Míriam Leitão

Míriam Leitão: Embraer, Boeing e os mitos do negócio

Mesmo depois de privatizada, a Embraer voou com a ajuda do Estado: só no BNDES foram US$ 22 bi para exportação e R$ 8 bi de outros financiamentos

É preciso derrubar os mitos que cercam a operação entre a Embraer e a Boeing. Não é uma parceria, ao contrário do que disseram os presidentes das duas empresas. Os negócios da Embraer vão se dissolver na nova empresa, quando ela for englobada por uma companhia muito maior. Não há outro caminho neste mercado de gigantes, mas é bom usar as definições certas. Mesmo depois de ser privatizada, a fabricante de aviões sempre voou com a ajuda do Estado, só do BNDES foram R$ 8 bilhões de financiamentos e mais US$ 22 bi de crédito à exportação.

Sobreviver produzindo aviões comerciais de médio porte num mercado cada vez mais concentrado em gigantes globais seria muito difícil, por isso a negociação faz todo o sentido. O que não convence são os eufemismos e os clichês de sempre do mundo corporativo.

“Essa aliança fortalecerá ambas as empresas e está alinhada com a nossa estratégia de crescimento sustentável de longo prazo”, disse o presidente da Embraer, Paulo Cesar de Souza e Silva, no comunicado após a informação de que o acordo havia sido feito, do ponto de vista das empresas, faltando apenas a aprovação do governo brasileiro.

Não é uma aliança, nem parceria. A Boeing está comprando a parte mais lucrativa da Embraer, através da criação dessa empresa na qual a brasileira será minoritária. Isso significa que a companhia está se desnacionalizando? Ela já era, na verdade. Seus maiores acionistas são, há muito tempo, dois fundos estrangeiros, um americano e outro inglês. A gigante Boeing passa a deter 80% do capital da empresa formada com os departamentos dos jatos comerciais. É comum as empresas, em casos assim, chamarem de fusão ou de parceria o que é na verdade uma compra.

A parte militar será uma firma à parte e que terá como carro-chefe, aliás avião chefe, o KC-390. Nela, a Embraer terá 51% do capital. Esse segmento representa apenas 20% do faturamento e tem como grande negócio a encomenda da própria Força Aérea Brasileira: 28 cargueiros ao valor de R$ 7,2 bilhões. A perspectiva de crescimento desse mercado de defesa é boa. A Embraer tem produto novo e o grande concorrente, a Lockheed, tem modelos já velhos. Como os militares estavam mais preocupados com esse segmento do mercado, os 51% do capital na mão da Embraer ajudaram a tranquilizar as Forças Armadas.

Havia uma dificuldade grande com o negócio da compra dos caças Gripen e com os sistemas de controle do espaço. A Embraer, apesar de ter sido privatizada em 1994, sempre esteve misturada ao Estado brasileiro. Ela desenvolveu o sistema de controle de espaço, o satélite SGDC, participou do submarino de propulsão nuclear da Marinha e do Sisfron. Um argumento apresentado pelo governo Temer é que nada disso poderia ficar submetido ao Congresso americano. Segundo o governo há “um núcleo duro intransferível” no setor de defesa. Além disso, o negócio com a Suécia inclui transferir tecnologia para o Brasil e para nenhum outro país.

A Embraer é sem dúvida um caso de sucesso. Mas o dinheiro estatal sempre a financiou de forma subsidiada pelo BNDES, antes e depois da privatização. Só nos últimos 15 anos, a empresa recebeu R$ 1,95 bilhão de financiamento tecnológico e mais R$ 6 bi para pré-embarque de exportações. Além disso, suas exportações também receberam US$ 22 bilhões de crédito, quando o recurso financia o comprador estrangeiro dos seus produtos.

Esse tema esteve em debate na campanha entre os que eram adversários e favoráveis à negociação. O maior adversário do negócio com a Boeing foi o candidato do PDT, Ciro Gomes, mas a privatização ocorreu quando Ciro era ministro da Fazenda. A venda propiciou a pulverização do capital de tal forma que hoje os maiores acionistas não são o BNDES ou a Previ, mas o fundo americano Brandes, com 14,4% da empresa, seguido pelo inglês Mondrian, com 9,9%. O BNDESPar tem apenas 5,4%, um pouco mais que outro estrangeiro, o Blackrock, com 5%. Há mais ações negociadas na Bolsa de Nova York do que na Bovespa.

O governo brasileiro ficou com a golden share, por isso ele está sendo consultado sobre a negociação entre as duas companhias. Muito provavelmente o governo vai concordar, tanto o atual quanto o próximo, porque o presidente eleito sempre falou favoravelmente, e os pedidos dos militares foram atendidos.


Míriam Leitão: Negar o passado como arma política

A negação do passado sempre foi arma política, e usada por qualquer campo, muito útil para esconder crimes de períodos autoritários

Nos últimos dias, ficou mais difícil a estratégia que tem sido usada pelo presidente eleito e seus apoiadores de negar o passado recente da história brasileira. Os 50 anos do AI-5 foram uma pauta obrigatória porque o Ato Institucional revirou a vida do país, impactou a imprensa, a produção cultural, levou à morte centenas de pessoas, e milhares à prisão e tortura. É fato marcante que completa meio século. Muitos contemporâneos permanecem vivos para contar como a história foi.

As frequentes declarações do presidente eleito, Jair Bolsonaro, de que não houve ditadura seguem um padrão conhecido. A negação sempre foi arma política e usada por qualquer campo, e muito útil para esconder os crimes de períodos autoritários. Lembrar as datas, por sua vez, é parte do conjunto de vacinas contra a repetição dos mesmos erros. Tentações autoritárias sempre espreitaram a democracia.

O brilhante advogado Técio Lins e Silva era um jovem concluindo o curso de Direito e não pôde colar grau. A festa foi impedida pelo AI-5, que fechou o Teatro Municipal. Qual o problema de uma turma da icônica Faculdade Nacional de Direito fazer seu congraçamento? Qual o risco que representa o histórico Teatro Municipal? O Ato Institucional espalhou abusos e irracionalidades.

Em um artigo escrito recentemente, ainda não publicado, a escritora Heloisa Starling busca Hannah Arendt e o livro “As origens do totalitarismo” para lembrar como a negação da verdade é arma conhecida. “A mentira, diz Arendt, consiste em negar, reescrever e alterar fatos, até mesmo diante dos próprios olhos daqueles que testemunharam esses mesmos fatos”, escreveu Heloisa.

Então não há inocência nas declarações sequenciais dadas pelo presidente eleito e seu grupo. “Não houve ‘ditadura militar’ no Brasil! Mentiram para você, jovem!”, escreveu Bolsonaro em um twitter. Em entrevistas: “Foi uma intervenção democrática”, “o povo brasileiro não sabe o que é ditadura ainda”. São abundantes, frequentes, disseminadas.

Os dados e os fatos também são abundantes. A imprensa trouxe algumas estatísticas nos últimos dias. O “Estado de S. Paulo” contou que foram 950 peças de teatro censuradas, 500 filmes, 500 letras de música. E se quiserem mais números, houve 400 mortos, 20 mil torturados, 7.000 exilados. O Congresso foi fechado duas vezes após o Ato.

Há o cotidiano daquele tempo que foi o mais duro dentro da ditadura, a década da vigência do AI-5. Quem conta é Técio:

— Qualquer pessoa que tenha um mínimo de conhecimento da vida sabe o que é não ter habeas corpus. Impedir que o advogado possa se valer desse instrumento extraordinário para conter a violência e o abuso de poder. A primeira coisa que o AI-5 fez foi suspendê-lo, e tínhamos que ser advogados na Justiça Militar sem habeas corpus. Quando ouvíamos de uma autoridade militar que aquele preso era um ‘perigoso subversivo’ já era um salvo-conduto para a vida, porque quando diziam ‘não tem ninguém aqui com esse nome’, aí as coisas eram muito duras, porque era sintoma de que aquela pessoa corria risco de desaparecer.

Rubens Paiva desapareceu no dia 20 de janeiro de 1971. Sem acusação formada, sem militância, o empresário e ex-deputado foi preso pela Aeronáutica, entregue depois ao Batalhão da Polícia do Exército na rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Nunca mais foi visto. Sua mulher Euníce Paiva começa então um doloroso, longo e impressionante processo de superação. Ela, uma dona de casa com cinco filhos, sem qualquer envolvimento político, ao sair da prisão, onde esteve por alguns dias, inicia uma luta em várias frentes. Cria sozinha os cinco filhos, volta à Universidade, faz Direito, integra-se à luta das famílias de desaparecidos políticos, vira uma das líderes do movimento da Anistia e das Diretas. Eunice morreu na quinta-feira, 13 de dezembro, no dia em que o AI-5 fazia 50 anos, numa coincidência simbólica.

Para a direita brasileira seria mais inteligente governar defendendo valores democráticos e implantando políticas públicas nas quais acredita. Mas a direita que chega ao poder prefere defender o indefensável daquele regime e, assim, se misturar ao pior dele. A negação do passado sempre foi arma política. O difícil é entender com que objetivo é usada agora e que vantagem traz para o governo Bolsonaro.


Míriam Leitão: Tensão no mundo complica cenário

Guerra comercial, Brexit, desaceleração na China e crise fiscal na Itália são pontos de incerteza para a economia mundial em 2019

A aposta de que o real se valorizaria com a eleição de Bolsonaro não se concretizou. Desde as eleições, o dólar subiu 7%, com um salto de R$ 3,63 para R$ 3,90. Abriu o ano em R$ 3,26. O futuro governo tem sido contraditório sobre a Previdência. Se não houver a reforma em curto prazo, haverá alta do dólar e dos juros. Mas essa elevação que houve agora tem explicações que vêm de fora: o ano de 2019 deve ser um ponto de inflexão, com menos crescimento do PIB mundial, menos comércio entre os países e vários focos de incerteza.

Esse é o pano de fundo no qual o governo Bolsonaro definirá sua política econômica, quando o mundo já tem pontos de estresse. Três eventos têm causado preocupação entre investidores. A guerra comercial entre Estados Unidos e China, o Brexit, ou a saída da Inglaterra da União Europeia, e o risco de um calote do governo italiano, a terceira maior economia da zona do euro e megaendividada. Há sustos frequentes, sucedidos por momentos de otimismo. Esta semana, a premier britânica, Theresa May, conseguiu um voto de confiança do Parlamento, mas não tem ainda um plano claro para a saída do bloco.

A pedido da Câmara dos Comuns, o Bank of England produziu um estudo sobre os efeitos do Brexit e a mensagem é clara: a economia inglesa vai perder competitividade, haverá aumento de inflação, desvalorização da libra e retração do PIB. A intensidade do impacto vai depender de como o processo será conduzido e em que velocidade. No pior cenário, o PIB inglês, em 2023, pode estar 10% abaixo de ponto em que estaria se não tivesse votado o Brexit em 2016. O desemprego pode saltar rapidamente de 4% para 7,5%, e a inflação, de 2% para 6,5%.

“A saída da União Europeia já está tendo consequências para a economia. A produtividade desacelerou, a libra perdeu valor, e o aumento da inflação corroeu ganhos reais de salários”, afirmou o banco central inglês.

Por isso, a ameaça de uma saída não negociada coloca os mercados financeiros em modo de alerta, com aumento da aversão ao risco. O Brasil é afetado porque, quando tudo o mais é incerto, os investidores buscam refúgio em economias com menos problemas. A Europa também é fonte de outras causas de preocupação. A Itália, há poucos meses, encaminhou ao Parlamento um orçamento com previsão de déficit de 2,4% do PIB para o ano que vem. Esta semana, melhorou o número para 2%. A ameaça de crise fiscal na zona do euro voltou a assustar, porque os italianos tem dívidas que correspondem a 130% do seu PIB e sua economia é 10 vezes maior do que a da Grécia. O país é a terceira maior economia do bloco, atrás apenas de Alemanha e França, e o Banco Central Europeu teria muito mais dificuldades para conter uma crise com o epicentro na Itália.

Há ainda um outro motivo de atenção global, explica David Beker, chefe de economia e estratégia do Bank of America no Brasil. A China está desacelerando e há receios de que o PIB cresça menos do que 6% no ano que vem. Ontem mesmo, dados da indústria e do comércio vieram abaixo do esperado.

— Olhando para 2019, chamaria atenção para a China, que deve desacelerar de 6,6% para 6,1%. É uma redução mais robusta da taxa, com incerteza grande para as commodities. Vai ser um ano volátil, com guerra comercial, Brexit, e governo Trump em gridlock, ou seja, perdendo a Câmara para os democratas e tendo mais dificuldade de implementar a sua agenda — explicou Beker.

Apesar da trégua recente entre EUA e China, o comércio internacional deve desacelerar em 2019 e isso vai afetar o PIB mundial. O diretor-executivo da International Chamber of Commerce, Gabriel Petrus, lembra que haverá eleições na Alemanha e que o presidente francês, Emmanuel Macron, está perdendo popularidade com os protestos dos coletes amarelos:

— Já temos Trump com uma agenda anticomércio mundial. Há o Brexit. Agora temos Macron mais fraco e eleições na Alemanha sem a participação de Merkel. O receio é que se fortaleçam líderes nessas duas economias que preguem contra o comércio mundial.

Aqui no Brasil, um grande banqueiro, ouvido esta semana, disse que está otimista em relação à capacidade de o economista Paulo Guedes aprovar reformas, principalmente a da Previdência. Mas se em três meses o cenário for de não aprovação, o dólar e os juros podem disparar. O novo ministro sabe que tem pouco tempo, prepara-se para dar sinais claros logo após a posse. Se não conseguir, o cenário global tornará o custo muito maior.


Míriam Leitão: Novo governo quer fugir da CLT

O futuro governo está elaborando uma proposta de novo regime trabalhista, fora da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ele seria apresentado como uma forma de contrato no qual só estarão garantidos os direitos constitucionais previstos no artigo 7º da Constituição, mas em que todos os outros itens serão negociados entre trabalhadores e empregadores.

Durante a campanha, o programa do PSL falava em “carteira verde e amarela”, mas sem entrar em detalhes. A ideia com a qual trabalham agora é a de oferecer uma nova forma de contrato que seria negociado diretamente entre as duas partes. Isso seria uma opção à CLT.

Foi isso que levou o presidente eleito, Jair Bolsonaro, a falar na quarta-feira em reunião com partidos políticos: “A legislação trabalhista, no que for possível, eu sei que está engessada no artigo 7º, mas ela precisa se aproximar da informalidade”. O artigo 7º garante o 13º salário, férias, seguro-desemprego, entre outros direitos.

A preocupação do governo com o mercado de trabalho é legítima. Esse é um grande problema. A dúvida é se esse é o remédio certo na atual conjuntura de extrema fragilidade dos trabalhadores. Apesar de o país ter superado a recessão, o emprego ainda não reagiu, e sob todos os aspectos a situação é preocupante. O número de desempregados é elevado, 12,3 milhões em outubro, último dado divulgado pela Pnad do IBGE. O ritmo de melhora é muito lento. Em relação ao mesmo período de 2017, a queda nesse indicador foi de apenas 400 mil.

O país até tem criado vagas. Nesse período de um ano — novembro de 2017 a outubro de 2018 — a população ocupada aumentou em 1,2 milhão de brasileiros. Mas o emprego é de baixa qualidade, em geral informal ou por conta própria. Pelo Caged, ou seja, o registro no Ministério do Trabalho dos que são demitidos e contratados com carteira, houve um aumento de 790 mil postos de janeiro a outubro, mas isso é pequeno para o mar de desempregados.

E há também um outro grupo de pessoas sem trabalho. Gente que nem procura porque não tem esperança de conseguir vaga agora e por isso sai do índice. A dimensão desse problema é captada na estatística de desemprego por desalento. São 4,7 milhões e saltaram 10% em um ano. Em uma crise desse tamanho, a liberdade de negociação dos termos do contrato é nenhuma. Ou seja, o empregador imporá suas condições. O presidente eleito falou em aumentar a informalidade. A expressão assusta porque a ideia é que haja uma redução da informalidade, até porque o trabalhador, nesse caso, não contribui para a Previdência. Além disso, o que o separa do trabalho precário é, algumas vezes, muito pouco.

O que os especialistas dizem, com razão, é que economias que têm regras mais flexíveis de contratação têm taxas de desempregos menores e se recuperam mais agilmente das crises. Isso se pôde ver após a crise financeira de 2008 que levou a um aumento do desemprego no mundo todo. Nos Estados Unidos, a recuperação do mercado de trabalho foi mais rápida e mais forte do que na Europa. E, dentro da Europa, o desemprego é menor na Alemanha, que já fez reformas trabalhistas, do que na França, que é mais refratária à mudança.

Não está detalhada ainda a proposta, mas a ideia é ter os dois tipos de contrato no mercado de trabalho: o da CLT e o do novo regime que seguirá as obrigações constitucionais que, aliás, são muitas e bem detalhadas. Décimo terceiro, férias, FGTS, adicional noturno, seguro-desemprego, irredutibilidade do salário, não discriminação por gênero, licenças maternidade e paternidade, reconhecimento da convenção coletiva, entre outros. Há muito a explicar, contudo. Nesse novo regime não valerá a CLT. É um aprofundamento da reforma de Temer que já admite que o negociado prevaleça sobre o legislado.

Outro grande problema do governo Bolsonaro será quantas mudanças urgentes ele tentará fazer no começo do seu mandato para aproveitar o momento da lua de mel. Ontem, o Ibope trouxe bons números para o futuro presidente. Como é normal, no período pós-eleitoral e antes da posse, a confiança é elevada e 75% acreditam que ele e sua equipe estão no caminho certo. Ao tomar posse, terá que escolher suas reformas, e a primeira da fila deveria ser a da Previdência.

(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)


Míriam Leitão: Falta clareza no caso Queiroz

O país aprendeu nos últimos anos, em ações memoráveis como as do então juiz Moro, a exigir explicações claras dos agentes públicos

Quando juiz, o futuro ministro Sérgio Moro costumava usar expressões definidoras e claras. Uma delas, a “cegueira deliberada”, que consiste em não ver o que está evidente pelos indícios. A família do presidente eleito e a equipe que estará no poder a partir de janeiro parecem estar se abrigando nela quando dão respostas vagas para o caso do ex-assessor do deputado estadual, e senador eleito, Flávio Bolsonaro. Os depósitos e saques sequenciais em sua conta lembram um padrão que ficou conhecido durante a Lava-Jato.

Fabrício de Queiroz é chamado de ex-assessor porque se exonerou em outubro, mas circula próximo à família Bolsonaro há muito tempo. Tem antigas e sólidas relações. O valor que movimentou em um ano, R$ 1,2 milhão, está acima de suas posses. A maneira como os depósitos e saques foram feitos parece seguir um padrão que sempre foi entendido pelos investigadores da LavaJato como indício de lavagem de dinheiro. Por isso é tão importante que se mostre a origem dos recursos. A coincidência de depósitos de servidores na conta de Queiroz nos dias do pagamento na Assembleia Legislativa, onde o deputado, agora senador eleito, tinha seu gabinete, lembra muito os pagamentos de pedágios feitos por funcionários dos políticos. Os saques em quantias picadas, em agências diferentes do mesmo banco, no mesmo dia, também remetem a esquemas em que o dinheiro passava por contas para ser lavado e usado para o pagamento de despesas. Pode ser pura coincidência, mas, tantas investigações depois, é mais difícil acreditar no acaso.

O dinheiro que entrou na conta de Michele Bolsonaro foi justificado pelo presidente eleito como pagamento de um empréstimo. Isso indica que Queiroz era mesmo próximo da família Bolsonaro, dado que recebeu empréstimos — que chegaram ao todo a R$ 40 mil, como já adiantou-se o presidente —sem quaisquer documentos que resguardassem o credor e que informassem às autoridades.

Se os investigadores do Ministério Público estadual seguirem o mesmo padrão dos seus colegas do MP Federal passarão a trabalhar com a hipótese de que isso é a ponta de outros ilícitos. Até porque tudo se repete com uma precisão milimétrica, como o sumiço do assessor e de toda a sua família. Uma das filhas, Evelyn, ainda trabalha no gabinete do deputado Flávio. Aliás, quatro pessoas da família já estiveram empregadas no mesmo gabinete, exibindo a intensidade dos laços de família com o sargento da PM.

As idas e vindas das reações ao caso no novo governo também não favorecem o esclarecimento. O futuro ministro da Justiça Sérgio Moro primeiro escolheu o silêncio, depois admitiu que era preciso explicar, apesar de ter se convencido de que houve um empréstimo. “O senhor presidente eleito já esclareceu a parte que lhe cabe do episódio”. Para Moro, outros devem explicações, principalmente “o senhor Queiroz”. O futuro ministro da Casa Civil, Oxyx Lorenzoni, irritou-se com a imprensa —“não tem a menor relevância sua pergunta”— depois quis saber o salário do jornalista, acusou o Coaf de não ter tido o mesmo comportamento em outros casos, o que não é verdade. Dias depois, mais calmo, admitiu que tudo precisa de investigação.

O senador eleito Flávio Bolsonaro afirmou que procurou o ex-assessor para cobrar explicações e se convenceu:

— Ele me relatou uma história bastante plausível e me garantiu que não há nenhuma ilegalidade.

A dúvida que resta é porque uma história plausível e sem ilegalidade ainda não foi explicada para o conforto do público em geral. O Brasil é um país politraumatizado neste assunto e que aprendeu a desconfiar de transações que fogem ao costumeiro.

—Todos nós já sabíamos que entrar nessa, numa situação em que incomodamos tanta gente, nós viraríamos alvo. E assim é que tem que ser, as pessoas que estão mais expostas na vida pública têm que ser cobradas —disse Flávio Bolsonaro.

A parte final da frase salva o meio. As dúvidas sobre a movimentação bancária de seu ex-assessor não acontecem porque ele incomoda “tanta gente”, mas porque “as pessoas que estão mais expostas na vida pública têm que ser cobradas”. O país aprendeu nos últimos anos, em sentenças memoráveis como as do juiz Sérgio Moro, a preferir explicações claras. E elas ainda estão fazendo falta neste caso.


Míriam Leitão: O que não é direito nem nunca será

Após nomeação de ministros, três áreas correm grande risco de retrocesso no governo Bolsonaro: questão indígena, meio ambiente e relações exteriores

O governo Bolsonaro pegou caminhos errados que podem levar o Brasil a perigosos retrocessos. A Funai vai ser entregue a uma ministra que acredita que a religião deve comandar as ações do Estado. Isso é tão perigoso quanto entregar para a Agricultura. O ministro do Meio Ambiente acha que o país não deveria gastar dinheiro enviando cientistas para as Conferências do Clima. O ministro das Relações Exteriores montou uma equipe de transição sem as mínimas qualificações para isso.

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, venceu a eleição defendendo posições de direita para todas as questões que envolvem meio ambiente, direitos humanos e a questão indígena. É natural que faça suas escolhas. Como é natural que os analistas alertem para os riscos que certas decisões radicais podem representar.

Nas primeiras entrevistas concedidas pelo futuro ministro Ricardo Salles, ele disse que há uma discussão acadêmica sobre se a razão do aquecimento global é geológica ou provocada pela ação humana. Não há mais. Isso foi superado. Hoje há um consenso científico internacional de que a causa geológica existe, mas leva milhões de anos, e o que está havendo é que, pela ação humana, esse processo está se acelerando perigosamente. Salles acha que esse é um assunto abstrato. Errado. Ele é concreto. O risco é de elevação do nível do mar, ondas de calor ou de frios extremos, desequilíbrios fatais.

Ricardo Salles disse que fez um bom trabalho em São Paulo, acabando com lixões e aumentando a proteção de nascentes. Isso é ótimo. Mas a visão que ele demonstra ter das negociações internacionais contra o clima são espantosamente equivocadas.

Ele acha que as metas de redução do desmatamento foram imposição internacional que restringe aos brasileiros o uso do território e que isso afeta a soberania. Foi o Brasil que ofereceu essas metas, dentro do esforço internacional. Ele criticou o fato de que há restrições ao uso da totalidade da terra de uma propriedade privada. Sim, há. E isso é lei brasileira, são as reservas legais com percentuais para cada bioma.

Ele critica a participação brasileira nas negociações do clima, dizendo que “nós estamos vendo funcionários viajando para tudo quanto é conferência do clima”. Esse esforço nasceu no Brasil na Rio 92 e será um erro monstruoso se o Brasil abrir mão do seu protagonismo nessa área e se isolar.

O futuro ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, também tem defendido o isolamento, como acabou de fazer com o Pacto Global de Migração. Ernesto Araújo nem demonstra ter autonomia na área. No Itamaraty, em reunião, disse que o país continuaria a ser sede da COP-25. Depois, avisou que tinha recebido ordens no sentido contrário. Mas seu pior erro está na equipe de transição que proporá uma reforma do Itamaraty. Seria como chamar a baixa oficialidade para reformar o Exército.

De todos os riscos, talvez o pior tenha sido o de entregar a questão indígena nas mãos da ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, que acredita que a Igreja precisa governar o Brasil. Ela pode ter a fé que quiser, mas se tem uma visão de que “chegou a hora de a Igreja governar”, como informou Bernardo Mello Franco em sua coluna, reportando uma fala da pastora em 2016, passa a ser preocupante. E ela tem a ideia de que essa é uma missão divina. “Se a gente não ocupar o espaço, Deus vai cobrar.”

Há duas formas de ameaçar a cultura indígena, uma é a ocupação da sua terra, outra é a invasão de seu conjunto de crenças e valores. Desde os Jesuítas esse tem sido o conflito. Se alguém tem uma visão messiânica sobre o seu papel no contato com os indígenas não pode ocupar um posto tão estratégico. A ministra disse que saberá separar. Saberá? Suas palavras até o momento indicam o contrário. Quando ela diz que adoraria ficar em casa enquanto seu marido rala para lhe dar joias, ela não chega a ameaçar as mulheres com isso. Essa e outras exóticas declarações da ministra sobre o papel da mulher mostram que ela não viu sequer o século XX passar. Mas as mulheres continuarão avançando em todos os campos. Se achar que as religiões precisam ocupar as tribos será o começo do fim para muitas culturas.

Há posições de direita sobre vários assuntos e isso é tão natural quanto ter posições de esquerda. Mas há o atraso, o obscurantismo, o isolacionismo. O risco é que estejamos tomando essas trilhas.


Míriam Leitão: Tarefas difíceis na economia

Equipe econômica do futuro governo ainda trabalha com a ideia de aprovar a reforma da Previdência que já está em tramitação no Congresso

O presidente Jair Bolsonaro, diplomado ontem, terá de enfrentar batalhas duras na economia. A primeira delas será a reforma da Previdência. O futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu várias vezes, mesmo antes de integrar a campanha de Bolsonaro, que o Congresso aprovasse a proposta do presidente Temer. E continuou repetindo que era melhor aproveitar o texto que já está em tramitação. É com essa ideia que ainda se trabalha na equipe econômica do novo governo. Mas não será só isso.

Ao mesmo tempo, o futuro governo prepara outra reforma mais ampla e com transição para o regime de capitalização. A ideia não é aprovar só a idade mínima num primeiro momento e, depois, ir votando aos poucos os novos parâmetros. Há entendimento de que isso levaria ao risco de uma contrarreforma. O que se defende é que a atual proposta seja apenas o começo de uma mudança mais profunda do sistema de pensões e aposentadorias do país.

Ainda não se sabe qual será o custo desta transição de um regime da repartição, como é atualmente, para o de capitalização, que é o que será sustentável no futuro. No estudo feito pelo economista Armínio Fraga, entraria em vigor apenas para os que nasceram a partir de 2014. No futuro governo, há quem defenda que esteja disponível bem antes.

Paulo Guedes, durante a campanha, usou a expressão de “avião em queda” para explicar o que pensava sobre o atual sistema. A reforma proposta pelo atual governo serviria apenas para retardar a queda. Ou seja, ela precisa se sustentar até que uma nova previdência, de contas individuais, esteja disponível. O desafio será evitar que o avião fique sem combustível mais cedo, porque a capitalização fará com que os que entrarem no mercado de trabalho a partir do início do novo modelo deixem de contribuir para o regime de repartição.

Se quiser uma mudança rápida para a capitalização, o futuro governo terá que conseguir outra fonte de financiamento para a Previdência. E isso encomenda mudanças na área tributária. Nada fica em pé, contudo, se não houver a aprovação da primeira das reformas, a que já está no Congresso e que cumpriu etapas importantes de tramitação. Durante a primeira fase da transição foram feitas declarações conflitantes sobre o assunto tanto pelo presidente eleito quanto pelo futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. Mas na equipe que trabalha preparando o novo governo há diversos estudos sendo feitos. Eles convergem para uma estratégia em vários passos. Algumas mudanças infralegais poderão ser feitas num primeiro momento, até que o novo Congresso tome posse. A reforma do atual governo deve ser aproveitada e uma mudança mais ampla está sendo formulada.

Tudo dependerá, contudo, da capacidade de articulação no Congresso, porque todas as tarefas que precisam ser cumpridas na economia são difíceis. O teto cria um limitador para as despesas que a qualquer momento pode ser estourado. E o que se fará neste caso? Se a futura equipe econômica aceitar simplesmente ampliar o teto estará perdendo credibilidade.

Mas, para não ampliar o teto, terá que reduzir despesas. Isso é impossível num país com tanta rigidez orçamentária. Por isso, a proposta que tem sido defendida por integrantes do futuro governo — inclusive o vice-presidente, Hamilton Mourão, na entrevista que me concedeu na semana passada — é a de buscar mais flexibilidade no Orçamento.

Apesar de isso dar mais autoridade ao Congresso, que passaria pela primeira vez a formular a destinação dos recursos, haverá uma forte oposição ao que se convencionou chamar de “Orçamento base zero”. O problema é que, se as despesas permanecerem indexadas, o desequilíbrio aumentará. Além disso, outra urgência espera o novo governo na área econômica: a crise fiscal dos estados e municípios.

Paulo Guedes sempre defendeu a descentralização de recursos, por isso, quando ele falou recentemente em dividir parte da arrecadação do leilão das áreas da cessão onerosa do pré-sal era a essa ideia que se referia. Só que isso foi visto dentro da atual equipe econômica como um risco de estimular gastos em vez de sinalizar para a necessidade de ajuste. Além de não haver tarefas fáceis na economia, uma mudança levará à outra. Por isso a prioridade terá que ser a sucessão de reformas. Ou isso, ou a economia continuará em crise.


Míriam Leitão: A negação do progresso

É irracional negar a agenda ambiental e climática porque ela na realidade interessa ao futuro do desenvolvimento no país

O mundo passou os últimos dias discutindo o futuro do clima na Polônia, enquanto aqui, o que o novo governo fez foi recusar ser a sede da próxima COP e emitir algumas opiniões discutíveis sobre o tema. Será irracional desprezar a agenda ambiental e climática. O país só tem a ganhar se seguir as metas do Acordo de Paris e fortalecer os objetivos de desenvolvimento sustentável. E isso olhando objetivamente, e sem qualquer paixão, os nossos próprios interesses. O Brasil é uma potência ambiental e nessa área sua voz tem sido ouvida porque é o primeiro país na lista dos 18 megadiversos que controlam 70% da biodiversidade do planeta. A preocupação climática tem mudado a nossa matriz energética e pode reduzir a poluição do ar que hoje mata milhares de pessoas nas grandes cidades.

Os primeiros sinais do governo Bolsonaro nesta área são de negação da ciência climática e da ordem do progresso no século 21. Hoje se cresce de outra forma. A lista de medidas que o Brasil precisa seguir pelo Acordo de Paris só fará bem. A primeira é combater o desmatamento. O que o Brasil ganhou no ano passado quando destruiu uma área maior do que o Distrito Federal de Floresta Amazônica? Foram postos abaixo 7.900 km² de floresta. A destruição do patrimônio coletivo é predatória porque é conduzida em grande parte por grileiros que ocupam terra pública sem nada pagar. Uma “privatização” sem lei e sem benefício para os brasileiros. A grilagem costuma estar vinculada a crimes como trabalho escravo e lavagem de dinheiro.

A segunda medida é combater a poluição do ar nos transportes e na produção de energia. Estimulado por esse objetivo, o Brasil avançou muito na geração eólica e solar. Atraiu investimentos, principalmente para o Nordeste. Eu visitei no ano passado, para a série História do Futuro da GloboNews, parques eólicos no Rio Grande do Norte, estado com o maior potencial da energia dos ventos. Do ponto de vista microeconômico, o arrendamento das terras dos pequenos produtores locais, para a instalação de torres, deu a eles renda extra, e não prejudicou a produção. Do ponto de vista macro, a região Nordeste só não teve apagão nos últimos anos, com a crise no setor e a seca prolongada, porque a energia eólica chegou a fornecer mais da metade do consumo. A energia solar tem crescido de forma incessante. A empresa norueguesa Equinor instalou em Quixeré, no Ceará, a sua primeira usina fotovoltaica no mundo. A gigante britânica BP acaba de anunciou a sua entrada em projetos de energia solar no Brasil, por meio de sua subsidiária Lightsource. Esse caminho, além de produzir energia de baixa emissão aumenta a segurança energética do país. Visitei usinas solares até em Santa Catarina, lugar de sol mais fraco e projetos promissores na UFSC. Virar as costas para o nosso potencial nessas duas fontes seria uma insensatez.

Mesmo quem é cético em relação ao aquecimento global terá de concordar que diminuir a poluição nas grandes cidades só fará bem à saúde de brasileiros. Morrem milhares de pessoas por ano pela poluição do ar. Quem duvida pode ouvir o professor Paulo Saldiva, da USP, o maior estudioso brasileiro neste assunto. Ficará estarrecido com os números. Reduzir o uso de energia fóssil nos veículos levará à diminuição dos gastos de saúde.

As metas firmadas pelo Brasil no Acordo de Paris foram escolhidas pelo próprio país e não foram imposição externa para impedir nosso progresso. Os relatórios da ONU sobre Mudanças Climáticas são feitos por milhares de cientistas do mundo inteiro, inclusive alguns dos melhores do Brasil, que se reúnem anualmente desde 1988. Mesmo quem negue a mudança climática haverá de concordar que evitar a exploração predatória dos ativos florestais, aumentar a produção de outras fontes de energia, diminuir a poluição do ar nas grandes cidades trará efeitos benéficos.

A agenda climática nos leva também, nesse círculo virtuoso, a proteger os rios e reduzir o desperdício no uso da água. É lógico que esse problema precisa ser enfrentado. O Brasil vive em várias cidades, inclusive na maior delas, crises de desabastecimento. Quem mora em Brasília convive nos últimos anos com racionamento de água. Essa mesma agenda terá de nos levar também às obras no saneamento que elevarão o grau de progresso do Brasil. No fundo, é disso que está se falando: do desenvolvimento do país.


Míriam Leitão: Ministério de alta voltagem

Almirante enfrentará mar agitado no Ministério de Minas e Energia, com urgências na Eletrobras, no mercado de gás natural e em Itaipu

É enorme a lista de urgências que chegará à mesa do novo ministro das Minas e Energia. A Amazonas Distribuidora, subsidiária da Eletrobras, pode ser liquidada e não se sabe quem forneceria energia para a região. A Eletrobras não tem dinheiro em caixa para quitar uma dívida de US$ 1 bilhão que vencerá em pouco tempo e um calote externo seria devastador para a estatal. O contrato de fornecimento de gás com a Bolívia vence em 2019, e a indústria teme a redução da oferta e o aumento de preços. Antes do fim do mandato terá que ser feita uma negociação com o Paraguai sobre Itaipu, cujo contrato termina em 2023.

Em entrevista à “Folha de S. Paulo” o almirante Bento Costa Lima Leite, futuro ministro das Minas e Energia, disse que a primeira prioridade será a governança do ministério. “Ele é enorme, cada vez que olho o organograma fico mais impressionado.” Pois é. Só da área de energia a lista do que fazer é gigante. O desafio será devolver a estabilidade do setor que enfrenta ainda os efeitos de uma intervenção desastrada no governo Dilma, que deixou uma série de passivos não totalmente resolvidos.

Na Justiça, as geradoras mantêm liminares para não pagar dívidas bilionárias que contraíram no mercado livre. Alegam que houve erro gerencial no despacho das hidrelétricas e querem dividir a conta com os consumidores.

Hoje todo mundo tem uma queixa, e o consumidor enfrentou uma disparada de preços impressionante por causa dos problemas criados pela MP 579. As empresas de energia sempre foram vistas como ativos de proteção para os portfólios da bolsa, mas desde 2012 isso mudou. Ainda hoje, elas não se recuperaram dos efeitos da MP, e o setor acumula passivos e brigas judiciais bilionárias. A Eletrobras superou o pior momento, mas é real o risco de calote no ano que vem. O presidente eleito Jair Bolsonaro não concorda com a venda da Eletrobras. A empresa melhorou nos últimos dois anos, mas ainda tem sérios desequilíbrios. Custará caro não privatizar.

Bento Costa Lima Leite, atual diretor-geral de Desenvolvimento Nuclear e Tecnológico da Marinha, defende a energia nuclear. Um assunto explosivo é Angra 3. A obra já custou R$ 15 bilhões e precisaria de mais R$ 10 bi a R$ 15 bi para ser finalizada. A preocupação dos maiores consumidores é de que essa energia fique cara demais, explica o presidente da Abrace (Associação Brasileira dos Grande Consumidores de Energia), Edvaldo Santana. O brasileiro já vem sofrendo com o aumento das contas de luz. Para se ter uma ideia, de janeiro a outubro deste ano, a energia elétrica residencial subiu 15% até outubro.

— Com o custo que se quer repassar para o consumidor, não vale a pena terminar. A tarifa de Angra 3 sairia de R$ 243 para R$ 500. Vamos pagar duas usinas para ter apenas uma — disse Edvaldo.

Até quem defende a conclusão da obra, enxerga dificuldades, como o presidente da consultoria Thymus Energia, João Carlos Mello.

— O governo deveria dar baixa contábil, assimilar o prejuízo e montar outro projeto. Poderia colocar a iniciativa privada, mas estamos falando de energia nuclear. O setor privado poderia pelo menos conduzir a obra, para depois a usina ser operada pela Eletrobras — afirmou Mello.

Outro ponto de preocupação, para o médio prazo, é o vencimento do contrato com o Paraguai para a usina de Itaipu, em 2023, um ano depois do fim deste mandato. O Paraguai é obrigado a vender para o Brasil 100% da sua energia não consumida, para arcar com empréstimos pagos pelo governo brasileiro na construção da usina. Esse fornecimento é crucial para a região Sudeste, mas os paraguaios estarão livres para vender para quem quiserem. O assunto terá que ser negociado com antecedência, portanto, pelo governo Bolsonaro.

O país não poderá crescer se não superar os gargalos do setor. Ele poderá ser tanto uma alavanca quanto um inibidor para o crescimento. Por não ser da área, o nome de Bento Costa Lima Leite é uma forma de se livrar dos vícios da longa influência do PMDB sobre a pasta e enfrentar os lobbies da área. Por outro lado, o ministro terá pouco tempo para aprender as muitas complexidades antes de decidir sobre as urgências. O almirante terá que pôr logo seu navio nesse mar de problemas que virou o setor elétrico brasileiro.


Míriam Leitão:Ideias e papel do vice-presidente

Mourão defende pragmatismo na política externa, desvinculação do Orçamento, arrendamento de terra indígena apenas fora da Amazônia

O vice-presidente eleito, Hamilton Mourão, defendeu com entusiasmo a ideia de desengessar o Orçamento, proposta pelo futuro ministro Paulo Guedes, e afirmou que isso dará “mais poderes ao Congresso”. Ele explica que a reforma da Previdência deve ser ampla, porém com uma implementação por etapas. Sobre relações internacionais, ele resgata a expressão “pragmatismo responsável” e diz que temos que ter relações de global partners (parceiros globais) tanto com a China quanto com os Estados Unidos, mas esclarece: “Tenho muita admiração pela democracia americana. Tenho identificação com os valores deles.”

Em uma longa conversa ontem em seu gabinete, no grupo de transição, o vice-presidente ainda falava um pouco anasalado, resultado de uma sinusite que o afetou nos últimos dias. Perguntei se não estaria havendo muita bateção de cabeça na equipe do futuro governo e ele disse que isso é natural em qualquer administração que está se instalando.

Sobre seu papel no governo, disse que será o mesmo de qualquer vice-presidente:

—Esto uaqui para substituir o presidente, por isso acompanharei todos os assuntos de governo, pensarei em soluções, para estar preparado caso o presidente me chame para conversar.

O fatiamento da reforma da Previdência, ele explica de outra forma. Diz que seria uma reforma ampla, com implementação por etapas, começando pela idade mínima. A mudança para o regime de capitalização teria que ser num tempo futuro. Perguntei sobre a previdência dos militares:

—Estudei o assunto e formulei uma proposta, tempos atrás. Amplia-se o tempo de serviço para 35 anos e a pensionista que hoje não contribui passa a contribuir. A mudança que foi feita em 2000 já acabou com algumas vantagens.

Diz que atualmente já não há mais promoção quando sevai para a reserva eque quem pede baixa ganha proventos proporcionais ao tempo trabalhado.

Hamilton Mourão acha que o melhor lugar para a Funai é ficar onde está, no Ministério da Justiça, e defende a ideia de que os índios possam arrendar suas terras, desde que não seja em área sensível:

—Não pode ser na Amazônia, por exemplo, mas nem todos os índios estão na floresta.
Explicou que um projeto sobre isso seria cuidadoso e estabeleceria as áreas onde seria possível o arrendamento para não aumentar o desmatamento:

—Mas hoje já existe, só que não está regularizado. Pensamos em coisas como, ao fim do arrendamento, os equipamentos seriam dos índios.

Segundo ele, há duas formas devera Amazônia, e ele demonstrou discordar da primeira:

—Como uma área que deve permanecer como um zoológico do mundo, ou os que advogam uma exploração sustentável. Temos também que defender nos fóruns internacionais que se pague pela preservação da Amazônia, pelo oxigênio, serviços ambientais—diz o general Mourão, que não se diz favorável às a ída do Acordo de Paris.

Na economia, é entusiasta da ideia do futuro ministro da Economia de desvincular as receitas que têm destinação certa. Acha que como está fica inviável, e o Congresso briga por parcela cada vez menor sobre a qual pode dispor:

— É preciso dar ao Congresso poderes de formular o Orçamento. Os parlamentares teriam um ano produtivo fazendo de fato o Orçamento a ser cumprido pelo Executivo. Isso fortaleceria o Congresso.

De fato, o caminho tem que ser reduzir o engessamento, mas isso é muito difícil de fazer. Cada área temerá o risco de perder financiamento.

Sobre política externa, o vice-presidente defendeu que não haja alinhamento automático com os Estados Unidos, apesar de ser boa e natural a proximidade entre os dois países. Não é pelo presidente Trump, disse, argumentando que “governos são passageiros”, mas pelos valores comuns:

—Na minha opinião, a diplomacia não pode ser irresponsável como foi nos governos do PT. Tem que ser o pragmatismo responsável —disse, resgatando um termo que definiu a política externa dos últimos dois governos militares e que foi mantida por vários governos civis.

Na área de energia, o vice-presidente disse que se o país quiser crescer não haverá energia. Por isso acha que é preciso estimular o crescimento das fontes solar, eólica e gás natural. Acha que se pode pensar em nuclear, que as usinas hidrelétricas na Amazônia devem ser bem estudadas. “O que não se pode é ficar queimando óleo diesel em termelétrica.”


Míriam Leitão: Fazenda manda alertas e conselhos

Documento da Fazenda traz lista de bombas fiscais que podem ser aprovadas pelo Congresso e dificultar a recuperação no próximo governo

O futuro governo deveria olhar com cuidado o relatório do Ministério da Fazenda divulgado ontem. Cada administração tem suas ideias, mas existem pontos que são comuns. Buscar maior equilíbrio fiscal e maior foco nos gastos públicos, por exemplo. O grupo que arruma agora as gavetas acertou muito e deixou projetos engatilhados. O documento também traz a lista de algumas bombas fiscais que precisam ser desarmadas porque do contrário vão reduzir a chance de sucesso da próxima equipe.

O governo Temer preparou bons relatórios para quem chega, mas nem sempre o novo ministro está interessado em ouvir. Na economia, contudo, há uma coerência maior de pensamento. Esta equipe assumiu com a inflação perto de 10% e a entrega na meta. Tirou o país da recessão, ainda que não tenha conseguido fazer o país retomar o crescimento. O déficit fiscal deste ano será bem menor do que o projetado, ainda que o país permaneça no vermelho. Ela trabalhou, como já disse aqui, em condições políticas difíceis.

Um alerta importante é o que vincula equilíbrio fiscal com estabilidade institucional. A trajetória da dívida pública precisa ser contida porque ela levaria ao risco de default e nenhum governo sobrevive a isso, como atesta a história da Presidência de Collor. Em um dos gráficos, o relatório mostra a expectativa das instituições financeiras sobre a dívida bruta. No começo de 2016, a projeção era que este ano estaria em 84,5%, houve uma queda das previsões, que hoje estão em 77%. O déficit primário caiu de 3,1% para 1,3%.

“Uma crítica costumeira aos programas de ajuste fiscal são de que eles afetariam os mais pobres e elevariam a desigualdade social”, lembra o documento. Na verdade, as reformas podem atenuar o problema, como mostrou a estatística do gasto público por quintil de renda. Dos gastos de pessoal, 79,3% são recebidos pelos 20% mais ricos e 3% ficam com os dois últimos quintis, ou seja, os 40% mais pobres. O Bolsa Família é o programa de maior foco. Os 40% mais pobres ficam com 74,5% da renda distribuída. Na Previdência, como disse ontem aqui, 40% ficam com os 20% de maior renda no país, e 3% com os 20% mais pobres. Na lista do que foi feito há a reforma do Fies. As despesas do programa estavam numa rota explosiva e ele seria inviabilizado se não fosse feita a mudança total de parâmetros e garantia.

A equipe comandada por Paulo Guedes é que decidirá o que fazer a partir do próximo ano, mas há lá uma lista de projetos que coincide com o que foi dito na campanha, como a redução dos subsídios e incentivos fiscais. Só para citar um exemplo: o atual governo acabou com o Programa de Sustentação do Investimento (PSI) e a conta ficou alta. Até agora, foram gastos R$ 251 bilhões. E continuará pesando nos próximos anos.

O último capítulo do estudo alerta sobre os riscos de projetos que estão em tramitação no Congresso e que representam, na visão da Fazenda, “retrocesso na busca de uma sociedade mais próspera e equitativa”. Vários deles já foram temas aqui na coluna e são, quase sempre, resultados de lobbies e de pressão de grupos de interesse. Os custos são divididos por toda a sociedade, enquanto os benefícios são direcionados a poucos escolhidos.

A Previdência corre sempre o risco de passar por uma contrarreforma. Há diversos projetos que pretendem aumentar benefícios ou conceder renúncia de contribuição a categorias escolhidas. As ações judiciais também são fontes constantes de gastos. Militares questionam a cobrança de contribuição sobre pensões de inativos, aposentados do INSS que ganham mais que um salário mínimo querem ter a mesma regra de reajuste de quem recebe o mínimo, guardas civis municipais desejam ter direito a aposentadorias especiais. Só para citar algumas.

Os estados e municípios estão sempre pressionando suas bancadas para pendurar contas na União ou receber mais recursos. A maior ameaça de gastos vem de alterações na Lei Kandir, com aumento de despesas de R$ 39 bilhões por ano para o governo federal, com o valor corrigido pela inflação ano a ano. No Congresso, também há projetos que dificultam a condução das políticas fiscal e tributária, propostas de concessões de subsídios regionais, aumento da vinculação de gastos, renúncias fiscais e crescimento de despesas com pessoal. A lista é grande, é melhor o governo eleito ficar atento.


Míriam Leitão: EUA: aliados e competidores

Trégua entre EUA e China no comércio internacional mostra que a diplomacia brasileira precisa ser profissional, sem escolher lados

A trégua entre Estados Unidos e China animou o mercado do mundo inteiro e movimentou os preços dos ativos ontem. No Brasil, a comemoração foi menor porque o Ibovespa tem subido bastante. Mas o evento mostra a complexidade das relações internacionais e como é perigoso escolher um lado numa disputa entre as duas maiores economias do mundo. A guerra comercial traria prejuízos para todos, mas a trégua vai aumentar as vendas americanas de soja para a China.

Os Estados Unidos estão neste momento comercializando a safra de soja, e a nossa só estará pronta no primeiro semestre do ano que vem. Portanto, a paz vem bem a calhar para os produtores de soja americanos. Já para o Brasil, o efeito é inverso. Somos competidores dos Estados Unidos neste mercado, por isso em 2018 o Brasil vendeu 30% mais para o mercado chinês por causa da hostilidade entre as duas potências. Com a ameaça da sobretaxa dos Estados Unidos, a China mostrou como pode retaliar e comprou mais do Brasil.

O ganho era localizado e temporário, porque uma guerra aberta no comércio entre eles, se houver, provocará uma queda do crescimento global. Com a globalização, o que afeta um país pode atingir vários outros, encolhendo a economia mundial. A Organização Mundial do Comércio (OMC) calculou que o conflito entre os dois países poderia provocar, de cara, uma queda de 17,5% no comércio mundial e uma redução de dois pontos percentuais no crescimento do mundo.

O futuro governo brasileiro deu sucessivos sinais de alinhamento aos Estados Unidos e soltou palavras enviesadas em relação à China. O presidente Trump seria o salvador do Ocidente, já a China estaria comprando “o” Brasil. Bastou a trégua de três meses negociada entre Washington e Pequim para mostrar que nessa briga não se entra por várias razões. O ideal é mantermos boas relações com os dois lados. As duas potências, mesmo rosnando uma para a outra, podem mudar de ideia a qualquer momento, dependendo do próprio interesse, e suspender as ameaças, como aconteceu agora, pelo menos por três meses. O Brasil e os Estados Unidos são competidores em vários mercados, como soja, carne, frango, milho. Ambos são grandes produtores de commodities.

Haverá momentos que nossos interesses se aproximam, em outros eles se distanciam. Aos Estados Unidos, o Brasil pode se aliar quando estiver discutindo a redução dos subsídios europeus, porque a Europa tem subsídios mais altos do que os americanos. Só para citar um exemplo. Já a Europa foi vítima, como o Brasil, da elevação das tarifas impostas pelo governo Trump contra o aço. Eles já negociaram um acordo EUAUE, enquanto a siderurgia brasileira teve que se submeter às cotas impostas por Trump.

Os gestos diplomáticos do futuro governo até agora revelaram amadorismo. O ardor ideológico do futuro ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, em relação aos Estados Unidos é constrangedor. A visita do deputado Eduardo Bolsonaro a Washington foi extemporânea. Não se vai de peito aberto declarar o que faremos para agradá-los. A diplomacia americana é profissional, a nossa costumava ser. Tudo o que o Brasil não precisava era repetir os erros diplomáticos do PT, no sentido inverso.

Os Estados Unidos são um parceiro comercial importante, a maior economia do mundo, e o bom é ter as melhores relações comerciais e políticas com eles, desde que saibamos qual é o nosso interesse em cada movimento do jogo diplomático.

O dia ontem foi de otimismo nas bolsas e de aumento do apetite por ativos de risco. Na Europa e nos EUA, os principais índices fecharam no azul, o dólar perdeu força perante as principais moedas, os juros futuros americanos recuaram, assim como o índice Vix, que mede a volatilidade nos mercados. Aqui no Brasil, o Ibovespa chegou a bater novo recorde ao longo do dia, mas perdeu força no final do pregão e fechou em alta de 0,3%.

A retirada da sala, ainda que temporária, do bode da guerra comercial é de fato uma excelente notícia para a economia mundial. Mas é bom lembrar os pontos em que as economias competem, e os pontos nos quais podem atuar juntas. Em suma, nenhum alinhamento pode ser automático na diplomacia. Uma velha lei que o PT esqueceu e que o governo Bolsonaro, pelo visto, não quer lembrar.