temporária. Trump ficou um pouco mais fraco essa semana, porque o partido Republicano perdeu a maioria na Câmara. Ele ainda é forte. Ampliou sua margem no Senado e fortaleceu a direita do partido que é a mais ligada a ele. Mesmo assim, sua real derrota é mais sutil e permanente. O seu ideal de América de maioria branca e conservadora ficou um pouco mais distante. O futuro não vem numa linha reta, sem hesitações. Pelo contrário, há momentos em que ele parece estar perdido. Mas os retrocessos são soluços da velha ordem, a antítese do futuro.
Míriam Leitão: O governo que é antes de ser
Novo governo não assumiu, mas já tem que fazer articulação no Congresso para evitar projetos que pesem mais nas contas públicas
O governo Bolsonaro tem o ônus de ser, antes do bônus de estar na Presidência. Os atos do Congresso agora afetarão o primeiro ano do governo Bolsonaro. A administração não assumiu, mas já anuncia decisões que têm efeitos políticos e, por isso, geram reações, mas a base ainda não se articulou para a defesa no Congresso, até pela grande renovação. Foi isso o que aconteceu no caso da aprovação do reajuste do Judiciário e do Ministério Público. O presidente eleito afirmou que não era o momento e que eles são os “mais bem aquinhoados" do setor público. Está certo. Mas por não ter feito qualquer articulação com o Senado, Bolsonaro teve sua primeira derrota.
Esta transição é diferente de todas as outras, por uma série de fatores, e a eles a equipe de Bolsonaro deveria estar atenta. Houve muita renovação nas duas casas, mas há um fato curioso: o reajuste teve o voto de senadores que serão da futura base. Já alguns que serão oposição votaram contra, como o senador Randolfe Rodrigues. O PSL era ínfimo e agora é a segunda maior bancada da Câmara e será a primeira com as adesões que receberá. O governo está em formação, mas vai conviver até fevereiro com o velho Congresso. O poder nascente é sempre mais forte do que o poente, portanto é a favor ou contra ele que as forças políticas agora se organizam.
A fala do futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, de dar uma "prensa neles”, bateu num Senado em que muita gente não voltará, a começar do presidente da casa, Eunício Oliveira. O reajuste já contou para a nova administração, que terá que pagar a conta. Ele aumenta os custos do governo federal, dos governos estaduais, e se torna uma despesa permanente. Tornará ainda mais difícil evitar o reajuste dado ao Executivo.
O governo Temer cometeu um erro logo que chegou e passou dois anos e meio se arrependendo. Deu aumentos a muitas categorias do Executivo em parcelas anuais, apesar de o país estar em recessão, com receitas encolhendo. Tentou adiar a parcela do reajuste de 2018 e foi derrotado por uma liminar do ministro Ricardo Lewandowski. Agora mandou nova proposta para adiar para 2020 o reajuste de 2019, que pode ser derrubada de novo.
Há pelo menos três outras bombas no Congresso: a revisão da Lei Kandir será votada este ano, e ela pode decuplicar o gasto do governo federal com a compensação para os Estados; a emenda 99 manda o governo federal financiar com juros subsidiados o pagamento de precatórios de estados e municípios e isso já foi aprovado, mas o dano pode ser contido na regulamentação; o Orçamento de 2019 está sendo votado e nele os parlamentares querem pendurar suas emendas.
Se não quiser começar os trabalhos no meio de bombas, o governo Bolsonaro terá que iniciar a articulação política antes de assumir o Palácio do Planalto. O governo está ferindo vários interesses com as suas mudanças nos ministérios, apesar de em muitos casos ter razão. Um exemplo são os empresários, principalmente os industriais, que pela primeira vez temem não ter um balcão no governo ao qual levar suas reivindicações, porque o Ministério da Indústria e Comércio será parte do novo ministério da economia. Eles têm muita conexão no Congresso. Não tem sentido dar a eles subsídios e proteção, mas estão corretos quando dizem que o custo Brasil é alto demais, o que torna a competição injusta. É preciso criar as condições para a mudança na política industrial.
Quem acompanha os tuites e outras formas de comunicação do grupo do presidente eleito, dos seus filhos e dos assessores, reais ou virtuais, já notou que um dos defeitos da turma é a mania de perseguição. Eles consideram inimigos todos os que não lhes fazem a corte. Qualquer reparo ao novo governo transforma o autor da crítica num “comunista”. Esse macartismo fora de época mira políticos, jornalistas, pensadores. Alvejar supostos adversários com um epíteto tão antigo assim é até cômico. Quando se dirigem a jornalistas e pensadores não causam maiores efeitos. Se tratarem o Congresso com o mesmo maniqueísmo terão como troco mais dificuldades para governar. Bolsonaro terá que fazer uma coalizão, mesmo que a chame de outro nome. E se quer fazer coalizões com bancadas temáticas, a cada votação, a articulação será ainda mais árdua. Democracia dá muito trabalho. Mas, felizmente, é o que temos.
Míriam Leitão: Erros e improvisos do novo governo
Governo fala dos seus planos antes de formulá-los e já colheu a primeira derrota no Senado, que concedeu reajuste ao Judiciário
O novo governo parece estar sempre improvisando em cena aberta. Ontem o presidente eleito Jair Bolsonaro falou em acabar com o Ministério do Trabalho, depois em dividi-lo em três partes. Na véspera, o futuro ministro da Economia falou em dar uma “prensa” no Congresso e assim a administração nem começou e já colheu a derrota da aprovação do reajuste do Judiciário. Toda transição pode ter idas e vindas, mas não se pode anunciar um plano de governo antes de formulá-lo.
Na campanha eleitoral houve pouco esclarecimento sobre o programa do candidato que venceu as eleições. O que foi divulgado cumpria a formalidade da legislação eleitoral, mas continha algumas ideias que têm sido de fato desenvolvidas. O ataque à faca sofrido pelo candidato interrompeu e silenciou a campanha. Depois, o pouco falar foi parte da estratégia para não perder eleitores. Isso fez com que o país escolhesse sem um adequado conhecimento das ideias da candidatura. Bolsonaro se elegeu em parte pelo antipetismo, em parte pela ilusão de solução simples para problemas complexos, como a liberação de armas para superar a crise na segurança.
Nesses dias pós-eleitorais tem havido uma sucessão de ideias lançadas, e das quais se recua logo depois. Ontem, o próprio Bolsonaro afirmou que acabaria com o Ministério do Trabalho, depois que o dividiria em três. O problema é que o Brasil está enfrentando neste momento a pior crise do seu mercado de trabalho, com 12,5 milhões de desempregados e 4,8 milhões de pessoas que integram o grupo do desemprego por desalento. Neste ponto de fragilidade, um dos riscos de uma mudança atabalhoada é enfraquecer a fiscalização contra o trabalho análogo à escravidão e o trabalho infantil. A ideia de que essa fiscalização fique dentro de um Ministério da Família pode simplesmente não dar certo. É arriscado também desorganizar programas sociais como o seguro-desemprego.
O governo se elegeu avisando que reduziria o número de ministérios e está fazendo isso, mas talvez fosse mais sensato fazer a reforma primeiro e anunciá-la de forma concatenada. O superministério econômico, como já disse aqui, pode dar certo se o ministro Paulo Guedes conseguir bons quadros para administrar as áreas-chave como Orçamento e Gestão e souber gerir os muitos assuntos que ficarão sob seu comando. O setor empresarial está pressionando para se criar o Ministério da Produção para sair da área de influência de Guedes, mas se acontecer isso estará sendo quebrada a ideia original do Ministério da Economia.
O movimento que levou o juiz Sérgio Moro para dentro do governo foi bem-sucedido e há grande expectativa em torno do trabalho que o futuro ministro fará, e que ele explicou em entrevista concedida na terça-feira, de forma organizada e cortês. A ideia de manter o presidente da Petrobras, Ivan Monteiro, se for confirmada, será outro acerto da administração Bolsonaro. O governo Temer tem recebido os representantes da nova equipe com informações, dados, transparência num esforço que vinha sendo preparado desde a campanha e que será muito útil para quem chega.
Contudo tem havido ruídos demais. No começo da semana, Bolsonaro chamou de “farsa” o índice de desemprego, ofendendo o IBGE e mostrando desconhecimento de como o índice é calculado. O Instituto tem 82 anos de bons serviços prestados ao país e reconhecimento internacional. Depois, Bolsonaro repetiu uma afirmação que fez várias vezes na campanha e que poucos prestavam atenção. Falou em renegociar a dívida interna. O futuro ministro Paulo Guedes teve que negar que tenha qualquer intenção de fazer isso. Ontem, uma fala de Guedes é que precisou ser explicada, a que ele sugere que se dê uma “prensa” no Congresso.
Antes de pressionar quem quer que seja, o governo primeiro precisa decidir que reforma quer aprovar. Bolsonaro tem falado em reduzir a idade mínima da reforma da Previdência que tramita no Congresso para 62 anos, e afirmou que não se pode “quebrar contrato” com quem trabalhou e contribuiu. O projeto que passou pela Câmara, sob ataque de alguns dos aliados de Bolsonaro, inclusive o futuro chefe da Casa Civil, tem regra de transição lenta, e não está quebrando contrato. A forma mais certa de perder uma votação é o governo estar dividido sobre o que realmente quer de um projeto.
Míriam Leitão: Constituição no país de Bolsonaro
O Brasil vive, nos 30 anos de sua Constituição, momento em que todos lembram ao presidente eleito que é preciso cumpri-la
Na sessão solene do Congresso, ontem, as autoridades se revezaram batendo na mesma tecla: é preciso respeitar a Constituição. Alvo de todos os recados, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, disse que “na democracia só há um norte: o da nossa Constituição.” Se estavam todos de acordo em cumprir a Lei Magna promulgada em dia emocionante, há 30 anos, por que mesmo essa repetição? Porque esse é o maior teste que as instituições enfrentam.
O governo que se forma teve ontem dois momentos importantes e definidores. Pela manhã, cercado de representantes dos poderes, Bolsonaro ouviu que só há um caminho, o constitucional. De tarde, o futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, respondeu pacientemente a uma hora e meia de perguntas de jornalistas. Ele definiu o presidente eleito com adjetivos que normalmente não estiveram associados a ele: “ponderado”, “moderado” e “sensato”. Moro disse que não vê “risco à democracia e ao Estado de Direito”.
Bolsonaro deu baixa no Exército no mesmo ano, 1988, da promulgação da Constituição e começou sua bem-sucedida carreira política que o levou da vereança aos sucessivos mandatos como deputado e agora chega, pelo voto, ao cargo maior do Executivo. Saiu do Exército desgostoso com o soldo e o tratamento recebido ao se insurgir, mas com todas as convicções políticas que tinham à época as Forças Armadas, nas quais entrou como oficial formado pela AMAN no ano em que o então presidente Ernesto Geisel fechou o Congresso.
Ele se notabilizou não pelos projetos, não pela liderança, não pela capacidade de negociação política, mas pelas declarações polêmicas e agressivas, várias delas de desprezo pela democracia. Na campanha, algumas de suas falas arranharam partes da Lei Maior, como a que estabelece, no artigo 3º, que entre os objetivos da República estão a igualdade entre gêneros, a luta contra a discriminação. O presidente do STF, Dias Toffoli, foi votar, no dia 28, com a Constituição na mão e passou o dia lembrando o artigo 3º.
Ontem, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, foi mais enfática. “Não basta reverenciá-la, é preciso cumpri-la.” Bolsonaro não aplaudiu a procuradora que o denunciou por racismo. Antes de Raquel, Ela Wieko, quando ocupava o cargo de vice-procuradora-geral, já o denunciara por apologia ao estupro, ação que ainda permanece na mão do ministro Luiz Fux. Raquel Dodge, lembrou, não por acaso, que a Carta Magna prestigia as minorias, a erradicação da pobreza, a proteção ao meio ambiente. “A Constituição repudia toda a forma de discriminação.”
Por que os líderes do país têm insistido tanto em lembrar o documento que encerrou oficialmente, há três décadas, um período de arbítrio, suspensão de direitos e garantias individuais, supressão do direito de voto para os cargos executivos? Porque é aniversário da Carta na qual foi escrito o pacto que nos uniu e nos trouxe até aqui.
Há um momento na trilogia tebana de Sófocles em que Teseu, rei de Atenas, diz a Creonte, governante de Tebas: “Terei de estar atento a essas circunstâncias para evitar que considerem a minha pátria tão fraca a ponto de curvar-se a um homem só.” Será que é esse temor que faz com que tantos lembrem que o Brasil jamais pode se afastar do texto pactuado há 30 anos?
O juiz Sérgio Moro mostrou ontem a outra face do governo. Sereno, mesmo diante das perguntas mais difíceis, ele defendeu a decisão de ir para o governo Bolsonaro porque tem a ideia de que conseguirá consolidar os avanços institucionais conseguidos nos últimos anos de combate à corrupção. Tentará aprovar um primeiro pacote nos primeiros seis meses. Admitiu ter divergências em alguns pontos com o presidente eleito, mas afirmou que sabe que estará subordinado a ele.
—Existem receios, a meu ver infundados, e minha presença no governo pode ter o efeito de afastar esses receios. Sou um juiz, um homem de leis. Jamais admitiria qualquer solução que não fosse lei —disse Moro.
Moro pode ajudar a moderar o governo em que várias pessoas já demonstraram tendências autoritárias, até em fatos como a tentativa de impedir a imprensa ontem no plenário do Senado? Moro é apenas uma peça nesse complicado xadrez. Os poderes moderadores da República serão todas as instituições nas quais temos investido o melhor dos últimos 30 anos.
Míriam Leitão: O que evitar na política externa
Se o Brasil adotar uma política externa à reboque dos EUA fará o contrário do que os próprios militares implantaram no período deles
Diplomacia é arte de delicada tessitura. Mesmo para endurecer é preciso saber como fazer e qual é o passo seguinte, como num jogo de xadrez. E só deve ter um norte: o interesse do Brasil. O próximo governo tem falado qual será a política externa antes de escolher o futuro ministro. Como candidato, Jair Bolsonaro fez declarações das quais teve que recuar. Como presidente eleito deveria evitar precipitações porque suas palavras têm enorme peso agora. Nos governos Geisel e Figueiredo o Brasil retomou a política externa não ideológica e não alinhada aos Estados Unidos, que, depois, foi seguida em governos democráticos.
Os ministros Azeredo da Silveira e Saraiva Guerreiro, nos governos Geisel e Figueiredo, conduziram o chamado “pragmatismo responsável". O Itamaraty retomou, naquela época, o caminho de uma política externa independente que havia sido abandonada no início do regime militar.
Um dos exemplos dessa política ocorreu em novembro de 1975 quando o Brasil foi o primeiro país a reconhecer o novo governo angolano que havia declarado a independência em relação a Portugal, e era comandado pelo MPLA, que se declarava marxista. Uma parte do país era dominada por outro grupo guerrilheiro, a Unita, que anos depois perdeu a guerra.
Geisel, em março de 1977, rompeu o acordo militar com os Estados Unidos assinado nos anos 1950. Era uma forma de o Brasil escolher seu caminho também nesta área. O então presidente chegou a pensar num rompimento de outros acordos, mas foi aconselhado pelos diplomatas a esperar a reação americana com cartas na manga. Tudo o que os Estados Unidos fizeram foi enviar o general Vernon Walters ao Brasil para tentar demover o país, missão que fracassou.
O voto antissionista na ONU em 1975 causou bastante polêmica. Ele considerava o sionismo uma forma de discriminação. A questão dividiu a ONU e os países, mas a decisão brasileira foi vista como autônoma. Foi uma etapa importante da aproximação com os países árabes com quem o Brasil tem um comércio vigoroso. Foram instaladas unidades especiais só para fornecer frango para os árabes.
A transferência da sede da embaixada do Brasil para Jerusalém pode ter como efeito bumerangue a retaliação comercial dos árabes ao Brasil. Mas principalmente é ruim por significar um retrocesso no não alinhamento automático com os Estados Unidos, um dos avanços conseguidos na diplomacia dos últimos governos militares. Só um país do mundo, a Guatemala, seguiu os Estados Unidos nessa decisão.
No período João Figueiredo, o Brasil se recusou várias vezes a entrar em conspirações e conflitos na região, nos quais os Estados Unidos de Ronald Reagan tentaram nos envolver. Em uma dessas vezes houve um fato que ficou famoso. O subsecretário americano Thomas Enders veio ao Brasil tentar convencer o país a participar da tentativa de derrubar o governo sandinista. O ministro Saraiva Guerreiro costumava fechar os olhos e respirar profundamente no meio das conversas, o que levava o interlocutor a achar que ele dormira. Enders explicava que o Brasil deveria integrar uma força militar para a intervenção contra o governo sandinista, e Guerreiro fechou os olhos durante a longa explanação, deixando o americano desconcertado. Quando parou de falar, Guerreiro perguntou:
— Do you believe in God, mister Enders?
O subsecretário, cada vez mais confuso, disse que sim, acreditava em Deus. Ao que Guerreiro respondeu em inglês:
— Então vamos rezar pelo povo da Nicarágua.
Com essas e outras o Brasil, diplomaticamente, evitou virar uma espécie de ajudante americano na região ou entrar em brigas dos Estados Unidos, como as sanções que o governo Carter tentou aplicar contra a União Soviética. O atual presidente Donald Trump cria arestas com todo mundo, inclusive aliados. Seria um erro estratégico enorme o Brasil aceitar ser caudatário dos Estados Unidos.
O pior que pode nos acontecer é depois de termos saído de uma política externa ideológica de esquerda, irmos para outra ideológica de ultra-direita. A diplomacia tem que defender os interesses do país, de forma equilibrada e pragmática. Quando outros elementos, como manias e idiossincrasias do governo de plantão, entram nas decisões algo dá sempre errado.
Míriam Leitão: Governo terá briga de agendas
Novo governo vai ter que enfrentar o dilema de escolher em qual das suas agendas pretende investir a lua de mel do começo de mandato
O mercado financeiro acredita que a agenda prioritária do presidente eleito Jair Bolsonaro será a de reformas econômicas e já comemora por antecipação. O juiz Sergio Moro foi para o governo convencido de que será possível tocar a agenda anticorrupção. Bolsonaro deu sinais de que continua focado nas suas ideias sobre segurança, como liberação de armas, redução da maioridade penal e o “excludente de ilicitude" para proteger policiais. Enquanto isso, tem feito anúncios na política externa.
Apenas 11 países, dos 193 da ONU, têm relações com todos os membros e o Brasil é um deles. É um dos orgulhos da nossa diplomacia. Bolsonaro quer sair desse simbólico clube rompendo relações com Cuba. Um ato sem maiores motivos e ganhos. Avisou que será o terceiro país do mundo a transferir a embaixada brasileira para Jerusalém. Deveria ser lembrado do relevante comércio com os países árabes. A Liga Árabe tem 22 membros e a Conferência Islâmica, 57. Recados diplomáticos estão desembarcando em alguns ouvidos de que pode haver retaliação comercial por parte de países com os quais temos superávit comercial. A falta de prioridade do Mercosul foi dita com ênfase bem audível pelo futuro ministro da Economia. A Argentina é o maior comprador de manufaturados do Brasil.
Enquanto o governo Bolsonaro exercita sua diplomacia, já vai ficando claro que haverá no Congresso, no ano que vem, pelo menos três agendas em conflito. Em qual delas, o presidente eleito Jair Bolsonaro pretende investir a sua lua de mel? A econômica, a do seu pacote de segurança, ou o combate à corrupção.
O cientista político Carlos Pereira, da FGV, lembra o grande capital político que ele terá ao assumir.
— Minha impressão é que ele aprovará tudo o que quiser no Congresso no curto prazo, porque é um governo inaugural e que terá uma maioria homogênea com partidos de centro-direita.
Essa também é a convicção do cientista político Jairo Nicolau, da UFRJ. Mas ambos lembram que ele promete governar formando maiorias eventuais conforme o tema, sem base de sustentação definida, o que pode aumentar a dificuldade da negociação, em geral árdua, no Congresso.
Governar é fazer escolhas. Bolsonaro terá que fazê-las e dizer qual é a prioridade. Sua maior ênfase durante a campanha foi o fim do estatuto do desarmamento para liberar o porte de armas, a proposta que amplia o respaldo jurídico a policiais que matam em serviço, a redução da maioridade penal, além da sua pauta de conservadorismo nos costumes. São propostas polêmicas sobre as quais nem se sabe qual é a opinião do novo superministro da Justiça, Sergio Moro. Não se vai para um governo pela metade. Moro terá que respaldar essas ideias ou então convencer o presidente do contrário.
O juiz fez a aposta de risco ao trocar a sua carreira jurídica pela ida a um governo que tem encontro marcado com várias controvérsias. Analistas com quem tenho conversado concordam que foi um enorme gol do governo Bolsonaro e que o risco ficou todo para Moro.
Ele, pelo visto, acredita que conseguirá tocar o que está resumido no livro que empunhava no avião: as novas medidas contra a corrupção. Elas nasceram de um movimento que uniu várias entidades num belo trabalho interdisciplinar e que deu origem a uma lista de 70 medidas de uma agenda anticorrupção. Especialistas que participaram do processo de preparação, acham que se escolher tocá-las o governo vai economizar de 6 a 12 meses porque essa discussão prévia já amadureceu as medidas. Resta a dúvida: como fazer isso com uma base que tem PTB, PP e outros menos investigados?
Empresários e economistas do mercado financeiro fazem a aposta geral de que Bolsonaro tocará as reformas na economia, começando pela Previdência. Nesses primeiros dias de governo eleito, o que se ouviu da equipe que se forma foi a mais ruidosa cacofonia sobre que reforma é desejável. O presidente fala em aprovar a atual proposta, da qual Onyx Lorenzoni sempre discordou. Paulo Guedes tem técnicos formulando um projeto, e o economista Marcos Cintra falou em acabar com a contribuição previdenciária patronal e criar a CPMF, ideia que Bolsonaro negou de novo. Se a economia não for a prioridade haverá uma reversão de tendência no mercado.
Míriam Leitão: Está tudo muito confuso, tá ok?
Boa comunicação faz parte da arte de bem governar, por isso o presidente eleito deveria migrar para outro estilo de transmitir suas ideias e decisões
O presidente eleito Jair Bolsonaro gosta de uma comunicação de frases curtas, vocabulário estreito, ideias simples e uma interjeição final. O seu “tá, ok?” costuma se seguir a ideias controversas e é posto muitas vezes como uma prévia interdição ao contraditório. Nessa primeira semana após a eleição tudo foi muito confuso. É natural. O governo nem começou. A decisão de barrar jornais numa coletiva mostra autoritarismo. A cena de Paulo Guedes e Sérgio Moro, na sexta-feira, desistindo da entrevista, em frente ao pelotão de jornalistas exibe o improviso.
Bolsonaro acredita na força do seu próprio canal de comunicação e se baseia no fato de ter sido com a mídia alternativa, criada pelo filho 02, que ele contornou a falta de recursos eleitorais tradicionais, como acesso ao fundo partidário e tempo de televisão. Só que agora tudo mudou. Ele é o presidente eleito e a boa comunicação faz parte de bem governar.
Após o primeiro turno, em vez de falar com os repórteres como fazem todos os candidatos que vencem essa etapa inicial, Bolsonaro fez um live no Facebook. Ao vencer o segundo turno, teve que fazer três falas de vitorioso para cumprir de forma incompleta o ritual democrático de qualquer eleição, que é se comunicar com o país após as urnas. Sua primeira fala foi ainda de conflito, via Facebook. Na segunda, que foi mais organizada pelo esforço dos órgãos de imprensa que se uniram para isso, ele preferiu ler um texto em que faltavam pontos importantes, como uma palavra indispensável aos eleitores que não votaram nele. Na terceira, Bolsonaro voltou ao Facebook para completar o que havia esquecido. No meio de tudo isso, uma oração, que seria normal sendo feita internamente, mas exposta como primeira cena do governante eleito parecia revogar a sadia separação entre Igreja e Estado, um dos primados da Reforma Protestante de 500 anos.
Tem havido ruído demais em todos os canais de comunicação. Na entrevista do Jornal Nacional, ele teve oportunidade de se comprometer com a imprensa livre e deu duas informações no sentido contrário. Primeiro, que pretende usar as verbas publicitárias como forma de punir e premiar segundo o critério do que considera ser o papel da imprensa. Segundo, que escolheu como primeiro alvo a “Folha de S.Paulo”.
Nas primeiras entrevistas que Bolsonaro deu na segunda-feira a várias televisões ele disse coisas que ecoavam à campanha e que não ajudam em nada nesse momento de olhar o futuro e governar. Ele afirmou à “Band” que não se arrepende de ter dito que a ditadura deveria ter matado mais, porque foram desabafos no contexto de um Congresso cheio de anistiados. Justificou a censura com uma explicação inusitada: as matérias censuradas teriam “a palavra-chave para executar um assalto a banco, ou até mesmo uma autoridade em cativeiro”. Sobre a morte de opositores pelo regime, ele disse que “como tinha a lei de vadiagem, tinha que ter o documento", e o “elemento” ia assaltar um banco, e por isso era morto. Ele tem direito a ter a sua opinião positiva da ditadura militar, mas em que serve, a esta altura, o uso dessas versões fakes para fatos históricos, como se estivéssemos na distopia orwelliana de um regime de força que reescreve o passado? O Brasil tem enormes dificuldades à frente e essa agenda deveria ocupar a mente do novo governante que saiu consagrado das urnas. Após ser eleito, ele deveria ampliar ao máximo o alcance do seu discurso. Afinal, isso aumenta as chances de sucesso do seu governo.
Se o clã Bolsonaro está convencido de que apenas os canais alternativos sob seu exclusivo controle serão suficientes para se comunicar está enganado. Não existe essa dicotomia de velhas e novas mídias no complexo mundo da comunicação atual. O presidente Donald Trump hostiliza parte da imprensa, elege veículos que não podem entrar em entrevistas, e usa o twitter para provocações agressivas. Bolsonaro pode estar escolhendo copiar esse modelo. Mas na sexta, os semblantes de perplexidade de Sérgio Moro e Paulo Guedes diante da natural pluralidade de perguntas da imprensa mostra que talvez eles precisem de menos improviso. Governar não é cavar trincheiras. A comunicação faz parte da arte de administrar bem o país.
Míriam Leitão: A decisão de Moro divide
Moro não virou político, mas estará em um governo que fez ameaças à democracia e tem em sua base partidos que ele condenou
A ida do juiz Sérgio Moro para o governo Jair Bolsonaro abre inúmeras dúvidas e polêmicas, mas não torna a Lava-Jato uma conspiração contra o PT. Ela tem serviços prestados ao país e atingiu políticos de diversos partidos. Moro, contudo, abriu o flanco para muitas críticas. Ele entra num governo que tem uma agenda que pode representar ameaça a direitos e garantias constitucionais e que governará com alguns dos partidos envolvidos em casos de corrupção.
O PT está dizendo que a ida de Moro é a prova final de que era tudo uma armação para tirar o ex-presidente Lula do rumo do Planalto e levá-lo para uma cela em Curitiba. Mas existem inúmeros fatos que mostram que a Lava-Lato é, e continua sendo, a mais bem sucedida operação anticorrupção do país. Ela condenou 130 pessoas, entre políticos, empresários e operadores, totalizando 1900 anos de prisão. Conseguiu recuperar R$ 12 bilhões. Puniu políticos do PMDB, do PSDB, e levou à prisão parlamentares de partidos que hoje estão indo para a base do governo Bolsonaro, como o PP. Expôs da forma mais explícita jamais vista os esquemas de corrupção dentro das empresas, como se pôde constatar na revelação da existência de um departamento dedicado à corrupção na Odebrecht. Não deixou nenhum pingo de dúvida de que diretores da Petrobras roubavam para si e para os partidos da base nos governos petistas.
O fato de o juiz Sérgio Moro virar ministro da Justiça não significa que ele “entrou na política”, como muita gente está interpretando. O cargo é técnico e pode ser exercido dessa forma ou ser ocupado por um político. Alguém ir para o governo não significa que virou um político. Inúmeras pessoas entram e saem e não viram políticos. O problema que Moro terá é com a agenda de Bolsonaro.
O presidente Bolsonaro, numa entrevista depois de eleito, reclamou de estar tendo que repetir sempre que vai respeitar a Constituição. “Parece que se não falasse isso (que respeitaria a Constituição) não seria um democrata. Você é obrigado a falar. Lamento ser obrigado a fazer isso e dizer que sou um democrata num sistema democrático.” É o caso de se pensar: por que será que perguntam? Porque ele deu sinais inequívocos em sentido contrário, ao fazer a apologia da ditadura, ao ter defendido tantas vezes soluções de força e ao ter seu filho, deputado Eduardo, dizendo que bastaria mandar um cabo e um soldado para fechar o Supremo. Nas primeiras entrevistas que concedeu após a campanha, ele reafirmou temores, como fez com as ameaças à “Folha de S. Paulo”. Moro colocou a carreira e a reputação dele em um governo que terá integrantes que já fizeram ameaça à democracia e um presidente recordista em declarações ofensivas às minorias.
Não foi outra a razão, a não ser esses temores, do tom e dos votos da sessão de quarta-feira do STF, presidida pelo próprio decano, Celso de Mello. Por nove a zero os ministros condenaram a ação policial nas universidades contra manifestações políticas. Um a um, os ministros enumeraram os direitos e garantias individuais, o compromisso com a liberdade de expressão, com a pluralidade de pensamento em ambiente acadêmico, com o respeito à Constituição. A ministra Cármen Lucia, no seu voto, invocou Ulysses Guimarães: “traidor da Constituição é traidor da Pátria”. Foram tão cristalinos os recados que é impossível não entendê-los como aviso prévio ao presidente eleito de que precisa desembarcar de algumas convicções se quiser bem governar.
Na Lava-Jato há também dúvidas sobre a decisão. O procurador Deltan Dallagnol apoia. Ele explicou, em postagem no Facebook, numa avaliação pessoal, que a decisão conseguiria consolidar os avanços, porque o combate à corrupção e ao crime organizado precisaria agora de leis mais favoráveis, como as que foram apresentadas no pacote das 10 Medidas, que ele levou ao presidente.
De fato, a Lava-Jato avançou muito, mas foi barrada em vários lugares. A Força-Tarefa de Curitiba mandou documentos para o Brasil inteiro e só houve avanço no Rio. Há muito trabalho ainda a fazer, mas em outras varas que não necessariamente a 13ª. A dúvida é o que acontecerá quando a Polícia Federal estiver investigando casos de corrupção no governo Bolsonaro? Eles podem acontecer. Moro sempre defendeu a autonomia dos órgãos de controle e da própria Polícia Federal. Espera-se que continue a fazê-lo no cargo de ministro da Justiça.